Setembro 2009 FACULDADE DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA Universidade Estadual Paulista Campus de Presidente Prudente – SP BOLSA PROEX/CAPES – Ministério da Educação Antonio Elísio Garcia Sobreira Pedagogia anarquista e ensino de Geografia: conquistando cotas de liberdade Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Geografia da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista, Campus de Presidente Prudente, para a obtenção do título de Doutor em Geografia. Orientador: Dr. Eliseu Savério Sposito Presidente Prudente Setembro 2009 Sobreira, Antônio Elísio Garcia. S661p Pedagogia Anarquista e ensino de Geografia : conquistando cotas de liberdade / Antônio Elísio Garcia Sobreira. - Presidente Prudente: [s.n], 2009 358 f. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia Orientador: Eliseu Savério Sposito Banca: Silvio Donizetti de Oliveira Gallo, Antonio Carlos Vitte, Divino José da Silva, Clovis Nicanor Kassick Inclui bibliografia 1. Geografia. 2. Pedagogia. 3. Anarquismo. I. Autor. II. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Tecnologia. III. Título. CDD (18.ed.)910.7 Ficha catalográfica elaborada pela Seção Técnica de Aquisição e Tratamento da Informação – Serviço Técnico de Biblioteca e Documentação - UNESP, Câmpus de Presidente Prudente. Resumo Pedagogia anarquista e ensino de geografia: conquistando cotas de liberdade Este trabalho visa analisar a possibilidade de ensinar geografia por meio do paradigma educacional anarquista. O trabalho foi dividido em duas partes contendo a primeira o construto teórico geral da tese nos seguintes eixos interrelacionados: pesquisa educacional em geografia, conceituação de ideologia, Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, Geografia Crítica e apreciação histórica e teórica das experiências das pedagogias socialistas da Liberdade, Radical e Libertária Anarquista. Dentro do texto está situada a filiação ideológica entre o anarquismo social e a Crítica da Razão Cínica. A aproximação da educação libertária com a geografia é feita através dos postulados educacionais dos geógrafos anarquistas Elisée Reclus e Piotr Kropotkin. Na segunda parte do trabalho são incluídos os aspectos teóricos e práticos atuais que delimitam a pedagogia anarquista e o que deve considerar um projeto de escola libertária. Com a reunião dessas informações se avalia como a geografia pode ser incluída na educação libertária se não existe uma epistemologia anarquista de geografia contemporânea Diante disso, apresentam-se alguns teóricos que oferecem elementos para constituir uma proposta de anarcogeografia ou geografia anarquista, que embora seja viável deixou de ser um problema essencial. O estudo empírico se restringe à visita e entrevista com a escola democrática Summerhill (Inglaterra), da vivência na escola anarquista Paideia (Espanha) e do relato de cinco professores de geografia no Brasil. O conjunto referencial teórico, prático e empírico reunido permite dizer que a geografia realizada em escola convencional é incapaz de produzir os efeitos éticos, racionais e políticos comprometidos com a sociedade porque essa instituição é antagônica a esses propósitos. O princípio basilar da educação antiautoritária é que ninguém tem o direito de definir o que outro deve aprender, mas sim para a autodeterminação em aprender compromissado com a coletividade e consigo, por isso não há sentido para currículo ou disciplinas isoladas ou fragmentadas. Palavras-chave: ensino de geografia – pedagogia anarquista - educação libertária-cinismo- quinismo Abstract The anarchist pedagogy and geography teaching: for freedom quotas The proposal of this study is to evaluate anarchist education paradigm using in geography teaching. The first part have are historical and theoretical explanations and in the second part have practical aspects of anarchist education and a design project to anarchist education community and geography place in it. The education research teaching geography and ideology concept and Critical Theory (Frankfurt school) and Radical Geography are the basis to discuss socialist pedagogies like radical, democratic and anarchist education experiences. The research project includes to study Piotr Kropotkin and Elisée Reclus statement about learning geography and to analyse why anarchism have not advanced in geography thought nowadays. The information collected is using to evaluate how anarchist education can be learning if there are not anarchist geography to base in it. The reports from five teachers, Summerhill Schools (UK) and Escuela Paideia (Spain) point out empirical references about free education and its possibilities to be applied in state education. The perspective arising from this account is used to offer a trenchant critique of some ways to teaching geography in the anti-authoritarian education with self-government based in democratic meetings. And have no-sense to teaching to imposing fragments of science by curriculum of school. The result is that is impossible to use anarchist paradigm in conventional education but teacher can be able to resist against fascism at school and improving freedom quotas committed with own individuality and collective and mutual practices. Key-words: teaching geography– anarchist pedagogy – cynicism reason Em memória a Pepa “Josefa Martín Luengo” (1945-2009) Aos amigos e pessoas importantes nesta caminhada… Este trabalho dependeu do apoio dos meus professores, secretários e colegas da Pós- Graduação e graduação que me ouviram para além do que a paciência permite. A amigologia foi o método que permitiu adulterar os relatos de Luizão, Ana, Raio, Giba e Fernanda que me presentearam com suas transgressões e amizade. Cido e Henrriet, Fernando, Ana, Marina e Orlando por nossos encontros gastronômicos-musicais alimentados com boas risadas. Sem Quimet e Isaac para apoiar Cínthia e eu na Catalunha estaríamos desamparados em terras distantes. A Pere Solà que me recebeu para falarmos das escolas racionalistas numa manhã rica e calorosa que muito me animou. Saudades dos educadores e dos colegas todos participantes do curso em Paideia que tiveram que ouvir meu castelhano ruim igual meus pobres amigos do Brasil em português acelerado. Ao passeio pelas ruas de East End em Londres com Judith Suissa pela aprazível tarde que me cedeu ouvindo atentamente meu pior inglês. A Fernando e Camila, Thiago e Ana, Madureira, Beterraba e Lívia, Bia e Ângela, Neto e Nizete, Deva, Tati e Fabrizio, Zen, China e a todos os membros do bloco de carnaval “Eta Nóis!” que insistem em se banhar no chafariz do Parque do Povo, há três anos, como únicos manifestantes da sexta-feira de Carnaval em Prudente. Devo ainda a tantas pessoas que somente a retribuição poderia compensar a ausência de seus nomes aqui. Sem a Cínthia do meu lado, espezinhada com minhas ideias no Brasil e em Barcelona, seria muito doloroso percorrer esse trajeto de minha vida. 1 Sumário Introdução ........................................................................................................................................... 5 PARTE - I ......................................................................................................................................... 13 Capítulo I – Composição teórica: Pesquisa educacional, Ideologia, Teoria Crítica e Pedagogias Socialistas 15 1- A pesquisa educacional e os professores de geografia ............................................................... 15 2 - Ideologia: uma conceituação necessária.................................................................................... 19 3 - A Teoria Crítica: razão instrumental e razão comunicativa ...................................................... 33 4 - Pedagogias Socialistas da Liberdade Radical, Libertária Anarquista: antagonismos e suas complementaridades........................................................................................................................ 39 Capítulo II - Pedagogia da Liberdade ou democracias infanto-juvenis ............................................ 45 1- Summerhill: educando para a felicidade..................................................................................... 47 2 - Apreciações sobre Summerhill .................................................................................................. 51 3 - Outras Escolas de Liberdade ..................................................................................................... 56 a) Dartington Hall School (Inglaterra, 1926-1987) ........................................................................................ 62 b) Tamariki School (Nova Zelândia, 1966).................................................................................................... 64 c) Sudbury Valley School (EUA, 1968)......................................................................................................... 65 d) Bramblewood School (EUA, 1969) ........................................................................................................... 66 e) Counteshorpe Community College (Inglaterra, 1970) ............................................................................... 68 f) Neel Bagh (1972-1987) e Sumavanam (Índia, 1982) ................................................................................. 69 g) Escuela Pestalozzi (Equador, 1979)........................................................................................................... 71 h) Kleingruppe Lufingen (Suíça, 1977) ......................................................................................................... 72 i) Mirambika (Índia, 1981)............................................................................................................................. 73 j) The Barbara Taylor School (EUA, 1985-1996).......................................................................................... 75 l) Tokyo Shure, Nonami Children´s Village, the Global School e Kinokuni (Japão, 1987).......................... 76 m) The Democratic School Hadera (Israel, 1987) ......................................................................................... 80 n) Sands School (Inglaterra, 1987)................................................................................................................. 81 Capítulo III - Pedagogia radical: resistência, autonomia e emancipação.......................................... 85 1 - Geografia Crítica e o ensino de Geografia .............................................................................. 101 2 - Perguntas Clássicas: O quê? Como? Qual? Por quê? Quanto? Quando? Para quê? E até quando ensinar Geografia?............................................................................................................ 112 Capítulo IV– Raízes do anarquismo e a educação........................................................................... 119 1 - Escola Moderna, La Ruche, Orfanto Cempuis, Escola Yasnaia Polyana................................ 144 2 - Escolas Racionalistas surgidas após a morte de Ferrer y Guardia........................................... 149 3 - Elisée Reclus............................................................................................................................ 157 4 - Piotr Kropotkin ........................................................................................................................ 167 2 PARTE - II....................................................................................................................................... 175 Capítulo V - A Escuela Libertária Paideia....................................................................................... 177 1 - História da Escuela Paideia..................................................................................................................... 178 2 - Dinâmica educativa da Escuela Paideia.................................................................................................. 183 3 - Relato do VI Curso de Educação Libertária ........................................................................................... 