SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE PELA ERRÂNCIA DAS EXPERIMENTAÇÕES MARCOS MARIANI CASADORE SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Responsável pela publicação desta obra Fernando Silva Teixeira Filho Silvio Yasui Elizabeth Piemonte Constantino José Sterza Justo MARCOS MARIANI CASADORE SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE PELA ERRÂNCIA DAS EXPERIMENTAÇÕES © 2012 Editora UNESP Cultura Acadêmica Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.culturaacademica.com.br feu@editora.unesp.br CIP – BRASIL. Catalogação na Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ __________________________________________________________________________ C33s Casadore, Marcos Mariani Sándor Ferenczi e a psicanálise: pela errância das experimentações / Marcos Mariani Casadore. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. Inclui bibliografi a ISBN 978-85-7983-347-2 1. Ferenczi, Sándor, 1873-1933. 2. Psicanálise. I. Título. 12-9271. CDD: 150.195 CDU: 159.964.2 __________________________________________________________________________ Este livro é publicado pelo Programa de Publicações Digitais da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Editora afi liada: AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer a todas as pessoas que colaboraram, de al- guma forma, com a realização desta obra e puderam contribuir, cada qual a sua maneira, na elaboração deste livro. Minha mais sincera gratidão a todos! Em primeiro lugar, agradeço aos meus pais, Marcos e Ana Ma- ria, pelo amor e apoio incondicionais sem os quais nada disso seria possível. Também gostaria de agradecer efusivamente ao meu professor, orientador e grande amigo Francisco Hashimoto, que me acompa- nhou por todo o caminho das pesquisas que tracei até então e a quem devo este livro. Ao meu irmão Francisco, meus agradecimentos pela companhia e convívio fraternos de sempre. Meus especiais agradecimentos à profa. dra. Maria Inês As- sumpção Fernandes e à profa. dra. Diana Pancini de Sá Antunes Ribeiro, pelos apontamentos e contribuições tão valiosos e impor- tantes não só à presente obra como também à continuidade e desen- volvimento do estudo em questão. Aos amigos e colegas do grupo de pesquisa, meu muito obriga- do pelas constantes e excelentes reuniões e discussões que – tenho certeza! – me ajudaram muito na construção das minhas ideias e nos trabalhos que realizei. 6 MARCOS MARIANI CASADORE Aos meus amigos e colegas de graduação e pós-graduação, assim como a todos os meus professores da UNESP de Assis, minha grati- dão não só pela aprendizagem como também pelo ambiente univer- sitário tão rico e aprazível que pude aproveitar ao longo desses anos. Aos funcionários da UNESP de Assis. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Supe- rior, pela concessão do apoio fi nanceiro à pesquisa. SUMÁRIO Apresentação 9 Introdução 15 1 Sigmund Freud e Sándor Ferenczi: discussões teórico- -metodológicas 33 2 Sándor Ferenczi e a técnica psicanalítica 65 3 As divergências teórico-clínicas em Ferenczi 91 4 A infl uência de Ferenczi na clínica contemporânea 125 Observações fi nais 159 Referências bibliográfi cas 163 APRESENTAÇÃO Sentimos uma insatisfação profunda diante de toda observação que não está em movimento e que não se observa a si mesma,todo pensamento que não enfrenta suas próprias contradições, toda fi losofi a que se reduz a verdades absolutas e que não se questiona a si mesma, toda palavra particular que se isola do devir mundial. Edgar Morin Não creio ser um equívoco classifi car como “errante” o modo de constituição essencial da criação e do pensamento de Sándor Feren- czi. Para além do sentido mais comum dado ao substantivo “erro”, colocado geralmente como engano ou característico de algo incorre- to ou inexato, o verbo “errar” origina-se do latim errare, o qual tinha como principais defi nições “vagar sem destino” ou “desviar-se do caminho” (Ferreira et al., 1999); defi nia assim, principalmente, po- vos ou tribos nômades que, sem estabelecerem uma habitação fi xa, vagavam de um território a outro de acordo com suas necessidades. É justamente esse aspecto da errância que gostaria de destacar como distintivo da construção teórica e técnica de Ferenczi dentro do mo- vimento psicanalítico. A psicanálise inaugurava um pensamento inédito, entre o fi nal do século XIX e o começo do século XX, sobre as psiconeuroses e a dinâmica do funcionamento mental do ser humano. Era, portanto, um saber original que apenas começava a estabelecer algumas ideias e prerrogativas muito ligadas às formulações e compreensões de Freud acerca da ciência e que fundava ali com o apoio, até então, de 10 MARCOS MARIANI CASADORE poucos colaboradores e seguidores. Desde seus primeiros anos vol- tados à prática psicanalítica, Ferenczi já se destacava pela dedicação e pelo espírito empreendedor com o qual atuava e produzia suas im- portantes contribuições ao estudo do psiquismo humano; era, desde o começo, uma das pessoas mais próximas a Freud e um dos segui- dores mais brilhantes e promissores dentre os pioneiros do movi- mento recém-criado. Ferenczi, porém, distinguia-se essencialmente como um médico, um terapeuta, um clínico “empirista”, como colo- cou certa vez numa carta a Freud; dedicava-se, portanto, muito mais à cura e ao alívio dos sintomas de seus pacientes do que à constru- ção teórica e metapsicológica do saber psicanalítico. Seguindo por esse caminho, alguns aspectos acerca da técnica e da prática analítica logo começaram a inquietá-lo, principalmente pelas limitações que estas encontravam na ação voltada a alguns casos específi cos da clí- nica que pareciam, cada qual à sua maneira, “resistir” a ela. Já mais experiente e inteirado do desenvolvimento científi co da psicanálise, Ferenczi ousou e começou a experimentar. De certa forma, passou a desviar-se dos caminhos que já haviam sido estabelecidos dentro do recente pensamento psicanalítico na busca por outros modos de trabalho clínico e manejos terapêuticos, sempre na esperança de ob- ter melhores resultados práticos. A errância de Ferenczi tinha, sim, um objetivo fi nal visado, um ideal a ser alcançado: a otimização da teoria e da técnica psicanalítica, o abrandamento do sofrimento do paciente e a maior possibilidade de cura através da análise. A partir dessa ideia inicial sobre o desenvolvimento da obra do autor húngaro, constatamos que mais alguns sentidos do “errar” ilustram o posicionamento sempre crítico e refl exivo de Ferenczi; podemos tomar como exemplo a ideia de “sair do caminho correto, lógico e racional” (Ferreira et al., 1999). Nesse caso, é importante salientar alguns aspectos que confrontam a ideia de uma lógica tri- vial e da racionalidade científi ca lógica. Morin (1997), o mesmo au- tor do excerto que elegemos como epígrafe destas páginas iniciais, chama a atenção para que não se incorra a um equívoco comum: de confundir o que ele classifi ca como lógica formal e a opositiva evolução do saber, principalmente quando tratamos das ciências SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 11 humanas, sociais ou naturais. O pensador francês, autor da teoria da complexidade, destaca que as contradições entre as verdades e o constructo “coletivo” permeado por múltiplas disciplinas seriam os verdadeiros modos de se aproximar do saber mais completo possí- vel. Dessa maneira, destaca que toda verdade absoluta é em si um erro, enquanto todos os erros constituem fragmentos ou partes de uma verdade que, por excelência, é mutável e temporária. Ferenczi, desse modo, não se desviava de uma linha de saber de- fi nitiva, correta e lógica: extrapolava, na verdade, alguns limites práti- cos que eram tidos como invariáveis em uma ciência recém-fundada e que muito teria a descobrir acerca do seu complexo objeto de estudo. Para além da hipocrisia intrínseca ao engessamento do saber psica- nalítico, procurava outras articulações, outras respostas e saídas mais apropriadas ao que ainda não possuía explicação ou solução, mesmo que parcialmente. Atuava “marginalmente”, em relação à ortodoxia psicanalítica de seu tempo, e justamente a partir desse posiciona- mento pôde expandir os limites “margeados” pela psicanálise. Dessa maneira, não só produziu novos aportes teóricos e postulou técnicas e manejos clínicos a partir da própria experiência – e experimentação – como também ilustrou muito bem a atitude de um verdadeiro cientis- ta psicanalítico: sempre se questionar acerca de seu papel e trabalho. É evidente que Ferenczi, vez ou outra, incorria em erros – des- sa vez, no sentido mais comum da “incorreção” ou “inexatidão” –, admitindo-os e, ao mesmo tempo, advertindo outros pesquisadores, estudiosos ou praticantes da psicanálise para que atentassem àquilo que lhe havia enganado ou iludido. Excedendo a defi nição deprecia- tiva de “erro”, há o elogiável ligado a ele e também destacado pelo pensamento complexo: é exatamente a partir dos erros, das contra- dições e das verdades que se opõem e que apresentam dilemas in- superáveis sem uma defrontação dialógica entre elas que podemos chegar a conclusões mais relevantes e a saberes mais estruturados. De fato, o erro fez parte da própria construção freudiana da psicaná- lise: como salientou Roudinesco, no documentário Sigmund Freud: a invenção da psicanálise (1997), foi enganando-se e corrigindo seus erros que Freud construiu suas principais hipóteses dentro da teo- 12 MARCOS MARIANI CASADORE ria psicanalítica – principalmente nos primórdios de sua edifi cação. Além disso, quando Freud se depara com suas postulações acerca da teoria da sedução nas histéricas, coloca a si mesmo como objeto, a ser observado, e parte de constatações mais amplas, a serem investiga- das e inseridas nas suposições científi cas que construía. Até o início de 1904, estruturaria, por fi m, à guisa de uma “autoanálise”, algu- mas constatações contidas nas correspondências com Fliess a partir das experiências clínicas e elaborações teóricas e metapsicológicas que infl uenciaram diretamente o desenvolvimento psicanalítico ul- terior de seus estudos. Ferenczi também era um expoente dessas ideias e construções teóricas e técnicas graduais, conjunturais e “errantes”: levantou questões, que serão sempre pertinentes e sumariamente importantes de serem consideradas enquanto existir uma prática psicanalítica, referentes, por exemplo, ao papel do analista, ao saber psicanalítico instituído e à própria instituição psicanalítica, na qualidade de asso- ciação e organização regulamentada. Problematizações como estas se atualizam de acordo com o contexto a qual pertencem e exigem releituras de acordo com seu tempo, com a cultura que as permeia e com os próprios sujeitos envoltos por elas. A errância, enfi m, parece caracterizar não só o pensamento psica- nalítico do início do século XX mas sim todo o conjunto de produção de conhecimento contemporâneo, cada qual a seu modo. Ao se tomar os saberes e as verdades como temporários, históricos, variáveis e ine- rentemente derivados de outros fatores e fragmentos que compõem num todo a realidade e o contexto abordado, deparamo-nos com a ideia de que somente a “errância”, por dentre vários campos discipli- nares distintos, suas particularidades e a posterior composição de um conjunto complexo acerca do objeto em questão podem abordar um problema de maneira não simplista ou reducionista. Para encerrar essa pequena refl exão inicial sobre a importância dos questionamentos críticos e refl exivos acerca das teorias e práticas científi cas e ainda ressaltar a necessidade de buscar apreensões para além do que está posto como fi xo ou como único saber a ser consi- derado, a partir de um movimento “errante” que ultrapasse as bar- SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 13 reiras restritivas encontradas pelo caminho, vale destacar um último sentido do verbo “errar”: “espalhar-se em várias direções, dissipar- -se, fl utuar” (Ferreira et al., 1999). A intenção de Ferenczi, com suas experimentações clínicas, buscou dissipar pela comunidade analíti- ca novos saberes complementares àqueles que já existiam e, assim, expandir os limites – principalmente práticos e terapêuticos – com os