UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA ROBERTA CAETANO DA SILVEIRA EDUCAÇÃO LITERÁRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: O LIVRO NAS MÃOS DE PROFESSORAS E EDUCADORAS DE ARAÇATUBA (SP) Presidente Prudente 2014 ROBERTA CAETANO DA SILVEIRA EDUCAÇÃO LITERÁRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: O LIVRO NAS MÃOS DE PROFESSORAS E EDUCADORAS DE ARAÇATUBA (SP) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – FCT/UNESP, Campus de Presidente Prudente, linha de pesquisa Infância e Educação, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação. Orientadora: Profa. Dra. Renata Junqueira de Souza Presidente Prudente 2014 FICHA CATALOGRÁFICA Silveira, Roberta Caetano da. S591e Educação literária na educação infantil : o livro nas mãos de professoras e educadoras de Araçatuba (SP) / Roberta Caetano da Silveira. - Presidente Prudente : [s.n.], 2014 232 f. Orientadora: Renata Junqueira de Souza Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia Inclui bibliografia 1. Educação infantil. 2. Literatura infantil. 3. Leitura e contação de histórias. 4. Formação docente. 5. Formação do pequeno leitor. I. Souza, Renata Junqueira de. II. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnologia. III. Título. DEDICATÓRIA Aos que mais amo: A Deus, por ter me concedido este sonho, que um dia almejei mais que um casamento. Aos meus amados pais: Raul e Tarcília, a quem devo a vida, os ensinamentos, os valores e os genes literários. Às minhas queridas irmãs: Renata e Raquel, a quem devo o companheirismo, a amizade e o privilégio de ser a irmã do meio. Sem eles a minha vida não teria sentido! AGRADECIMENTOS Lembro-me ao iniciar a escrita desta Dissertação de Mestrado, cheguei a pensar que minha primeira ação seria escrever "os agradecimentos", no entanto, para a minha surpresa, foi a última, pois, temi e temo esquecer de alguém que não simplesmente faz parte de minha vida, mas que de alguma forma tanto me apoiou nesta caminhada acadêmica, que não se dissocia da profissional e pessoal. Houve pessoas que realmente fizeram a diferença nos momentos que mais precisei, visto que nesta caminhada exprimimos nossos mais diversos sentimentos. Ao meu Senhor! Ninguém esteve totalmente ao meu lado mais do que Deus. A oração foi uma constância, desde os primeiros preparativos para o Processo Seletivo, às "longas viagens" quando sozinha e às "curtas" na companhia das amigas mestrandas de Araçatuba, às intermináveis leituras, aos preciosos estudos coletivos e aos dedicados estudos individuais, à persistência na pesquisa de campo, à inspiração para a escritura. Como dizia a frase que estava em uma placa na beira da estrada, a qual vi e partilhei com Lúcia, Tati e Keila: Deus do impossível! À minha especial família! Ao sofrimento de meus pais por me verem horas no computador, perdendo a noção dos dias de estudo, serviço e descanso, preocupando-se com a minha saúde. À minha mãe e irmã Renata que não mediram esforços em me levar à rodoviária antes das 5h da manhã, uma vez por semana durante o ano de 2012. Às minhas três melhores amigas, mãe e irmãs, que atenciosamente ouviram minhas histórias de Mestrado! Enfim, a cada detalhe, agradeço aos meus quatro grandes amores! À profa. Dra. Renata Junqueira, minha orientadora, que tanto apostou no meu potencial, respeitou os meus limites, oportunizou ensinamentos e aprendizagens, acompanhou minhas lutas e partilhou do mesmo sonho! Única a me chamar de Rob. Aos familiares que torcem muito por minhas vitórias acadêmicas! Por aqueles que mantiveram contato, disseram palavras encorajadoras, de modo algum quero desmerecer alguém, mas em especial, agradeço duas tias, uma materna e uma paterna, Tia Ângela e Tia Lígia, que estiveram o tempo todo me apoiando, que foram representantes dos demais: avó, tios, tias, primos e primas! Às queridas amigas mestrandas, algumas já mestres: 1ª turma: Keila, Maria Lúcia e Tatiana e 2ª turma: Priscila, Marilene, Mara e Neiva - pela união constante a cada passo do Mestrado - fases do Processo Seletivo, viagens, aulas, eventos acadêmicos, refeições. Paradoxalmente, choro e alegria! À especial amiga-irmã Keila, a quem carinhosamente chamei de "co-orientadora"! Apoio incondicional, amiga essencial para o sucesso deste título! Principais situações: Processo Seletivo, Comitê de Ética e Pesquisa de Campo - um verdadeiro partilhar de angústias e alegrias obtidas a cada passo do Mestrado. À fundamental e querida amiga: a atriz-mestranda Valéria Santos, a quem carinhosamente chamamos de Val, minha principal "parceira literária"! Às amadas amigas-irmãs: Rosana e Fernanda - que nunca mediram esforços em torcer por mim e tanto me apoiar. Imprescindíveis em minha vida! Às queridas amigas-prima e colegas de trabalho: Raquel e Jurema - que sempre me apoiaram! Fudamentais em minha vida! À querida diretora e hoje mais recente amiga: Rosinha - apoio crucial para as últimas leituras e escrita da Dissertação. Sofreu e vibrou comigo! Aos especiais amigos e irmãos em Cristo: Sandra, Larissa, Carmem, Mariângela, Osvaldo, Oscar, Ida, Jorge, Ízis, Carol, Matilde, Bianca e tantos outros que me sustentaram pelas orações! Graça e Paz! Aos meus queridos mestres mentores do Centro Universitário Toledo (UNITOLEDO): Tito Damazo e Roseli Inbernón. A outros professores de Araçatuba que me fizeram a diferença: Maria Amélia, Lia Mara, Cristiane, Márcia, Carlos, Patrícia e Cleonice. Às essenciais professoras doutoras das bancas de Qualificação e Defesa - titulares: Flávia Ramos (UCS) e Cinthia Ariosi (FCT/UNESP), e suplentes: Regina Marques de Souza (UFMS) e Cyntia Girotto (FFC/UNESP). Às prezadas professoras doutoras, arguidoras da banca do Seminário de Pesquisa: Ana Spíndola (UFMS) e Kátia Kodoma (FCT/UNESP). Aos professores da UNESP que contribuiram com a minha titulação de mestre: Tuim, Odilon, Cyntia Girotto e outros que conheci por lá, como Berta Lúcia. À família CELLIJ que abriu as portas do conhecimento, em especial, literário, do qual tanto aprendi e também ensinei! Às fundamentais amigas graduandas de Pedagogia que abriram as portas de seu apartamento para que eu por lá pudesse morar por um ano: Nathália e Cristine. À Nath que nunca mediu esforços e repartimos o que há de melhor em nós, pude orientá-la, e mesmo sendo bem mais jovem do que eu, ela cuidou de mim nos momentos difíceis! Às "eternas cellijetes" contadoras de histórias: Ângela, Dani, Edna, Iza, Nath, Taísa, Paula e Larissa, que fizeram parte da equipe de 2012 do Projeto "Hora do Conto" do CELLIJ - FCT/UNESP, que experiência ímpar tivemos! A melhor parte do Mestrado, juntamente com Val e Renata Junqueira. Aos queridos colegas de Mestrado e Doutorado: Vania, Rosana, Tati, Léo, Irando, Simonica, Juliane, Josany, Renato e Maria Regina que tanto trocamos experiências e fortificamos uns aos outros. Às pessoas queridas que conheci por meio de outros projetos e encontros do CELLIJ, como: Rose, Ana Paula, Marlon, Flávia, Perciliana, Renata (bibliotecária). Ao prezado Irando que com propriedade traduziu meu resumo para a língua inglesa. À querida Martha Campos de Quadros, prima que conheci em plena banca de Qualificação e incentivadora para a continuidade dos meus estudos literários científicos. À cidade de Presidente Prudente e Faculdade de Ciências e Tecnologia - FCT/UNESP - que me permitiram sonhar e me acolheram tão bem! A todos os professores do programa de Pós-Graduação em Educação da FCT/ UNESP que tive acesso por meio das disciplinas obrigátórias e eventos acadêmicos, ou melhor, por todos os conhecimentos partilhados. Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação pela paciência e disponibilidade, em especial Ivonete e funcinários de outros departamentos da FCT/UNESP, como Luciano e Cris (cantina). À equipe escolar da EMEB Jacinto Guilherme de Moura, minha escola sede, em que fui coordenadora pedagógica no perído decisivo do Mestrado: a escrita da Dissertação - todos foram fundamentais no ano de 2014, cada um a seu modo especial de ser. Ao pessoal da Secretaria Municipal de Educação de Araçatuba/SP - colaboradores, amigos e colegas: secretário da educação Prof. Luiz Carlos Custódio, orientadoras pedagógicas, supervisoras de ensino e demais cargos. A outros queridos amigos e amigas que contribuiram e tanto me incentivaram na realização desta meta: Antonio Luceni, Raquel Silazaki, Ieda e Marisa. À direção, coordenação e aos sujeitos da pesquisa: Begônia, Gérbera, Amora e Framboesa (nomes fictícios) e "suas" crianças de Etapa 1 e 2 do ano de 2013, da instituição de Educação Infantil em que se deu a pesquisa de campo. Não posso deixar de mencionar os meus sempre companheiros Kim e Ringo, nossos cachorrinhos, que por horas ficavam aos meus pés, acompanhando quase tudo, passo a passo, das leituras silenciosas, por vezes em voz alta; das análises de dados à concentrada criação da Dissertação. Outros nomes seriam possíveis de serem mencionados, perdoem-me se neste momento esqueço-me de alguém essencial nesta jornada, enfim, o meu eterno MUITO OBRIGADA! "Mestre não é aquele que sempre ensina, mas aquele que de repente aprende!" Guimarães Rosa "[...] Minhas estórias de Carochinha, meu melhor livro de leitura capa escura, parda, dura, desenhos preto e branco. Eu me identificava com as estórias. Fui Maria e Joãozinho perdidos na floresta. Fui a Bela Adormecida no Bosque. Fui Pele de Burro. Fui companheira de Pequeno Polegar e viajei com o Gato de Sete Botas. Morei com os anõezinhos. Fui a Gata Borralheira que perdeu o sapatinho de cristal na correria da volta, sempre à espera do príncipe encantado, desencantada de tantos sonhos nos reinos da minha cidade. [...] O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim, terás o que colher." Cora Coralina RESUMO O presente estudo, vinculado à linha de pesquisa Infância e Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – FCT/UNESP, Campus de Presidente Prudente, tem a finalidade de investigar como se processam as práticas de leitura e contação de histórias de duas professoras e duas educadoras adjuntas infantis que atuam com o mesmo grupo de crianças de 4 anos de idade (turma de Etapa 1) a 5 anos (turma de Etapa 2) de uma instituição de Educação Infantil, de período integral, do Sistema Municipal de Educação de Araçatuba/SP. Faz-se necessário identificar suas concepções e práticas de leitura e contação de histórias para verificar se reconhecem a relevância da Literatura Infantil no desenvolvimento e na formação dos pequenos leitores. As indagações são: meramente leem/contam histórias ou possibilitam diferentes práticas de leitura e técnicas de contação? Propiciam um trabalho educativo comprometido com a intermediação da passagem de criança-ouvinte a aluno-leitor, procurando despertar nas crianças o gosto pela leitura, a princípio, a volúpia em ouvir histórias e, futuramente, lê-las sozinhas? O que dá consistência teórica à pesquisa são obras que abordam a temática “Educação Infantil; Literatura Infantil; leitura, contação de histórias; formação de professores e formação leitora”. Trata-se de uma pesquisa em Educação, de abordagem qualitativa, em uma perspectiva de estudo de caso do tipo etnográfico. Os procedimentos metodológicos se deram por meio dos instrumentos: entrevista estruturada; pesquisa de campo por meio de observação; análise documental dos materiais de registros dos quatro sujeitos da pesquisa e análise comparativa das concepções e práticas de leitura e contação de histórias dessas profissionais. A análise da coleta de dados qualitativos culmina na construção de cinco categorias, que buscam discutir as práticas educativas com leitura e contação, e a possível formação do leitor, visando uma educação literária para todos. Os resultados revelam os equívocos cometidos pelas professoras e educadoras na definição de ler e contar histórias, retratando o avesso literário quando muitas vezes se nega a literatura; o