186 4 - Outras inicativas de escolas anarquistas. ................................................................................................ 193 Capítulo VI - Teoria da Pedagogia Libertária: as bases epistemológicas da antipedagogia ........... 199 1 - Desescolarização, Bakunin e o anti-professor ........................................................................................ 200 2 - Propósitos atuais da pedagogia libertária e utopismo ............................................................................. 211 3 - Crítica a docilidade ................................................................................................................................. 214 4 - Pedagogia profana para o riso e humor................................................................................................... 215 5 - Afeto e emoção na educação libertária ................................................................................................... 218 6 - Ideologia e educação libertária: educação em valores ............................................................................ 219 Capítulo VII - Práticas e metodologia da Educação libertária ........................................................ 229 1 - Linguagem sexista e educação espacial das mulheres ............................................................................ 229 2 - Diretividade e não-diretividade ou pedagogia negativa.......................................................................... 235 3 - Assembleísmo e ação direta.................................................................................................................... 240 4 - Autonomia e autogestão.......................................................................................................................... 246 5 - Educação para liberdade e auto-aprendizagem....................................................................................... 248 6 - Construtivismo: Piaget, Vigotski e Bronfenbrenner ............................................................................... 252 7 - A co-educação coletiva: educação solidária, cooperativa ou mutualista. ............................................... 257 8 - Educando em liberdade para o amadurecimento .................................................................................... 258 9 - Os jogos pedagógicos ............................................................................................................................. 263 10 - Atitudes e aptidões d@s educador@s de uma escola libertária............................................................ 265 11 - O projeto de educação anarquista ......................................................................................................... 268 Capítulo VIII - Geografia e anarquismo, esquecimentos, apagamentos e retomadas..................... 275 1 - Geógrafos dissidentes e parentes ............................................................................................................ 284 2 - As experiências transgressivas e o ensino de geografia: Para quem deseja receita de bolo. .................. 299 3 - A proposta educacional libertária e aprendizado de geografia ............................................................... 307 Conclusões ....................................................................................................................................... 315 Bibliografia .................................................................................................................................. 323 3 AVANT PROPOS Fonte: Donald Rooum, Wildcat strike again, Freedom Press, 1998. p.22. (Adaptado pelo autor). Donald Rooum é cartunista anarquista que criou a revista “Wildcat” publicada pela Freedom Press em East End, bairro de Londres notabilizado por históricos confrontos entre trabalhadores e governo e também pelos crimes de Jack Estripador. Freedom Press é uma antiga editora que foi local de visita de Kropotkin e outros anarquistas famosos e, ainda hoje, continua realizando o mesmo trabalho de divulgação do anarquismo e do socialismo. Rooum caracteriza os dois personagens do quadrinho acima por “Free-Range-Egghead” ou “Intelectual libertário acadêmico” que ao pé da letra seria “Libertário Franguinho Sabe-tudo” que tenta mostrar o anarquismo como algo intelectualmente respeitável, embora peque pela covardia e esnobismo intelectual. “Wildcat” ou “Gata Brava” é apaixonada, combativa, calorosa e enérgica, mas é abusada, intempestiva, tomada por ímpetos e argumentos simplórios. Os personagens da história acima funcionam como dois arquétipos deste trabalho, só que no lugar do homem de Estado encontro-me utilizando, por vezes extensamente, por vezes roubando descaradamente, por vezes adulterando ideias que sustentem os propósitos a que tento desenvolver pelo calor que me provocam. Sinto utilizar a ciência, ou penso usá-la, mais para apoiar meus sentimentos embriagados da educação anarquista do que desenvolver um pensamento sóbrio e rigoroso a partir dela. 5 Introdução1 O conhecimento vulgar científico afirma que um besouro, perante as leis da física e da aerodinâmica, não deveria ser capaz de voar. Teoricamente ele não deveria voar, mas ela voa. Voa sem graciosidade e, inextricavelmente à sua existência, voa. O fato de a teoria não explicar a realidade pode apenas significar que ela está incompleta, mas voa. A teoria em si é sempre uma possibilidade de explicar algo que se manifesta na realidade. Se por um lado a teoria pode ser incompleta, por outro, o besouro incompleto não voaria. Nos assuntos humanos, muitos besouros voam enquanto, sob outros aspectos, são incapazes de rastejar. É assustadora e alentadora a impossibilidade de encontrar uma teoria definitiva sobre os seres humanos. Nas ciências “duras”, as verdades são comprovadas por sua utilidade, ainda que temporárias e discutíveis, como por exemplo, a energia atômica e a engenharia genética, que assustam alguns e alentam poucos. Nas ciências “moles”, ao contrário, a improbabilidade é a constante, por isso é comum, na história da ciência, incluir leis imutáveis na interpretação dos fenômenos humanos ainda que nada seja comprovado através de resultados úteis, o que cria desconforto e mal-estar. A educação é um desses besouros que não deveria voar, mas voa, esgueirando-se pelo ar e zumbindo com seu bater de asas em imprecisa rota. O besouro, como a educação, sempre chegará a algum lugar. A questão se esse “chegar” e esse “lugar” são compatíveis com os interesses essenciais e necessários do homem estabelece como indagação permanente se a educação é meio ou fim. A educação estatal e formal é um besouro sem asas e patas que voa e rasteja, ao menos para aqueles que desejam acreditar nessa improbabilidade ou para aqueles que acreditam que chegar a qualquer lugar, de qualquer modo, é o bastante para a humanidade. As metáforas que utilizam a natureza e as teorias são imperfeitas para explicar os fatos humanos, por isso, a educação, ainda que completa, pode não levar a lugar nenhum, da mesma forma que a falta de uma asa não a impede de chegar a algum objetivo, inclusive aos não planejados ou sequer esperados. Tal perspectiva pode ser denominada relativista. Em certas situações, a imprecisão e a desnecessidade da educação são uma sorte e, em outras, são divisor concreto que separa prejudicialmente a sociedade. O fascismo ou a possibilidade de que ele se desenvolva em algumas propostas educativas, no seio de algumas comunidades ou grupo de jovens, é o resultado pior que se pode obter delas. Todavia, a apatia e a docilidade que resultam de 1 Uma sugestão alternativa de leitura é após passar por essa introdução ir direto para a conclusão, depois percorrer as charges, piadas e letras de música. Seria isso que eu faria. 6 algumas experiências não são menos perigosas que o autoritarismo e o fascismo porque se nutrem dessas duas. O pensamento inicial desta pesquisa em educação estava direcionado para a epistemologia da educação em Geografia, conteúdo e método, formação de professores, história da Geografia escolar e prática docente e educativa, currículos e programas. De alguma forma isso permanece nas linhas que desenrolarão os debates aqui contidos2. É preocupante o fato de haver um número reduzido de dissertações, teses, livros e artigos que trabalham com o ensino de geografia no Brasil. A utilidade ou não da pesquisa em ensino é ainda mais grave. O desenvolvimento de uma geografia palatável e útil nas escolas, até certo ponto, não deixa de ser verdadeiro e necessário, porém, a obsequiosidade como isso é processado anula alguns de seus efeitos fundamentais. Trabalhar com os recortes e especificidades que há em cada uma dessas linhas de investigação, embora muito relacionadas, seria uma tarefa inviável ou resultaria muito genérica. Ainda assim, a colaboração deste trabalho irá tocar nesses vários aspectos, mas será guiada para responder em que a pedagogia libertária ou anarquista poderia servir ao debate do ensino de geografia. No sentido de manter a ligação das linhas temáticas de pesquisa acima citadas, acredito estar este trabalho próximo à filosofia da educação como eixo de partida e de chegada, com concentração de esforços primordialmente identificados com o professor e seus desafios no ensino-aprendizagem de geografia e com a conquista de cotas de liberdade pessoal e coletiva. A perspectiva histórica do ensino de geografia e a história geral da didática da geografia aos poucos perderam sentido e foram substituídas por outro tipo de provocação. A proposta de partida deste estudo visava entender o que mudou e o que permaneceu desde a introdução da Geografia Crítica nas escolas brasileiras no período entre 1964 e 2004. As reflexões foram alteradas na medida em que se aprofundou nos sentidos mesmo da educação e que foi posta em dúvida a influência concreta dessa corrente e da disciplina na sociedade. A Geografia Crítica, que se acredita estar presente nas escolas, é censurada indevida e injustamente por alguns autores, com respeito a ocorrências que nunca pleiteou e nem são de responsabilidade de seus defensores. A relevância do recorte temporal também perdeu poder explicativo, quando o interesse não era mais entender por quais razões referenciadas na história se encontrava o ensino de geografia tão 2 Daqui em diante, a palavra geografia não receberá mais a letra maiúscula, para lembrar que, na escola, ela não merece o mesmo patamar que atingiu do ponto de vista racional, teórico e de poder explicativo que conquista dentro das ciências naturais e humanas. Será mantida maíúscala apenas quando se tratar da corrente de pensamento denominada Geografia Crítica para não ser confundida com a geografia que se critica. 