quais a psicanálise se deparava e que, de certa maneira, o inquieta- vam. Talvez Ferenczi tenha exigido muito da ciência psicanalítica e esperado mais do que ela poderia, de fato, oferecer. O ideal que obje- tivava alcançar com o saber e a prática da psicanálise era utópico, e as exigências demandadas do analista, impraticáveis. É provável que, ao se enveredar pelos caminhos escolhidos que mantinham entre si uma coerência permeada pelo cuidar e pelo curar, privilegiou demais um dos lados da psicanálise e deixou de lado outros fatores impor- tantes de serem considerados na complexidade geral da clínica. De qualquer maneira, além de descobertas importantes para o campo técnico, toda a sua prática trouxe importantes colaborações à psica- nálise e novos vieses a serem observados e atentados na experiência clínica. Mesmo impedido de concluir suas últimas pesquisas, aco- metido, subitamente, por uma anemia perniciosa, Ferenczi levantou hipóteses e questões que mudaram o desenvolvimento ulterior da psicanálise – infl uenciando e embasando, ainda, trabalhos de outros grandes teóricos – e que chamaram a atenção para problemas até en- tão negligenciados, esquecidos ou, simplesmente, deixados de lado como “insolúveis”, principalmente aqueles concernentes à técnica psicanalítica e à prática clínica. Para além do construído, o próprio processo de construção, com todas as suas descobertas, percalços e constatações, marcam o trajeto fi nal do autor húngaro. Esse caráter geral de sua elaboração é o que se perpetua e se mantém atual. O caminho percorrido nas pesquisas até chegar a Ferenczi foi um tanto “errático”, sem destino previsto nem trilhas predetermi- nadas: segui por diversos temas e objetos de estudo antes de me de- parar com a produção psicanalítica ferencziana e elegê-la como obje- to de estudo. O presente livro tem sua origem na pesquisa da minha dissertação de mestrado, defendida em 2011. De início, não imagi- 14 MARCOS MARIANI CASADORE nava focar meu estudo na construção teórica e técnica desse grande psicanalista, que conhecia, até então, muito superfi cialmente. Fiquei admirado com sua criatividade e paixão pelo movimento psicanalí- tico, crescente à sua época, com a dedicação imensurável aos seus pacientes e à melhora de seus sintomas, com sua aplicação à evolu- ção da ciência psicanalítica, e, por fi m, com o posicionamento ético e autocrítico que perpassou, principalmente, os últimos anos de sua obra e de seu trabalho como analista. Desse modo, minha intenção é a de colaborar com a “dispersão” e difusão de algumas de suas ideias e constructos teóricos e técnicos que aparecem, atualmente, como grandes possibilidades de apoio às leituras contemporâneas da psi- canálise e, especialmente, da clínica psicanalítica atual. Justamente a partir desse novo olhar às postulações originais de Ferenczi, em- basando-nos em novas leituras críticas e compreensões originais de seus apontamentos e posicionamentos, podemos construir também nossas trilhas e caminharmos em direção ao estabelecimento de ou- tros saberes complexos, elaborados e atualizados. O movimento e o avanço são necessários na construção científi ca atual, e o conhecido provérbio latino já parecia prenunciar esse cenário: Errare humanum est.1 1 “Errar é humano”. Provérbio latino cuja autoria é atribuída, por vezes, a Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.). INTRODUÇÃO A psicanálise já conta com mais de um século de existência. Car- rega consigo uma história muito ligada aos aspectos característicos da época de sua criação e que a acompanha até hoje, ainda que intima- mente relacionada aos ideais de ciência vigentes. Se, no início, nem Sigmund Freud podia pontuar exatamente quando havia sido funda- da sua prática terapêutica – que mais tarde se tornaria também uma concepção teórico-científi ca de homem e de mundo, além de um pro- cedimento para investigação dos processos mentais –, na atualidade, de maneira quase similar, fi ca difícil estabelecer qual seria o ponto fi nal de sua construção. Dessa forma, a psicanálise, junto a toda sua complexidade teórica e metodológica, destina-se a uma infi nidade de construções complementares, de novas especulações e conceitos auxiliares, formulados sobre fundamentos já estabelecidos, mas que buscam sempre algo novo e em constante aprimoramento. Por toda a sua história, portanto, a psicanálise foi criação após criação; talvez, por conta disso, Freud não sabia o que eleger en- quanto ponto crucial de sua construção. Nas conferências sobre a teoria recém-criada proferidas em Worcester, nos Estados Unidos, em 1909 – as primeiras fora do círculo europeu inicial e, ainda, a pri- meira fala considerada “para um grande público”–, Freud chegou a dizer que não havia participado de suas origens, dando a entender, 16 MARCOS MARIANI CASADORE portanto, que a psicanálise havia começado já com Breuer, em 1880, e que sua relação terapêutica com Anna O. pautava a descoberta da “cura de conversação”, ou “cura pela fala”. Alguns anos mais tarde, quando escreve “A história do movimento psicanalítico” (Freud, 1914a), resolve assumir toda a responsabilidade por ela. No traba- lho, conta que havia sido questionado por amigos bem intenciona- dos sobre o porquê de dedicar todo o mérito da descoberta a Breuer, ao invés de simplesmente reconhecer sua importante participação como preliminar à psicanálise, considerando esta a partir do empre- go da técnica das associações livres. Em resposta, Freud considerara aquilo que chama de “detalhe pouco interessante” e sem muita im- portância para a história da psicanálise. A nova teoria, toda original, crescia em forma, conteúdo e ex- planação ao mesmo tempo em que crescia o número de adeptos a ela. Era um pequeno começo, com muito a ser desenvolvido; o trabalho analítico, sem grande história nem muitas experiências, iria a campo a fi m de complementar os métodos empregados e corroborar ou con- trariar as ideias que surgiam enquanto especulação e possibilidade. Com a criação da Associação Psicanalítica Internacional (IPA – International Psychoanalytical Association), proposta por Ferenczi durante o II Congresso Internacional de Psicanálise, realizado em Nuremberg, em 1910,1 a psicanálise passaria a uma condição mais formal e precisa. A fi m de agrupar todas as sociedades que surgiam pela Europa e, mais tarde, pelos Estados Unidos, a intenção era manter uma postura fi rme frente à crescente crítica médica sobre as novas técnicas e, de certa maneira, dar um primeiro passo rumo à regularização da formação psicanalítica e à garantia da qualidade dos ensinamentos técnicos e teóricos e da competência dos formandos. A fundação da IPA, que, até 1936, era ofi cialmente Internationa- le Psychoanalytische Vereinigung (IPV) envolvia outras questões 1 Freud foi quem defi niu, com Ferenczi, a ideia de uma Associação Internacional e pediu a ele que a propusesse no Congresso. Escreveria, depois, a Ferenczi, em 3 de abril de 1910: “Com o parlamento de Nuremberg, termina a infância do nosso movimento. Esta é a minha impressão. Espero que agora venha uma bela e rica juventude” (Freud apud Falzeder; Brabant; Giampieri, 1994, p.217). SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 17 além da ordenação formal do movimento: a partir dela, Freud or- ganizaria, com a pretensão de manter unidade e coerência científi ca nas postulações psicanalíticas por vir, a evolução do movimento, que começava a se irradiar de maneira desarranjada. Por outro lado, como aponta Gay (1989), Freud tinha a intenção de mover o cerne da instituição psicanalítica de Viena a Zurique que, localizada no centro da Europa, aparecia como muito mais promissora. Ao pro- por Jung como presidente permanente da IPA, além de manifestar sua enorme confi abilidade nele, implicitamente elegia seus “novos” seguidores suíços, em detrimento aos primeiros adeptos vienenses. Nuremberg, portanto, foi palco de confrontos mais sérios que come- çavam a surgir na causa psicanalítica. Freud era muito rigoroso em relação à evolução da teoria psi- canalítica; elogiava bastante os trabalhos científi cos que seguiam o caminho daquilo que considerava correto (entre eles, por exemplo, praticamente tudo o que Ferenczi escreveu, desde os seus primeiros anos de envolvimento com a psicanálise até o período próximo de sua morte, em 1933), mas também se colocava com muita rigidez frente aos posicionamentos dissonantes de outros seguidores e seus trabalhos científi cos. Ora, com muito a ser descoberto na psicanálise in statu nascendi e a rigorosidade em relação à manutenção de certa uniformidade teó- rica e técnica por parte de Freud, não era de estranhar que logo hou- vesse confrontos de caráter científi co no, até então, modesto grupo inicial de psicanalistas, assim como suas consequentes dissidências. Alfred Adler, em meados de 1911, e, mais tarde, Carl Jung, por volta de 1913, foram os discordantes, cujas rupturas marcaram o iní- cio do movimento psicanalítico. O primeiro rejeitava, principalmen- te, a teoria da libido freudiana; desenvolveria, assim, seus trabalhos a partir da agressividade, da busca do poder e da notoriedade, ante- cipados pelo sentimento de impotência, por parte da criança. Além disso, considerava o indivíduo e seus aspectos sociais e sociológicos, e basearia o estudo da psicologia da vida adulta nos primórdios desse “todo” infantil. Segundo Gay (1989, p.215), não só Freud rejeitava Adler como este também rejeitava aquele e, cada vez menos, Adler 18 MARCOS MARIANI CASADORE acreditava na teoria psicanalítica original, em contraste às próprias formulações. Em resposta ao pedido de Freud para que não deixasse a sociedade psicanalítica, disse-lhe: “Por que eu haveria de realizar meu trabalho sempre à sua sombra?” (Adler apud Gay, 1989, p.215). Adler deixou a IPA em 1911, na companhia de nove membros. Dois anos mais tarde, no entanto, a oposição de Jung à corrente freudiana e seu completo afastamento da IPA foi o que realmente surpreendeu todos aqueles que faziam parte do círculo mais notó- rio da psicanálise. Enquanto presidente da associação, indicado por Freud e reeleito depois, era evidente o carinho e a estima que este tinha com Jung, que havia sido designado seu sucessor e “príncipe herdeiro” da cátedra principal do movimento psicanalítico.2 Eis que, então, Jung passou a se colocar contra muitos dos conceitos originá- rios e básicos da psicanálise. A cisão entre Freud e Jung foi uma crescente. Este considerou como início da ruptura a viagem que realizaram aos Estados Uni- dos, em 1909, acompanhados por Ferenczi. Mais especifi camen- te, um episódio em que, junto a Freud, numa análise mútua de sonhos, havia reconhecido no mestre um traço muito acentuado de autoridade pessoal – ao não lhe contar coisas pessoais e correr o risco de, segundo o próprio Freud, colocar sua autoridade em ris- co, frente aos discípulos –, e isso posto acima da verdade científi ca (Adler apud Gay, 1989, p.216-217). A partir disso, a relação entre os dois mudou; mesmo assim, as diferenças não eram tão enfáti- cas. Freud percebia as atitudes de Jung como, no máximo, indis- ciplinas esporádicas. Já da parte de Jung, acentuava-se cada vez mais a busca por independência; sentiu-se livre (ou impelido?) a conceituar suas ideias e formular a própria visão da teoria psica- nalítica, a partir dos estudos que iniciava nos campos da religião, do ocultismo e da mitologia. Seu ponto de partida foi a defi nição do conceito de libido: Jung, que já parecia não aceitar totalmen- 2 Freud escreveu a Binswanger, em 1911: “Quando o reino que fundei estiver órfão, ninguém além de Jung deverá herdá-lo inteiramente [...]” (Binswanger apud Gay, 1989, p.210) SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 19 te as defi nições freudianas, deu-lhe signifi cado próprio, de modo que abrangesse não só os impulsos sexuais mas qualquer tipo de energia ou instinto. Para além da libido, as publicações junguianas distanciavam- -se cada vez mais da psicanálise fundamental freudiana. Nos Esta- dos Unidos, quando convidado, proferia cursos com teorizações já redefi nidas, em 1912 e 1913. Paralelo a isso, a ligação com Freud tornava-se cada vez mais remota; Freud