livro infantil utilizado para o trabalho com conteúdo de outros eixos da Educação Infantil, empregando o texto como pretexto e a dificultade da formação inicial dos sujeitos da pesquisa em formar profissionais da educação para formar leitores. Palavras-chave: Educação infantil. Literatura infantil. Leitura e contação de histórias. Formação docente. Formação do pequeno leitor. Literary education in kindergarten: children’s literature books in the hands of teachers and early years educators from Araçatuba, São Paulo State ABSTRACT Joined to Childhood and Education, a line of work of Faculdade de Ciências e Tecnologia/Universidade Estadual Paulista’s Post-graduate Program in Education, this research aims to investigate how the practice of two teachers and two early years educators occurs regarding to reading and storytelling. All of them work with the same four-year-old and five-year-old children in a full-time kindergarten in Araçatuba, State of São Paulo. It is necessary to identify their concepts and practices on reading and storytelling in order to verify whether they understand the importance of Children’s Literature in the development and education of beginning readers. The questions are: do they merely read/tell stories or allow different practices of reading and storytelling techniques? Do they provide an educational work committed to the passage from children as listeners to students as readers, seeking to arouse in children, at first, a love of reading (the lust to hear stories) and, later, have them reading by themselves? The research is based on studies concerning the themes: "Childhood Education; Children's Literature; reading; storytelling; teacher’s training and reading education”, which give it theoretical consistency. This is a research in Education, of qualitative approach in a case study perspective and of ethnographic type. The methodological procedures were carried out through the following tools: structured interview; field research through observation; documentary analysis of the four subjects of the research’s registrations; and comparative analysis of the conceptions and practices of reading and storytelling of these professionals. The analysis of the qualitative data collection culminates in the construction of five categories, which seek to discuss educational practices regards to reading and storytelling, and the possible development of the reader, aiming a literary education for all. The results reveal the mistakes made by teachers and early years educators with respect to the definition of reading and storytelling, demonstrating a non-literary view when using literature; children's literature books are used to work with other contents of early childhood education, that is, literature as a pretext; and the inefficiency of initial training of the studied subjects regards to training education professionals to instruct readers. Keywords: Kindergarten. Children’s Literature. Reading and storytelling. Teacher’s training. Education of beginning readers. LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Sujeitos da pesquisa ................................................................. 106 Quadro 2 - Disciplina Literatura Infantil ....................................................... 108 Quadro 3 - Contribuição à prática educativa ............................................... 109 Quadro 4 - Eventos acadêmicos literários ................................................... 113 Quadro 5 - Temática Literatura Infantil, leitura e contação de histórias ...... 114 Quadro 6 - Priorização ou não da temática na Educação Infantil ............... 115 Quadro 7 - O gosto pela leitura ................................................................... 118 Quadro 8 - Frequência do ato de ler ............................................................ 120 Quadro 9 - Frequência da leitura de livros de Literatura Infantil .................. 123 Quadro 10 - Instrumentos de investigação .................................................. 129 Quadro 11 - O que é ler ............................................................................... 134 Quadro 12 - Preferência leitora das crianças .............................................. 135 Quadro 13 - O ato de contar histórias para crianças ................................... 137 Quadro 14 - Técnicas de contação de histórias .......................................... 138 Quadro 15 – Planejamento .......................................................................... 139 Quadro 16 - Crianças como contadoras de histórias .................................. 143 Quadro 17 - Acervo literário escolar ............................................................ 147 Quadro 18 - Critério na escolha do livro literário ......................................... 149 Quadro 19 - Acesso das crianças a livros de Literatura Infantil .................. 152 Quadro 20 - Diferença(s) entre o ato de ler e o ato de contar ..................... 155 Quadro 21 - Ato mais apropriado às crianças de Educação Infantil ............ 156 Quadro 22 - Espaços para leitura e contação de histórias .......................... 157 Quadro 23 - Espaço ideal para práticas de leitura e contação aos pequenos ..................................................................................................... 159 Quadro 24 - Atividades pós leituras e contações ........................................ 160 Quadro 25 - Atividades de leitura literária ................................................... 163 Quadro 26 - Objetivos e metodologias ........................................................ 167 Quadro 27 - Contribuição das atividades literárias ao desenvolvimento infantil .......................................................................................................... 172 Quadro 28 - Contribuição profissional para a formação do pequeno leitor . 174 LISTA DE SIGLAS ADI = Agente de Desenvolvimento Infantil CEFAM = Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério CELLIJ = Centro de Estudos em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil CEP = Comitê de Ética em Pesquisa ECA = Estatuto da Criança e do Adolescente EMEB = Escola Municipal de Educação Básica FCT = Faculdade de Ciências e Tecnologia FFC = Faculdade de Filosofia e Ciências LC = Lei Complementar LDB = Lei de Diretrizes e Bases da Educacional Nacional MEC = Ministério da Educação ONU = Organização das Nações Unidas PCP = Professor Coordenador Pedagógico PEB I = Professor de Educação Básica I PNBE = Programa Nacional Biblioteca da Escola RCNEI = Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil RE = Recesso Escolar SME = Secretaria Municipal de Educação TCC = Trabalho de Conclusão de Curso TCLE = Termo de Consentimento Livre e Esclarecido UCESP = União Cultural do Estado de São Paulo UCS = Universidade de Caxias do Sul UE = Unidade Escolar UFMS = Universidade Federal de Mato Grosso do Sul UNESP = Universidade Estadual Paulista UNITOLEDO = Centro Universitário Toledo SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................ 15 1 EDUCAÇÃO INFANTIL: CONCEPÇÕES E PERSPECTIVAS ................ 29 1.1 Concepções de criança-infância, família, educação, escola e professor ..................................................................................................... 29 1.2 A adultização da criança versus a infantilização do adulto .................. 35 1.3 Educação Infantil: trajetória, rumos e desafios ..................................... 39 1.4 Educação Infantil no Brasil: trajetória, avanços e retrocessos ............. 45 1.5 A formação dos professores da Educação Infantil no Brasil ................ 51 1.6 Educação Infantil e a formação de professores e educadores de Araçatuba/SP .............................................................................................. 57 2 LITERATURA INFANTIL: LINGUAGENS, LETRAMENTOS, FORMAÇÕES LEITORA E PRÁTICAS ...................................................... 61 2.1 Linguagem Oral (e Escrita) na Educação Infantil ................................. 61 2.2 Educação Infantil: do letramento ao letramento literário ...................... 67 2.3 Literatura Infantil: da formação humana a outros interesses ................ 77 2.4 A formação leitora de adultos e crianças .............................................. 84 2.5 Contação de histórias: relevância e algumas técnicas ......................... 90 2.6 Práticas de leitura e a importância do livro infantil ................................ 95 2.7 Leitura literária: escolarização ou não? ................................................ 102 3 SUJEITOS DA PESQUISA: IDENTIFICAÇÃO, FORMAÇÃO E PERFIL CULTURAL ................................................................................................. 105 3.1 Identificação .......................................................................................... 106 3.2 Formação .............................................................................................. 107 3.3 Perfil cultural ......................................................................................... 117 4 A PALAVRA LITERÁRIA ......................................................................... 127 4.1 A palavra lida ou falada ........................................................................ 129 4.2 Contação de histórias pelo adulto e reconto pela criança .................... 136 4.3 A palavra sentida e o livro literário ........................................................ 144 4.4 Práticas com a palavra literária ............................................................. 154 4.5 A promoção da literatura e o avesso literário ....................................... 171 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A CONSTRUÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO LITERÁRIA PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL ............................................. 182 REFERÊNCIAS .......................................................................................... 187 APÊNDICE .................................................................................................. 192 ANEXOS ..................................................................................................... 