UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS MARCIA MARIA CUNHA INFORMALIDADE URBANA E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL EM BAURU: o caso do Jardim Niceia FRANCA 2020 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS MÁRCIA MARIA CUNHA INFORMALIDADE URBANA E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL EM BAURU: o caso do Jardim Niceia Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Serviço Social. Área de Concentração: Serviço Social: Estado, sociedade e políticas sociais Orientador: Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa FRANCA 2020 MARCIA MARIA CUNHA INFORMALIDADE URBANA E SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL EM BAURU: o caso do Jardim Niceia Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré- requisito para obtenção do Título de Mestre em Serviço Social. Área de Concentração: Serviço Social: Estado, sociedade e políticas sociais BANCA EXAMINADORA Presidente: ________________________________________________________ Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho” - UNESP 1º Examinador: __________________________________________________ Profa. Dra. Adriana Giaqueto Jacinto Universidade Estadual Paulista “Júlio De Mesquita Filho” - UNESP 2º Examinador: __________________________________________________ Profa. Dra. Daniele Ornaghi Sant'anna Universidade Federal de Itajubá – UNIFEI Franca, 26 de maio de 2020. Dedico este trabalho a todos os moradores das favelas, cortiços e ocupações, em especial aos moradores do Jardim Niceia, que resistem às dificuldades impostas pelas contradições do mundo urbanizado e travam lutas cotidianas pela sobrevivência. AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus por ter uma vida abençoada. Agradeço aos meus pais, Adão e Maria Helena, por tudo o que sou e pelo apoio incondicional. Agradeço aos meus irmãos, sobrinhos, cunhados e cunhada pelo carinho, pelo cuidado e por fazerem parte da minha vida. Agradeço a meu noivo Fernando por todo o carinho, amor e parceria, por ser compreensivo, atencioso, e, acima de tudo, por me incentivar a buscar os meus sonhos e a ser uma pessoa cada vez mais independente. Agradeço aos meus sogros Sônia e Francisco, que me acolheram como parte da família e também me apoiaram nessa caminhada. Agradeço aos meus colegas da equipe do Programa Minha Casa Minha Vida da Prefeitura, com quem pude construir uma trajetória de trabalho pela defesa da Habitação de Interesse Social em Bauru. Agradeço à minha amiga Renata, que me incentivou a prestar o mestrado, me ajudou com tudo o que pôde, acreditou em mim mais do que eu mesma, e que me acompanha desde a graduação nesta caminhada em que o Serviço Social nos colocou. Agradeço ao meu orientador, Prof. Agnaldo, pela atenção dispensada ao meu trabalho, pelo interesse em minha pesquisa, pelas conversas e pelas contribuições acerca do meu estudo. Agradeço ao prof. Clodoaldo e ao Grupo de Estudo em Direitos Humanos (GEDH) da Unesp de Bauru por todas as discussões e conhecimentos compartilhados. Agradeço aos professores Mauro Ferreira e Adriana Giaqueto Jacinto, que fizeram parte da minha banca de qualificação, pelos apontamentos pertinentes e pelas contribuições para a minha pesquisa. Agradeço ao Projeto de extensão da Unesp de Bauru Jornal Voz do Niceia, na pessoa da Camila, que me ajudou com informações e documentos importantes sobre a história da ocupação do Jardim Niceia. Agradeço ao Fernando e ao Sr. Adauto, representantes da ocupação do Jardim Niceia, que me receberam em suas casas, andaram comigo pelas ruas do bairro e compartilharam um pouco de suas histórias de luta por melhores condições de vida, luta esta que permanece em curso. Agradeço às assistentes sociais Alessandra, coordenadora do CRAS Jardim Europa, e Ana Marta, responsável pela realização das oficinas socioterritoriais no bairro do Jardim Niceia, pelo trabalho inovador que desenvolveram com os moradores. Espero que ele permaneça, pois representa a presença efetiva do Estado na vida das pessoas, e os moradores precisam do poder público no bairro. Que essa experiência seja compartilhada e possa ser multiplicada em outras regiões da cidade de Bauru. Agradeço às Secretarias Municipais do Bem-Estar Social, da Educação, do Planejamento, da Saúde e à Direção Regional de Educação de Bauru por contribuírem com os dados para a minha pesquisa, especialmente a Sueli, Gabriela, Maria Fernanda, Ana Sales, Lilian, Márcia, Vanessa, Natasha, Mariana e Beatriz. Agradeço às pessoas que conheci em Franca e que se tornaram minhas amigas: Tati, Jô, Carol e Daiana. Agradeço às