buscava, ainda, manter a parte pessoal e íntima do relacionamento de outrora, para além dos formalismos, mas Jung não parecia mais disposto. Além disso, al- guns episódios marcavam o distanciamento e a divergência entre os dois. Ao chamado “gesto de Kreuzlingen” (a visita de Freud a um amigo na referida cidade – perto de onde morava Jung – e da qual Freud nada havia mencionado a ninguém), por exemplo, Jung atri- buiu imensa importância, considerando uma atitude grave por parte daquele de não visitá-lo também. Freud demonstrava nas cartas que escrevia a Ferenczi realmente não entender o que se passava com Jung; nem mesmo tinha certeza sobre o que ele se referia com “gesto de Kreuzlingen”. A troca já hostil de correspondências entre os dois só deixava mais claro o que estava por vir. Podemos considerar a publicação de 1913, “Metamorfoses e símbolos da libido”, de Carl Jung, como o ponto teórico fi nal na re- lação que ele e Freud ainda mantinham, sob o pretexto do movimen- to psicanalítico. Agora se tornava claro o posicionamento crítico de Jung frente à psicanálise freudiana; especifi camente, ele reformulou e se opôs a alguns conceitos básicos, como a sexualidade infantil, o complexo de Édipo, a libido, a fi xação e até mesmo o inconsciente. Ferenczi, responsável pela crítica ao estudo, escreveria a Freud que, de original, Jung apresentava apenas o lado místico (a astrologia), ou seja, sua fé ocultista disfarçada de forma científi ca, misturada ao que Ferenczi considerava afi rmações falsas ou precipitadas. Enfi m, essas primeiras dissidências e crescentes oposições ao desenvolvimento que Freud pretendia alcançar com sua psicanálise culminaram em algumas medidas tomadas por ele. Ferenczi e Ernest 20 MARCOS MARIANI CASADORE Jones, a partir da saída de Adler, conversaram sobre o que poderia ser feito para que, no futuro, coisas parecidas não acontecessem. Fe- renczi propõe, como ideal, um número de médicos, analisados por Freud, instalados em diversos países e cidades; naquele momento, o possível seria reunir, em torno de Freud, os analistas mais antigos e dignos de confi ança, que seriam responsáveis pela manutenção de certa ordem no desenrolar do movimento. Em 1912, Jones escreve a Freud sugerindo esse comitê, que se reuniria em torno dele, como uma guarda de confi ança, cuja existência e ações deveriam perma- necer secretas. Além do próprio Freud, tal comitê seria formado por Sándor Ferenczi, Ernest Jones, Karl Abraham, Otto Rank e Hans Sachs. Em 1919, Eitingon entraria também para a seleta lista de membros. A fi m de trocarem notícias e discutir, privadamente, qualquer tentativa de afastamento ou desvio dos princípios básicos da psicanálise freudiana, Freud aceitou, com muita determinação, a formação desse grupo, por considerar que seus melhores e mais confi áveis homens cuidariam do desenvolvimento teórico e defen- deriam a causa para até depois de sua morte. Problemas também estavam por vir, entre os membros do comitê secreto, por conta de tensões teóricas e animosidades pessoais. Em meio aos problemas com Jung, logo depois da saída de Adler, Freud resolveu tomar outra medida: escreveria, em defesa da sua psicanálise, “A história do movimento psicanalítico”, con- siderado um trabalho mais subjetivo, com tom bastante enérgico. Freud, por vezes, relatava a Ferenczi que o escrevia furiosamente, aplicando-se às correções. Logo nas primeiras linhas, é nítida sua relação íntima e inseparável com a psicanálise: Não é de se estranhar o caráter subjetivo desta contribuição que me pro- ponho a trazer à história do movimento psicanalítico, nem deve causar surpresa o papel que nela desempenho, pois a psicanálise é criação mi- nha; durante dez anos fui a única pessoa que se interessou por ela, e todo o desagrado que o novo fenômeno despertou em meus contemporâneos desabou sobre minha cabeça em forma de críticas (Freud, 1914a, p.18). SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 21 Num discurso muito cativante e assaz interessante, Freud re- lataria aquilo que considerava importante dentro da história que tomava forma com o passar das páginas. Seu intuito era, declarada- mente, outro: mais do que os fatos marcantes do passado, escrevia ali críticas abertas às teorias de Adler e Jung – dedicou praticamente todo o terceiro capítulo a isso –, além de deixar bastante claro que, pelo seu longo e forte envolvimento com a teoria, ninguém mais que ele saberia dizer do que se tratava a psicanálise e no que ela diferia das outras formas de investigação. Antes mesmo de publicá-lo, Jung já havia entregado seu cargo na presidência da IPA e se afastado dela. Pouco tempo antes, deixa- va também o cargo de editor-chefe do Jahrbuch, primeiro periódico psicanalítico, ao ter ouvido de um terceiro uma opinião de Freud so- bre ele, considerada por Jung como “a mais grave exprobração que se pode dirigir a quem quer que seja” (Jung apud McGuire, 1993, p.559). O incidente, segundo Jung, impossibilitaria a continuida- de de colaboração futura entre os dois.3 Em carta a Ferenczi (Freud apud Falzeder; Brabant; Giampieri, 1994, p.284), Freud considerou como surpreendente a demissão de Jung da presidência da IPA, em abril de 1914; Jung, por sua vez, escrevia a Freud – dirigindo-se a ele como “Senhor Presidente” – que havia sido convencido, pelos acon- tecimentos recentes, que suas concepções estavam em tão demasia- do contraste com as ideias da maioria dos membros associados que não poderia, dessa forma, considerar-se uma pessoa adequada para a presidência; portanto, propunha sua renúncia. A atitude é que, tal- vez tenha surpreendido Freud; o ato em si, cedo ou tarde, estava em vias de acontecer. Em julho de 1914, Freud publicou, por fi m, o tão polêmico arti- go sobre a história do movimento psicanalítico; o trabalho teve, sem dúvidas, a repercussão esperada pelos membros do comitê. De ma- neira defi nitiva, foram separados Freud e seus seguidores daqueles 3 Jung escreveria uma nota de renúncia no número seguinte do Jahrbuch, acompanhado também pela desistência do então diretor Bleuler. “Senti-me obrigado a renunciar como editor do Jahrbuch. Os motivos de minha renúncia são de natureza pessoal, razão pela qual me recuso a discuti-los em público” (Jung apud McGuire, 1993, p.559). 22 MARCOS MARIANI CASADORE que se opunham de maneira mais abrupta à psicanálise fundamen- tal; fi rmou-se a diferenciação entre psicanalistas e não psicanalistas. Logo no início do artigo, Freud, ao dizer que somente ele saberia o que deveria, precisamente, ser denominado de psicanálise e o que seria melhor chamar com outro nome qualquer, viu logo as respos- tas: Adler não tardou em denominar seu trabalho como “psicologia individual”, e Jung fundou a própria “escola”, designada “psicolo- gia analítica”. A partir dessa primeira “vitória” dentro da instituição máxima da psicanálise, Freud se proporia a escrever – como havia relatado a Ferenczi – artigos bem abrangentes sobre a técnica psicanalítica e a metapsicologia, visando à coerência e, mais uma vez, à formalização da ciência. Nunca propalou os artigos sobre a técnica (outros, além daqueles de 1912), e alguns dos ensaios metapsicológicos foram pu- blicados no ano de 1915. A questão da técnica em psicanálise viria a ser, ainda, uma grande questão discutida e problematizada no cerne do movimento. Poder-se-ia dizer que, depois de Jung, o grande desapontamen- to de Freud com dissidentes teria sido a oposição de Otto Rank a al- gumas das formulações psicanalíticas clássicas; porém, ao contrário de Adler e Jung, Rank nunca deixou de ser um freudiano convicto. Suas ideias eram um pouco desviantes ou inovadoras, mas nunca se colocariam em oposição à teoria fundamental da psicanálise. Situou- -se, portanto, não contra a psicanálise freudiana, mas sim contra sua ortodoxia exacerbada. Seu distanciamento, no entanto, acabou deixando-o de fora da considerada psicanálise instituída por Freud. Mijolla (2005) considera o afastamento de Rank como a primei- ra cisão psicanalítica legítima; ao contrário de Adler e Jung, que já possuíam trabalhos anteriores ao seu envolvimento com a psicaná- lise e, portanto, entrariam em contato já com outras concepções que apenas se aproximavam da ciência freudiana, Rank era um autêntico pupilo de Freud e seguia, desde o começo, ao lado de seu mestre nas concepções teóricas que acreditava. Até mesmo Freud incentivou Rank a desenvolver as próprias proposições psicanalíticas, mesmo que um pouco diferentes da- SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 23 quelas que concebia. Estimulou, ainda, a parceria de Rank com Fe- renczi, que julgava bastante benéfi ca por se tratar de dois dos seus seguidores em que mais depositava confi ança pessoal e quase incon- dicional. Recebeu os trabalhos de Rank sem alardes, ao contrário de outros membros do chamado comitê que entendiam suas propostas como totalmente contrárias aos princípios psicanalíticos. Rank publicou, em 1924, seu famoso livro O trauma do nascimento,4 no qual direcionava a ideia de angústia psíquica “originá- ria” à separação biológica entre criança e mãe, no momento do parto. Esse interesse – bastante inovador para a época – pelo relacionamen- to pré-edipiano da criança com a mãe, mudava um pouco a concep- ção do complexo de Édipo clássico, tornando-se quase uma crítica ao falocentrismo teórico inicial. Inaugurava-se, então, aquilo que seria a base conceitual para muitos psicanalistas ingleses, na área em que Me- lanie Klein também começava a desenvolver as próprias formulações. Nessa linha de desenvolvimento, Balint pautaria grande parte dos seus estudos metapsicológicos na relação primordial entre mãe e bebê. Foi em 1926 que Rank teve a desaprovação maior da parte de Freud. Além de sua obra sobre a origem da angústia no nascimento, tolerada por Freud, mas não aceita integralmente, outros trabalhos corroborariam a oposição que fortemente lhe faziam Abraham e, sobretudo, Jones. Muito criticado no círculo principal de psicanalis- tas, que, frequentemente, se queixavam dele a Freud, foi no campo da técnica que Rank mais se distanciou da ideia vigente dos freu- dianos ao colocar suas propostas acerca de uma relação terapêutica pautada nas relações atuais. Dando continuidade às suas criações sobre a técnica psicana- lítica junto de Ferenczi, grande companheiro profi ssional e amigo, publicadas em Perspectivas da psicanálise, Rank proporia aquilo que chamou de “terapia ativa”: sinteticamente, trata-se de centrar a te- 4 Otto Rank perguntou a Freud se aceitaria a dedicatória que pretendia dirigir a ele em seu livro. Freud consentiu. Quando foi criticado pelos companheiros acerca do conteúdo que publicava, Rank disse que o trabalho surgiu de inúmeras anotações clínicas feitas ao longo dos anos e daquilo que Freud já havia dito em reuniões e escrito, mas não explorado: a angústia e o trauma originavam-se no nascimento. 