196 15 INTRODUÇÃO Eu vou contar pra vocês uma história que o meu avô sempre contava. Ele dizia que esta história aconteceu há muitos e muitos anos, num lugar muito longe daqui. Ruth Rocha Venho me constituindo, já há algum tempo, em um “amálgama literário”! Digo venho, porque a caminhada é longa, na verdade, diária e infindável. Jamais com pretensão, mas sim com a intenção de exprimir “a mistura que me torno” de todas as influências e aprendizagens recebidas, bem como, das experiências vividas por meio de todos aqueles que estavam no meu caminho, por aqueles que encontro e, ainda, pelas pessoas que hei de cruzar. Portanto, não é possível trazer uma pesquisa de cunho acadêmico como esta, sem antes compartilhar, um pouco, da minha história de leitura, da minha constante formação leitora e, consequentemente, da minha escrita. Recebi fortes inspirações, em especial, de meus avôs e genitores; de mestres que passaram e continuam passando por minha vida; além, é claro, de “grandes e pequenos leitores” que permitiram e permitem com que toda esta “trajetória pessoal literária” faça sentido, faça valer a pena. Meus avôs, ambos “Josés”, mineiros, nascidos no mês de agosto no início do século XX, o paterno de 1903 e o materno de 1907, eram contadores de histórias, embora de estilos distintos, o paterno exímio em causos, provérbios e ditos populares, já o materno, grande conhecedor da História do Brasil. Cresci acompanhando algumas destas fantásticas histórias. Meu pai, um declamador nato, disseminador de provérbios e apreciador da literatura brasileira. Minha mãe, professora, alfabetizadora de jovens e adultos e contadora de histórias por natureza. Minhas irmãs, especiais colaboradoras de minha inicial formação leitora, a mais velha que lia para mim, eu, que lia para a mais 16 nova. Durante a adolescência e início da juventude, nós três contamos histórias em festas infantis por meio de fantoches. Em meio a toda esta “trajetória literária”, concluí o magistério no ano de 1994, extinto Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (CEFAM); graduei-me em Pedagogia (1997) e duas licenciaturas em Letras, uma com habilitação em Inglês (2007), momento em que fui monitora das disciplinas de “Teoria Literária, Literatura Brasileira e Linguística”, outra em Espanhol (2009), esta última, concomitantemente, participei do Programa de Iniciação Científica pela faculdade, desenvolvendo o projeto A poesia da prosa poética em João Guimarães Rosa (2007-2009) e fiz uma especialização em Psicologia e Educação (2009), apresentando o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) intitulado A personagem Miguilim numa perspectiva psicológica, atrelando Psicologia à Literatura, portanto, Pedagogia à Letras. Sou professora de educação básica (PEB I) há 19 anos e durante esses anos de estudos e atuação profissional, sempre contei histórias, quer como “simples narrativa”, com o “auxílio do livro”, o “uso de gravuras”, de “desenhos”, de “flanelógrafo” e a “narrativa com interferências” do narrador e dos ouvintes, segundo as vantagens específicas que cada recurso tem e requer uma técnica especial de contação de histórias, mencionadas e ressaltadas por Coelho (1999). Desses 19 anos de carreira, 12 deles no cargo de PEB I no Sistema Municipal de Educação do município de Araçatuba/SP, tendo como uma das últimas experiências profissionais a atuação na função de orientadora pedagógica junto à Secretaria Municipal de Educação (SME), integrando a equipe de orientação pedagógica de Educação Infantil1, mais precisamente, do segundo semestre de 2009 a fevereiro de 2012, quando então, em março de 2012 me afastei, sem prejuízo de vencimento e das demais vantagens do cargo, para frequentar o curso de pós-graduação stricto sensu no prazo máximo de 18 meses, segundo a Lei Complementar nº 204, de 22 de dezembro de 2009, art. 65, inciso II, para plena dedicação ao curso de Mestrado em Educação, conforme previsto nesta Lei, que dispõe sobre os profissionais da educação básica, a reorganização do Estatuto, Plano de Carreira, Vencimentos e Salários do Magistério Público de Araçatuba, e outras providências, que especifica, em seu art. 2, os objetivos: 1 Os termos “Educação Infantil” e “Literatura Infantil” são apresentados com as iniciais maiúsculas para demonstrar a relevância que esta pesquisa traz a tais conceitos. 17 I - aprimorar a qualidade do ensino público municipal; II - regulamentar a relação funcional deste quadro no âmbito da administração pública municipal; III - estabelecer normas que definem e regulamentam as condições e o processo de movimentação da carreira, pelo método da progressão funcional e a correspondente evolução da remuneração; IV - promover a valorização dos profissionais da educação básica de acordo com as necessidades e as diretrizes da Secretaria Municipal da Educação. (ARAÇATUBA, 2009, p. 1) Dentre algumas das atribuições necessárias aos ocupantes da função de orientador pedagógico, trazidas no anexo VII, da Lei 204, estão: [...] b) orientar as atividades de estudo e pesquisa, em momentos de formação, para os profissionais em educação básica; [...] d) realizar estudos e pesquisas relacionadas às atividades de ensino, auxiliando as unidades escolares; [...] k) primar pela qualidade de atendimento a crianças do berçário e do período integral. (ARAÇATUBA, 2009, p. 56, grifo nosso) Assim, sabendo-se da importância de certas temáticas para os profissionais da educação que trabalham com crianças de Educação Infantil, nossa equipe organizou e ministrou grupos de estudos específicos. Um dos temas pontuado foi a relevância da Literatura Infantil para o desenvolvimento da criança de 0 a 5 anos de idade. Aliando minha formação acadêmica à minha experiência profissional, tive a oportunidade de montar e ministrar o grupo de estudo A arte-magia das histórias infantis: da contação à leitura, destinado ao professor que atua na Educação Infantil, ao educador adjunto de creche e ao educador adjunto infantil, ocorrido no segundo semestre do ano letivo de 2010. Foram priorizadas "a Literatura Infantil; as memórias pessoais de leitura do público alvo; as práticas de leitura e as técnicas de contação de histórias" que estes profissionais podem e devem proporcionar às crianças. Participaram deste grupo 35 profissionais, sendo 14 professoras (12 professoras de Educação Infantil, 01 professora na função de orientadora pedagógica e 01 professora na função de coordenadora pedagógica) e 21 educadoras (14 adjuntas de creche e 07 adjuntas infantis). Diante do exposto, meu interesse em aprofundar as questões sobre a “formação do profissional da Educação Infantil, com ênfase nas suas práticas de leitura e contação de histórias” nesse espaço educacional, movimentaram-me a 18 cursar o Mestrado, por isso optei “em Educação”, priorizando a “Literatura Infantil”. A verdade é que a intencionalidade maior seria bem o que diz o subtítulo da obra de Aguiar (2001) “formando educadores para formar leitores”. No município de Araçatuba, nas instituições de Educação Infantil, três profissionais distintos: o professor2; o educador adjunto de creche e o educador adjunto infantil atuam diretamente com as crianças. Com relação às crianças de período integral, essas permanecem meio período com um professor e meio período com um ou mais de um educador, as crianças da “creche” (0 a 3 anos) ficam com o educador adjunto de creche e as da “pré-escola” (4 a 5 anos) com o educador adjunto infantil. Faz-se necessário explicar que esta Lei Complementar trouxe em seu art. 83, inciso II, a alteração da nomenclatura dos cargos “berçarista” para educador adjunto de creche e “auxiliar de recreação” para educador adjunto infantil, sendo suas atribuições especificadas no anexo VII de tal lei3. A Lei 204 traz as atribuições de cada profissional da educação, algumas do educador adjunto infantil são: a) desenvolver atividades de recreação, com as crianças de período integral, com orientação do diretor da escola, do coordenador pedagógico e do orientador pedagógico; [...] e) organizar as atividades e estabelecer critérios de participação; [...] w) participar de cursos de formação contínua em serviço e de outros relacionados à sua área de atuação. (ARAÇATUBA, 2009, p. 61-62) Por outro lado, algumas das atribuições do professor de educação básica I: [...] c) zelar pela aprendizagem dos alunos; [...] f) participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional; [...] h) incumbir-se das demais tarefas indispensáveis ao atendimento dos fins educacionais da escola e ao processo de ensino e aprendizagem; [...] j) acompanhar 2 No decorrer do estudo, quando empregarmos os termos “professor” e “educador”, no masculino, estaremos nos referindo aos devidos cargos de modo geral, no entanto, ao mencionarmos “professoras” e “educadoras”, reportaremos aos quatro sujeitos da pesquisa que são mulheres, profissionais da Educação Infantil. 3 Segundo o art. 86 os cargos de educador adjunto de creche e educador adjunto infantil serão extintos, conforme houver vacância e foi criado o cargo de Agente de Desenvolvimento Infantil (ADI), especificado no art. 92, inciso I, que tem como requisito mínimo para provimento deste cargo ser graduado em Curso Normal Superior ou Licenciatura Plena em Pedagogia, anexo II. Estes três cargos, educadores e ADIs, constituem, junto a outros, a Classe de Apoio Educacional, portanto, profissionais da educação básica. 19 as tentativas da criança, incentivar a aprendizagem, oferecer elementos para que elas avancem em suas hipóteses sobre o mundo; k) estimular as crianças em seus projetos, ações e descobertas; l) ajudá-las nas suas dificuldades, desafiá-las e despertar sua atenção, curiosidade e participação. (ARAÇATUBA, 2009, p. 51) Constatei enquanto professora e orientadora pedagógica, ao acompanhar as práticas educativas e os registros dos profissionais da educação, que é nítida a necessidade de oferecer às crianças contato com a Literatura Infantil, que, aliás, muitas vezes, defrontada com alguns problemas referentes à baixa qualidade e a própria presença de uma falsa literatura, revestida com uma roupagem de literatura de excelência, a qual professores propunham, indaguei: “O que falta: conhecimento do assunto e/ou práticas de leitura e técnicas de contação de histórias? Do que depende a inserção da Literatura Infantil no espaço da sala de aula: criatividade, boa vontade, conhecimento dos livros voltados para as crianças e/ou novas concepções de leitura e contação de histórias? Por que muitos profissionais não compreendem a importância da leitura para os pequenos? O que fazer para transformar o adulto que tem pouca familiaridade com a Literatura Infantil em um disseminador de boas práticas leitoras?”. Almejamos com a presente pesquisa demonstrar o reconhecimento da precisão em apresentar a Literatura Infantil às crianças de Educação Infantil, pois, consideramos que essa literatura contribui significativamente para o desenvolvimento dos pequenos. Inclusive, é com o intuito de colaborar com as práticas pedagógicas desenvolvidas por professores e educadores das instituições de Educação Infantil, que apresentamos este estudo, verificando a concepção de leitura e de ensino de leitura, priorizando diversas práticas de leitura e técnicas de contação de histórias, por meio desses profissionais mediadores, fazendo uso da Literatura Infantil como suporte para as ações referentes à oralidade, contação e leitura, culminando então em uma dissertação que possa levar à reflexão de cada profissional da Educação Infantil sobre a sua contribuição na formação do pequeno leitor. A metodologia traçada para a aplicação da pesquisa proposta almeja responder a uma problematização, mediante algumas hipóteses e objetivos a serem alcançados. Levantamos as seguintes questões: 20 � As professoras e educadoras de uma instituição de Educação Infantil de Araçatuba reconhecem a relevância da Literatura Infantil para o desenvolvimento da criança de 0 a 5 anos de idade? � Quais são suas concepções de leitura e contação de histórias? � Utilizam-se de recursos de leitura e contação de uma maneira consciente e especial? Ou meramente leem algumas histórias e as mencionam na Hora do conto/Roda da leitura? � A formação inicial e a formação continuada (em serviço e/ou não) de tais profissionais contribuíram/contribuem para que façam um trabalho significativo referente à temática “Literatura Infantil, leitura e contação de histórias” com crianças pequenas? � Estariam dispostas a aprender e a praticar estratégias diversas quanto ao ato de ler e contar histórias? Esta pesquisa tem como objetivo geral, investigar como se processam as práticas de leitura e contação de histórias de duas professoras e duas educadoras adjuntas infantis que atuam com os mesmos grupos de crianças de 4 e 5 anos de idade em uma escola de Educação Infantil, de período integral, do Sistema Municipal de Educação de Araçatuba/SP. Para tanto, estabelecemos os seguintes objetivos específicos: � Identificar as concepções de leitura e contação de histórias de duas professoras, uma que atua com crianças de 4 anos (Etapa 1)4 e outra com crianças de 5 anos de idade (Etapa 2). � Identificar as concepções de leitura e contação de histórias de duas educadoras adjuntas infantis que atuam individualmente com estas duas turmas de crianças juntas, porém, no período contrário ao das professoras, por se tratarem de crianças de período integral. � Observar as práticas educativas das professoras e das educadoras para verificar se proporcionam práticas de leitura e contação de histórias a essas crianças. 