7 esvaziado de sentido na educação. Ainda que, seguramente, haja importantes referências na história da didática mundial para explicar algumas das dificuldades concretas para a docência dessa disciplina, nesta proposta não se usa a história como justificadora, nem como legitimadora e menos ainda para explicar o que encerra hoje ensinar geografia. A história, portanto, será utilizada para localizar fios condutores, mas sem pretensões historiográficas. A ideia presente foi construída gradualmente na mesma medida em que foi sendo destruída. Da pedagogia como ponto de partida, passou para a antipedagogia. Da formação de professores, para encontrar o antiprofessor, e da geografia, para a antigeografia. Em alguns trechos, nem a escola resta como aparato ideológico da esquerda do pensamento educativo. No lugar desses passos iniciais, uma concepção de liberdade conquistada e vivida pelo professor assumiu posto insubstituível nessas novas orientações e, com isso, suscitou novos problemas. Toda essa tensão surgiu com perguntas sobre a geografia na escola, formuladas por Pontuschka (2000, p.2): “Para que ensinar geografia? O que ensinar em geografia? Como ensinar geografia? Que recursos didáticos selecionar e como utilizá-los? Como nos relacionar com as demais disciplinas do currículo, considerando que todas elas têm papel significativo na formação de um cidadão? Como fazer com que o trabalho pedagógico com a geografia contribua para a vida do estudante em suas múltiplas dimensões?” A essas perguntas podem ser somadas as que são feitas por Kaercher (2003, p.99): Como o aluno aprende geografia? Por que ensinar geografia? A verdade e a realidade são alcançadas pelo ensino de geografia? Entre as perguntas acima estão as mais clássicas e as mais novas preocupações, contudo, as reflexões desenvolvidas no decorrer deste trabalho me obrigaram a construir outras: - Por que não deixá-la(o)s aprender a geografia que/como/quando/onde queiram? - Por que insistir em ensinar geografia ou qualquer outra coisa? Talvez se perca, no futuro, o sentido que tantos defendem da geografia na escola. Por enquanto é possível construir cooperações efetivas desde que se rompa com a visão ingênua, messiânica, heroica e salvacionista, sobre a escolaridade sitiada pelo Estado capitalista. No interior dessas perguntas havia outra antiga, localizada em Marx, Kropotkin, e mais recentemente em Morin, sobre quem educará os educadores para um projeto social mais abrangente. Sem abandonar essa preocupação, a inserção horizontal da figura do estudante cria desafios mais sinceros. Ter liberdade pedagógica é praticar a antipedagogia e a antiandragogia e, consequentemente, também realizar uma antigeografia, ou encontrar uma compreensão espacial que não seja remetida ao poder dominante em qualquer de suas circunscrições, seja ela epistemológica, da teoria da geografia ou das ideologias. 8 A liberdade anarquista e todo seu ideário panfletário me arrastaram para um intento tão ousado quanto vago que exigiram criar alguns neologismos. Assim foi necessário criar termos como mutuório, anarcogeografia e antigeografia, que são inspiradores, que possuem mais efeitos em diálogos soltos e despretensiosos do que para a academia. Por isso, os termos todos que forem utilizados fora do senso comum científico deverão ser contextualizados. O leitor que buscar nesse trabalho um conteúdo da didática e da própria epistemologia da geografia será decepcionado, pois o conteúdo geográfico está empalidecido pela importância dada ao conhecimento científico. Há muitas pistas para realizar uma pedagogia anarquista da geografia, mas não é suficiente, propositadamente, que se extrai uma resposta definitiva de como ensinar geografia por caminhos anarquistas de tal forma blindar essa contribuição para os interessados em seguir modelos. Dessa forma é possível dizer que é um trabalho que pende para a adesão ideológica do anarquismo e se afasta do debate epistemológico, encorpado pelo cinismo (quinismo) teórico que utiliza de forma parcial e sem acuro alguns eixos de discussão inseridos. Estou falando do debate sobre anarquismo e marxismo ou sobre a teoria crítica que mereceriam um aprofundamento e dedicação que não está presente nesta oportunidade e o leitor sentirá essa parcialidade como foram tratados esses assuntos. É possível afirmar que são várias teses lançadas nas linhas seguintes, fruto da imaturidade intelectual e da angustia por entender os potenciais traços teóricos se imbricam na provocação assumida. São nessas lacunas que o leitor irá identificar o despojo teórico e da desserventia que este trabalho pretende para qualquer formalização da proposta da pedagogia anarquista a serviço do ensino de geografia ou de qualquer outra disciplina escolar. Alain Wisner (1923-2004) funda a escola francesa da ergonomia que afirma a necessidade de o pesquisador de linhas produtivas saber a diferença entre trabalho prescrito, real e declarado, incluindo a cognição na análise do trabalho. O trabalho prescrito é aquilo que se recomenda tecnicamente para reduzir perdas, acidentes, preservar a saúde do trabalhador e melhorar e aumentar a produção. O trabalho real resulta da observação direta das operações realizadas pelo trabalhador. A proposta metodológica de Wisner sugere que se ouça o que o trabalhador diz que realiza para confrontar com o trabalho prescrito e com o trabalho real que foi observado em suas operações. Entre o que um trabalhador ou grupo deles fala que pratica e o que realiza concretamente há discrepâncias com efeitos positivos ou negativos para os aspectos globais da linha de produção e para eles. A mesma metodologia de análise pode ser utilizada para a educação e, de certo modo, isso é feito por alguns pesquisadores, isto é, quando reunem o trabalho prescrito para a educação em seus 9 aspectos legais, normativos, pedagógicos e epistemológicos, compará-los com aquilo que os professores afirmam realizar e, finalmente, confrontá-los com o que o pesquisador observou de suas atividades docentes efetivadas em sala de aula. O resultado dessa triangulação de informações não tem agradado aos educadores, por isso se evitou essa conduta de pesquisa. Esse tipo de metodologia poderia verificar contradições entre a prática e o discurso dos professores. Um fator, porém, que anula a análise do trabalho docente e precede qualquer outra apreciação, é a contradição da educação estatal, que educa para deseducar. Do ponto de vista metodológico não há aqui nenhuma contribuição inovadora. Tudo aqui apresentado tem como base leituras e posicionamentos no limiar da reflexão pejorativa dos enunciados utilizados. Talvez alguns prefiram classificar como dialético. Outros não ousariam mais que dizer tratar-se de um trabalho descritivo analítico, pretensiosamente crítico. O método que alcanço explicitar é quase como um reflexo da minha vida profissional, do meu desconforto de início de carreira, da rebeldia contra as ordens e dogmas de meus patrões, e de alguns alunos e alunas, colegas de trabalho e estudos que se autotiranizavam. Por outro lado, é espelho de lembranças de professores de todas as partes que dialogaram sinceramente e me abraçaram de todas as formas. A investigação com base empírica foi adquirida progressivamente como um valor, em razão disso houve a inclusão das experiências de outros professores de geografia e de outras práticas pedagógicas, como as do Colectivo Paideia e de Summerhill, coletadas de forma assistemática. Imporei aos leitores mais acadêmicos charges, histórias, contos místicos, anedotas e trechos de músicas com o objetivo de sugerir diálogos com pessoas que detenham interesses distintos, e também, por constituírem outros modos de comunicação, mais eficazes que uma estrutura literária acadêmica formal. A inclusão de citações de obras não traduzidas e não encontradas em bibliotecas brasileiras foi necessária por ser este um assunto desprestigiado na literatura em educação no país. Os leitores a quem se destina este trabalho são professores desestimulados pela excessiva tensão e carga de trabalho, pelos baixos salários e precárias condições de trabalho a que estão submetidos. São profissionais sem tempo para estudar, mas que não desejam compor um bloco de professores autoindulgentes e condescendentes com essa realidade. 10 Fonte: http://antero.files.wordpress.com/ Ivan Illcht, um dos teóricos mais conhecidos da desescolarização, poderia inspirar esses questionamentos sobre o ensino de geografia ou a escola em geral, porém, o que está no cerne dessas inquietações é a fundação de lugares de liberdade e de cooperação radical. Não é aceitável manter um ambiente de produção de agentes dóceis e perversos como se mostra bem sucedida a escola convencional. A realidade da prática de ensino de geografia é o retrabalho pedagógico como uma “Colcha de Penélope”3, tecida ao longo do dia e desfiada durante a noite. Cada ano é uma recordação do anterior, numa busca incessante pela integração de uma totalidade, do cosmo platônico e humboldtiano, mais recentemente marxiano e, atualmente, holístico yuppie4. O arranjo coerente do texto e a relação entre os assuntos abordados não foram feitos sem algumas dificuldades e persistem dúvidas se a ordem escolhida é satisfatória para comunicar os propósitos desta investigação. A opção mais geral é relacionar o ensino de geografia e pedagogia libertária ao conceito de ideologia, pedagogias socialistas, radicais, anarquistas e cínicas, partindo desse mosaico teórico para sustentar o plano prático dessas reflexões. * * * * * 3 Penélope é esposa de Ulisses, “o Odisseu”, da obra de Homero, que retrata as dificuldades impostas pelos deuses a seu retorno a Ítaca, onde sua amada estava prometida a um novo casamento quando terminasse de tecer uma colcha, o que levou muitos anos até superar sua maldição. 4 Yuppie ou Young Urban Professional ou jovem profissional urbano que vive na cidade e gasta muito dinheiro com coisas caras da moda. No final da década de 1980 e parte da década de 1990 foi símbolo de um jovem niilista, frívolo satisfeito com sua rotina de viver em cafés luxuosos e em suas atividades profissionais levar adiante as reformas administrativas baseadas no uso da alta eficiência tecnológica, na reengenharia administrativa e na eliminação de posto de trabalho. 11 O corpo geral desta tese se divide em duas partes, concentrando-se a primeira no levantamento teórico e histórico que situa e auxilia a compreensão da educação libertária. Na segunda parte, mantém-se o debate teórico, somando-se os fatores práticos da proposta da educação libertária e o lugar da geografia nesse projeto, onde se localiza o desenho central da tese. Os capítulos iniciais da primeira parte tratam do papel da pesquisa educacional, do conceito de ideologia, da Teoria Crítica, das pedagogias socialistas e da libertação e do cinismo (quinismo) e anarquismo, os eixos que entrecortam o corpo geral do trabalho. Nesse primeiro bloco, estão inseridos um relato e um extenso debate sobre a experiência das escolas democráticas que corrobora o propósito educacional libertário ou as afasta dele. Os capítulos da segunda parte detalham a proposta prática da educação libertária, contendo experiências de cinco professores de geografia, que envolvem elementos anarquistas. A descrição e o funcionamento da Escuela Paideia, visitada durante este trabalho, servirá à confrontação com fatores práticos da educação e de como ensinar uma geografia anarquista, se não há geógrafos que trabalhem com ela em educação e epistemologicamente. As partes e alguns capítulos do trabalho podem ser lidos separadamente ou sem pré-requisitos. Nas conclusões, apresenta-se o texto propósito final a que poderia ser creditado algum valor científico do que eu compreendo como tese, e que minha indumentária reflexiva tecida até aqui permitiu alcançar. * * * * * * Notas de leitura: Todas as palavras em língua estrangeira foram prioritariamente grafadas em letra normal entre aspas duplas. Todas as aspas simples são referentes a algum destaque do texto original. O nome do autor é grafado da maneira mais enfática possível para que não haja dúvida da autoria da afirmação. Na referência bibliográfica há apenas os autores e obras que foram citados. O texto segue a atual norma de acentuação, mantendo a norma antiga nas citações anteriores ao ano de 2008. As palavras grafadas com “@” são justificadas no item 1 do capítulo VII. O tamanho do texto é menor que o número de páginas em decorrência dos espaços em branco não ocupados que somados aos da charges chega a 60 páginas. 