24 MARCOS MARIANI CASADORE rapia no presente (e não no passado), propondo tratamentos mais rápidos por pautarem-se em problemas atuais do paciente; conse- quentemente, estimularia o próprio desejo de cura dos analisandos e conseguiria resultados a curto prazo, ao invés de perdurar aquilo que julgava ser uma “passividade masoquista” por parte deles. A primeira oposição de Freud apareceu em “Inibições, sintomas e ansiedade” (1926) e direcionava-se, sobretudo, à angústia5 “origi- nária” do nascimento. Longe de se colocar contra a conceituação de Rank, Freud aproveitou o ensaio que escrevia para desenvolver me- lhor aquilo que já havia esboçado em outras obras, mas não consi- derado de maneira pormenorizada: a ideia de angústia (e angústias), seus moldes e sua relação com os mecanismos de defesa. Sua oposi- ção fi xou-se, como escreveria mais tarde, nas “conclusões extremas que [Rank] extraiu desse fator, [cujo] cerne (...) – de que a experiên- cia de ansiedade no nascimento é o modelo de todas as subsequen- tes situações de perigo – ele já o encontrou pronto” (Freud, 1933b, p.91); ressaltou, assim, a importância das colocações de Rank para o desenvolvimento da teoria, mas também assumiu a autoria da ideia de uma angústia original. Ferenczi, que, por sua vez, apoiava Rank no início de suas novas formulações, também foi convencido de que sua teoria estava afastan- do-se demasiadamente da base psicanalítica. Mais tarde, a convite de Freud, escreveu um artigo crítico aos trabalhos recentes de Rank. O mesmo havia acontecido com Jung: Freud delegou a Ferenczi a tarefa de escrever um artigo crítico, a ser publicado num próximo número do periódico psicanalítico, acerca do primeiro livro “dissidente” dele. Em suas correspondências, Freud sempre demonstrava bastante ad- miração na qualidade de argumentação, oposição e discussão crítica de Ferenczi em relação àqueles que se posicionavam contra a psicaná- lise ou que se opunham a algum de seus estudos. De qualquer maneira, o afastamento teórico de Rank deu-se a uma combinação da sua ideia do trauma do nascimento enquanto 5 Ao que Freud nomeia como angst, optamos, em português, por “angústia”; na obra consultada para a pesquisa (Freud, 1926), traduz-se por “ansiedade”. SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 25 condicionante de todas as demais angústias ulteriores – portanto, único foco de análise do passado subjetivo – com as técnicas suge- ridas, que focavam o presente e prometiam um êxito terapêutico quase imediato. Ligado a isso, Rank começou a ir frequentemente aos Estados Unidos e, cada vez mais, focava seu futuro psicanalítico na nova terra; assim, marcava-se o afastamento pessoal em relação a Freud e seus antigos companheiros do movimento. Freud descreveu, em “Novas conferências introdutórias sobre psicanálise”, o que pensava acerca dessas três dissidências mais en- fáticas desde o começo da história psicanalítica: É uma característica quase universal desses “movimentos de secessão” o fato de que cada um deles, de toda a variada riqueza de temas da psica- nálise, apreende apenas um fragmento e se faz independente com base nessa apreensão — escolhendo o instinto de domínio, por exemplo, ou o confl ito ético, ou a [importância da] mãe, ou a genitalidade, e assim por diante (Freud, 1933b, p.142). Desse modo, posicionou-se frente à atenção focada num só dos aspectos da terapia psicanalítica: o reducionismo da complexidade subjetiva, ao se eleger um só ângulo a ser trabalhado. Na mesma linha de raciocínio que desenvolvia, Freud colocou as dissidências como naturais: existem as difi culdades em adaptar-se ou subordi- nar-se a uma concepção teórica, pois todos possuem opiniões pró- prias; quando a divergência supera certo ponto “tolerável”, o mais sensato é que cada um siga seu caminho. Porém, em relação aos de- sacordos já citados, enfatizou que poderiam chegar a ser uma escola de sabedoria, mas não mais de análise. Mijolla (2005) afi rma que Ferenczi seria o próximo a se sepa- rar de Freud, se não houvesse morrido antes de avançar mais com sua produção teórica e técnica. Os fatos também apontam para essa constatação; o próprio Freud, ao escrever o pequeno obituário em homenagem à Ferenczi (Freud, 1933a), enfatizou a produção inicial do seu grande amigo húngaro, mas também discorreu sobre o afas- tamento deste que, nos últimos anos, buscava, enfaticamente, a cura 26 MARCOS MARIANI CASADORE e a resolução completa dos problemas neuróticos. Enveredando-se por técnicas bastante alternativas e convicto de que encontraria ma- neiras mais efi cazes de lidar com o sofrimento alheio, Ferenczi não recebia apoio nenhum de Freud e de seus colegas mais antigos nessas novas experiências.6 Enfatizaremos o trabalho de Ferenczi e sua re- lação com Freud nos capítulos seguintes do livro. Eis que nessa breve e introdutória retomada histórica da psica- nálise, estamos ainda no seu começo. Muito estaria por vir com o desenvolvimento teórico dos pós-freudianos. Até a morte de Freud, em 1939, era possível perceber quão íntima era a ligação entre sua vida e todo o movimento psicanalítico; a psicanálise, portanto, re- lacionava-se diretamente à pessoa de Freud, e seu desenvolvimento pautou-se quase completamente, nesse início, nas publicações que ele próprio escrevia. Como afi rmou, ninguém mais que ele próprio saberia dizer o que era a psicanálise. O que se sucedeu à morte de Freud foi aquilo que fi cou conhe- cido como a “era das escolas” psicanalíticas. Ao fi nal da Segunda Guerra Mundial, além de expandir-se para a França e outros países fora do continente, o desenvolvimento da psicanálise centrou-se na Inglaterra (com a sede da IPA), onde Anna Freud continuou seus trabalhos e onde Melanie Klein se fi xou para desenvolver sua psica- nálise, de prática e teoria diferentes da tradicional, reunindo muitos adeptos (entre eles, Wilfred Bion). Surgia também o famoso “gru- po independente”, formado por Donald Winnicott, Michael Balint e outros associados. Esboçava-se ali a diversifi cação e extensão do movimento psicanalítico. Em comum, poder-se-ia dizer que esses três campos de estu- dos psicanalíticos ingleses focavam seu trabalho inovador e teórico 6 Ernest Jones, que havia sido analisado por Ferenczi em 1913 e, nessa época, deu-se muito bem com ele, posicionava-se agora de tal maneira contrário às especulações teóricas e técnicas de Ferenczi que o julgou estar mentalmente afetado nos seus últimos anos de vida. Difamou-o e evitou publicar suas últimas obras, enquanto fundador e diretor dos principais periódicos psicanalíticos, até o fi m da Segunda Guerra Mundial. Michael Balint, provavelmente, foi um dos poucos colegas de Ferenczi que o apoiou e incentivou sua investigação em busca do desenvolvimento da teoria e da técnica psicanalítica. SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 27 nas crianças; especifi camente e de maneiras diferentes, nas relações mais antigas entre o bebê e sua mãe. A tendência da teoria psicana- lítica parecia fi xar-se, agora, no desenvolvimento humano a come- çar pelo nascimento do bebê e seguir até a “resolução” do complexo de Édipo. Entre outros dissidentes mais conhecidos no cenário psicanalí- tico mundial, Wilhelm Reich – expulso em 1934 da IPA – possui, ainda hoje, muitos estudiosos de sua obra e inúmeros terapeutas que seguem suas teorias ao redor do mundo. Mas Jacques Lacan, outro grande protagonista da história psicanalítica, será o nome mais in- fl uente da segunda metade do século XX. Ele fundou a Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP) junto de outros grandes psicanalistas emergentes, depois dos confl itos na então Sociedade Psicanalítica de Paris, em 1953. Após sua reintegração à IPA ser negada, em 1964, funda sozinho a Escola Freudiana de Paris, recebendo em pouquís- simo tempo um número grandioso de adeptos e alunos. A “escola lacaniana” destacou-se graças às numerosas criações e reformulações teóricas de seu mestre: Lacan foi o autor de uma das linhas psicanalíticas mais revolucionárias e polêmicas dentro da história do movimento. Pautando seus estudos e sua produção di- retamente na obra freudiana, esmiuçou e reformulou conceitos, de- senvolveu algumas ideias e colocou-se contra outras, até afastar-se claramente de Freud ao alcançar as próprias elaborações metapsico- lógicas de inconsciente, das pulsões, do Eu e sua ligação aos estratos simbólico, imaginário e real do aparelho psíquico. Com grande ên- fase no estudo dos casos pré-edípicos – seu interesse desde os tem- pos em que cursava apenas a psiquiatria –, marcou-se por considerar o desenvolvimento humano extremamente estruturado e delinear suas fases enquanto evolução dita “normal” (neurótica) ou “psicóti- ca” (sua “foraclusão” do complexo de Édipo), além da possibilidade de renegação da Lei e estrutura distintamente perversa. Além dos já citados, inúmeros outros psicanalistas com suas teorias originais e contribuições ímpares para o todo da psicanálise surgiram nesse século de história. Como a retomada aqui é simples- mente introdutória, não caberia alongar-se muito na continuidade 28 MARCOS MARIANI CASADORE desse desenvolvimento. Optamos por examinar com um pouco mais de atenção o período inicial do movimento e suas dissidências, não só pela origem histórica mas também por encontrar-se ali, especifi - camente, a relação entre Freud e Ferenczi, dois analistas de exímia importância para o desenvolvimento da teoria psicanalítica ulterior. A obra completa de Ferenczi, inovadora em muitos sentidos, é o ob- jeto de estudo, de modo geral, deste livro. Durante muito tempo, a maioria dos psicanalistas aderia a uma dessas escolas e ali fi xavam todo o seu desenvolvimento profi ssional; mas, como destaca Figueiredo (2009), já há algumas décadas, essa limitação não é mais tão presente. Segundo o autor, apenas algumas exceções mantêm a insistência na segregação entre linhas de pes- quisa que, por muito tempo, impediu seus estudiosos de poderem explorar todo o fascinante acervo de contribuições científi cas acu- muladas ao longo da história do cenário psicanalítico mundial. Graças a esse modo contemporâneo de se apropriar do conjunto das criações psicanalíticas, torna-se possível voltarmos a Freud, por exemplo, e trazer dali novas contribuições, maneiras inéditas e origi- nais de entendimento do conteúdo de sua obra, pautadas agora numa nova realidade clínica e social. Da mesma maneira, renovam-se as leituras possíveis de outros grandes nomes do cenário psicanalítico: Ferenczi, por exemplo. Figueiredo (2009), a partir de uma releitura de André Green, sustenta não só ser possível como também neces- sário retomar os mais importantes teóricos das primeiras gerações na relação entre seus trabalhos, num atravessamento interescolar de paradigmas científi cos; essencial seria, também, voltarmos nossa atenção às obras de outros grandes estudiosos contemporâneos que pautaram seu trabalho justamente nessa intersecção entre as diversas tradições psicanalíticas, como Pierre Fédida, René Kaës ou mesmo o próprio Green, entre tantos outros autores originais da atualidade. A partir das afi rmações anteriormente colocadas e do fl uxo atual dos estudos psicanalíticos, o presente estudo justifi ca-se em dois sentidos: no primeiro, a investigação acerca da inter-relação mútua presente no desenvolvimento das obras de Freud e Ferenczi e, poste- riormente, as infl uências diretas e indiretas destes no que concerne ao SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 29 desenvolvimento da teoria e da prática psicanalítica posterior. Além disso, é importante destacar a criação teórica de Ferenczi junto de ou- tros estudos psicanalíticos grandiosos, na história dessa ciência. En- quanto autor de trabalhos, análises e artigos de exímia importância à psicanálise, tanto teórico quanto prático e metodológico, o psicanalis- ta húngaro foi responsável por colaborações ímpares ao movimento e desenvolvimento da ciência, mesmo depois de esquecido por décadas pela história da psicanálise. Infl uenciando, direta ou indiretamente, psicanalistas principalmente franceses e ingleses, além da própria es- cola húngara e de outros tantos, a obra de Ferenczi apenas começa a ser explorada com mais atenção e minúcia nestas últimas décadas. Nosso objetivo, portanto, é o de trazer à luz novas leituras teóricas e posicionamentos críticos acerca das postulações teórico-clínicas de Ferenczi, que permanecem, até os tempos atuais, bastante efetivas e adequadas – até mesmo contundentes, no que concerne às proble- matizações da instituição psicanalítica e do papel do analista – para a atuação clínica e o pensamento a respeito das demandas subjetivas e sociais da contemporaneidade. Dessa maneira, exploraremos al- guns de seus trabalhos relacionados com o nosso objeto de estudo, a fi m de destacar o que o autor nos trouxe de contribuição efetiva e original à prática psicanalítica, além de associar suas problemáticas clínicas, pensadas nas décadas de 1910, 1920 e 1930, às buscas e ne- cessidades psíquicas da atualidade; mais do que suas postulações se caracterizarem pela “presença” cabível à clínica de hoje, muito do que Ferenczi compôs possui um caráter “anacrônico” à psicanálise enquanto clínica e ciência, no sentido de acompanhar intrinseca- mente sua prática e questionar o que há de “hipocrisia” no trabalho analítico, na instituição psicanalítica e em quem pratica a psicanálise. Através de um estudo de caráter bibliográfi co, pautamos nossa pesquisa nas principais obras selecionadas desses