4 O Sistema Municipal de Educação de Araçatuba usa os termos “Etapa 1” e “Etapa 2” para as duas etapas que correspondem à “pré-escola”, a primeira referente às crianças de 4 anos de idade e a segunda às de 5 anos, última fase da Educação Infantil. 21 � Observar os registros pessoais de documentos das professoras e das educadoras, se houver, para verificar se elas descrevem no planejamento suas práticas de leitura e contação. � Comparar as concepções e as práticas das quatro, sabendo-se que se tratam de cargos diferentes, com atribuições específicas e requisitos mínimos distintos para o provimento dos cargos, no entanto, são profissionais que atuam com as mesmas crianças. � Comparar as práticas e os planejamentos das professoras e das educadoras, se houver. � Verificar como a Literatura Infantil é apresentada a essas crianças que estudam em uma escola de período integral, ou seja, pelo tanto de tempo que permanecem na escola, qual a importância que se dá à formação destes pequenos leitores. Supomos que muitos professores e educadores consideram que todos os livros de histórias para crianças são de Literatura Infantil, fazendo confusão com aqueles que pertencem à falsa literatura, sem contar, os livros de baixa qualidade que trazem uma linguagem inadequada e temas “deseducativos”. Há indícios que vários não conheçam, ou talvez até conheçam, mas não utilizam as diversas práticas de leitura possíveis às crianças dessa faixa etária segundo seus interesses e também muitos não se apropriam da arte de contar histórias. Alguns dizem que contam enquanto na realidade leem e o inverso também ocorre. Por vezes, certos professores parecem ter a impressão de que o simples fato de ler uma história, mesmo que sem entonação e emoção alguma consideram ter despertado o gosto pela leitura em seus alunos, como se já tivessem feito o necessário. É provável que o profissional que tenha em sua formação inicial ou, até mesmo, formação continuada, recebido orientações, traga em sua prática educativa, atividades significativas para a formação leitora dos pequenos. Pelo exposto, a seguir definimos os processos metodológicos para alcançar os objetivos vislumbrados nesta pesquisa. 22 Processos metodológicos Segundo Lüdke & André (1986, p. 1): Para se realizar uma pesquisa é preciso promover o confronto entre os dados, as evidências, as informações coletadas sobre determinado assunto e o conhecimento teórico acumulado a respeito dele. O presente estudo trata-se de uma pesquisa em Educação, de abordagem qualitativa, em uma perspectiva de estudo de caso do tipo etnográfico. A pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como fonte direta de dado, ou seja, implica num trabalho intensivo de campo, com isso, o pesquisador se torna seu principal instrumento. Para Vianna (2003, p. 63), “na pesquisa qualitativa, a coleta de dados depende muito da perspectiva assumida pelo pesquisador, dos seus conceitos sobre as coisas”. Complementamos ainda com o que Lüdke & André (1986, p. 23) ressaltam: O estudo de caso parte do princípio de que o leitor vá usar [...] conhecimento tácito para fazer as generalizações e desenvolver novas idéias, novos significados, novas compreensões. Temos como objeto de estudo desta pesquisa as práticas educativas de profissionais da Educação Infantil em leitura, contação de histórias e o uso da Literatura Infantil, em vista disso, escolhemos os seguintes métodos de investigação: observação sem intervenção com anotações no Diário de campo; entrevista estruturada, gravada em áudio e transcrita fidedignamente, e análise documental dos materiais de registros dos sujeitos da pesquisa. A análise da coleta dos dados qualitativos culmina na construção de categorias. Para executarmos a pesquisa de campo foi preciso ter autorizações de todas as instâncias, isto é, a do diretor da universidade para o desenvolvimento do projeto; a do secretário municipal de educação de Araçatuba para a escolha e aplicabilidade do estudo em uma das instituições municipais de Educação Infantil; a da diretora da escola selecionada para a realização da pesquisa com quatro de seus profissionais 23 e as dos próprios sujeitos da pesquisa para o acompanhamento de suas práticas educativas por meio da observação, entrevista e análise documental. Pelo fato de todas as informações coletadas neste estudo serem estritamente confidenciais, somente nós, pesquisadora e orientadora, tivemos conhecimento da identidade de todos os envolvidos, comprometendo-nos com a garantia de sigilo ao publicar os resultados, por isso foram atribuídos nomes fictícios, assegurando que serão utilizados para fins de análise científica, logo, tratados de forma impessoal. Optamos por atribuir o nome da escola de EMEB Profa. Tharcília de Quadros; as duas professoras receberam nomes de flores, Gérbera, a professora de Etapa 1, Begônia, a professora de Etapa 2 e as duas educadoras nomes de frutas, Amora e Framboesa, com o intuito também de facilitar aos leitores o acompanhamento de toda a pesquisa para uma compreensão eficaz. O primeiro problema que enfrentamos foi como faríamos para explicar aos sujeitos o que iríamos pesquisar, visto que se disséssemos que o nosso objeto de estudo era “práticas educativas em leitura e contação de histórias”, provavelmente modificariam o planejamento e o comportamento. Assim, a comissão do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) compreendeu e nos apoiou a dizermos no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que seriam investigadas "suas práticas educativas", sem mencionarmos o enfoque, nem mesmo à direção e à coordenação da escola. Felizmente não houve restrições por parte de nenhum deles. Somente descobriram o enfoque da pesquisa após a aplicação da última técnica, ou seja, da entrevista. Inclusive, por fim, esclarecemos a todos os envolvidos. Estivemos respaldadas em Lüdke & André (1986, p. 28) que mencionam: “outro tipo de decisão que o pesquisador deve enfrentar é em que medida tornará explícito o seu papel e os propósitos de estudo” e ratificam que “a preocupação é não deixar totalmente claro o que pretende, para não provocar muitas alterações no comportamento do grupo observado” (p. 29). Havíamos determinado observar dez momentos5 alternados da prática educativa de cada sujeito, num total de quarenta observações, divididas da seguinte forma: duas vezes por semana cada profissional, as professoras no período da 5 Decidimos dizer “momentos” e não “dias” ou “vezes”, pelo fato da Pesquisa de Campo ter sido realizada tanto no período da manhã quanto no da tarde, para esclarecer que muitas vezes foram realizados dois “momentos” em um mesmo “dia”, isto é, a pesquisadora ia num período para observar a prática de uma professora e retornava no outro período para observar a prática de uma educadora, isso com o mesmo grupo de crianças. 24 manhã e as educadoras no período da tarde, realizando momentos de 2 horas cada um. Combinamos, nas segundas e quintas-feiras as práticas da professora Gérbera (Etapa 1, manhã) e da educadora Amora (Etapa 1 e 2, tarde) e nas quartas e sextas- feiras da professora Begônia (Etapa 2, manhã) e da educadora Framboesa (Etapa 1 e 2, tarde). Mesmo ocorrendo alguns imprevistos de dias e horários, todas as observações foram cumpridas, embora foi preciso mais três momentos com a professora Begônia, situação que será retratada em um dos capítulos, totalizando quarenta e três (43) momentos de observação. É importante ressaltar que no período da tarde, quando as crianças estão com as educadoras, considerado “momento de recreação”, as duas turmas permanecem juntas, assim, as educadoras dividem os dias em que cada uma fica com as crianças. A princípio trabalhavam juntas, mas como as crianças das turmas de Maternal 1 e Maternal 2 são menores e em maior quantidade, quando uma está com as crianças das Etapas, a outra auxilia a educadora responsável pelas crianças dos Maternais. Todas as observações duraram 2 horas, mas não foram cumpridas exatamente nos mesmos horários, justamente por não ser especificado o que estava sendo observado nas práticas educativas delas, objetivando constatar a ocorrência e/ou frequência de práticas de leitura e contação de histórias, e até mesmo o procedimento empregado. Após os primeiros dias foi possível verificar quais seriam os melhores horários com as professoras e as educadoras, sabendo-se que não precisávamos acompanhar momentos como a entrada/saída; a hora do banho; a hora do descanso/sono; a hora do parque, pois provavelmente não obteríamos informações relevantes ao nosso objeto de estudo. As anotações foram registradas em um Diário de campo, constando o dia; o horário (início/término); o local; a prática de qual sujeito da pesquisa foi observada; a quantidade de crianças presentes; as atividades presenciadas; os fatos ocorridos; alguns comentários; certos imprevistos; as emoções e os comportamentos constatados. Infelizmente não é possível trazer todas as notas de campo nem mesmo como “apêndice” da dissertação, pois, trata-se de uma coleta extensa, contudo, muitos desses dados coletados, principalmente por meio da técnica de observação, são apresentados nas categorias de análise. Vianna (2003, p. 12) explica que “a observação é uma das mais importantes fontes de informações em pesquisas qualitativas em educação”. A autora enfatiza: “as observações, quando adequadamente realizadas, são um retrato vivo da 25 realidade estudada” (VIANNA, 2003, p. 33) e “[...] oferecem uma grande quantidade de dados” (p. 39). Outra técnica que realizamos foi a análise documental, porque complementa os dados obtidos por meio das observações e das entrevistas, apontando, muitas vezes, novos aspectos da pesquisa. Ao comparar o que é planejado com o que é desenvolvido de fato com as crianças, busca-se evidências. Selecionamos observar das professoras os documentos do “tipo técnico”, como: Plano Anual de Ensino; Planejamento Semanal (denominado Semanário), seguido do Relatório Reflexivo Semanal, que também não deixa de ser do “tipo pessoal”; as atividades em folha das crianças e o portfólio individual do aluno6, além da análise do “tipo oficial”, referente a legislações e documentos do Ministério da Educação (MEC), por exemplo. Por outro lado, das educadoras foi observado o Planejamento de Trabalho. São Lüdke & André (1986, p. 40) que caracterizam estes tipos de documentos. As análises de tais documentos ocorreram em doze (12) momentos também de 2 horas de duração. Para cada professora foram utilizados cinco (05) momentos e para as educadoras somente dois (02), pois o único documento que estas possuem é o Plano de Trabalho7 comum a todas as educadoras adjuntas infantis da Unidade Escolar (UE). O terceiro instrumento utilizado foi a entrevista estruturada individual, gravada em áudio e transcrita fidedignamente. As quatro entrevistas são encontradas na íntegra no apêndice desta pesquisa e foram escritas fielmente da maneira como foram respondidas pelos sujeitos, por isso sem cortes e/ou correções de qualquer ordem gramatical, respeitando o vocabulário dos entrevistados. As entrevistas foram realizadas em um único dia e duraram em torno de 27/48 minutos cada uma. Traremos trechos das falas relevantes que constituíram as categorias, somadas aos dados coletados através dos outros dois instrumentos. As entrevistas foram realizadas dentro de salas de aula, individualmente, somente a pesquisadora e o sujeito, com as professoras no período da manhã e as 6 Na Educação Infantil empregamos o termo "criança", raríssimas vezes traremos a expressão "aluno", como neste caso por se tratar de um documento que acompanha o sujeito no Ensino Fundamental. 