13 PARTE - I O pensamento e a pesquisa sobre a pedagogia libertária: ideologia, liberdade, autonomia e educação Fonte: 15 Capítulo I – Composição teórica: Pesquisa educacional, Ideologia, Teoria Crítica e Pedagogias Socialistas 1- A pesquisa educacional e os professores de geografia Pinheiro (2003 e 2005) reuniu dissertações e teses, apresentando importantes informações sobre a pesquisa educacional em geografia que a situam como uma das menos atendidas em relação às demais especialidades da disciplina. Em alguns casos repetem-se temas já abordados, e há trabalhos que foram perdidos ou estão com suas folhas arrancadas. Pinheiro também registra que algumas teses e dissertações não foram depositadas por seus autores e outras, tomadas em empréstimo, nunca foram devolvidas. Evidencia que o acervo pequeno é, de toda maneira, valoroso e merece ser conhecido. Diniz (1998) verificou que os educadores formadores de professores em geografia não se dedicam à pesquisa pedagógica e didática e observou que, para os futuros docentes, privilegia-se uma formação de especialista, deixando de lado a licenciatura: “[...] professores pesquisadores acabam distorcendo a graduação porque tentam ensinar aos alunos apenas resultados de suas pesquisas e se esquecem de que eles precisam de uma formação global” (NOVAES, 1990 apud DINIZ 1998, p.103). Kaercher considera que a especialização se chocará com a realidade do mercado de trabalho, afinal, há pouco emprego para o especialista, e um enorme demanda para a docência: Isso trará reflexos fortes na prática do futuro professor. Porque a universidade pode especializar em excesso e precocemente um aluno. É comum um aluno de graduação ser bolsista de iniciação científica de um mesmo professor por anos, restringindo suas áreas de interesse. Corolário disso é que este aluno desejará seguir esta especialização no curso de pós-graduação, pois seu objetivo, não raro, é ser um professor-pesquisador universitário. Ou seja, não há uma formação mais generalista visando o EFM [Ensino Fundamental e Médio], que, no fim, será o destino (até por falta de opção do mercado de trabalho) da maioria dos egressos do curso de Geografia. A prioridade, o maior ‘status’ da pesquisa sobre o ensino, tem conseqüências que ultrapassam uma concepção epistemológica de ensinar- pesquisar-aprender. Tem conseqüências, psicológicas e práticas, que podem acelerar o desencanto com a profissão de professor. (KAERCHER, 2004, p.215). Autores como Gallo (2005), Gatti (2001) e Kincheloe (1997) oferecem elementos que explicam o desinteresse e a rejeição dos professores em relação a pesquisas ligadas ao ensino. Gatti (2001, p.70), por exemplo, elege como fatores que provocam descrédito dos trabalhos empíricos sobre ensino, aqui sintetizados: ���Convergência histórica das pesquisas de modelos propostos pelo EUA, Inglaterra e França; 16 ���Impactos retardados ou apropriação simplificada no Brasil pela falta de produção acadêmica e disputas internas nas universidades; ���Agravamento do desejo de aplicabilidade imediata das conclusões. Pragmatismo e imediatismo; ���Enfoque simplista da pesquisa-ação-mudança; � ���Desvio das questões fundamentais; ���Empobrecimento teórico, abandono de hipóteses relevantes e consistentes; ��Incompreensão dos resultados de pesquisa; ��Incapacidade de indicar tendências e realidades futuras – relação constância e continuidade são fundamentais para o uso mais adequado e responsável da pesquisa. O afastamento teórico e o pragmatismo são marcas do atropelo dos professores em suas experiências e do desmerecimento delas, substituídas por pesquisas descontínuas e submetidas ao interesse esporádico de um ou outro pesquisador que, de tempos em tempos, designa parte de seu trabalho de investigação à escola. Gatti (2001, p.71) também especifica os aspectos ligados à instituição que colaboram para essa situação: ���Falta de condições institucionais para a pesquisa; ���Domínio das iniciativas individuais; ���Descontinuidade das pesquisas; ���Falta de efetivação pelas universidades da relação entre pesquisa e ensino; ���Prevalência do ensino para diplomação; ���Falta de incorporação da produção de conhecimento realizada por elas; ���Reprodução de conhecimentos que não produziram; ���Reducionismo ao espírito de “horas aulas”; ���Exigências para qualificação (pós-graduação) criam um novo envolvimento institucional; O trabalho de Gatti, pelo que ela afirma, demonstra que, mesmo estando a pesquisa voltada para superar problemas na educação, os estudos estão distantes da realidade. Gallo (2005) elenca outro fator importante para essa análise, ao afirmar que: As políticas, os parâmetros, as diretrizes da educação maior estão sempre a nos dizer o que ensinar, como ensinar, para quem ensinar, por que ensinar. A educação maior procura construir-se como imensa máquina de controle, uma máquina de subjetivação, de produção de indivíduos em série. [...] Mas o princípio da educação maior como máquina de controle pressupõe que o ensino corresponda a uma aprendizagem. (GALLO, 2005, p.79). A objetividade da administração e controle industrial, em todos os campos, transformam a escola em fábricas, professores em proletários, pesquisadores em gerentes de qualidade total e a educação, um protótipo de uma linha de produção. As pesquisas não chegam aos professores e, quando chegam, uma parte expressiva deles as refuta, acusando-as de serem inaplicáveis. Muitos resistem e expressam sua insatisfação ou desdém, com o questionamento - “ E daí?" – como exemplifica Kincheloe (1997): Este é o problema com a ciência modernista social educacional: qual é o benefício do conhecimento que ela produz? Pelas várias técnicas que emprega, a verdadeira 17 questão é limitada por uma pergunta legítima [...], pesquisa educacional cria informações triviais. A resposta dos praticantes é freqüentemente: ‘e daí’? (KINCHELOE, 1997, p.28). É possível elaborar três explicações para isso: uma é que os professores sentem-se traídos e criticados por essas pesquisas; outra, é que superestimam a prática, e a terceira, é o caráter de controle contido em algumas delas. A pesquisa acadêmica pode representar um nível da violência simbólica que, segundo Bourdieu (1974), é aquela que por meio de comportamentos, normas e atitudes, voluntários ou não, produz opressão de forma dissimulada. A pesquisa universitária representa uma violência simbólica, já que está protegida da dinâmica rigorosa a que estão submetidos os professores. Fonte: http://elenyalea.wordpress.com/ - Tenho que te avaliar para comprovar se com o pouco que pago, sem boa estrutura, não diminuirás a qualidade de ensino que merecem os nossos alunos! Kincheloe (1997) coloca em dúvida as contribuições da pesquisa educacional no sentido de fortalecer o professor e o faz nos seguintes termos: Considerem-se as relações de poder nos mecanismos existentes para produzir e distribuir o conhecimento científico sobre ensino: neste discurso, os professores são destituídos de poder porque são efetivamente eliminados do processo ativo da descoberta e disseminação do conhecimento. Em vez disso, eles são relegados a um papel passivo de consumidores de conhecimento de produtos pré-digeridos das ciências [...] Este conhecimento científico pré-digerido é baseado numa visão simplista de entrada e saída de experiência educacional. [...] Os professores aprendem então da pesquisa que o ensino é uma tecnologia com um resultado identificável levando a objetivos de curto prazo. Naturalmente, este resultado identificável é o aperfeiçoamento dos escores dos testes padronizados. [...] O objetivo da maioria da pesquisa empírica produzida é gerar uma generalização sobre o ensino. Novamente, a dinâmica da análise do discurso ajuda nossa tentativa para discernir as conseqüências de tal investigação. (KINCHELOE, 1997, p.28). 18 A origem do desinteresse do professor pela pesquisa decorre do receio de ser controlado e dos exageros e generalizações feitas por pesquisadores. Entretanto, essa aversão pode também estar na formação inicial, onde o discurso do “E daí?” é nutrido pelo pragmatismo que acomete as práticas educacionais advindas da autoridade presunçosa da docência. Kaercher, citando Cacete (2002), afirma que existe uma secundarização da pesquisa em ensino, que não está restrita aos cursos de licenciatura, mas que existe também nos cursos de pós- graduação em geografia, e desenvolve sua posição nos seguintes termos: Tal secundarização da temática do ensino e do ensinar-aprender não é refletida somente nas graduações, que priorizam a formação técnica do bacharel (tendo a Geografia Física como parâmetro de cientificidade) em detrimento, não necessariamente intencional, das licenciaturas. Se olharmos também para as pós- graduações em Geografia, veremos que a escassez de preocupação com a área do ensino persiste. Mesmo sem um levantamento exaustivo das linhas de pós- graduação – e mesmo das dissertações e teses que podem ocultar trabalhos acerca do ensino de Geografia, ou da formação de seus professores, abrigados por linhas aparentemente sem ligação com o ensino, como é o caso, aliás, desta tese, abrigada oficialmente na linha de Geografia Física – não há dificuldade em perceber a relativa escassez de linhas das pós-graduações destinadas ao “ensino”. Pouca atenção se dedica a esses temas (ensino e formação de professores do Ensino Fundamental e Médio) mesmo que a imensa maioria de geógrafos, sejam licenciados ou bacharéis, ganhem a vida como professores de Geografia do Ensino Fundamental e Médio. (KAERCHER, 2004, p.87). Entre as explicações possíveis, pode-se recorrer a Rivera cuja afirmação indica que: “o docente de geografia se esquiva reiteradamente das novidades teóricas e metodológicas e, contrariamente, fortalece e pereniza os argumentos de sua mera experiência escolar” (2007, p.24), e que o comportamento dos estudantes segue a mesma tendência. O resumo dessa análise é que os docentes aprendem a lecionar lembrando-se de seus professores, ainda que tenham passado por uma licenciatura, o que explica, em parte, a persitência do ensino tradicional e de uma geografia envelhecida na sala de aula. Paganelli conduz a outra reflexão: “Os professores, em sala de aula, nem sempre acompanham as discussões epistemológicas sobre as noções e conceitos geográficos; em geral, preocupam-se mais com a formação e a aquisição dos conceitos científicos, associados aos novos conteúdos e temas de ensino” (PAGANELLI, 2002, p.151). A maioria dos professores faz isso, valendo-se do que está presente no livro didático, que é o principal recurso à sua disposição, muitas vezes, o único. Não é o afastamento da universidade e da pesquisa acadêmica que faz com que os professores não mudem suas práticas e suas pedagogias. A resistência, amealhada de aborrecimento e cultivada desde a formação inicial, fará perdurar essa rejeição à pesquisa. Tamanha resistência pode ser entendida partindo da seguinte afirmação de Suertegaray: “Para todos nós é conhecido o percurso 19 da educação de professores, desde o nível médio ao superior. Nessa educação, a prática de pesquisa não está presente, o conhecimento não é processo, ou algo em construção, está pronto para ser transmitido” (SUERTEGARAY, 2002, p.109). A autora argumenta sobre a necessidade de formar o professor-pesquisador, o que tem sido uma proposta presente entre muitos teóricos, mas a falta de compromisso com a formação do educador em pesquisa, em geral, agrava essa ojeriza por estudos científicos. Algumas hipóteses servem como guias para que se explicitem os primeiros pontos de partida deste trabalho, assim delineadas: ���O formador de geógrafos educadores dedica pouco tempo de suas disciplinas à pedagogia de suas noções e especialidades. ��� Conhecer a epistemologia da geografia permite realizar um aprendizado mais adequado no ensino básico e na universidade. ���O ensino de geografia está imbricado a quatro fatores: problemas da pedagogia, da epistemologia da geografia, da escola como aparelho ideológico, dos desejos sociais dos professores e dos estudantes. ���Existe uma fé monolítica na importância da geografia na escola (totalitária). Tudo que se pretende como ciência e prática geográfica é aprendido exclusivamente na escola. Há mais geógrafos trabalhando com crianças, jovens e adultos do que em qualquer outra situação social no Brasil, mas isso é pouco para alçar importância. O desprestígio da pesquisa educacional em geografia é incompatível com o discurso que defende a importância social da disciplina e sua obrigatoriedade na escola. A pergunta que animou estes escritos é se haveria razão em pesquisar o ensino de geografia. A resposta é afirmativa, mas pessimista, por compreender que seus efeitos são muito limitados. 