dois grandes teó- ricos dos primórdios da psicanálise, além de outros autores referen- ciais que articulam e desenvolvem, a partir daqueles, contribuições ao desenvolvimento psicanalítico. Partindo de um trabalho crítico e teórico-refl exivo acerca das teorias de Freud e Ferenczi, delineamos este livro em capítulos interligados, organizados de maneira clara e 30 MARCOS MARIANI CASADORE em tópicos, numa linha direta de raciocínio que segue a obra ferenc- ziana. Também não podemos deixar de considerar, como muito bem salientam Lescovar e Safra (2005), os aspectos biográfi cos que per- meiam as produções teóricas aqui estudadas; através deles é possível se aproximar do que levou cada autor a postular determinados con- ceitos num dado tempo, e assim, suas consequentes aproximações ou discrepâncias entre os pensamentos da época. Num primeiro grande capítulo, focamos nossa atenção ao es- tudo das obras freudianas e sua ligação com a produção científi ca contemporânea à sua e com a de Ferenczi, relacionando-as também à vinculação e história entre os dois grandes amigos, mestre e discí- pulo. Dessa maneira, buscaremos as infl uências diretas e indiretas de Ferenczi às produções literárias de Freud. Já num segundo momento, o foco será a psicanálise ferencziana. Estudaremos as produções acerca da teoria e da técnica psicanalí- ticas formuladas por Ferenczi, desde sua origem e seus primeiros artigos, em 1908 e 1909, até a derradeira crise que teve com o grupo central psicanalítico e, sobretudo, com Freud. Também abordare- mos aspectos originais apontados e a relação entre suas criações e as formulações freudianas. Ao fi nal desses primeiros capítulos, teremos consolidado uma base teórica importante para a continuidade do trabalho e, enfi m, abordare- mos os últimos artigos da obra de Ferenczi: suas concepções dissiden- tes, teóricas e técnicas para o desenvolvimento científi co da psicanálise, além das especifi cidades temáticas abordadas nos últimos anos de sua vida, como a ênfase clínica dos aspectos regressivos e infantis, a impor- tância do trauma e a traumatogênese, a “confusão das línguas” da ter- nura e da paixão, e o consequente desmentido entre crianças e adultos. Julgamos que a contribuição de Ferenczi à teoria psicanalítica é de suma importância nos estudos e na clínica contemporânea, prin- cipalmente no que concerne o desenvolvimento das práticas clínicas e a abordagem dos casos “difíceis” que o levaram a buscar soluções e reformulações relacionadas à técnica e ao estudo dos estágios mais infantis. Assim, num último momento do estudo, destacaremos um pouco da discussão clínica contemporânea e a atualidade do pen- SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 31 samento original de Sándor Ferenczi – mais especifi camente, suas colaborações clínicas –, ainda vigente e muito condizente ao tipo de trabalho prático característico dos tempos atuais. Além desses as- pectos mais formais, procuraremos destacar, num entremeio do es- tudo, a importância de um pensador tal qual Ferenczi na história do movimento psicanalítico, seu grande envolvimento com a ciência, sua avidez na busca de respostas e resultados práticos efetivos, seu enorme senso crítico e apurado e, acima de tudo, sua criatividade e elasticidade para com a prática clínica e postulações teóricas. Desen- volveremos, portanto, o estudo acerca das propostas psicanalíticas, das formulações freudianas e, principalmente, das ferenczianas, que perpassam, de certo modo, praticamente todo o progresso psicana- lítico posterior e trazem infi ndáveis colaborações, de grande impor- tância, à teoria e prática analíticas atuais. 1 SIGMUND FREUD E SÁNDOR FERENCZI: DISCUSSÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS O que me parece característico da obra de Ferenczi [...] é a tentativa de dar conta dos fenômenos clínicos, patológicos, do lado do analista e do paciente, sem recorrer a outra coisa que não à teoria libidinal, tal como ela [se] apresentava nos trabalhos de Freud. Teoria na qual Ferenczi, aliás, contribuiu de maneira bastante decisiva. Renato Mezan É evidente que Freud foi o teórico central de todo o desenvol- vimento psicanalítico e ocupa, até hoje, uma posição especial e de grande prestígio entre os grandes nomes da história da psicanálise. Mesmo depois da “era das escolas” e dos despontamentos específi - cos de outras teorias inovadoras, é inquestionável a base freudiana e a imensa contribuição de suas obras clássicas para todos os trabalhos psicanalíticos ulteriores; a psicanálise parte, toda ela, de um mes- mo fundamento comum. Dessa maneira, é de suma importância o estudo e as releituras desses compilados essenciais ao todo do mo- vimento psicanalítico; como já salientado anteriormente, o posicio- namento de Green (2008) em relação à psicanálise atual serve como modelo a esse estudo psicanalítico contemporâneo, considerando a novidade ainda possível de se extrair dos textos primordiais freudia- nos, dos primeiros grandes teóricos e de uma leitura interescolar dos especialistas mais atuais do cenário psicanalítico. Tendo Freud infl uenciado todo o porvir da ciência psicanalítica e seus interlocutores – contemporâneos e posteriores a ele –, não seria diferente com Sándor Ferenczi e, a partir deste, Michael Balint e Do- 34 MARCOS MARIANI CASADORE nald Winnicott, por exemplo. Ferenczi, como veremos a partir deste capítulo, baseou toda a sua contribuição teórica nas bases psicanalí- ticas do psiquismo postuladas por Freud, colaborando, assim, para o desenvolvimento da metapsicologia freudiana, ao focar em outros aspectos até então menos considerados por Freud; pelo lado técnico- -metodológico, buscava inovar e aperfeiçoar a técnica terapêutica de tratamento, e fez disso sua meta mais pretensiosa e menos ortodoxa. Como já foi dito, Ferenczi era discípulo e grande amigo de Freud; compartilharam dessa intimidade durante as décadas mais produtivas de ambos e mantiveram uma ligação próxima, pelo me- nos, até os últimos anos da vida de Ferenczi. Trocaram centenas de cartas, compartilharam não só inúmeras experiências e trabalhos como também visitas e viagens. É, claramente, indiscutível a in- fl uência teórica de Freud nas obras de Ferenczi; o que visamos aqui, porém, é delinear alguns pontos das obras psicanalíticas originais de Ferenczi, além dos seus posicionamentos frente à instituição da psicanálise e à técnica clínica, por exemplo, que, de certo modo, chamaram a atenção ou exerceram alguma infl uência sobre a teoria freudiana. Dessa maneira, destacaremos alguns aspectos dos textos de Freud que, direta ou indiretamente, têm algo relacionado à pro- dução ferencziana. Em “A história do movimento psicanalítico” (1914a), Freud ha- via escrito sobre sua supremacia no que se referia à psicanálise, em sua história, teoria e técnica. Admitia ali, pela primeira vez, a psica- nálise como criação exclusivamente sua e, dessa maneira, seria ele próprio a pessoa que mais havia se dedicado ao estudo e à explanação desse novo método terapêutico e científi co. Mais ou menos à mesma época, no entanto, enquanto trabalhava em “Totem e Tabu” (1913c) e “À guisa de introdução ao narcisismo (1914b)” (1915), Freud es- creveu a Ferenczi, junto a um pedido de leitura prévia das obras e de opiniões e críticas, que já havia algum tempo que não se considerava mais uma unanimidade no campo da psicanálise e, portanto, acatava com muito respeito e admiração as ideias e os posicionamentos dos seus discípulos, principalmente de Ferenczi e os mais próximos, em quem mais confi ava (Falzender; Brabant; Giampieri, 1995). SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 35 Percebemos, portanto, que, desde os primeiros anos em que se envolveu com a psicanálise, Ferenczi já contava com o apoio e a con- fi ança de Freud. Conheceram-se em 1908, após uma troca de corres- pondências que demonstravam o interesse de Ferenczi pela psicaná- lise e em que ele pedia para encontrar-se com Freud. De Budapeste, Ferenczi o visitou em Viena, junto de um colega em comum e, a par- tir daí, marcou-se uma amizade e intimidade que perdurariam por, no mínimo, duas décadas. Os primórdios da produção psicanalítica de Ferenczi Nesse mesmo ano, Ferenczi já iniciava sua produção bibliográ- fi ca pautada na psicanálise. Esta era, ainda, anterior ao encontro dele com Freud, ocorrido em maio daquele ano. Dentro dos círculos médicos de Budapeste, demonstrava seu interesse e defendia o novo método terapêutico mesmo frente às duras críticas que recebia de todos os lados. É preciso considerar aqui a imensa importância que a experiên- cia clínica exercia sobre suas elaborações práticas e bibliográfi cas. Ferenczi, num primeiro contato com a psicanálise, havia deixado de lado A interpretação dos sonhos por considerá-la sem importância1. Já, em 1908, na conferência “As neuroses à luz dos ensinamentos de Freud e da Psicanálise” (Ferenczi, 1908b), proferida na Sociedade de Medicina de Budapeste, Ferenczi pauta todo o seu discurso nas descobertas freudianas a partir da sua experiência enquanto médico clínico. Justifi ca, portanto, que depois de se deparar com tantas oca- 1 Freud comentaria sobre o fato em um pequeno texto, escrito na ocasião do 50o ani- versário de Ferenczi, que introduzia um número especial da revista psicanalítica Zeitschrift em sua homenagem: “Não muitos anos após sua publicação [em 1900], A interpretação de sonhos caiu nas mãos de um jovem médico de Budapeste que, embora fosse neurologista, psiquiatra e especialista em medicina legal, estava avidamente em busca de novos conhecimentos científi cos. Ele não foi muito adiante na leitura do livro; muito cedo jogou-o de lado – se por tédio ou repugnância, não se sabe. Pouco depois, porém, a invocação de novas possibilidades de trabalho e descoberta levou-o a Zurique e, de lá, foi conduzido a Viena a fi m de encontrar o autor do livro que um dia, com desprezo, deixara de lado” (Freud, 1923b, p.299). 36 MARCOS MARIANI CASADORE siões que o convenceram da exatidão das propostas psicanalíticas, se perguntou por que, a princípio, as havia rechaçado e as tomado como descartáveis e artifi ciais, sem mesmo julgar oportuno verifi car se não continham algo de verdadeiro. Em defesa, diz que a maioria dos neurologistas fez como ele, porém há os que se tornaram adeptos da nova teoria das neuroses e, já naquele tempo, os seguidores de Freud compunham-se num número considerável. Essa pequena passagem do primeiro pronunciamento científi co público de Ferenczi, enquanto adepto da psicanálise, já nos serviria para dizer muito daquilo que foi a relação entre este e os caminhos por ele enveredados no desenvolvimento psicanalítico. Ora, Feren- czi, desde o princípio, já se posicionava como um clínico; aceitou as postulações psicanalíticas somente a partir das próprias experiências num consultório médico, enquanto neurologista e psiquiatra, e in- tentava, com elas, buscar novas possibilidades de tratamento e de trabalho com pacientes que sofriam com as neuroses. Mais que isso, ele queria desenvolver estudos colaborativos e divulgar a psicanálise junto dos colegas da medicina, como havia colocado a Freud desde a primeira carta que lhe enviou até suas pretensões em fundar uma Sociedade Húngara de Psicanálise, na qual preferia que os adeptos fossem todos médicos (Falzender; Brabant; Giampieri, 1995). Mesmo quando iniciado há pouco tempo na prática clínica da psicanálise, Ferenczi já demonstrava ter bastante afi nidade com o método terapêutico e, dessa maneira, logo mostrou ser um exímio analista. No campo prático, foi responsável por uma particular am- pliação do trabalho ao lidar com os casos tidos como difíceis (um de- safi o à psicanálise da época que se limitava, basicamente, ao trabalho com as neuroses de transferência, via interpretações associativas), especialmente aqueles com problemáticas narcísicas e aspectos psi- cóticos, além dos distúrbios psicossomáticos (Katz, 1996; Lescovar; Safra, 2005; Pinheiro, 1995, 1996; Mezan, 1996, e outros). Essa é, portanto, outra característica bastante relevante do aspecto históri- co do desenvolvimento psicanalítico de Ferenczi e está intimamen- te ligada às inovadoras formulações técnicas que