7 A equipe de orientação pedagógica de Educação Infantil da SME de Araçatuba, atualmente, compreende que o “Plano de Trabalho” das educadoras adjuntas infantis não é obrigatório e pode ser planejado em conjunto com o professor coordenador pedagógico (PCP) e acompanhado por este. Já o “Plano de Trabalho” das educadoras adjuntas de creche pode ser planejado em parceria com a professora de berçário. 26 educadoras à tarde. Foi estipulado como seria este momento da pesquisa, primeiramente, quem ficaria com as crianças enquanto ocorria a entrevista. Fizemos algumas solicitações: não interrupção, por conta da seriedade da pesquisa e também da gravação; a pesquisadora daria explicações quando não compreendessem as perguntas, mas jamais induzindo as respostas. Felizmente a aplicabilidade das entrevistas transcorreu bem, mesmo com duas interrupções de crianças, uma com a professora Gérbera e outra com a educadora Amora, ao que as profissionais precisaram retomar, recuperando o fio condutor sem comprometer a pesquisa. Reconhecemos e revelamos aos leitores que um dos momentos mais difíceis desta pesquisa foram as transcrições, visto que foi preciso ouvi-las por várias vezes, incessantemente. Por fim, foi feita uma visita exaustiva de todo o material da pesquisa de campo, mas que foi valiosa pelos resultados obtidos e importância atribuída a este estudo de cunho acadêmico. Lüdke & André (1986, p. 33) relatam que “na entrevista a relação que se cria é de interação, havendo uma atmosfera de influência recíproca entre quem pergunta e quem responde”. Sua grande vantagem é “a captação imediata e corrente da informação desejada” (p. 34). André (2008, p. 51) traz a afirmação fundamental de que “no estudo de caso do tipo etnográfico, que objetiva revelar os significados atribuídos pelos participantes a uma dada situação, a entrevista se impõe como uma das vias principais”. Antes de aplicar esse instrumento de pesquisa com as quatro profissionais, realizamos uma “entrevista piloto” (SZYMANSKI, 2011, p. 54) com uma professora de Educação Infantil de outra UE, que estava com uma turma de Etapa 2, para o aprimoramento da aplicação desta técnica. A pesquisa de campo foi concluída com a duração de 86 horas de observação das práticas educativas; 24 horas de análise documental e 2 horas/30 minutos de entrevistas (soma das 4), num total de 112 horas e 30 minutos. Realizada durante os meses de maio (segunda quinzena) a setembro (primeira quinzena) de 2013, salvo nas três semanas de recesso escolar (RE) no mês de julho, precisamente 118 dias, 4 meses. Decidimos analisar os dados coletados mediante a análise de conteúdo, defendida por Bardin (1977) e Franco (2008). 27 O ponto de partida da Análise de Conteúdo é a mensagem, seja ela verbal (oral ou escrita), gestual, silenciosa, figurativa, documental ou diretamente provocada. [...] assenta-se de uma concepção crítica e dinâmica da linguagem. (FRANCO, 2008, p. 12-13) Este tipo de análise permite que o pesquisador produza inferências sobre os elementos básicos do processo de comunicação e leva a comparação dos dados com os pressupostos teóricos. Enfim, como salienta Franco (2008, p. 59), “em verdade, a criação de categorias é o ponto crucial da análise de conteúdo”. Szymanski, Almeida e Prandini (2011, p. 78) explicam que a construção das categorias “depende da experiência profissional, das teorias do seu conhecimento e das suas crenças e valores”. Para estas autoras (p. 66), “na perspectiva de Bardin, a análise de discurso não é uma proposta diferente da análise de conteúdo”. Um conjunto de categorias é produtivo desde que concentre a possibilidade de fornecer resultados férteis [...] em índices de inferências, em hipóteses novas e em dados relevantes para o aprofundamento de teorias e para a orientação de uma prática crítica, construtiva e transformadora. (FRANCO, 2008, p. 68) Esta dissertação se estrutura em quatro capítulos, além das considerações finais, referências, apêndice e anexos. No primeiro capítulo abordamos assuntos que ressignificam a Educação Infantil: as concepções de criança-infância, família, educação, escola e professor; a formação de professores e demais profissionais que atuam com crianças pequenas para além da separação “cuidar-educar” e os rumos e os desafios da primeira etapa da educação básica. Nossos embasamentos teóricos são alguns documentos do MEC, legislações e autores como Ariès (1978); Azevedo (2013); Del Priori (2006); Oliveira (2007) e Postman (1999). A ênfase do segundo capítulo são os conceitos de Linguagem Oral (e Escrita) e Letramento/Letramento literário; as polêmicas e os avanços da Literatura Infantil; a importância do livro infantil; práticas de leitura e técnicas de contação de histórias; a formação leitora de crianças de Educação Infantil e de seus adultos-mediadores e a escolarização da leitura literária/Literatura Infantil. Para isso contamos com o arcabouço teórico: Abramovich (1997); Aguiar (2001); Bajard (2007); Busatto (2008); Coelho (1999); Cosson (2011); Faria (2004); Girotto & Silveira (2013); Girotto & Souza (2012, 2014); Kleiman (1999); Lajolo & Zilberman (1988; 2003); Meireles 28 (1984); Postman (1999); Santos & Souza (2004); Sisto (2001); Soares (2003; 2012) e Zilberman (1998), além de certos documentos do MEC específicos para a Educação Infantil, priorizando a “oralidade, leitura e contação”. No terceiro capítulo apresentamos a identificação, a formação e o perfil cultural dos sujeitos da pesquisa por meio de dados qualitativos coletados do instrumento “entrevista”. E no quarto capítulo continuamos e finalizamos a apresentação do trabalho de campo, porém, enfatizando a prática educativa dos sujeitos, conforme os três instrumentos adotados, observação, análise documental e novamente a entrevista, contudo, utilizando a última parte: prática pedagógica. Consequentemente, no capítulo quatro trazemos a análise de conteúdo dos dados por meio das cinco categorias construídas, ou seja, os próprios resultados obtidos com esta pesquisa. Nosso aporte teórico é: André (2008); Bardin (1977); Franco (2008); Lüdke & André (1986); Szymanski, Almeida, Prandini (2011) e Vianna (2003). Em seguida, as considerações finais. 29 1 EDUCAÇÃO INFANTIL: CONCEPÇÕES E PERSPECTIVAS Meu primeiro contato com o mundo mágico das histórias aconteceu quando eu era bem pequenina, ouvindo minha mãe contar algo bonito todas as noites, antes de eu adormecer [...]. No jardim da infância que freqüentei, me lembro de poucas histórias contadas... Fanny Abramovich8 As concepções de criança-infância, família, educação, escola e professor influenciam de forma significativa na maneira de pensar e de agir dos profissionais da Educação Infantil, sendo reveladas em suas práticas educativas, principalmente dos que atuam diretamente com as crianças. Para refletirmos sobre a atual situação da Educação Infantil, é notória a necessidade de traçarmos duas trajetórias, ainda que totalmente interligadas. A primeira referente à história social da criança e da família, e a segunda, a história da Educação Infantil e da formação de professores, ou seja, pontuaremos alguns avanços e retrocessos, rumos e desafios da primeira etapa da educação básica. Após este panorama, a nível mundial e nacional, traremos uma reflexão regional, mais precisamente, de um Sistema Municipal de Educação de uma cidade do interior do Estado de São Paulo. 1.1 Concepções de criança-infância, família, educação, escola e professor A passagem da criança pela família e pela sociedade, durante muitos séculos, era curta e insignificante. A criança era vista como “um homem em escala reduzida” até o fim do século XIII e embora a descoberta da infância se deu ainda nesse 8 A autora em sua obra Literatura infantil: gostosuras e bobices relata “sua história de leitura”, expressando que o despertar o gosto pela leitura, recebeu de sua mãe e o seu primeiro contato com a instituição escolar, no jardim da infância, não lhe proporcionou a “volúpia de ler”. 30 mesmo século, não havia o “sentimento da infância”, a família não tinha nenhuma função afetiva. Segundo o historiador francês Ariès (1978, p. 50): Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo. Podemos constatar um verdadeiro sentimento de indiferença com relação a uma infância frágil. Ariès (1978, p. 65) revela que a descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII, e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI. Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII. A partir dos 3 ou 4 anos de idade, a criança jogava os mesmos jogos e participava das mesmas brincadeiras dos adultos, quer entre crianças ou misturadas a eles. Inversamente, também se via adultos participando de jogos e brincadeiras que hoje reservamos às crianças. Ariès (1978) pontua diversos detalhes interessantes sobre a descoberta da infância e a vida escolástica. Menciona que já pequeninas, as crianças eram afastadas de seus pais, criadas por outras famílias, podemos dizer, confiadas a estranhos, a maioria para fazer trabalhos subalternos ou servir como aprendizes. Logo que iniciavam seus estudos, participavam de aulas ministradas a uma extensa faixa etária, enfim, reuniam-se meninos, jovens e adultos, aprendendo a mesma matéria ensinada. O que se percebe é que embora a escola acolhesse a todos, não era destinada aos infantes. Assim que ingressava na escola, a criança entrava imediatamente no mundo dos adultos. Essa confusão, tão inocente que passava despercebida, era um dos traços mais característicos da antiga sociedade, e também um de seus traços mais persistentes, na medida em que correspondia a algo enraizado na vida. Ela sobreviveu a várias mudanças de estrutura. A partir do fim da Idade Média, percebem-se os germes de uma evolução inversa que resultaria em nosso sentimento atual das diferenças de idade. (ARIÈS, 1978, p. 166) 31 Mais tarde, este problema de “idades escolares” e sua correspondência às classes gerou uma preocupação que levou a várias mudanças. Quanto às meninas cabiam somente à aprendizagem doméstica. As mulheres mal sabiam ler e escrever, eram praticamente semianalfabetas. Muitas eram enviadas a conventos para receber apenas instrução religiosa. Ainda que a transmissão do conhecimento, de uma geração a outra, era garantida pela participação familiar das crianças na vida dos adultos, a educação passou a ser fornecida cada vez mais pela escola, inclusive deixando de ser reservada aos clérigos para se tornar o instrumento normal da iniciação social. A substituição da aprendizagem pela escola exprime também uma aproximação da família e das crianças, do sentimento da família e do sentimento da infância, outrora separados. A família concentrou-se em torno da criança. [...]. O clima sentimental era agora completamente diferente, mais próximo do nosso, como se a família moderna tivesse nascido ao mesmo tempo que a escola, ou, ao menos, que o hábito geral de educar as crianças na escola. (ARIÈS, 1978, p. 232) No início da segunda metade do século XV, falava-se da responsabilidade moral dos mestres, admitidos como encarregados das almas de seus alunos. A vida em sociedade era retratada por tratados de cortesia, regras de moral e artes de amar. Durante um bom tempo, ensinar “boas maneiras” se tornou a parte principal da educação. Também surgiram tratados práticos de educação apresentados sob a forma de conselhos aos pais e, por fim, aos mestres. Quanto aos progressos da escolarização do ensino de crianças pequenas, recebiam as primeiras lições de leitura e escrita. Até o final do século XVII, persistiu-se o infanticídio tolerado, contudo, um crime severamente punido, praticado em segredo, era camuflado sob a forma de um acidente, as crianças morriam asfixiadas naturalmente na cama dos pais, local onde dormiam. Infelizmente, durante um tempo a disciplina escolar foi demasiadamente severa, acarretando em muitos alunos aversão à escola. A história da disciplina estende do século XIV ao XVII, apresentando aplicação de castigos corporais, atenuando-se somente ao longo do século XVIII. 