2 - Ideologia: uma conceituação necessária Uma reflexão sobre ideologia exige suporte teórico para evitar que o termo seja utilizado de forma banal e perca assim sua eficiência para interpretar o papel da geografia, da escola e do anarquismo. Em uma discussão mais ampla e sem oportunidade de aprofundamento, Milton Santos denuncia que a ideologia é sempre hegemônica. Essa interpretação parece derivada da obra “Ideologia Alemã”, de Marx, e com referências em Gramsci. Althusser, em um comentário 20 semelhante e importante para a história, afirma: “[...] a ideologia é o sistema de idéias e representações que domina a mente de um homem ou de um grupo social” (ZIZEK, 1994, p.123). Essa interpretação deve ser mais explorada, pois é indevido afirmar que só há uma ideologia, e sempre hegemônica, como cita Santos. Eagleton (1997) identifica que há ideologias concorrentes e subordinadas atuando concomitantemente em todas as instâncias sociais. Mesmo em Althusser, é possível verificar que essa hegemonia é um intento parcial, ou como ele afirma: “[...] os Aparelhos Ideológicos do Estado podem ser não o ‘alvo’, mas também o ‘lugar’ da luta de classes, e, freqüentemente, de formas encarniçadas de luta de classes” (ALTHUSSER, 1994, p.117). Não parece haver, para Althusser, um domínio total dos Aparelhos Ideológicos do Estado, já que aceita serem eles também ambientes para exercer a resistência. A filiação teórica que se apresenta atualmente delineada por Eagleton (1997), e também com Habermas (GEUSS, 1988), é a existência de ideologias que disputam legitimidade. Os juízos de valor conotativos de serem “boas ou más”, “verdadeiras ou falsas” não são explicativos dessa insaciável busca de legitimação. Há, porém, ideologias que se estabilizam com legitimidade e domínio mais duradouros que outras, a depender de sua capacidade de construir sutilezas e negociações com as ideologias subordinadas; assim sendo, não existem práticas ideológicas puras ou derivadas absolutamente dos interesses unilaterais dos dominantes. Se as ideologias não são tão ‘puras’ e unitárias quanto elas próprias gostariam de acreditar, isso ocorre porque, em parte, existem somente em relação a outras ideologias. Uma ideologia dominante tem continuamente de negociar com ideologias de seus subordinados, e essa abertura essencial a impedirá de alcançar qualquer espécie de auto-identidade pura. Na verdade, aquilo que confere poder a uma ideologia dominante – sua capacidade de intervir nas consciências daqueles que ela subjuga, apropriando-se da experiência deles e reinflectindo-a – é também o que tende a fazê-la internamente heterogênea e inconsistente. (EAGLETON, 1997, p.51). O autor afirma ainda que a ideologia governante bem-sucedida compromete-se com vontades, necessidades e desejos genuínos, o que para ele é seu tendão-de-aquiles, pois que a obriga a reconhecer o ‘outro’ e estabelecer um tipo de alteridade. Para atingir esse efeito, deverá dialogar e comunicar com o outro. Não é monológica. No sentido dos bakhtinianos, é dialógica, mesmo que desvantajosa para uma das partes. A impureza e heterogeneidade da ideologia são elementos que impedem dizer que ela é uma ilusão ou falsa consciência, como em algumas abordagens marxistas; afinal, uma parte da verdade está ali. Assim, a ideologia hegemônica é fruto de algum tipo de negociação que a leva a dominar as consideradas ideologias subordinadas. A ideologia dominante não é uma totalidade no sentido 21 gramsciano, é fruto de uma dialética, e sua totalidade só pode ser compreendida nas contradições entre as partes. Um outro aspecto desse debate está na expressão da ideologia como um enunciado e como uma prática. Althusser afirma que se uma pessoa se identifica com um discurso, mas nas suas práticas o contradiz, essa identificação não corresponde à ideologia que pronunciou praticar, mas a outra: Em todo esse esquema, observamos que a própria representação ideológica da ideologia é forçada a reconhecer que todo ‘sujeito’ dotado de uma ‘consciência’, e confiando nas ‘idéias’ que sua ‘consciência’ lhe inspira e livremente aceita, deve, ‘agir de acordo com suas idéias’ – portanto, deve inscrever suas idéias, como sujeito livre, nos atos de sua prática material. Se não o fizer, está errado. Na verdade, se ele não faz o que deveria fazer em função daquilo em que acredita, é porque faz alguma outra coisa, o que, ainda em função do mesmo esquema idealista, sugere que ele tem outras idéias na cabeça além daquelas que proclama, e age de acordo com outras idéias, como um homem ‘inconseqüente’ (‘ninguém é voluntariamente mau’), ou cínico, ou perverso. Em qualquer dos casos, a ideologia da ideologia reconhece, portanto, apesar de sua deformação imaginária, que ‘idéias’ de um sujeito humano existem ou devem existir em seus atos, e que, quando isso acontece, ela lhe atribui outras idéias correspondentes aos atos (mesmo perversos) que ele de fato pratica. (ALTHUSSER, 1994, p.130). O conceito de ideologia tem sido aprofundado em várias correntes, mas hoje não se pode mais afirmar que existe um ponto consensual entre elas. Eagleton afirma que a palavra “ideologia” tem toda uma série de significados convenientes, mas nem todos compatíveis, e explicita: A palavra ‘ideologia’ é, por assim dizer, um ‘texto’, tecido com trama inteira de diferentes fios conceituais, é traçado por divergentes histórias, e mais importante, provavelmente, do que forçar essas linguagens a reunir-se em uma só em alguma grande teoria Global é determinar o que há de valioso em cada uma delas e o que pode ser destacado. (EAGLETON, 1997, p.15). Se se concordar que ideologia é uma trama de muitos fios que produzem um texto, existe em cada entroncamento humano uma presença múltipla de sentidos. Mas haverá fios mais fortes e resistentes que outros ou ideologias que permaneçam subjacentes a qualquer outra? Eagleton reúne, a partir desse pressuposto, um resumo do que é definido como ideologia, sendo que algumas dessas definições lhe parecem incompatíveis: a) o processo de produção de significados, signos e valores na vida; b) um corpo de idéias característico de um determinado grupo ou classe social; c) idéias que ajudam a legitimar um poder político dominante; d) idéias falsas que ajudam a legitimar um poder político dominante; e) comunicação sistematicamente distorcida; f) aquilo que confere certa posição a um sujeito; g) formas de pensamento motivadas por interesses sociais; h) pensamento de identidade; i) ilusão socialmente necessária; 22 j) a conjuntura de discurso e poder; k) o veículo pelo qual atores sociais conscientes entendem o seu mundo; l) conjunto de crenças orientadas para a ação; a confusão entre realidade lingüística e realidade fenomenal; m) oclusão semiótica; n) o meio pelo qual os indivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura social; o) o processo pelo qual a vida social é convertida em uma realidade natural; (EAGLETON, 1997, p.15). O autor observa que a definição (c) é incompatível com (l), pois se é ‘dominante’ não pode conviver com ‘qualquer’ tipo de crença. Os sentidos de ideologia como ‘ilusão’ (i) e ‘veículo’ (k) também demonstram outra ordem de incompatibilidade. Há definições que são pejorativas ou ambiguamente pejorativas e outras, nada pejorativas, mas neutras. Fonte: http://www.geografiaparatodos.com.br Eagleton especifica cada um dos problemas dessas definições e limitações, mas jocosamente inclui a seguinte afirmação: “A ideologia, como o mau hálito, é, nesse sentido, algo que a outra pessoa tem” (1997, p.16). Portanto, tentar desqualificar um discurso afirmando que ele é ideológico é qualificar ideologicamente o próprio discurso, principalmente quando se acredita que usando dados científicos fica-se livre de ser ideológico. A concepção de ideologia como “um corpo de ideias’ (b) é neutra e não tem poder explicativo de grande alcance, dando margem a entender que as nossas próprias opiniões podem ser descritas como ideológicas. Chama atenção de Eagleton o aspecto epistemológico contido em algumas das formulações que tratam de nosso conhecimento sobre o mundo e outras que não citam essa compreensão, como se vê no exemplo a seguir, citado por ele: O que significaria, portanto, se alguém comentasse, no meio de uma conversa de bar: ‘Bem, mas isso não passa de ideologia!’. Não presumivelmente, que aquilo que foi dito era falso, embora isto pudesse estar implicado; se assim fosse, por que não dizê-lo simplesmente? É improvável também que as pessoas no bar quisessem dizer algo como ‘este é um excelente exemplo de oclusão semiótica!’, ou que se 23 acusassem veementemente de confundir realidade lingüística com realidade fenomenal. (EAGLETON, 1997, p.16). Então, dizer que um discurso é ideológico não explica nada sobre uma opinião ou juízo. Se for falso, o que impede que seja isso evidenciado, por que razão chamá-lo de ideológico é mais eficiente discursivamente? Afinal, o que no discurso do outro é ideológico, necessariamente, não quer dizer que seja falso e descabido. Eagleton avalia que: Afirmar, em uma conversa corriqueira, que alguém está falando ideologicamente é, com certeza, considerar que se está avaliando uma determinada questão segundo uma estrutura rígida de idéias preconcebidas que distorce a compreensão. Vejo as coisas como elas realmente são; você as vê de maneira tendenciosa, através de um filtro imposto por algum sistema doutrinário externo. Há em geral, uma sugestão de que isso envolve uma visão extremamente simplista do mundo – que falar ou avaliar ‘ideologicamente’ é fazê-lo de maneira esquemática, estereotipada, e talvez com um toque de fanatismo. (EAGLETON, 1997, p.17). As ideias pré-concebidas ou os pré-entendimentos permeiam nossas opiniões ou, como Eagleton adverte: “Não existe tal coisa como pensamento livre de pressupostos, e então qualquer idéia nossa poderia ser tida como ideológica” (1997, p.17). A questão posta se dirige ao pensamento racionalista, e o que pode ser concebido como pensamento rígido de uma pessoa pode ser aberto para outra. Os que apostam para o sentido rígido e fixo da ideologia são conhecidos como os teóricos do ‘fim da ideologia’. Eagleton apresenta dois problemas nessa corrente de pensamento: “[...] é sua tendência considerar a ideologia de duas maneiras bastante contraditórias, ou seja, como se ela fosse ao mesmo tempo cegamente irracional e excessivamente racionalista” (EAGLETON, 1997, p.18). A exemplificação dessa afirmação remete à polarização da Guerra Fria: Por um lado, as ideologias são apaixonadas, retóricas, impelidas por alguma obscura fé pseudo-religiosa que o sóbrio mundo tecnocrático do capitalismo moderno felizmente superou; por outro, são áridos sistemas conceituais que buscam reconstruir a sociedade de cima para baixo, de acordo com algum projeto inexorável. (EAGLETON, 1997, p.18). Esse tipo de posicionamento é comum e não há como ver algo pouco ideológico nessas formulações. Desse ponto fica claro que não existe um “outro ideológico” e “eu não ideológico”. Há, nas duas frases, ambiguidade suficiente para perceber as opções ideológicas de ambas. O mesmo acontece com o discurso presente na academia, em todo momento às voltas com essa denúncia: É uma grande ironia o fato de que, ao tentar substituir um arrebatado fanatismo por abordagem rigorosamente tecnocrática dos problemas sociais, os teóricos do ‘fim da ideologia’ repitam, involuntariamente, o gesto daqueles que inventaram o termo ‘ideologia’, os ideólogos do Iluminismo francês. (EAGLETON, 1997, p.18). 