amigas com quem pude contar e compartilhar minhas alegrias e dificuldades nesse período do mestrado: Ana Paula, Cristiane, Máira, Nicoli, Rosa Márcia, Nathália e Carol. Agradeço ao companheirismo de todos os meus colegas ingressantes da turma do PPGSS da Unesp de Franca de 2018, em especial a Amanda, por todas as conversas sobre os nossos temas de pesquisa, por ser atenciosa e por me ouvir e dividir comigo os dilemas da pós-graduação. Agradeço à direção do PPGSS da Unesp de Franca e a todos os professores e funcionários pelo apoio durante o mestrado. Por fim, agradeço a todos aqueles de alguma forma contribuíram para a discussão desse tema, pois o resultado deste trabalho representa a soma dos esforços coletivos que me deram condições de realizá-lo. Todos temos um sonho e algo para buscar (para buscar) Mas sem luta não se conquista o sonho, perde de vista. Então nos deixe tentar. (Música “Sonho”, composta durante as oficinas de Hip Hop no Residencial Santana em Bauru – SP) CUNHA, Márcia Maria. Informalidade urbana e segregação socioespacial em Bauru: o caso do Jardim Niceia. 2020. 187 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2020. RESUMO A presente pesquisa tem como objetivo compreender como o processo de informalidade urbana e segregação socioespacial impacta nas condições de vida dos moradores do assentamento informal do Bairro Jardim Niceia, no município de Bauru. Para cumprir esse propósito, as técnicas de pesquisa utilizadas foram observação participante como voluntária do projeto Voz do Niceia e membro das oficinas socioterritoriais do CRAS Jardim Europa; pesquisa documental referente aos 205 cadastros com dados socioeconômicos dos moradores do Jardim Niceia, realizados pela SEPLAN; informações oficiais com o poder público mediante solicitações de informações sobre o atendimento das famílias nas diferentes políticas públicas; e entrevistas semiestruturadas com famílias beneficiárias do BPC. A pesquisa está amparada no método de análise da ciência reflexiva, operacionalizada pelo estudo de caso ampliado. A partir da observação participante é possível considerar que para que os serviços públicos alcancem os cidadãos, é preciso buscar alternativas, pois as ofertadas hoje não atendem às necessidades das famílias. O perfil das famílias aponta para baixa escolaridade; maioria com mulheres como chefe de família; trabalhos menos remunerados e desemprego; e casal com filhos. Quanto ao acesso aos serviços públicos, o de saúde foi o único tangível a todas as entrevistadas, ainda que de difícil acesso. Quanto à situação de informalidade urbana, o impacto para a maioria das entrevistadas é a insegurança da posse, devido ao processo de regularização ainda não ter sido finalizado. A partir disso, geram-se outros desdobramentos que incidem na melhoria no imóvel. Quanto ao processo de segregação socioespacial em que está inserida a ocupação, a maioria das entrevistadas não vê problemas em morar rodeada pelos condomínios de alto padrão; o relacionamento com os moradores desses condomínios se resume às relações de trabalho. O principal problema do bairro apontado foi o acesso aos serviços públicos de saúde; as principais estratégias apontadas para enfrentar as dificuldades referentes às formas de deslocamento aos serviços públicos foram a caminhada, a carona e o carro privado. Palavras-chave: Informalidade urbana; Segregação socioespacial; Jardim Niceia CUNHA, Márcia Maria. Urban informality and socio-spatial segregation in Bauru: the Jardim Niceia case. 2020. 187 f. Dissertation (Master in Social Work) – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2020. ABSTRACT This research has the goal of understanding how the process of urban informality and socio-spatial segregation affects the life condition of the residents of the informal settlement Bairro Jardim Niceia in the city of Bauru, Brazil. To fulfill that purpose, the research techniques used were: participant observation as a volunteer of the project Voz do Niceia and member of the socio-territorial workshops of the CRAS Jardim Europa; documentary research regarding the 205 registers containing socioeconomic data from the Jardim Niceia residents, performed by SEPLAN; official information from public power upon request for information on services given to the families in different public policies; and semi-structured interviews with the families that benefit from the BPC. The research is based on the reflective science analysis method, operationalized by the expanded case study. From the participant observation, it is possible to consider that in order for