32 O relaxamento da antiga disciplina escolar correspondeu a uma nova orientação do sentimento da infância, que não mais se ligava ao sentimento de sua fraqueza e não mais reconhecia a necessidade de sua humilhação. Tratava-se agora de despertar na criança a responsabilidade do adulto, o sentido de sua dignidade. A criança era menos oposta ao adulto (embora se distinguisse bastante dele na prática) do que preparada para a vida adulta. Essa preparação não se fazia de uma só vez, brutalmente. Exigia cuidados e etapas, uma formação. Esta foi a nova concepção de educação, que triunfaria no século XIX. (ARIÈS, 1978, p. 182) Na sociedade do século XIX, considerada conservadora, ocorreu um processo de moralização em profundidade. Para a sociedade antiga o trabalho não tinha tanto valor quanto se tem em nossos dias, por outro lado, os jogos e os divertimentos sim. No entanto, quando a sociedade passou por uma cultura moralista e humanista, proibiram alguns jogos classificados como maus, a fim de preservar a moralidade das crianças. Já os divertimentos reconhecidos como bons eram recomendados e tão estimáveis quanto os estudos. Os educadores do século XVII, vistos como obcecados pela educação, encontraram-se na origem do sentimento moderno da infância e da escolaridade. Atualmente, a sociedade tem certo conhecimento dessa trajetória da infância e da escola, a prova que temos é a constituição do sistema de educação, assim como, por reconhecerem que as crianças necessitam de cuidados e proteção, e de escolarização, criaram e criam-se legislações e documentos específicos. Como afirma Ariès (1978, p. 227): “a família e a escola retiraram juntas a criança da sociedade dos adultos”. Azevedo (2013, p. 39) menciona que Ariès comprova em suas teses “que o sentimento de infância surge no final do século XVII e que isso se dá em função do aparecimento da escola e da reorganização familiar”. A autora enfatiza a importância de uma Pedagogia da Infância para que se delimitem as especificidades da área, inclusive ressalta que sua formulação já se desponta pelo reconhecimento da Educação Infantil como etapa inicial da educação básica e, principalmente, não como uma preparação para o ensino fundamental, como concepção de educação com função preparatória. O desenvolvimento de pesquisas na área da Educação Infantil tem contribuído de forma pontual para que se (re)construa o olhar 33 anteriormente lançado à criança, reconhecendo-a, hoje, como um ser histórico e social, inserida em uma determinada cultura, um ser em desenvolvimento que já faz parte da sociedade, que já é cidadã. (AZEVEDO, 2013, p. 14) Até o século XVII a vida familiar era pública e na sua segunda metade já era organizada em torno da criança. No século XVIII a família passou por uma reorganização, desde a estrutura da casa à reforma dos costumes familiares, mantendo a sociedade à distância para priorizar uma vida particular em família. Foi a partir desta época que os pais demonstraram as suas duas principais preocupações: a saúde e a educação. [...] A família tornou-se o lugar de uma afeição necessária entre os cônjuges e entre pais e filhos, algo que ela não era antes. Essa afeição se exprimiu sobretudo através da importância que se passou a atribuir a educação. Não se tratava mais apenas de estabelecer os filhos em função dos bens e da honra. Tratava-se de um sentimento inteiramente novo: os pais se interessavam pelos estudos de seus filhos e os acompanhavam com uma solicitude habitual nos séculos XIX e XX, mas outrora desconhecida. (ARIÈS, 1978, p.11-12) Não era importante saber a idade de uma pessoa, tampouco a de si mesma, o simbolismo dos números se tornou relevante à vida familiar apenas bem depois, isso também explica porque até o século XVIII a adolescência foi confundida com a infância. A preocupação com a idade surgiu somente no século XIX, aliás, tornaria fundamental. Consideramos que a concepção de infância é uma construção histórica e social. Ao longo da história da sociedade, deixamos de reputar a concepção de criança como um “adulto em miniatura”, de um lugar assistencialista para cuidar dos pequeninos e de adultos que simplesmente gostassem de crianças, para uma instituição educativa composta de professores com formação profissional adequada para atuar com elas. De fato é preciso pensar formas de considerar a criança nas propostas pedagógicas e nos currículos escolares, é preciso uma construção com intencionalidade educativa muito bem definida que exige dos professores formação teórico-prática fundamentada, concepções, valores e autonomia. Mediante nossos estudos referentes à trajetória da família e da escola, observamos que a concepção de criança e infância já sofreu muitas transformações, 34 em termos sociais e políticos, e que atualmente, em pleno século XXI, tais conceitos passam por reformulações. Como também menciona Azevedo (2013, p. 67): “dessa forma, o atendimento oferecido à criança em diferentes épocas está vinculado à concepção que determinada sociedade tinha dela em cada momento” e enfatiza que “[...] a concepção de criança é a grande estruturadora da prática dos professores de Educação Infantil, ou seja, de acordo com a maneira como concebem as crianças é que estes planejam e desenvolvem seu trabalho com elas” (p. 165). Concordamos com Azevedo (2013, p. 94, grifo nosso) quando também expõe: Assim, penso ser importante que, na formação do professor da Educação Infantil, se priorizem discussões e práticas que auxiliem os futuros professores a rever suas concepções de criança, educação, escola, professor e a construir postura autônoma de organização do seu trabalho pedagógico. Ao finalizar o capítulo sobre “A formação de professores de Educação Infantil”, a autora manifesta que as concepções de infância e de Educação Infantil são o ponto de partida para solucionar os problemas da formação inicial e organizar o trabalho pedagógico. Ao pesquisar a teoria de Ariès (1978) temos a oportunidade de conhecer a história social da criança e da família, contada sob o viés de modelos europeus, em especial o francês, reconhecendo as influências que a nossa educação recebeu, todavia, em dias atuais, com menor intensidade, é inaceitável não trazermos aos leitores reflexões sobre a trajetória da criança brasileira na luz dos estudos de Del Priori (2006). Nossos psicólogos, sociólogos e especialistas, como menciona Del Priori (2006, p. 7), também visam "uma melhor inserção da criança na sociedade [...] uma nova ética para a infância". A autora (2006, p. 8) nos orienta que a história sobre a criança feita no Brasil, assim como, no resto do mundo, vem mostrando que existe uma enorme distância entre o mundo infantil descrito pelas organizações internacionais, pelas não governamentais e pelas autoridades, daquele no qual a criança encontra-se quotidianamente imersa. O mundo que a "criança deveria ser" ou "ter" é diferente daquele onde ela vive, ou no mais das vezes, sobrevive. 35 Consideramos relevante também trazer para este estudo, conceitos contemporâneos ao século XXI sobre a “infância”, segundo o americano Postman9. 1.2 A adultização da criança versus a infantilização do adulto Ao refletirmos sobre a “história da infância” sob a ótica de Ariès (1978), não poderíamos deixar de conhecer e partilhar as ideias de Postman (1999) referente ao “desaparecimento da infância”. É como se suas obras se completassem e nos oferecessem uma visão ampla de como a infância demorou a ser descoberta e como está caminhando rapidamente para o seu esquecimento. Foi conquistada por meio de muitas lutas para ser reconhecida e agora, alvo de extinção novamente, parecendo um ciclo, uma história repleta de avanços e retrocessos, rumos e desafios, assim como a trajetória da sua própria educação. Postman (1999, p. 11) menciona que “nossos genes não contêm instruções claras sobre quem é e quem não é criança, e as leis de sobrevivência não exigem que se faça distinção entre o mundo do adulto e o da criança”. O autor indica que talvez a infância tenha sido a invenção mais humanitária da história da humanidade. Retoma a trajetória revelada por Ariès (1978) e faz um paralelo com a nossa época. Assim como na Idade Média, a infância terminava aos 7 anos e a idade adulta começava imediatamente, hoje a criança volta a se tornar adulta cedo demais. A história da infância caminhou tanto, para em pleno século XXI retroceder ou vir a inexistir? Podemos constatar de várias maneiras a real situação da criança. A televisão, o rádio, os jornais impressos e a internet se encarregam de expor as histórias caóticas, chocantes a que as crianças do mundo todo são envolvidas, diariamente temos notícias de assassinato, estupro, violência, prostituição, miséria, abandono. Por outro lado, não somente como vítimas, principalmente dos adultos, é verdade, mas também cresce a criminalidade infantil. Crianças também comentem crimes odiondos. 9 Um dos teóricos mais importantes da comunicação dos Estados Unidos. 36 As brincadeiras de rua estão desaparecendo, os jogos infantis tradicionais já quase não existem mais. Pais e filhos que não se entendem, acontecendo as piores atrocidades dentro dos próprios lares. O ambiente de erotismo ronda por todo o contexto vivido pela criança, sendo a televisão o principal meio midiático encarregado de causar a destruição da infância, pelo menos até o presente momento, porém, o computador também abre muitas portas. Meios de comunicação estes que devem ser monitorados pelos pais ou responsáveis pelas crianças, além de alertadas, os assuntos expostos devem ser discutidos com elas. Estamos diante de pais, religiosos e educadores, até mesmo psicólogos, que não sabem mais como lidar com a “adultização da criança”. Meninas que em tenra idade abandonam suas bonecas para se vestirem e agirem como mulheres. Meninos pequenos que diante de jogos pedagógicos já constroem armas e “brincam de matar”. Um mundo que não mais tem segredos para serem velados às crianças, mas que permite que elas tudo saibam, sem constrangimentos. Postman (1999) traz informações relevantes quanto a essa situação. Não que nós adultos não saibamos para onde tem caminhado a humanidade, no entanto, como o referido autor salienta na introdução de sua obra, “[...] se nada podemos dizer sobre como impedir um desastre social, talvez possamos também ser úteis tentando compreender por que isto está acontecendo” (1999, p. 13). Segundo o autor (1999, p. 81), “a preamar da infância” foi entre 1850 e 1950, período em que surgiram muitas leis que classificaram as crianças como diferentes dos adultos, sem contar o estatuto específico e escolas, mobiliários, vestimentas, jogos e literatura próprios para a faixa etária, enfim, a construção de um mundo social para a criança. Ressalta-nos que isso não implica dizer que esta fase da vida não traga “dor e perplexidade”, visto que todas as etapas trazem, cada qual a seu modo. As revoluções eletrônicas e gráficas muito contribuíram para uma mudança radical na infância. E a televisão colabora demasiadamente para o seu “desaparecimento”. [...] na verdade, não existe na TV programação infantil. Tudo é para todos. O ponto essencial é que a TV apresenta informação numa forma que é indiferenciada em sua acessibilidade, e isto significa que 37 a televisão não precisa fazer distinção entre as categorias “criança” e “adulto”. (POSTMAN, 1999, p. 93) A erotização e a violência são explícitas até mesmo nos desenhos animados. Pais que acreditam que seus filhos possam estar dormindo e muitos deles estão diante da televisão que se encontra dentro de seus quartos, bastando o manuseio de um controle remoto. Postman (1999, p. 98) afirma que “as crianças vêem tudo o que ela mostra” e mais: “[...] dirigi tudo a todo mundo ao mesmo tempo” (p. 108). A televisão revela o segredo da violência do adulto. Isso gera duas principais atitudes adultas nas crianças: o cinismo e a indiferença. Sem mencionar o