24 Com isso, o autor quer distinguir ideologia de crença ou de filosofia. Um conjunto de crenças não é suficiente para delinear uma ideologia, nem uma aceitação filosófica é puramente ideológica. Todavia, se há uma concatenação de um conjunto de crenças com o poder, já é elemento importante para definir uma ideologia. Eagleton toma a seguinte definição de ideologia que lhe parece completa: Talvez a resposta mais comum seja afirmar que ideologia tem a ver com ‘legitimar’ o poder de uma classe ou grupo social dominante. ‘Estudar ideologia’, escreve John B. Thompson, ‘é estudar os modos pelos quais o significado (ou significação) contribui para manter as relações de dominação’. (EAGLETON, 1997, p.19). Destacando o trecho “contribui para manter”, está implícito que ele não determina a relação de dominação, mas é a busca de um tipo específico de legitimação que está em foco e, segundo Eagleton, ela se impõe através de seis estratégias: 1) promovendo crenças, convicções e valores que poderão potencializar uma determinada ideologia; 2) naturalizando e 3) universalizando essas crenças. Deste modo, o que ou quem não se encaixar nesse modelo poderá ser 4) denegrido, 5) excluído e, finalmente, 6) obscurecida a realidade social para beneficiar o poder que se legitima sobre outros, através da mistificação: Tal ‘mistificação’, como é comumente conhecida, com freqüência assume a forma de camuflagem ou repressão dos conflitos sociais, da qual se origina o conceito de ideologia como resolução imaginária de contradições reais. Em qualquer formação ideológica genuína, todas as seis estratégias podem estabelecer entre si interações complexas. (EAGLETON, 1997, p.19). Eagleton afirma que há limites nessa definição das estratégias. Se essas estratégias são eficazes, não são as únicas que explicam uma ideologia genuína. Então ele expõe um problema dessa definição ‘persuasiva’: “[...] nem todo corpo de crenças normalmente denominado ideológico está associado a um poder político ‘dominante’” (EAGLETON, 1997, p.19). Argumenta, então, que a esquerda tende a concentrar suas avaliações quase ‘instintivamente’ em relação ao poder, mas esquece que movimentos como os “levellers, diggers, narodniks” e sufragistas, que não apoiavam os valores governantes, não eram menos ideológicos. Isso leva a indicar que nem todas as ideologias são opressivas e espúrias. O autor exemplifica esse processo de aparente mão única: De fato, o teórico político Kenneth Minogue, da ala direita, sustenta, de maneira surpreendente, que todas as ideologias são esquemas estéreis e totalizantes, politicamente oposicionistas, uma vez que se contrapõem à sabedoria prática dominante: ‘As ideologias podem ser descritas em termos de uma hostilidade comum à modernidade: ao liberalismo na política, ao individualismo na prática moral e ao mercado na economia’. Segundo essa visão, os partidários do socialismo são ideológicos, mas os defensores do capitalismo, não. Um indicador confiável da natureza da ideologia política de alguém é o quanto ele está disposto a 25 aplicar o termo ideologia a suas próprias opiniões políticas. De modo geral, conservadores como Minogue temem o conceito, já que classificar as próprias crenças como ideológicas implicaria o risco de convertê-las em objeto de contestação. (EAGLETON, 1997, p.19). Eagleton cita também o pensamento do filósofo Martin Selinger, para quem ideologia é um “conjunto de idéias pelas quais os homens [sic] postulam, explicam e justificam os fins e os meios da ação social organizada, e especialmente da ação política, qualquer que seja o objetivo dessa ação, se preservar, corrigir, extirpar ou reconstruir uma certa ordem social” (1977 apud EAGLETON, 1997, p.20). Com essa definição, Eagleton sugere que seja possível haver uma ‘ideologia socialista’ e não faria sentido denominá-la ilusão e mistificação, ou falsa consciência. Para esse autor, tanto uma definição mais ampla como uma mais restrita têm utilidade, porém, são incompatíveis entre si. O risco que se tem com a mais ampla é deixar o conceito “politicamente desdentado” (1997, p.20), pois se todas as posições políticas são ideológicas, extrai-se o sentido de ideologia como legitimação, o que não é possível. Nesse impasse, Eagleton recorre a Foucault, quando este diz que poder não é “algo confinado aos exércitos e parlamentos: é, na verdade uma rede de força penetrante e intangível que se tece em nossos menores gestos e declarações mais íntimas” (1977 apud EAGLETON, 1997, p.20). A preocupação, para o autor, é que essa definição pode conduzir o sentido de ideologia ao desaparecimento: Qualquer palavra que abranja tudo perde o seu valor e degenera e um som vazio. Para que o termo tenha significado, é preciso que se possa especificar o que, em determinadas circunstâncias, seria considerado o outro dele – o que significa, necessariamente, especificar algo que seja ‘sempre e em qualquer parte’ o outro dele. Se o poder, como o próprio Todo-Poderoso, é onipresente, então a palavra ideologia deixa de particularizar algo e perde totalmente sua capacidade de informar – da mesma forma que se cada amostra do comportamento humano, seja ela qual for, inclusive as torturas, fosse considerada um exemplo de compaixão, a palavra compaixão se reduziria a um significante vazio. (EAGLETON, 1997, p.21). Segundo Eagleton, os seguidores de Foucault abandonaram a palavra ideologia e adotaram o termo ‘discurso’ como mais expressivo. Eagleton provoca: Os mais radicais, para quem ‘tudo é ideológico’ ou ‘tudo é político’, parecem não perceber que correm o risco de derrubar os seus próprios argumentos. [...] É perfeitamente possível concordar com Nietzsche e Foucault a respeito de que o poder está em toda parte, ao mesmo tempo em que se busca distinguir, para certos propósitos práticos, entre exemplos de poder mais e menos centrais. (EAGLETON, 1997, p.21). 26 Essa relativização de que o poder está em toda parte não é capaz de evidenciar onde, como e por quais estratégias atua para espraiar suas práticas. Se ideologia é discurso, isso traz o problema de saber se todo discurso é ideológico ou se é a linguagem que carrega o caráter ideológico. Eagleton analisa que: “A ideologia tem mais a ver com a questão de quem está falando o quê, com quem e com que finalidade do que com as propriedades lingüísticas inerentes de um pronunciamento” (1997, p.22). Ele não nega que exista uma linguagem, por exemplo, fascista. Defende, por outro lado, que os produtores do discurso e seu contexto são capazes de criar uma amálgama no discurso que o torna ideológico. O autor critica a conceituação de ideologia que a define como um conjunto de ideias ‘socialmente interessadas’, pois ela contém uma ambiguidade entre o que é interesse pessoal e coletivo que, nessa acepção, desemboca no relativismo de que sejam a mesma coisa. Os interesses são discutíveis porque alguns, postos como comuns a todos, muitas vezes não passam de preocupações de um grupo muito particular e restrito, com empenhos próprios. Se ideologia é falsa consciência, acaba por promover-se uma visão elitista de que existem intelectuais que são “a” consciência da sociedade. Eagleton (1997, p.23) está critica o intelectual ironista, definido por Rorty, que estaria acima da sociedade, mergulhada esta, numa névoa de falsa consciência, ou alienada em terminologia marxista. O termo falsa consciência tem, segundo o autor, caído em desuso e impopularidade entre marxistas ortodoxos, pois uma consciência verdadeira também pode ser base de uma ideologia. Isso conduz à discussão se a política é ou não o mesmo que ideologia, retirando toda a abordagem epistemológica do termo para um campo mais político. Eagleton, porém, distingue: Argumentar em favor de uma definição mais ‘política’ que ‘epistemológica’ de ideologia não significa, é evidente, afirmar que política e ideologia são a mesma coisa. Uma forma de distingui-las seria sugerir que a política se refere aos processos de poder mediante os quais as ordens sociais são mantidas ou desafiadas, ao passo que a ideologia diz respeito aos modos pelos quais esses processos de poder ficam presos no reino do significado. Mas não é bem assim, uma vez que a política tem sua própria classe de significado, que não precisa ser necessariamente ideológico. (EGLETON, 1997, p.23). Se um significado político principiar a reunir crenças que contrariam o senso comum, está aí a ideologia: “Se membros de um grupo político dissidente dizem entre si, ‘Podemos derrubar o governo’, trata-se, nesse caso, de um fragmento de um discurso político; se dizem isso ao governo, torna-se imediatamente ideológico (no sentido amplo do termo), visto que a elocução entrou agora na arena da luta discursiva” (EAGLETON, 1997, p.24). Crenças não são inverdades, e parte delas está alicerçada em verdades, na perspectiva de Eagleton, pois são de alguma forma apoiadas em práticas e coerências da vida das pessoas, sendo 27 dessa maneira errôneo aceitar que através das crenças estaríamos impossibilitados de pensar sobre nós: Se os seres humanos fossem mesmo crédulos e ignorantes a ponto de depositar sua fé em idéias totalmente sem sentido, então seria razoável perguntar se valeria a pena apoiar politicamente essas pessoas. Se elas fossem tão ingênuas, como poderiam, em algum momento, ter esperança de emancipar-se? (EAGLETON, 1997, p.24). O autor sustenta que nosso conhecimento prático é de forma geral acurado, senão nosso mundo desabaria. Essa posição se aproxima bastante da teoria da ação comunicativa, desenvolvida por Habermas: Aqueles que enfatizam, de modo muito apropriado, que a linguagem é um terreno de conflito, esquecem às vezes que o conflito pressupõe um certo grau de acordo mútuo: não há ‘conflito’ político entre nós se você afirma que patriarcado é um sistema social censurável enquanto eu sustento que se trata de uma pequena cidade no interior do estado de Nova York. (EAGLETON, 1997, p.26). Numa comunidade, o confronto não é sinônimo de rompimento, mas é o agir comunicativo que apresenta Habermas. Em um trecho de uma entrevista realizada por Haller, Habermas (1993) explicita sua definição: Em primeiro lugar, eu não afirmo que as pessoas gostariam de agir comunicativamente, mas que elas ‘são obrigadas’ a agir assim. Quando os pais querem educar os seus filhos, quando as gerações que vivem hoje querem se apropriar do saber transmitido pelas gerações passadas, quando indivíduos e os grupos querem cooperar entre si, isto é, viver pacificamente com o mínimo de emprego de força, são obrigados a agir comunicativamente. (HALLER, 1993, p.106). Eagleton e Habermas parecem enunciar que existe um diálogo compreensível e inescapável entre as pessoas e que ele é a base da suas relações. Eagleton ainda afirma que: “Uma certa solidariedade prática está embutida nas estruturas de qualquer linguagem compartilhada, mesmo que grande parte dessa linguagem possa ser permeada pelas divisões de classe, gênero e raça” (1997, p.26). O sentido de falsa consciência não é descartado pelo autor, pois ele avalia que não está ausente o significado de ilusão expressado em algumas situações vestidas como necessidades e desejos reais: Como lembra Jon Elster, as ideologias dominantes podem moldar, mas devem também comprometer-se, de maneira significativa, com as necessidades e desejos que as pessoas já têm, captar esperanças e carências genuínas, reinflecti-las em seu idioma próprio e específico e retorná-las a seus sujeitos de modo a converterem-se em ideologias plausíveis e atraentes. Devem ser ‘reais’ [...] Em resumo, para terem êxito, as ideologias devem ser mais do que ilusões impostas e, a despeito de todas 28 as suas inconsistências, devem comunicar a seus sujeitos uma versão da realidade social que seja reconhecível o bastante para não ser peremptoriamente rejeitada. Podem ser, por exemplo, muito verdadeiras no que declaram mas falsas naquilo que negam – como o são, segundo John Stuart Mill, quase todas as teorias sociais. (EAGLETON, 1997, p.27). A ideologia contém parte da verdade e parte da ilusão, e a comunicação eficiente entre esses polos permite-lhe maior funcionalidade do que de outras. Algo nela deve ser parte da realidade e, para ser crível e comunicável, não pode ser apenas ilusão. Eagleton usa a seguinte frase como exemplo: “Sou britânico e me orgulho disso”. Não é mentira que a pessoa seja britânica nem é falso seu orgulho, mas fica implícita a ideia de que é uma virtude ser britânico, o que é falso: “O que está aqui é mais um enganar a si mesmo, uma auto- ilusão, do que uma fraude” (1997, p.28). Em sua perspectiva, a ideologia seria um discurso verdadeiro em seu conteúdo empírico, mas falso em suas suposições subjacentes. Entre um fato e um juízo sobre ele, há suposições geradas no seio de uma sociedade em que prevalecem conflitos. Do mesmo modo que o fato depende de quem o observou e em que contexto, o juízo que dele é feito nem sempre corresponde à verdade, mas como elas são representadas: Para Althusser, a ideologia de fato representa – mas aquilo que representa é o modo como eu ‘vivencio’ minhas relações com o conjunto da sociedade, o que não pode ser considerado uma questão de verdade ou falsidade. A ideologia, para Althusser, é uma organização específica de práticas significantes que vão constituir os seres humanos como sujeitos sociais e que produzem relações vivenciadas mediante as quais sujeitos vinculam-se às relações de produção dominantes da sociedade. (EAGLETON, 1997, p.29). Eagleton interpreta que esse sentido de vivência enunciada por Althusser, contempla um elemento afetivo que é contrário à teoria racionalista de ideologia. Inclui em sua abordagem algo de subjetivo, mas isso não pode ser confundido com distorções da realidade ou proposições empiricamente falsas: “A ideologia”, afirma Althusser, “expressa uma vontade, uma esperança ou uma nostalgia, mais do que descreve a realidade, trata-se fundamentalmente de temer e delatar, de reverenciar e ultrajar, tudo isso às vezes codificado em um discurso que aparenta descrever as coisas como elas realmente são” (1997, p.30). Raymond Geuss (1988) faz uma leitura da obra de Habermas que especifica alguns aspectos da ideologia definidos em três sentidos: genético, epistemológico e/ou funcional. Geuss afirma que a ideologia, no sentido descritivo, é não valorativa e não judicativa, visto que não se louva nem se amaldiçoa um grupo ao se afirmar que seus membros ‘têm uma ideologia’. 