ele irá buscar ao longo dos seus anos de trabalho com a psicanálise e, ainda, ao seu SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 37 posicionamento ético e subjetivo de analista, tão reconhecido poste- riormente, porque empenhado na resolução dos problemas de seus pacientes e adepto à adequação das técnicas psicanalíticas à proble- mática clínica em questão. “Sobre o alcance da ejaculação precoce” (Ferenczi, 1908a), con- siderado o primeiro artigo psicanalítico de Ferenczi, publicado no Diário Médico de Budapeste, é possível perceber que, para além da clínica, também um grande empreendedor teórico se principiava nos estudos da psicanálise. De acordo com Lescovar e Safra (2005), Fe- renczi parte do conceito de neurose de angústia freudiano, enquanto matriz dos seus pensamentos, e desenvolve, dali, várias discussões inéditas até então no campo da psicanálise: Ferenczi salientou a dimensão do sofrimento feminino imposto atra- vés do regime patriarcal e sugeriu refl exões que marcaram fortemente os movimentos feministas posteriores. Revolucionariamente, Ferenczi apresentou uma ampliação do conceito freudiano, no sentido da partici- pação da vida sociocultural, da dimensão concreta das relações humanas e, fi nalmente, por meio da introdução de novas perspectivas ao campo psicanalítico, tais como: dignidade pessoal, egoísmo e regime patriarcal (Lescovar; Safra, 2005, p.118). É também bastante conhecido seu artigo “Psicanálise e peda- gogia” (Ferenczi, 1908c), proferido no Congresso de Psicanálise de Salzburg daquele ano. Tratava nele sobre a educação infantil e suas possíveis consequências no desenvolvimento do sujeito, marcando assim seu início público nos congressos de psicanálise com a origi- nalidade de debater algo até então inédito nas discussões da teoria. E mais: não só explanava ali os sistemas educacionais e a educação infantil como também problematizava e colocava em pauta a relação entre o envolvimento social e o individual, considerando que os regi- mentos sociais podiam corroborar para a inserção e/ou manutenção do adoecimento psíquico. O que se atenta aqui, principalmente, é a grande implicação da psicanálise para Ferenczi, mesmo com um curto período de conhecimento e estudo das obras freudianas até 38 MARCOS MARIANI CASADORE então publicadas, e ainda suas ideias inovadoras propostas sem, no entanto, desvirtuar ou criticar os postulados de Freud. Mesmo em total concordância e assentimento com os postulados freudianos e suas discussões psicanalíticas, Ferenczi trazia à tona discussões de assuntos ou aspectos clínicos e sociais ainda não abordados, numa espécie de complemento original à teoria. No ano seguinte, por conta da publicação de um primeiro livro de ensaios seus na Hungria (seria a primeira edição de escritos psi- canalíticos em húngaro), Ferenczi pede a Freud que faça o prefácio de sua obra. No curto texto de Freud são ressaltados os aspectos des- se novo método de investigação das neuroses, seus diferenciais e os caminhos por onde se enveredava; ao falar sobre Ferenczi, escreve: “conheço bem de perto o autor desses ensaios, que está, como pou- cos, familiarizado com as difi culdades das questões psicanalíticas” (Freud, 1909, p.231). Ou seja: percebemos uma inclinação interes- sante de Freud que, pouco mais de um ano após conhecer Ferenczi, já o considerava um dos estudiosos mais inteirados com o desenvol- vimento da psicanálise. A partir dessas vias, nada seria de se estranhar o posicionamento de Freud em relação a Ferenczi ao descrever, na sua história do mo- vimento, seu papel como um grande participante ativo. Escreveria ali, dentre os demais focos de desenvolvimento psicanalítico, uma passagem já bastante famigerada, dirigida a Ferenczi: “[...] da Hun- gria, geografi camente tão perto da Áustria, e cientifi camente tão distante, surgiu um único colaborador, Sándor Ferenczi, mas que, em compensação, vale por uma sociedade inteira” (Freud, 1914a, p.42-43). Ferenczi já havia fundado, em maio de 1913, a Sociedade Hún- gara de Psicanálise. Tratava-se na época, como ele pretendia, de um pequeno grupo local formado por cinco membros: além do próprio Ferenczi, Hollós, Levy, Radó e Ignotus; poucos integrantes, porém bem selecionados. A Sociedade Húngara de Psicanálise tornar-se-ia um dos principais pontos do desenvolvimento psicanalítico europeu na década de 1920 e, por ocasião, seria responsável por uma corrente de pensamento que fi caria conhecida como a Escola Húngara de Psi- SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 39 canálise; infl uenciaria, ainda, de forma decisiva, a posterior Escola Inglesa de Psicanálise, em alguns de seus vieses. Sobre aquela, Freud escreveria em uma nota de rodapé, acrescida em 1923, que “atua- lizava” a história do desenvolvimento psicanalítico: “Na Hungria, uma brilhante escola analítica fl oresce sob a liderança de Ferenczi” (Freud, 1914a, p.43). Nesse tempo, a Sociedade Húngara de Psica- nálise já havia crescido e despontado no cenário psicanalítico. Mas, ainda em relação aos primeiros trabalhos da produção fe- rencziana, foi o artigo escrito por ele em 1909, intitulado “Trans- ferência e introjeção”, que primeiro ganhou grande notoriedade no espaço psicanalítico e, da mesma maneira, chamou a atenção de Freud. Nele, Ferenczi apresentava um estudo pormenorizado acerca do conceito de transferência, até o momento, pouco discutido e ex- plorado para além da sua simples constatação enquanto um fenôme- no presente na clínica. Além disso, o médico húngaro inaugurava o conceito de introjeção na teoria psicanalítica. No artigo, Ferenczi defende que, enquanto o paranoico projeta para o exterior suas emoções penosas, o neurótico procura incluir a maior parte possível do mundo exterior na sua esfera de interesses, com o intuito de fazê-lo objeto de fantasias conscientes e inconscien- tes. Dessa maneira, propõe nomear esse “impulso neurótico”, pelo qual se busca atenuar o sofrimento de aspirações insatisfeitas e/ou impossíveis de satisfazer, como “introjeção”. Segundo Mezan (1996), a ideia ferencziana de introjeção, a par- tir desse artigo, difere-se da introjeção kleiniana ou mesmo da pos- terior tradição psicanalítica; aparece, nessa primeira menção, como algo mais amplo e complexo. Ao invés de um movimento “de fora para dentro”, isto é, de um objeto exterior que será incluído na vida psíquica, como habitualmente referido, o movimento, para Ferenc- zi, é “de dentro para fora”. “Ele esclarece perfeitamente que aquilo que chama de ‘introjeção’ é uma espécie de ‘abraço’ que o ego da criança faz com os objetos”, num processo de investimento objetal que amplia o âmbito de nossa vida psíquica (Mezan, 1996, p.101). O referido autor ainda salienta a proximidade entre os conceitos de transferência e de introjeção no artigo de Ferenczi: ambos são, 40 MARCOS MARIANI CASADORE ali, quase sinônimos, e praticamente um mesmo processo. De certo modo, Mezan tem mesmo razão na sua constatação; numa nota de rodapé, Ferenczi afi rma que o termo “transferência” de Freud deve- ria referir-se, essencialmente, às introjeções manifestadas durante as sessões de análise, direcionadas ao analista, enquanto “introjeção”, simplesmente, referia-se a todos os outros casos que implicassem o mesmo mecanismo, referentes a outros objetos. De qualquer ma- neira, introjeção e transferência parecem, para Ferenczi, situarem-se em lugares qualitativamente diferentes. A introjeção seria o modo pelo qual opera o processo de transferência e, de certo modo, o de identifi cação. “O neurótico está sempre buscando objetos de iden- tifi cação, de transferência; isso signifi ca que atrai tudo o que pode à sua esfera de interesses, os ‘introjeta’” (Ferenczi, 1909).2 Apesar da notória originalidade do trabalho de Ferenczi, o artigo sobre a introjeção também sofreu algumas críticas pela “fl utuação” e falta de objetividade no que concerne à defi nição do conceito “in- trojeção”; dessa maneira, ele escreveria “O conceito de introjeção” (Ferenczi, 1912a), estudo no qual explicava mais pormenorizada- mente o conceito anteriormente postulado. A partir desse pequeno novo artigo, portanto, temos alguns maiores esclarecimentos acerca da ideia ferencziana de introjeção. Como salienta Landa (1999), é possível perceber algumas mu- danças muito signifi cativas no conceito que, com apenas três anos de existência, havia já suscitado muita discussão. O artigo em ques- tão, “O conceito de introjeção” (Ferenczi, 1912a), surgiu justamente como resposta às críticas, a fi m de esclarecer mal-entendidos levan- tados por Maeder (Ferenczi, 1912a) num artigo, no qual afi rmava ser a introjeção a mesma coisa que havia já postulado e chamado de “exteriorização”. Ferenczi viu-se obrigado a esclarecer suas formu- lações sobre a introjeção e, ao fi nal, acabou especifi cando e, efetiva- mente, reformulando algumas de suas concepções iniciais. 2 As traduções para o português, presentes ao longo do livro, são nossas – partem da edição espanhola das obras completas de Sándor Ferenczi (Madrid: Espasa-Calpe, 1984). Como acessamos os textos em formato digital, não há menção das páginas es- pecífi cas de cada citação literal. SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 41 Antes pautada numa oposição direta à projeção (projeção en- quanto característica da paranoia e introjeção, por conseguinte, da neurose), da qual inclusive veio sua formulação – justamente, pelo antagonismo –, agora a introjeção aparecia mais evidentemente contraposta à ideia de autoerotismo, enquanto mecanismo essencial ao desenvolvimento e expansão do ego em busca do mundo exte- rior. Ao contrário do artigo anterior, no qual “introjeção” vincula- va-se às doenças nervosas, neste, Ferenczi a coloca enquanto dinâ- mica necessária ao desenvolvimento humano, patológica só quando em demasia (com um EU patologicamente dilatado, ao contrário do paranoico, que sofreria com uma contração demasiada do seu EU). Mesmo considerando-a muito mais como característica das personalidades neuróticas, o interessante é notar a atenção que Fe- renczi direciona à introjeção e sua ligação com as relações “objetais” como constitutivas fundamentais da personalidade, destacando as relações de objeto presentes desde o início da vida. De qualquer maneira, a introjeção ainda seria para Ferenczi, do ponto de vista econômico, o modo de se conter os afetos que fl utuam livremente, segundo Landa (1999). O termo de Ferenczi seria utilizado por Freud pela primeira vez em “Pulsões e destinos da pulsão” (1915), ao tratar da relação entre o sujeito e os objetos externos, fontes de prazer, a partir do desen- volvimento do ego para além do autoerótico. Assim, sob o domínio do princípio de prazer, mas a partir das experiências das pulsões de autoconservação egóicas, ocorreria outra fase do desenvolvimento. Na medida em que os objetos externos oferecidos sejam fontes de pra- zer, eles são recolhidos pelo Eu, que os introjeta em si (de acordo com a expressão de Ferenczi [1909]), e, inversamente, tudo aquilo que em seu próprio interior seja motivo de desprazer, o Eu expele de si (Freud, 1915, p.158). Freud citaria, ainda, o presente artigo de Ferenczi em duas oca- siões no seu trabalho “Psicologia de grupo e análise do ego” (1921). Primeiro, ao tratar dos estados amorosos exacerbados, do “apaixo- 42 MARCOS MARIANI CASADORE namento” intenso. Aliando o conceito de Ferenczi à sua noção de identifi cação, diferencia esta do estágio de “estar amando”. É fácil agora defi nir a diferença entre a identifi cação e esse desenvolvi- mento tão extremo do estado de estar amando que podem ser descritos como “fascinação” ou “servidão”. No primeiro caso, o ego enriqueceu- -se com as propriedades do objeto, ‘introjetou’ o objeto em si próprio, como Ferenczi [1909] o expressa. No segundo caso, empobreceu-se, entregou-se ao objeto, substituiu o seu constituinte mais importante pelo objeto (Freud, 1921, p.123). Apesar de analisar mais pormenorizadamente as situações ante- riores e concluir que elas exigem uma atenção menos generalizante, dependentes de cada caso (pode haver estados amorosos exacerba- dos com a introjeção do objeto, por exemplo), Freud caracteriza-os em linhas mais gerais. Na