consumismo. Fortes, mas reais, são as palavras de Postman (1999, p. 111) referindo-se às crianças: “isso significa que se tornaram adultos ou, pelo menos, semelhantes aos adultos. [...] – para usar uma metáfora minha – que ao ter acesso ao fruto, antes escondido da informação adulta, são expulsas do jardim da infância”. As distinções entre criança e adulto estão sendo apagadas. O inverso também ocorre, por isso constatamos pais que competem com seus filhos a “jovialidade”, surgindo o que chamam de “adulto-criança” ou “adulto infantilizado”, é possível observar isso no vestuário, hábitos alimentares, jogos, gostos quanto a entretenimentos e até mesmo na linguagem. Impressionante a troca de valores retratada nas palavras do autor: “Para adultos, brincar é coisa séria. À medida que a infância desaparece, desaparece também a concepção infantil de brincar” (POSTMAN, 1999, p. 145). Embora esta obra de Postman foi escrita há quase quinze anos atrás e diz respeito a mentalidade e vivência dos americanos, é bastante relevante para nós brasileiros, pois, mesmo que os exemplos citados sejam referentes aos fatos que os envolvem, não há grande diferença com o que acontece aqui no Brasil. O autor conclui de uma maneira bem interessante, não há como não mencionar, ainda que diante de toda essa situação exposta, Postman (1999, p. 167) intima seu leitor: “Não é concebível que nossa cultura esqueça que precisa de crianças. Mas está a caminho de esquecer que as crianças precisam de infância. Aqueles que insistem em lembrar prestam um nobre serviço”. Isso também serve para a nossa cultura. Como já mencionamos, a história da criança brasileira tem passagens de muito sofrimento e violência, haja vista as distorções do trabalho infantil. A realidade 38 de muitas crianças nossas revela, segundo Del Priori (2006, p. 10-11), que "o trabalho, como forma de complementação salarial para famílias pobres ou miseráveis, sempre foi priorizado em detrimento da formação escolar". Seria viável resgatar a história de nossas crianças, não apenas enfrentando passado e presente cheios de trajetórias anônimas. Del Priori (2006, p. 14-15) afima: A história da criança simplesmente criança, suas formas de exigência quotidiana, as mutações de seus vínculos sociais e afetivos, sua aprendizagem da vida através de uma história que, no mais das vezes, não nos é contada diretamente por ela. De fato, por conta de todo esse contexto atual, é relevante pensarmos quais são as concepções de criança-infância, família, educação, escola e professor do século XXI, posto que essas levam às decisões quanto à construção de identidade da Educação Infantil e da formação dos profissionais que atuam com crianças pequenas. Del Priori (2006, p. 17) declara: "parece-nos evidente que querer conhecer mais sobre a trajetória histórica dos comportamentos, da formas de ser e de pensar das nossas crianças, é também uma forma de amá-las [...]". Como educadoras, apaixonadas pela Educação Infantil e pela Literatura Infantil, reiteramos que não podemos desistir das crianças, precisamos preservar a infância. Pode ser mesmo que Postman esteja certo, que a instituição escolar seja a última defesa contra o desaparecimento da infância. A verdade é, enquanto os educadores da infância estiverem preocupados com a formação das crianças, sempre valerá à pena lutar pelo avanço promissor da Educação Infantil. Diante do exposto, passaremos a seguir a discutir Educação Infantil, na tentativa de traçar uma trajetória política e educacional. 39 1.3 Educação Infantil: trajetória, rumos e desafios Tentando repensar o percurso histórico da educação até a formação da instituição de Educação Infantil, estudamos os fatos relevantes e os nomes dos principais influenciadores e suas contribuições para esta construção, a partir de levantamentos bibliográficos e pesquisas documentais sobre essa temática. Destacaremos aquilo que interessa a defesa de nossa tese. Ao mesmo tempo em que a infância é ressignificada a partir do século XVIII e início do XIX, as crianças são brutalizadas e exploradas, ou seja, durante uma época da história da humanidade houve a concepção de que a criança era de natureza perversa, passando depois a compreendê-la como pura, ingênua. Com a evolução da instituição escolar, começam a se preocupar com as idades dos alunos, então, por conta da formação moral, além da instrucional, surge a necessidade de separá-los, apresentando de certa forma, um reconhecimento da especificidade da infância. Azevedo (2013, p. 36) argumenta que “o atendimento institucional em classes por idade preocupava-se em proteger os jovens das tentações do mundo dos adultos com a intenção de mantê-los puros e inocentes”. A escolarização das crianças implica na moralização dos homens. Ao passar pela transformação de uma sociedade agrário-mercantil para urbano-manufatureira, os países europeus, em meio a conflitos e guerras entre as nações, vitimando muitas crianças à pobreza, abandono e maus-tratos, levam à organização de serviços de atendimento a crianças pequenas abandonadas. Graças a essa evolução a criança sai do antigo anonimato, aparecendo assim o “sentido de proteção” e, consequentemente, instituições de atendimento infantil preocupadas em oferecer à criança cuidados de higiene, alimentação e saúde, responsabilizando-se pelo seu bem-estar durante o período em que são deixadas pelos pais, visto que nesta época muitas são as mulheres que também saem de seus lares, para trabalhar principalmente em fábricas com o intuito de contribuir com a subsistência da família. De acordo com Gomes10 (1986), as instituições para educação sistemática de crianças, na Europa, datam da segunda metade do 10 GOMES, J. Para a história da educação em Portugal. Porto: Porto Editora, 1986. 40 século XVIII e, sobretudo, do século XIX. A “Educação Infantil” ou “jardim de infância” nasceu da Revolução Industrial. Atribuiu-se a Jean-Frédéric Oberlin11 [...] a criação da primeira instituição para educação da infância, os chamados asilos ou escola maternal. (AZEVEDO, 2013, p. 41) Daí em diante, muitos países europeus iniciaram seu processo de atendimento a crianças menores de 6 anos de idade, inclusive, alguns deles particulares, sendo depois gradualmente assumidos pelo Estado. O primeiro país a reconhecer legalmente a existência dos “jardins de infância” foi a Áustria, no ano de 1872, denominados de kindergartens por Friedrich Fröbel em 183712. Essas instituições criadas na Inglaterra, França, Itália, Suíça, a própria Áustria, surgiram com objetivos assistencialistas, tendo a concepção romântica de criança, ou seja, vista e tratada como um ser frágil, que precisava ser cuidado por adultos. Esses pioneiros da Educação Infantil agiam segundo o ideário dos movimentos religiosos da época, “acreditavam que, como as crianças nasciam sob o pecado, cabia à família e, na falta dela, à sociedade corrigi-las desde pequenas” (OLIVEIRA, 2007, p. 60). O fato é que tais pioneiros contribuíram para diminuir os índices de mortalidade infantil. A trajetória brasileira em relação à criança sofreu grandes influências dos europeus, principalmente através dos portugueses por meio dos missionários jesuítas, em meados do século XVI. A exploração de outros continentes por europeus, causada pela Revolução Industrial, implica em novas exigências educacionais, gerando condições para a formulação de um pensamento pedagógico para a era moderna. Oliveira (2007, p. 62) ressalta: A discussão sobre a escolaridade obrigatória, que se intensificou em vários países europeus nos séculos XVIII e XIX, enfatizou a importância da educação para o desenvolvimento social. Nesse momento, a criança passou a ser o centro do interesse educativo dos adultos: começou a ser vista como sujeito de necessidades e objeto de expectativas e cuidados, situada em um período de preparação 11 Jean-Frédéric Oberlin (1740-1826), pastor protestante de Ban-de-la-Roche, nos Vosges, entre a Alsácia e a Lorena. 12 Duas autoras de referência base deste estudo divergiram quanto a esta data. Azevedo (2013, p. 42) nos informa que foi em 1840 e Oliveira (2007, p. 67) menciona que foi em 1837. Optamos pela data de 1837, porque embora neste parágrafo da dissertação nos reportamos à obra de Azevedo, outras fontes informam 1837. 41 para o ingresso no mundo dos adultos, o que tornava a escola (pelo menos para os que podiam freqüentá-la) um instrumento fundamental. Para Oliveira (2007, p. 62), isso não ocorria com as crianças mais pobres, “alguns setores das elites políticas dos países europeus sustentavam que não seria correto para a sociedade como um todo que se educassem as crianças pobres, para as quais era proposto apenas o aprendizado de uma ocupação e da piedade”. Em oposição, temos alguns reformadores protestantes que defendiam a educação como um direito universal. Mesmo com ênfases específicas, as propostas educacionais de Comênio, Rousseau, Pestalozzi, Decroly, Fröbel e Montessori reconhecem que as crianças tinham necessidades próprias e características diferentes das dos adultos. O educador e bispo13 checo Comênio (1592-1670)14 elaborou um plano de escola maternal em 1637 e priorizou bons recursos materiais pedagógicos e atividades diferentes, que hoje chamamos de extraescolares, pois vão além dos “muros da escola”, como por exemplo: os passeios; o filósofo genebrino Rousseau (1712-1778) criou uma proposta de ensino de combate ao preconceito e autoritarismo, condições para posteriores discussões sobre a brincadeira infantil e uma aprendizagem por meio de atividades práticas, priorizando a emoção sobre a razão, a curiosidade e a liberdade; o pedagogo suíço Pestalozzi (1746-1827) influenciou com suas ideias de liberdade e espiritualidade e enfatizou o desenvolvimento afetivo das crianças desde o nascimento, contribuindo na formação do caráter infantil e o educador alemão Fröbel (1782-1852) recebeu influências teóricas e ideológicas do liberalismo e nacionalismo, preconizou uma autoeducação pelo jogo e criou os jardins de infância, como já salientamos. Referindo-se a Fröbel sobre os jardins de infância, vejamos algo muito curioso que Oliveira (2007, p. 67) elencou: Os jardins-de-infância divergiam tanto das casas assistenciais existentes da época, por incluírem uma dimensão pedagógica, quanto da escola, que demonstrava ter, segundo o autor, constante 13 Bispo protestante. 14 Além das datas referentes aos fatos históricos, também consideramos relevante especificar entre parênteses as datas de nascimento e falecimento dos principais influenciadores da educação, para que os leitores possam se localizar, traçando um paralelo, na trajetória da história da infância e da educação. 42 preocupação com a moldagem das crianças, praticada de uma perspectiva exterior. Fröbel influenciou não somente os alemães15, mas ingleses, americanos, italianos e outros povos. Haja vista, um casal de alemães refugiados criou em 1858 o primeiro jardim de infância americano, porém, o idioma utilizado era o alemão. Somente dois anos depois, a educadora norte-americana Elizabeth Peabody criou em Boston o primeiro jardim de infância de língua inglesa. E por volta de 1894, realizaram algumas experiências educacionais para crianças pequenas no Brasil e em outros países latinos. Oliveira traz em sua obra Educação Infantil: fundamentos e métodos (2007) muitas outras informações importantes e interessantes sobre as teorias desses autores, que deram os primeiros passos na construção de ideias e práticas de Educação Infantil, estabelecendo as bases para um sistema de ensino mais centrado na criança. A princípio seus modelos atenderam crianças pobres, depois filhos da classe média e alta. Na segunda metade do século XIX, estendendo-se ao século XX, temos outros grandes influenciadores, dentre eles dois médicos. O belga Decroly (1871- 1932) desenvolveu trabalho com crianças excepcionais e elaborou uma metodologia de ensino embasada no interesse da criança, um ensino voltado para o intelecto e defendeu a formação de turmas homogêneas. Já a psiquiatra italiana Montessori (1870-1952) desenvolveu trabalho com crianças que apresentavam deficiência intelectual e era a favor do uso de materiais apropriados como recursos educacionais, adequados à exploração sensorial pelas crianças. Criou instrumentos elaborados para a educação motora, dos sentidos e da inteligência como: letras móveis; contadores (ábacos) e diminuição do tamanho do mobiliário e dos objetos domésticos a serem utilizados para brincar na casinha de boneca. Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ideias a respeito da infância, segundo Oliveira (2007, p. 76), “como fase de valor positivo e de respeito à natureza” impulsionaram o movimento escolanovista que teve consequências importantes para os sistemas educacionais e a mentalidade dos professores, pois pregava como princípios básicos 15 Por volta de 1851, o governo alemão mandou fechar os jardins de infância. Suas ideias foram proibidas na Alemanha, nesta época. 43 de uma escola renovada a valorização dos interesses e necessidades da criança, a defesa da ideia do desenvolvimento natural, a ênfase no caráter lúdico das atividades infantis e a crítica à escola tradicional. (AZEVEDO, 2013, p. 43) No campo da psicologia, autores como Vygotsky (1896-1934), Wallon (1879- 1962), Piaget (1896-1980) e outros ofereciam novas maneiras de compreender e promover o desenvolvimento das crianças pequenas. Os psicanalistas interacionistas, Vygotsky e Wallon, consideravam que o comportamento infantil deveria ser interpretado. Para Vygotsky, “a criança é introduzida na cultura por parceiros mais experientes” e Wallon “destacava o valor da afetividade na diferenciação que cada criança aprende a fazer entre si mesma e os outros” (OLIVEIRA, 2007, p. 76). A autora enfatiza que ambos trouxeram grandes contribuições ao conhecimento sobre a forma de a criança ser e modificar-se, ainda relata que atualmente eles vêm exercendo significativa influência entre os estudiosos da área de Educação Infantil. As pesquisas de Piaget e seus colaboradores também revolucionaram conceitos sobre a criança. Seus objetivos consistem na formação de sujeitos autônomos, privilegia a interdisciplinaridade dos conteúdos, opondo-se ao modelo tradicional e estabelecem a passagem da criança por meio de estágios de desenvolvimento. Grandes são as discussões em torno das teorias de Vygotsky e Piaget, e muitos são os embates entre os educadores vygotskyanos e piagetianos, pois é possível constatar suas convergências e divergências, dividindo assim a opinião dos profissionais da educação. No entanto, não é o objetivo de nossa pesquisa optar entre uma das duas teorias, mas de apenas apresentar os conceitos e as contribuições relevantes de tais teóricos, que hoje são um dos maiores influenciadores da educação. Outro protagonista é o educador Freinet (1896-1966), defensor da extrapolação dos limites da sala de aula e da integração às experiências vividas em seu meio social. Enfatizou as atividades cooperativas, manuais e intelectuais. Interessante que embora não trabalhou diretamente com crianças pequenas, impactou práticas didáticas em creches e pré-escolas em vários países. O período pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945) traz o reconhecimento de que a criança possui direitos, expressos na Declaração Universal dos Direitos da 44 Criança, promulgada em 1959 pela Organização das Nações Unidas (ONU), criada em 1945. Oliveira informa: “em países como os Estados Unidos, a educação infantil combinou períodos de expansão e retraimento, em virtude de posições socialmente defendidas em face da mulher, até recentemente confinada no ambiente doméstico [...]” (2007, p. 78), depois complementa que quando os movimentos feministas, cada vez mais atuantes no decorrer do século XX, passaram a reivindicar creches para possibilitar igualdade de oportunidades de trabalho para as mães, receberam pouco respaldo dos especialistas em desenvolvimento infantil e em psiquiatria, os quais [...] se posicionavam contra a precoce separação entre a mãe e a criança. (OLIVEIRA, 2007, p. 80) Logo vieram mais descobertas científicas relevantes sobre o desenvolvimento infantil que abalaram as práticas familiares e as creches e pré-escolas, tendo como principais influenciadores e ações: o construtivismo de Kamii, a psicogênese da língua escrita de Ferreiro e os estudos psicológicos e psicolinguísticos com bebês de Trevarthen e Bruner. Também contribuíram para a educação dos pequenos, alguns sociólogos e antropólogos que elaboraram concepções e práticas educativas inovadoras. Como retrata Oliveira (2007, p. 81): A atual etapa reconhece o direito de toda criança à infância. Trata-a como “sujeito social” ou “ator pedagógico” desde cedo, agente construtor de conhecimentos e sujeito de autodeterminação, ser ativo na busca do conhecimento, da fantasia e da criatividade, que possui grande capacidade cognitiva e de sociabilidade [...]. Hoje, os sistemas de Educação Infantil de diferentes países divergem quanto ao(s): percentual de crianças atendidas nas diversas faixas etárias16 que a compõem; níveis de investimentos feitos, conforme as políticas públicas aplicadas; princípios pedagógicos defendidos; objetivos educacionais propostos; às formas de organização (espaços, horários, rotina); à formação inicial e continuada dos profissionais dessa área e suas práticas educativas e o estabelecimento dos critérios mínimos de qualidade oferecidos às crianças por meio de avaliações específicas. 16 Podem ocorrer distinções quanto à faixa etária da Educação Infantil de um país ao outro, assim como, a partir de que idade ocorre a obrigatoriedade do ensino. 45 Concordamos com Oliveira ao afirmar que “o debate não está mais centrado em se deve haver investimento na área de educação infantil, mas em por que e para quem ela existe e como organizá-la para oferecer serviços de qualidade” (2007, p. 82, grifo da autora). Também consideramos que toda a trajetória, todas essas questões que envolvem a Educação Infantil levam a grandes desafios e essenciais tomadas de decisões para essa inicial e importante etapa da vida humana. Muitos dos desafios já foram vencidos e resultados significativos foram obtidos, mas sempre haverão novos desafios, visto que a humanidade traça seus rumos mediante os avanços, e porque não dizer, até retrocessos em relação às perspectivas do século XXI. A partir desta primeira retrospectiva, a seguir colocamos o Brasil no cenário da Educação Infantil, tentando estabelecer uma trajetória histórica diante da Educação do país. 1.4 Educação Infantil no Brasil: trajetória, avanços e retrocessos O Brasil vem acompanhando a história da Educação Infantil de outros países, principalmente dos europeus, e constituindo a sua própria história. Infelizmente, não podemos deixar de mencionar que a história das crianças brasileiras denota um passado trágico. Azevedo (2013) retoma o resgate histórico feito por Del Priore (2006). Um passado marcado por abandono de bebês17; venda de crianças escravas; crianças acometidas por enfermidades e violências, desde queimaduras, fraturas a abusos sexuais. Azevedo (2013) nos conduz a resgatar as origens do “sentimento de infância” em nosso país, bem como, os diversos tipos de atendimento infantil oferecidos em cada época, identificando concepções e propostas destinadas às crianças desfavorecidas economicamente. No Brasil, durante o período colonial, os jesuítas foram os primeiros a reconhecer a especificidade da infância. Ao estudarmos a história, podemos concluir 17 Muitos deles deixados nas “rodas dos expostos” - Sistema de assistência criado para crianças abandonadas. No Brasil, existiu do período colonial até a década de 1950. A “roda” era um cilindro giratório de madeira encontrado em mosteiros e conventos, garantindo o anonimato e evitando o aborto ou o infanticídio. 46 que a relação deles com as crianças foi paradoxal, pois, embora as viam como seres graciosos e vulneráveis, acreditavam numa educação fundamentada numa disciplina rígida. No entanto, a “aculturação indígena” não ultrapassava a infância dos índios, visto que os adolescentes voltavam para os costumes dos pais. Essa realidade fez com que os missionários jesuítas deixassem de transformá-los em cristãos e passassem a investir na instrução. A origem das instituições brasileiras de atendimento infantil, de caráter assistencial, data da primeira metade do século XVIII, porém, quanto à origem das “creches”, Azevedo sistematiza ideias de Kuhlmann Jr., mas antes nos informa: “as creches surgiram no Brasil no final do século XIX” (AZEVEDO, 2013, p. 58), todavia, “as creches e pré-escolas iniciaram seu processo mais recente de expansão na década de 1970” (p. 64), século XX. Assim, Azevedo aponta que “até meados do século XIX, isto é, desde o descobrimento até 1874, pouco se fazia no Brasil pela infância desditosa, tanto no que tange à proteção jurídica quanto às alternativas de atendimentos existentes” (2013, p. 54, grifo da autora). A mudança vai ocorrendo aos poucos no período da abolição da escravatura, segunda metade do século XIX, momento em que muitos migraram para a zona urbana e o país caminhava para a proclamação da República. Por um lado, aumentou-se o número de crianças abandonadas e por outro, resultou na criação de creches, asilos e internatos. A preocupação até então era assistencial. Oliveira (2007, p. 92) expõe que [...] o projeto social de construção de uma nação moderna, parte do ideário liberal presente no final do século XIX, reunia condições para que fossem assimilados, pelas elites do país, os preceitos educacionais do Movimento das Escolas Novas, elaborados no centro das transformações sociais ocorridas na Europa e trazidos ao Brasil pela influência americana e européia. O jardim-de-infância, um desses “produtos” estrangeiros, foi recebido com entusiasmo por alguns setores sociais. A política de adoção de “jardim de infância” no Brasil trouxe polêmicas. Os críticos compreendiam como locais de mera guarda e os defensores acreditavam em suas vantagens para o desenvolvimento infantil. Outro embate é que muitos consideravam que não deveriam ser mantidos pelo poder público. Em 1875 e 1877 47 criam-se os dois primeiros jardins de infância privados e apenas em 1896 é criado o primeiro público. Aqui em nosso país, as fábricas da época também tiveram de empregar mulheres, levando algumas delas a decidirem onde ou com quem deixariam seus filhos enquanto trabalhavam. Tal conjuntura trouxe entraves nas relações entre patrões e trabalhadores que geraram sindicatos para lutarem por seus direitos. Algumas conquistas se deram com conflitos, tendo como uma das reivindicações a criação de creches, escolas maternais e parques infantis. A criação do Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Brasil, em 1899, desencadeou o surgimento de várias instituições de atendimento infantil como creches e jardins de infância. O Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância ocorreu no Rio de Janeiro em 1922, propiciando regulamentações do atendimento de crianças pequenas em escolas maternais e jardins de infância. Alguns educadores preocupados com a qualidade do trabalho pedagógico trouxeram esta questão educacional para as discussões políticas nacionais, apoiados pela burguesia industrial. O documento denominado Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, surgido em 1932, defendia vários pontos, dentre eles “a educação pré-escolar, instituída como a base do sistema escolar” (OLIVEIRA, 2007, p. 98). A autora nos conta que os jardins de infância eram destinados às crianças dos grupos sociais de prestígio e os parques infantis às crianças dos meios populares. Visualizamos a distinção18: atendimento educacional (educar) a crianças ricas e atendimento assistencial (cuidar)