29 Os conceitos que empregam as atitudes e disposições psicológicas aparentes, seus motivos, desejos, valores, predileções, obras de arte, rituais religiosos e gestos, entre outros, Geuss os denominará ideologia no sentido “puramente” descritivo. Compreende, essa análise, o fato que num mesmo grupo haverá “variedade, diversidade e conflito”. Isso fica explícito em suas palavras: “Quanto mais detalhada e completa desejarmos nossa abordagem de um grupo, tanto mais terá ele que conter descrições de tais diferenças de convicção, motivação, preferência, atitude, etc.” (GEUSS, 1988, p.13). Os elementos discursivos (conceituais ou proposicionais) e os não discursivos (coisas, gestos característicos, rituais, atitudes, formas de atividades, etc.) deverão ambos serem descritos nesta abordagem de ideologia, considerando que nesses dois sentidos há componentes explícitos e implícitos tanto nas atitudes como nos discursos. Essa ponderação é entendida por alguns autores como elementos sofisticados e não sofisticados de uma ideologia. Porém, detalha Geuss: “Uma convicção pode ser bem explícita, mas não sofisticada, o que pode ocorrer com um gosto ou uma preferência” (1988, p.15). Geuss afirma que o pesquisador pode adotar um conceito de ideologia intimamente ligado com ‘ideia’ e usará o termo ideologia para se referir apenas às convicções dos agentes na sociedade, isto é, aos ‘elementos discursivos’ da ideologia (no sentido puramente descritivo) (GEUSS, 1988, p.15). Eagleton critica a neutralidade do sentido descritivo de ideologia exposto por Geuss, indicando, porém, que Habermas se diferencia dos primeiros membros da Escola de Frankfurt por considerar o termo ideologia como convicções que possuem os agentes na sociedade, criando subconjuntos de convicções que exigem um esforço para distingui-las. (GEUSS, 1988, p.15). A definição de ideologia no sentido negativo ou pejorativo que Geuss extrai de Habermas significa que os agentes estão iludidos em suas convicções e atitudes, o que corresponde à ‘ilusão (ideológica) ou consciência (ideologicamente) falsa’. As propriedades dessa ideologia podem ser descritas como epistêmicas, funcionais e genéticas. As epistêmicas são circunscritas às formas de consciência, apoiadas ou não por evidências empíricas, as quais Geuss subdivide em quatro maneiras de empregar. A primeira está pautada na forma de consciência, ideologia que depende de confundir o status epistêmico de algumas de suas convicções aparentemente constituintes, a qual parte do pressuposto positivista de que somente uma convicção que seja verificável é cognitivamente significativa. A inverificabilidade empírica retira seu conteúdo cognitivo. Exemplo dado por Geuss diz respeito à consciência teológica, que é baseada num engano, visto que não é possível verificar empiricamente a existência de deuses. Então, para os positivistas, todas as consciências teológicas 30 são ideologias (sentido pejorativo), visto serem convicções não verificáveis, ilusões, não significativas nem objetificantes. A segunda propriedade de falsa consciência epistêmica decorre de um erro de objetificação que move os sujeitos a realizar tarefas que lhes são estranhas como um processo natural fora de seu controle. Então, um fenômeno de cunho social (prenhe de tensões) passa a ser falsamente conduzido a que se acredite ser natural (inelutável, fatal, acima das ações e tensões). A terceira forma de consciência ideologicamente falsa se revela quando propicia um grupo particular em detrimento de um interesse geral do grupo. A convicção é falsa porque as ações dela resultantes beneficiarão um subgrupo, mas estará revestida por um manto de bem comum. A quarta forma de consciência é ideologicamente falsa porque a exceção vira regra, mas é um engano que confunde uma convicção que se valida por si mesma por uma que não é desse modo validada em decorrência de um engano de objetificação (Geuss 1988, p.27). O autor exemplifica que, se um subgrupo de um determinado grupo tem comportamentos ‘preguiçosos’, isso pode não ser verificado para todo o grupo. A generalização para todo o grupo irá gerar uma falsa consciência sobre ele. Geuss apresenta outras respostas para compreender o que faz uma forma de consciência ser considerada uma ideologia por suas propriedades funcionais de legitimar ou estabilizar certos tipos de instituição ou práticas sociais em favor de uma hegemonia (Herrschaft) afirmando que: “É em virtude de apoiar ou justificar instituições sociais repreensíveis, práticas sociais injustas, relações de exploração, hegemonia ou dominação, que uma forma de consciência é uma ideologia” (GEUSS, 1988, p.28). Para ele, existe uma diferença entre a função de apoiar, incentivar ou estabilizar a hegemonia e outra função, a de justificar ou legitimar a hegemonia: Qualquer conjunto de convicções que legitimem ou justifiquem uma prática social visará apoiá-la, mas o oposto não ocorre; uma convicção de que uma certa classe dominante seja forte e cruel, de maneira que qualquer resistência à ordem social dominante seja fútil, pode muito bem ser uma convicção cuja aceitação por grandes segmentos da população terá o efeito de estabilizar as relações existentes de dominação, mas é pouco provável que tal convicção possa ser utilizada para ‘justificar’ essas relações. (GEUSS, 1988, p.28). Nesse sentido, o autor faz um aparte afirmando que essas duas definições não podem ser confundidas com o “slogan” que define ideologia como ‘ilusão socialmente necessária’. Como o termo Herrschaft é um conceito importante para entender ideologia, Geuss percorre o seu sentido em três perspectivas: a) como poder de reprimir e frustrar certas preferências humanas; b) como um exercício de poder dentro de uma ordem política, ligada a um tipo de reivindicação de legitimidade; c) é normalmente distribuída de modo desigual para a dominação de um grupo sobre outro; d) é uma imposição de repressão excedente que frustra as preferências de parte dos membros. A 31 repressão excedente gera hegemonia excedente, neutralizando e impedindo ações que destruam ou desequilibrem a “legitimação” conquistada. Outra forma de consciência que a faz ser uma ideologia, por sua função, é aquela que estorva ou obstrui o desenvolvimento das forças de produção material: [...] se uma forma de consciência estorva o desenvolvimento das forças de produção, ela imporá obviamente sobre os agentes na sociedade mais repressão do que eles precisam sofrer –[...] nenhum agente na sociedade seria motivado a impor mais repressão que necessária, a menos que a repressão excedente beneficie diferencialmente mais a certo grupo que outros na sociedade. Neste caso, os membros do grupo privilegiado teriam tal motivação. (GEUSS, 1988, p.33). E uma última forma de ideologia por função pode ser considerada como qualquer consciência que mascare as contradições sociais. Não é necessária a existência de convicções falsas. Se por alguma estratégia a consciência do agente é desviada, isso é suficiente para que ele não veja o foco da questão, mas não que lhe tenha ocorrido a intrusão de uma ideia falsa. Geuss conclui: “A forma de consciência se qualifica como ‘falsa’ ou como ilusão porque, para que eu a conserve, dependo de certa forma de ignorar ou ter falsas convicções sobre suas propriedades funcionais” (GEUSS, 1988, p.34). Se for possível alguém identificar que as funções são todas contrárias aos seus interesses e rompê-las, ali existia uma ideologia que os embotava. A caridade ou solidariedade religiosa é um exemplo onde se percebe isso. Muitas vezes o ato é movido por uma crença em conquistar um lugar ao lado do bom Deus. A argumentação de Geuss é que se o caridoso compreendesse que os motivos de sua solidariedade assentam-se em bases falsas, o agente mudaria suas atitudes: Isso significa presumivelmente que ‘se’ os agentes tivessem que reconhecer e admitir que ‘esses’ eram seus motivos, eles, por conseguinte, não apenas não seriam mais motivados tão fortemente como eram para continuar aceitando a ideologia, mas eles veriam que não há ‘nenhuma’ razão para que eles a aceitem. (GEUSS, 1988, p.37). As frustrações sempre estão presentes, mas na ideologia positiva, que Habermas desenvolve e é trabalhada por Geuss, os agentes as negociam. Geuss diferencia os termos auto-opressão e autorrepressão. A auto-opressão existe quando o agente colabora, justifica, apoia e estabiliza o poder do opressor sem saber que o faz e sem perceber que está frustrado, não importa se no nível da necessidade, do interesse ou do desejo. A autorrepressão está baseada na ideia de que os agentes são capazes de compreender as necessidades, interesses e desejos próprios e dos outros e negociar suas frustrações. Uma frase resume esse sentido de ideologia positiva: “A sociedade pode ser repressiva, como o são muitas 32 comunidades igualitárias, mas contanto que o poder de reprimir seja igualmente distribuído [...]” (GEUSS, 1988, p.30). Se me frustro e me imponho qualquer que seja a opressão, não identifico de onde vem essa ordem e apenas sinto essa contrariedade, isso é auto-opressão. Diferenciar auto-opressão de autorrepressão é fundamental para não incorrer na ingenuidade de que numa sociedade justa os direitos são irrestritos e sem limitações. Numa sociedade anti-hierárquica parte-se do princípio que essas limitações são e devem ser reconhecidas por todos. Na sociedade atual, é fato que desconhecemos grande parte das nossas frustrações e por isso alguém é capaz de morrer de um ataque cardíaco por estafa ou ódio sem conhecer o motivo de sua insatisfação e a quem endereçá-la. Será que essa pessoa estaria delirando? Geuss faz uma distinção necessária: Devemos distinguir, portanto (pelo menos): a) casos de delírio: Apesar da evidência assustadora de que a convicção é falsa, o agente continua a mantê-la porque ela satisfaz algum desejo; b) casos de ilusão em que a convicção é aquela para a qual o agente ‘poderia’ ter evidência adequada, mas que aceita pelo agente ‘porque’ ela satisfaz algum desejo; c) casos de ilusão envolvendo convicções para as quais não poderia haver evidências adequadas (e que devem por conseguinte ser aceitas por satisfazerem algum desejo). (GEUSS, 1988, p.67). Aqui coloca-se uma dúvida sobre a “falsa consciência” como total e eficiente para todas as circunstâncias e agentes, do mesmo modo e com as mesmas reações mecânicas, afinal, se se toma conhecimento de que a convicção é falsa, mas ela realiza um desejo, então parte dela carrega a verdade e não porque a reproduzo por um delírio. Isso exposto, Geuss terá suas explicações sobre o modelo “whishful thinking”: “a) que certos agentes cometem um tipo característico de engano; b) que se pode explicar porque eles cometem esse engano por referências últimas a interesses” (1988, p.67). O “wishful thinking” é aqui descrito por Geuss como sinônimo de delírio: O que há de errado com o ‘wishful thinking’ não é aceitarmos convicções porque elas satisfazem desejos que temos, mas porque as aceitamos por satisfazerem os desejos errados, isto é, impróprios. Convicções empíricas podem ser aceitas por satisfazerem nosso anseio de aceitar convicções empíricas bem confirmadas; se nós as aceitamos porque elas satisfazem algum ‘outro’ desejo, estamos nos comprometendo com ‘wishful thinking’. Isso dá a entender que poderíamos ser capazes de distinguir entre motivações apropriadas e impróprias em diferentes classes de convicções. (GEUSS, 1988, p.70). Não é uma falsa consciência, ilusão ou delírio que alicerçam essa reação contraditória. Algo elaborado ideologicamente pelos subordinados, como crenças, convicções normativas ou performáticas, ou verdades das quais se suprimem alguns aspectos, está agindo no seu construto e 33 são eficientes porque não são mentiras ou verdades, mas porque são sistematicamente elaboradas, combinadas para o interesse das ideologias dominantes. A liberdade só pode ser almejada se de alguma forma forem identificados os interesses dominantes, e isso só é possível com uma tentativa esforçada de buscar autonomia intelectual. Aceita-se, então, o princípio de que haja ideologia no sentido positivo, que é possível com o recurso do diálogo radical e permanente entres as pessoas. A discussão seguinte trata da Teoria Crítica desenvolvida pelo heterogêneo grupo de teóricos marxistas não ortodoxos que influencia parte da produção de esquerda no âmbito da educação brasileira e da geografia. A decisão por detalhar e interpretar essa construção teórica é uma estratégia para entender a pedagogia radical e em que ela se aproxima da educação anarquista. - Caminhamos para um novo século das luzes, desta vez, apagadas. 