the public services to reach the citizens, it is necessary to find alternatives, since the ones offered today do not meet the families' needs. The family profile indicates low education levels; most have women as householders; low-paying jobs and unemployment; and couples with children. As for access to public services, healthcare was the only one accessible to all the interviewed, even if hard to access. As for the urban informality situation, the impact for the majority of the interviewed is the insecurity of ownership, since the regularization process isn't yet finished. From that, other issues unfold that affect the improvement of the property. As for the process of socio-spacial segregation where the occupation is situated, the majority of the interviewed don't have issues with living among high-end gated communities; the relationship with the residents of these gated communities comes down to work relationships. The neighborhood's main indicated issue was the access to the public healthcare services; the main strategies showed to face the difficulties related to traveling to public services were walking, ride and car private. Key-words: Urban informality; social-spatial segregation; Jardim Niceia LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Núcleos informais em áreas urbanas e rurais .................................91 Figura 2 ‒ Rua 1 do Jardim Niceia, de terra, ao lado do muro do condomínio Sauípe..............................................................................................................101 Figura 3 – Mapa dos setores de planejamento de Bauru ...............................103 Figura 4 ‒ Ocupação do Jardim Niceia e entorno...........................................103 Figura 5 ‒ Passarela........................................................................................112 Figura 6 ‒ Escada da passarela......................................................................112 Figura 7 – Etapas do percurso metodológico .................................................116 LISTA DE SIGLAS BNH Banco Nacional de Habitação BPC Benefício de Prestação Continuada CF/88 Constituição Federal de 1988 CEU Centro de Esportes Unificados COHAB Companhia de Habitação FGTS Fundo de Garantia do Tempo de Serviço FNHIS Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social FNRU Fórum Nacional de Reforma Urbana IDH Índice de Desenvolvimento Humano IAPs Institutos de Aposentadoria e Pensão IBGE Instituto Brasileiro de geografia e Estatística LOAS Lei Orgânica da Assistência Social MDS Ministério de Desenvolvimento Social MEI Microempreendedor individual PAC Programa de Aceleração do Crescimento PBF Programa Bolsa Família PDP Plano Diretor Participativo PLHIS Plano Local de Habitação de Interesse Social PMCMV Programa Minha Casa Minha Vida PNDU Política Nacional de Desenvolvimento Urbano PNAD Pesquisa Nacional por Amostra em Domicílios PNADC Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua PROFILURB Programa de Lotes Urbanizados PTR Programa de Transferência de Renda SBPE Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo SCFV Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos SEADS Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social SFH Sistema Financeiro de Habitação SNHIS Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social SUAS Sistema Único da Assistência Social (SUAS) SUS Sistema Único de Saúde ZEIS Zonas Especiais de Interesse Social LISTA DE TABELAS Tabela 1 ‒ Números de Moradias em Favela nos anos de 1989, 1991, 1992, 1993, 1995, 1997, 1998 e 2004. ......................................................................72 Tabela 2 ‒ Assentamentos precários e parcelamentos irregulares mapeados pela SEPLAN....................................................................................................86 Tabela 3 ‒ Responsável familiar (RF) por sexo..............................................127 Tabela 4 ‒ Responsável Familiar (RF) por faixa etária...................................128 Tabela 5 – Escolaridade do Responsável Familiar (RF) ................................128 Tabela 6 ‒ Estado civil do Responsável Familiar (RF) ...................................129 Tabela 7 ‒ Ocupação e inserção no mercado de trabalho do Responsável Familiar (RF) ...................................................................................................130 Tabela 8 – Configurações Familiares............................................................132 Tabela 9 ‒ Programas e Benefícios de Transferência de Renda....................133 Tabela 10 ‒ Renda