continuidade de sua argumentação, e sem maiores esclarecimentos, ele sustenta que apenas um curto passo se- para o estado de “estar amando” da hipnose; o mesmo poder-se-ia dizer da separação entre a introjeção e a transferência de Ferenczi, no artigo de 1909 (ainda que o “estar amando” não se calque na intro- jeção), no qual a transferência também é associada à sugestão, básica para a realização hipnótica. A questão da hipnose seria justamente a segunda ocasião do aparecimento de “Transferência e introjeção” no artigo freudiano. Freud relataria, então, a descoberta real de Ferenczi acerca do papel do hipnotizador, associado diretamente ao posicionamento paren- tal frente ao paciente, e que variaria conforme os tipos de hipnose a serem distinguidos: o persuasor e tranquilizador, ligado ao papel da mãe, e o ameaçador, em contraponto, ligado ao do pai. Sobre a transferência em Ferenczi, seguirá o próximo tópico. À maneira de conclusão, Ferenczi apresenta, já em 1909, um ar- tigo que direcionaria o desenvolvimento psicanalítico ulterior. Além de introduzir o novo conceito de “introjeção”, o estudo ainda tra- zia-o intimamente ligado à noção de transferência, até então pouco explorada, e inaugurava um pensamento marcado pelas relações de SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 43 objeto, constitutivas do sujeito, desde o início do desenvolvimento – o que marcaria, acentuadamente, várias teorias ulteriores na psica- nálise. Em relação à transferência, Ferenczi se preocuparia com seu mecanismo e suas consequências clínicas durante todo o desenvol- vimento de seus estudos psicanalíticos. A transferência na construção teórico-clínica ferencziana Justamente por priorizar a técnica, o método e o trabalho clínico, entre as instâncias elementares componentes da psicanálise, Ferenc- zi pautou grande parte de sua produção literária científi ca numa base prática, essencial às suas postulações. Assim, mesmo seus escritos mais teóricos voltavam-se para problemáticas clínicas, da relação paciente-terapeuta, e na busca por resolver os sofrimentos psíquicos daqueles que procuravam ajuda no tratamento psicanalítico. Dos trabalhos conceituais de Ferenczi, o artigo de 1909 é, sem dúvida, aquele que mais infl uenciou o desenvolvimento da metapsicologia freudiana. A elucidação das suas ideias de introjeção e transferência orientaram o desenvolvimento teórico posterior de Freud e do mo- vimento psicanalítico. Comecemos a discussão com a transferência. Vale incluir, nesse ponto, algumas considerações inicias importantes sobre o assunto. O termo “transferência”, segundo Roudinesco e Plon (1998), foi progressivamente introduzido na literatura psicanalítica por Freud e Ferenczi, na primeira década do século XX. A inovação da psica- nálise frente a esse fenômeno, que já era conhecido em diferentes abordagens psicoterápicas por outras terminologias, deu-se justa- mente em reconhecer ali um instrumento da “cura” no processo de tratamento. Laplanche e Pontalis (2001, p.514-21) referem-se à transferên- cia como um conceito de especial difi culdade quanto à proposta de uma defi nição precisa. Durante o desenvolvimento da teoria psica- nalítica, a noção não só assumiu, para numerosos autores, diferentes 44 MARCOS MARIANI CASADORE sentidos e peculiaridades na prática clínica como também para sua defi nição criaram-se várias designações diferentes, inclusive com denominações específi cas, para cada particularidade do fenômeno na clínica. Dessa forma, cada fundamentação teórica de cada uma das “escolas psicanalíticas” traz, junto à sua conceituação, muito da leitura ímpar de seus respectivos autores sobre a constituição da re- lação transferencial e suas características. É justamente por ser de difícil compreensão e proporcionar dife- rentes possibilidades de entendimento e interpretação, assim como de manejo e trabalho na clínica, que a transferência transformou- -se, no passar dos anos, num conceito-chave bastante explorado e com múltiplos postulados que, embora próximos uns dos outros, diferem-se qualitativamente. Apesar dessas múltiplas facetas do fenômeno transferencial, “é à transferência no tratamento que os psicanalistas chamam a maior parte das vezes de transferência, sem qualquer outro qualitativo” (Laplanche; Pontalis, 2001, p.514, grifos nossos) e é dessa ideia ini- cial e geral de transferência que trataremos neste tópico. Ferenczi foi o primeiro psicanalista a dedicar um artigo ao fenômeno transferencial – o já mencionado “Transferência e in- trojeção”, de 1909. Freud demonstrou seu apreço à produção de Ferenczi ao citar uma passagem dela em 1910, durante suas con- ferências proferidas nos Estados Unidos, que dizia respeito, jus- tamente, à noção de transferência. Na época, caracterizada ainda como um “estranho fenômeno” da prática terapêutica e compara- da a eventos amorosos ou, metaforicamente, com associações quí- micas que reagem ou modifi cam seu estado em determinadas con- dições, Freud toma emprestado de Ferenczi uma passagem que a explica nessa mesma analogia e defi ne: “O médico desempenha nesta reação, conforme a excelente expressão de Ferenczi (1909), o papel de fermento catalítico que atrai para si temporariamente a energia afetiva aos poucos libertada durante o processo” (Freud, 1910, p.61). O que Freud nos dá a entender ao expor sua opinião acerca da transferência é que Ferenczi havia acertado absolutamente ao defi ni- SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 45 -la desse modo. O trabalho dele, datado de 1909, surge quando o conceito de transferência para Freud ainda era bastante “cru”. Tal conceito já havia se apresentado em seus trabalhos com Breuer: em “Estudos sobre a histeria” (Freud; Breuer, 1895), aparece como um fenômeno essencialmente “inconveniente”, presente no tratamento, com características de um “enamoramento” para com o médico e junto à noção de “resistência ao tratamento”. Assim, carrega consi- go a ideia de um obstáculo a ser superado. Já no caso Dora, como sa- lienta Kupermann (2008b), Freud faz avançar sua concepção sobre a transferência em direção à ideia de repetição que também a carac- terizaria no artigo que, posteriormente, escreve sobre ela, intitulado “A dinâmica da transferência” (Freud, 1912). Ora, em 1909, quando Ferenczi escreve sobre a transferência e apresenta seu conceito de “introjeção”, Freud ainda não possuía nenhum trabalho direcionado à conceituação transferencial e tam- pouco havia explorado muito o assunto em questão. Atestado pela experiência no caso Dora, Freud reconhecia que o analista realmen- te desempenhava um papel na transferência do analisando. Nessa ocorrência, em particular, a transferência havia se confi gurado como um obstáculo que resultou em consequências negativas para o de- senrolar do caso. No artigo de Ferenczi (1909), a defi nição desenvolve-se ainda mais um pouco: ele diz que, durante a análise, é preciso considerar que estes afetos liberados permanecem instáveis e, numa análise bem orientada, o psicanalista em questão deveria orientar o interesse do analisando às fontes primitivas ocultas, a fi m de estabilizá-las com os complexos até então inconscientes. Ferenczi, portanto, já conside- rava a transferência para além de um obstáculo ou de um “estranho fenômeno”; era algo que, indubitavelmente, estaria presente na rela- ção clínica e, dessa maneira, deveria ser manejada com o intuito de trabalhar a favor da resolução dos confl itos inconscientes do paciente. Para além dessas constatações sobre o trabalho analítico aliado à transferência, Ferenczi ainda apresenta no artigo concepções até en- tão inéditas no desenvolvimento do conceito, muitas vezes pautadas em experiências clínicas ou da literatura psicanalítica. Trata, assim, 46 MARCOS MARIANI CASADORE do papel fundamental e exclusivo desta no tratamento psicoterápico dos neuróticos. Sem contrapor-se à ideia de Freud, Ferenczi estende mais minuciosamente o fenômeno clínico; suas postulações voltam- -se mais às características subjetivas e clínicas e às consequências terapêuticas do que à simples constatação dela enquanto um inves- timento libidinal na fi gura do analista, transposição de outra relação antiga (e importante) já experimentada pelo paciente. Aproxima, outrossim, o conceito de transferência à noção de sugestão, an- tes bastante explorada por Freud e Breuer ao tratarem do método catártico:3 sustenta que esta age não só na psicanálise mas também na hipnose e em outros meios terapêuticos. A experiência da psica- nálise, com o passar dos anos, entenderia o fenômeno transferencial como um acontecimento recorrente e natural na vida de toda e qual- quer pessoa. No desenvolvimento teórico, tornou-se um tema muito estudado e explorado de maneira pormenorizada, expandido e di- vidido em vários âmbitos específi cos, cada um com características próprias, de acordo com sua ocorrência. Como Freud já havia escri- to, em 1912, é mesmo um “tópico quase inexaurível” (1912, p.111). Ferenczi não só aproxima a transferência da sugestão como tam- bém, algumas vezes, nomeia o fenômeno por “deslocamento”. Ape- sar do uso indistinto em algumas das passagens do artigo, o autor diz saber que o faz e justifi ca a atitude por considerar que a transferên- cia é apenas uma situação particular da tendência mais generalizada de deslocamento presente nos neuróticos. Dessa maneira, ao tratar mais especifi camente dos neuróticos em situação de tratamento analítico durante o texto, Ferenczi aproxima (enquanto fenômenos característicos da neurose) as noções de transferência, introjeção e deslocamento. Destacam-se ainda, em suas constatações acerca da relação transferencial, as explanações sobre os tipos e as possibilidades de transferência. Ferenczi é o primeiro a desenvolver na teoria psicana- lítica as ideias de transferências “positivas” e “negativas”, e o cuida- 3 Freud, por muitas vezes em sua obra, também aproximará os dois fenômenos, especifi cando que a sugestão só ocorre por conta da transferência. SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 47 do em reconhecer a transferência das emoções positivas e negativas do analisando para com seu analista enquanto algo essencial para o trabalho clínico. Freud retomaria esse viés da análise da transferên- cia (no caso das possibilidades e dos tipos de transferência) em um de seus artigos técnicos de 1912, voltado especifi camente a uma ex- planação um pouco mais pormenorizada acerca do assunto. Em “A dinâmica da transferência” (1912), porém, Freud abor- da diretamente o tema de maneira um tanto diferente daquela antes tratada por Ferenczi. Ao invés de apresentar algumas impressões e postulações sobre a transferência inserida no tratamento psicanalí- tico, Freud parece aqui reunir tudo o que havia sido tratado acerca do assunto – tanto por ele como pelo círculo mais próximo de psica- nalistas – e escrever de maneira mais sóbria e objetiva, pela primei- ra vez, sobre o fenômeno. Strachey, editor da Standart Edition, que publica as obras de Freud em inglês, escreve uma nota prefaciada no artigo em questão, na qual afi rma que, apesar do trabalho estar in- serido num compilado conhecido como “Artigos sobre a técnica” (e, de certa maneira, tratar de uma questão estritamente ligada à técnica psicanalítica), considera-o mais um exame teórico do fenômeno e da maneira pela qual ele opera no tratamento analítico (Strachey, 1996a, p.109, grifos nossos). Logo na primeira sentença do artigo, Freud deixa claro que pre- tende apenas acrescentar a um artigo prévio e descritivo, redigido por Stekel e publicado no ano anterior, algumas considerações suas sobre a inevitável presença da transferência no tratamento e como ela desempenha seu papel durante a análise. Dessa maneira, sem a pretensão de abordar completamente o fenômeno já descrito como inexaurível, o autor compõe um texto curto que, de certa maneira, parece provir das constatações ferenczianas de 1909, reunidas junto às suas experiências clínicas e atualizadas também com outros com- plementos recentemente publicados. Ferenczi (1909), ao associar transferência à sugestão, relacio- nando a possibilidade de ser hipnotizado ou sugestionado com a capacidade de transferência, afi