3 - A Teoria Crítica: razão instrumental e razão comunicativa A Teoria Crítica é a base da construção teórica da pedagogia radical. Zuin e Pucci (1999) não aceitam a terminologia “pedagogia radical” e preferem que se fale em “dialética da pedagogia”. O propósito deste tópico é apresentar a base teórica que sustenta a pedagogia radical e como se aproxima da educação em geografia. Os pedagogos radicais mais conhecidos são Peter McLaren, Michel Apple, Henry Giroux e Joe Kincheloe. Todos eles apoiam seus pensamentos na Teoria Crítica e na obra de Paulo Freire (2002) e são bastante utilizados por geógrafos de língua inglesa que trabalham com educação. Vários artigos da revista Antipode são dedicados à Teoria Crítica e à Pedagogia Radical e, em proporção, os geógrafos estadunidenses levam mais a sério esse construto do que seus pares brasileiros, como é possível observar na literatura sobre educação em geografia. 34 Será realizada aqui uma exposição sobre o que a Teoria Crítica pode oferecer para este estudo, sendo a opção centrada em Habermas. Essa escolha se dá pela perspectiva otimista desse teórico, mas sem desconhecer as críticas sobre seu afastamento da Escola de Frankfurt nos seus últimos escritos. Geuss (1988) define a Teoria Crítica da seguinte maneira: O primeiro elemento que se indica neste trabalho é a definição de Teoria Crítica como “guias para a ação humana”, assim descritas: a) elas visam produzir esclarecimento entre agentes e os defendem, isto é, capacitando esses agentes a estipular quais são seus verdadeiros interesses; b) elas são inerentemente emancipatórias, isto é, elas libertam os agentes de um tipo de coerção que é, pelo menos parcialmente auto-imposta, a auto-frustração da ação humana consciente” (GEUSS,1988, p.8). Outros dois pontos da Teoria Crítica é que ela tem conteúdo cognitivo, por isso são formas de conhecimento, são reflexivas e diferem epistemologicamente das ciências naturais, objetificantes. Habermas busca uma possibilidade de o agente compreender, autonomamente, seu grau de auto-opressão, identificá-lo e ser regido por seu espírito emancipado. Geuss resume: Um dos sentidos em que a Teoria Crítica é tida por seus proponentes como ‘dialética’ (e portanto superior a suas rivais) é apenas por ela ligar explicitamente questões sobre a verdade ou falsidade ‘inerentes’ de uma forma de consciência em questões sobre sua história, origem e função na sociedade. (GEUSS, 1988, p.38). A dialética como referência epistemológica e metodológica é o esteio do pensamento de todos os membros da Escola de Frankfurt. Essa corrente aliou-se ao que se denomina interdisciplinaridade e subjetividade. A inclusão da subjetividade foi para os teóricos da primeira geração da Escola de Frankfurt uma alternativa para explicar por que razão os trabalhadores alemães, tendo todas as condições para realizar uma revolução socialista, como acreditavam os marxistas, optaram pelo Nacional Socialismo. A resposta não podia estar apenas na base material e nas relações de produção que alienam o trabalho, pois essas não seriam capazes de conduzir o cidadão alemão para o nazismo. Adorno e Horkheimer são pessimistas e oferecem poucos caminhos para a superação da razão instrumental que criticavam. Essa é uma razão que perde seu sentido iluminador da busca do Bem (absoluto) para se tornar uma razão que instrumentaliza a dominação. Freitag (1986) considera que essa visão pessimista de que a razão serve sempre para dominar conduz a um “beco sem saída” e resume a posição de Habermas para esse dilema: A saída, no parecer de Habermas, deve ser buscada não na salvação da razão subjetiva e sim numa razão comunicativa, intersubjetiva, aplicada a situações dialógicas nas quais os interlocutores buscam através da argumentação fundada o consenso possível. A razão e a crítica emergiriam assim em situações dialógicas 35 livres de repressão, deixando de ser subjektzentriert (centrada em um sujeito do conhecimento). (FREITAG, 1986, p.85). A Teorias Crítica busca a emancipação e o esclarecimento ao “tornar os agentes cientes de coerções ocultas”, diferenciando-se da estrutura lógica ou cognitiva: “As teorias científicas são ‘objetificantes’”(GEUSS, 1988, p.91). A objetificação é incapaz de oferecer elementos para a reflexão e, muitas vezes, produz, através da quantificação, outro tipo de mistificação, considerando que tudo se explica pelo que é mensurável: As teorias científicas requerem confirmação empírica por meio da observação e do experimento; as teorias críticas são cognitivamente aceitáveis apenas se elas sobreviverem a um processo complicado de avaliação, cuja parte central é uma demonstração de que elas são “reflexivamente” aceitáveis (GEUSS, 1988, p.92). Esse processo é parte do método dialético e comunicacional que visa explicar um fenômeno social. O sentido reflexivo oferece espaço para a dialética de tal forma que: “1. A auto-reflexão ‘dissolve’ a) a ‘objetividade autogerada’ e b) a ‘ilusão objetiva’. 2. A auto-reflexão torna o sujeito cônscio de sua própria gênese ou origem. 3. A auto-reflexão opera ao trazer à consciência os determinantes inconscientes da ação ou da consciência” (GEUSS, 1988, p.101). Todo esse esquema só pode ser compreendido se estiver associado ao sentido emancipatório da proposta da Escola de Frankfurt. Segundo Bannell (2006, p.18), Habermas faz uma defesa da racionalidade e do projeto de modernidade porque ele pretende compreender a possibilidade de emancipação. A razão (comunicacional), embora não seja o único, é o meio que permite refletir sobre todas as coisas, bem como localizar as fontes de desigualdade e de privilégios. A razão comunicacional seria, por assim dizer, um elemento que supera a razão instrumental. A contribuição diferenciada de Habermas é a teoria da ação comunicativa, conhecida vulgarmente como “jogo de linguagens”. Bannell explicita o conteúdo desse argumento: [...] segundo Habermas, se conhecemos a chamada ‘virada lingüística’ na filosofia contemporânea, ou seja, o ‘insight’ fundamental de que somos seres lingüísticos e que sempre nos encontramos dentro da linguagem e da cultura, sem nenhum ponto de referência fora delas. Como o próprio Habermas afirmou: ‘não podemos pular fora do círculo mágico de nossa linguagem’ (BANNELL, 2006, p.20). Bannell destaca com isso que uma mudança paradigmática no pensamento contemporâneo inclui a intersubjetividade em seu maior potencial de emancipação. A teoria da ação comunicativa pressupõe que os agentes possuem um jogo de linguagens comum e por isso são capazes de realizar a dialogicidade que exige a comunicação e a alteridade: Emancipação tem a ver com libertação em relação a parcialidades que, pelo fato de não resultarem da causalidade da natureza ou das limitações do próprio 36 entendimento, derivam, de certa forma de nossa responsabilidade mesmo que tenhamos ‘caído’ nelas por ilusões. A emancipação é um tipo especial de auto- experiência porque nela os processos de auto-entendimento se entrecruzam como um ganho de autonomia. Nela se ligam idéias ‘éticas’ e ‘morais’. [...] Nós descobrimos quem nós somos porque aprendemos, ao mesmo tempo, a nos ver numa relação com os outros. (HABERMAS, 1993, p.99). Se os agentes não possuírem a mesma competência para realizar o jogo de linguagem no mesmo nível, não se pode dizer que houve um sucesso no diálogo. Como foi citado anteriormente: não há escolha, pois as pessoas se realizam no diálogo, ainda que esse seja ocasionalmente desigual. Uma distinção é importante: O agir comunicativo realiza-se normalmente numa linguagem comum e num mundo explorado pela linguagem, pré-interpretado, em formas de vida compartilhadas culturalmente, em contextos normativos, em tradições, rotinas, etc.; [...]. Tal agir comunicativo não significa a mesma coisa que a argumentação. As argumentações são formas de comunicação inverossímeis, ou seja, formas de comunicação repletas de pressupostos, verdadeiras ilhas em meio ao mar da práxis. (HABERMAS, 1993, p.105). As críticas ao discurso técnico e o uso da razão instrumental é que assumem um lugar como ideologia, uma ideologia técnica e que se pauta em argumentações tecnocientíficas. O discurso técnico elimina ou extirpa a política nos acordos entre classes. Esse processo é descrito por Habermas da seguinte forma: O rendimento peculiar desta ideologia consiste em que dissocia a autocompreensão da sociedade do sistema de referências na ação comunicativa e dos conceitos da interação simbolicamente mediada e os substituem por um modelo científico. (HABERMAS, 1986, p.89). (tradução do autor). Eldon Mühl analisa o pensamento de Habermas e o relaciona com a educação, criticando o anarquismo e as correntes neoconservadoras. O autor analisa a crise da racionalidade moderna e a crise educacional e discute como as conquistas da sociedade informática e tecnológica ainda não dão conta de criar uma relação igualitária e justa para um projeto de emancipação humana. A escola, como uma das instituições que deveria cumprir esse papel, é ineficiente nessa tarefa. A ideologia, segundo Mühl (2003, p.26), interpretando Habermas, serve como um determinante de dominação que produz uma sociedade cada vez mais impotente e dependente. Eis a crise da modernidade: “a ciência que pressupunha libertação, cumpre o papel determinante, até agora, na construção de ardil estrutural de dominação. Sua promessa, no campo ideal, continua a mesma, no campo das práticas faz perdurar o “conformismo” e “consumismo” (MÜHL, 2003, p.27). 37 Fonte: http://www.geografiaparatodos.com.br A razão, que estava comprometida com a ética e com a posteridade, rende-se à desordem provocada pelo senso de prosperidade das sociedades liberais. Mühl afirma que esse quadro cria uma situação de desencanto e estagnação política dos movimentos sociais e o define: A crise atual é global, afetando a vida humana medularmente e em todas as dimensões [...] a crise da modernidade assume uma abrangência muito mais ampla e profunda, na medida em que coloca sob suspeita não somente toda a cultura surgida sob a égide da razão iluminista, mas a potencialidade da razão em fundamentar e orientar o projeto histórico. (MÜHL, 2003, p 30). A razão é derrotada em seu princípio mais utópico e substituída por visões “dogmáticas e totalitárias e de justificação de atitudes irracionais e relativista”. Mühl, entretanto, afirma: O problema, portanto, que atualmente preocupa aqueles que ainda acreditam no poder emancipatório e crítico da razão não diz respeito ao fato de ela estar sendo colocada sob a mira da crítica, mas o fato de alguns intelectuais tentarem, por meio de visões reducionistas, e