rma que, assim como todo amor ob- jetal, a raiz mais profunda da transferência provém dos complexos 48 MARCOS MARIANI CASADORE parentais. Freud, ao identifi car a posição a fi gura paterna na transfe- rência com Dora, já fazia encaminhar suas ideias acerca do fenôme- no para o conceito de repetição, que ele exporia em “A dinâmica da transferência”, como salienta Kupermann (2008b). A partir dessa experiência e das constatações, também pautadas nos estudos práti- cos de Ferenczi, Freud observa que, para além da imago paterna (e, aqui, emprega um termo que diz ter sido bem adequado por Jung) e de acordo com as estruturas psíquicas já formadas pelo analisando, baseadas em suas relações objetais infantis, pode surgir na dinâmica transferencial protótipos igualmente semelhantes à imago materna ou fraterna. A partir das relações recalcadas do paciente em questão, manifestam-se na transferência seus sentimentos inconscientes para com o analista. Freud também retomará as polaridades transferenciais possíveis, sintetizando e objetivando aquilo que Ferenczi já havia proposto em 1909: a importância do reconhecimento e do trabalho com os tipos de transferência. Destaca, portanto, que a transferência analítica pode se dar de forma positiva (com amor e ternura) ou de forma negativa (com agressividade e hostilidade), sendo que esta última liga-se dire- tamente com resistências do analisando frente ao processo de análise e, segundo Freud, demanda uma análise mais pormenorizada. Des- sas confi gurações, ainda aponta para a ambivalência transferencial (termo adotado por Bleuler), na qual a transferência negativa é, ao lado da afetuosa e ao mesmo tempo, frequentemente transferida para uma mesma pessoa. Caracterizando-a como particularidade prin- cipalmente presente nos neuróticos, Freud salienta que é essencial- mente através dela que esses analisandos colocam as transferências a serviço das resistências; no caso de uma transferência totalmente negativa, como exemplifi ca sendo o caso dos paranoicos, fi ca impos- sibilitada qualquer infl uência ou “cura” da parte do analista. Alguns anos mais tarde, mais pormenorizadamente, Freud retomaria o assunto da transferência em suas “Conferências intro- dutórias sobre psicanálise”, proferidas em Viena no ano de 1915 e publicadas posteriormente. Ali, já trazia a noção de neurose de transferência atrelada à discussão, introduzida em “Recordar, repe- SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 49 tir e elaborar” (1914), e referente a um dos tipos de psiconeuroses, oposto às neuroses narcísicas. Freud relaciona as neuroses de trans- ferência com a ideia de repetição de confl itos infantis do paciente na transferência – concepção que ele explorará mais em “Além do prin- cípio de prazer” (1920). Mas a transferência marcaria a história de Freud e Ferenczi para além da discussão conceitual e teórica; segun- do Birman, esta “parece uma história marcada por mal-entendidos sobre certos aspectos, marcada por uma experiência transferencial” (1996, p.71). Segundo o autor, a produção psicanalítica ferencziana poderia ser dividida em dois períodos: um anterior e outro posterior à análise de Ferenczi com Freud, feita em alguns períodos da segunda metade da década de 1910. Na primeira parte, Ferenczi produzia contribui- ções efetivas à psicanálise; depois da experiência com Freud, seus questionamentos acerca da técnica e da experiência psicanalítica ha- viam mudado de qualidade e, de certa maneira, se radicalizado. Antes de focarmos nos trabalhos mais críticos e nas buscas de Ferenczi deveras comprometidas por melhores resultados e maior efi ciência no tratamento analítico, outro artigo teórico e original, es- crito em 1913, também merece uma menção mais detalhada, por ser considerado uma grande contribuição ferencziana ao pensamento acerca do desenvolvimento do sujeito. Ferenczi e o desenvolvimento do sentido de realidade Em “O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios” (1913a), Ferenczi buscava expor, pela primeira vez na história da psi- canálise, a gênese e as etapas de progressão da aquisição do sentido de realidade pelo sujeito. Centrando sua atenção no desenvolvimento do ego na criança, queria delinear, com maiores detalhes, como era obtido o princípio de realidade freudiano, contraposto ao princípio de prazer, ambos enquanto regentes do funcionamento psíquico. Era a primeira empreitada, bastante original, nesse rumo teórico. 50 MARCOS MARIANI CASADORE Freud, apesar de algumas ressalvas ao artigo lido antes de sua publicação, elogiou muito o trabalho de Ferenczi. Numa carta a este, datada de fevereiro de 1913, disse-lhe: “[Seu artigo] me parece o me- lhor e mais signifi cativo de todos dentre os que o sr. colaborou para a psicanálise” (Freud apud Falzeder; Brabant; Giampieri, 1995, p.189). Por toda a obra freudiana, quando apareciam referências ao estudo de Ferenczi acerca dos estágios do desenvolvimento do sen- tido de realidade, acompanhavam-nas palavras de admiração pelo trabalho original. Landa (1999) sustenta que esse trabalho de Ferenczi parecia ter sido desencadeado por um artigo freudiano, de 1911, intitulado “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”. Nele, Freud havia recapitulado algumas passagens anteriores sobre o funcionamento psíquico pautado nos dois princípios (de prazer e de realidade) e, a partir de então, reajustado essa ideia básica da psi- canálise, tendo em vista o desenvolvimento posterior da teoria. Nas palavras de Strachey: É como se Freud estivesse trazendo à sua própria inspeção, por assim di- zer, as hipóteses fundamentais de um período anterior e preparando-as para servir de base para os principais exames teóricos que se achavam adiante, no futuro imediato: o artigo sobre narcisismo, por exemplo, e a grande série dos artigos metapsicológicos (1996b, p.234). Em seu pequeno texto, de natureza exploratória, Freud esque- matiza o surgimento do princípio de realidade no sujeito pautado em algumas constatações; sinteticamente, é a partir de exigências externas que as novas adaptações internas, necessárias para lidar com o ambiente, se desenvolveriam. A realidade externa apareceria como algo cada vez mais importante para o indivíduo, e o aparelho psíquico trabalharia para lidar com essas circunstâncias ambien- tais adversas, na busca por mudanças signifi cativas na condição a qual se encontrava. Paralelo a isso, também haveria consequências psíquicas decorrentes da mudança, fossem de ordem econômica ou dinâmica. SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 51 A respeito dessas últimas, Freud coloca que, junto à passagem do ego-prazer ao ego-realidade, as pulsões sofrem alterações que as dirigem-se do autoerotismo original ao amor objetal, através de di- versos estágios intermediários. Justamente entre esses estágios é que aconteceria a escolha da neurose, de acordo com alguma fase especí- fi ca de desenvolvimento do ego e da libido, na qual ocorram alguma experiência traumática, frustrações, resistências ou inibições pul- sionais e do desenvolvimento. No desenrolar de suas ideias, Freud salienta também que esses aspectos cronológicos dos dois desenvolvi- mentos ainda não haviam sido estudados. Eis o ponto de partida do artigo de Ferenczi. O médico húngaro, dessa maneira, associa os trabalhos freudia- nos sobre os princípios de prazer e de realidade com outro artigo de Freud acerca da neurose obsessiva (1913a). Ele pauta-se, assim, nas características da obsessão e dos neuróticos obsessivos para aproxi- mar-se um pouco mais das defi nições das etapas do desenvolvimen- to do princípio de realidade. O que chama a atenção no artigo ferencziano, além do obje- tivo principal de esclarecimentos ao qual se propõe, são algumas de suas postulações sobre a neurose obsessiva e o desejo. Ferenczi rela- ciona diretamente a neurose obsessiva com o sentimento infantil de onipotência, próprio do princípio de prazer, do começo da vida do bebê. Dessa maneira, a neurose em questão seria um retorno do psi- quismo a uma etapa do desenvolvimento infantil no qual não exis- tem, ainda, inibições ou obstáculos que se coloquem entre o desejo e a sua satisfação – mais especifi camente, segundo Ferenczi (1913a), entre o desejo e a ação, ou seja, o desejo é seguido espontânea e infa- livelmente pela ação apropriada a realizá-lo e que evitaria a fonte de desagrados ou garantiria a fonte de prazer. Para Ferenczi, a partir da inibição do desenvolvimento (fi xa- ção), essa assimilação entre desejo e ação permanece nos neuróticos obsessivos, de acordo com o que demonstravam as experiências clí- nicas. Assim como o recém-nascido buscava sua satisfação a par- tir da imposição do desejo e da rejeição da realidade insatisfatória e pretendia cobrir todas as suas necessidades através de “alucinações” 52 MARCOS MARIANI CASADORE positivas e negativas, o neurótico obsessivo também reconhece em si – como Freud, da mesma forma, já havia afi rmado – parte dos seus sentimentos megalomaníacos infantis. O autor húngaro, en- tão, considera, a partir da experiência analítica, esse sentimento de onipotência como uma projeção que obriga o neurótico obsessivo a cumprir determinados impulsos irreprimíveis. Paralelamente, tem- -se a impressão de que eventos maiores, como o bem-estar, a vida ou a morte de outros ou até mesmo de si próprio, dependem de deter- minadas ações suas, ou de processos de seu pensamento, geralmen- te inofensivos; essas convicções, por sua vez, não são abandonadas nem frente a uma experiência que comprove seu contrário. O referido autor destaca, também, um dos meios obtidos pela criança na “passagem” do princípio de prazer ao princípio de realidade, que é de grande utilidade para a representação dos seus desejos: a linguagem. Responsável pela evolução do simbolismo gestual para o simbolismo verbal, a linguagem adquirida pela crian- ça representa aqui um grande progresso, já que permitiria, de ma- neira muito mais econômica e precisa, a defi nição e demonstração dos seus desejos. Apesar desse desenvolvimento, a criança ainda não perde todo o sentimento megalomaníaco infantil; essa mudança, segundo Freud, só ocorre quando a criança encontra-se completa- mente desligada dos pais e independente psiquicamente. É quando o sentimento ilusório de onipotência se rebaixa ao simples plano dos determinismos e condições. Pinheiro (1995) defi ne perfeitamente, a partir de outro arti- go contemporâneo ferencziano,4 o que seria esse momento de perda da onipotência infantil para Ferenczi. Aliado ao desenvolvimento do sentido de realidade, a perda da onipotência (e o incremento do mecanismo de projeção) seria também um importante momento es- truturante do sujeito: 4 “Fé, incredulidade e convicção a partir do ponto de vista da psicologia médica” (Fe- renczi, 1913b), seminário apresentado no Congresso da Associação Internacional de Psicanálise de Munique, no mesmo ano de publicação de “O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios” (1913a). SÁNDOR FERENCZI E A PSICANÁLISE 53 [...] o adulto, cedo ou tarde, será compreendido pela criança como al- guém dotado de uma vontade própria. A criança experimentará, num momento ou outro, o desprazer imposto por esse objeto introjetado (o adulto) que não é completamente controlável, o que desencadeará a transformação das fantasias de onipotência. Quando a criança começa a não mais suportar o desprazer interno, ela deve se utilizar do processo de projeção. O adulto tem aí função estruturante. Pelo desarranjo que provoca, o processo de introjeção deixa de ser satisfatório. A criança se vê obrigada a lançar mão do mecanismo de defesa da projeção, fazendo com que a introjeção deixe de ser o único meio de que dispõe o psiquis- mo (Pinheiro, 1995, p.38). O interessante é que, a partir desse trabalho de Ferenczi, datado do começo de 1913, Freud produziu o artigo “A disposição à neuro- se obsessiva: uma contribuição ao problema da escolha da neurose”, lido no Congresso Psicanalítico Internacional, em setembro do mes- mo ano. Vale salientar que Freud buscava desenvolver um pouco mais a problemática que envolvia a escolha da neurose e organização pré-genital – expressão utilizada pela primeira vez no trabalh