Familiar.............................................................................134 Tabela 11 ‒ Número de pessoas por domicílio...............................................135 Tabela 12 ‒ Situação habitacional...................................................................136 Tabela 13 – Procedência.................................................................................136 Tabela 14 ‒ Tempo de domicílio .....................................................................137 Tabela 15 ‒ Motivo da ocupação.....................................................................137 Tabela 16 ‒ Tipo de material da casa..............................................................138 Tabela 17 ‒ Número de cômodos por domicílio..............................................138 Tabela 18 ‒ Perfil das famílias beneficiárias do BPC .....................................140 Tabela 19 – Situação habitacional das famílias beneficiárias do BPC............140 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................. 11 CAPÍTULO 1 A POLÍTICA HABITACIONAL NO BRASIL E OS MOVIMENTOS DE LUTA POR MORADIA ........................................................................... 16 1.1 A produção capitalista do espaço urbano ............................................... 16 1.2 O processo de urbanização e as políticas habitacionais no Brasil ......... 20 1.3 A informalidade urbana e a segregação socioespacial no Brasil ............ 44 1.4 A questão habitacional e urbana no Brasil: a distância entre a lei e a realidade ....................................................................................................... 51 1.5 Os movimentos sociais urbanos no Brasil ........................................ 57 CAPÍTULO 2: A CIDADE DE BAURU: aspectos de seu desenvolvimento urbano e social nas últimas décadas ....................................................... 65 2.1 Características socioeconômicas de Bauru ............................................ 65 2.2 O desenvolvimento urbano na cidade de Bauru ..................................... 69 2.3 – Bauru e suas contradições: o processo de informalidade urbana e segregação socioespacial............................................................................. 71 2.4 A política habitacional em Bauru: as possibilidades de morar na cidade 74 2.5 Os espaços de participação popular e as mobilizações sociais em Bauru ...................................................................................................................... 93 CAPÍTULO 3: A OCUPAÇÃO DO JARDIM NICEIA ..................................... 100 3.1 O contexto da pesquisa ........................................................................ 100 3.1.1 A formação e a consolidação da ocupação do Jardim Niceia ........... 102 3.1.2 As intervenções na ocupação do Jardim Niceia: o caminho da favela para o bairro ............................................................................................... 106 3.1.3 O atendimento das políticas públicas de Educação, Saúde e Assistência Social ...................................................................................... 108 3.2 Aspectos metodológicos: os caminhos da pesquisa ............................. 114 3.2.1 O processo de entrada em campo .................................................... 121 3.3 Perfil socioeconômico das famílias residentes na ocupação do Jardim Niceia .......................................................................................................... 126 3.4 As famílias beneficiárias do BPC e seu cotidiano no Jardim Niceia ..... 139 3.5 – Perfil das mulheres entrevistadas ...................................................... 140 3.5.1 O acesso aos serviços públicos ........................................................ 142 3.5.2 Problemas ou dificuldades que afetam o cotidiano dos moradores, advindos do processo de informalidade urbana e segregação socioespacial ................................................................................................................... 143 3.5.3 Principais problemas e dificuldades e as estratégias de sobrevivência em face das desproteções sociais ............................................................. 150 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 161 REFERÊNCIAS .............................................................................................. 163 APÊNDICE ..................................................................................................... 181 Apêndice A ‒ Modelo de Quadro de pesquisa documental de coleta de dados das famílias do Jardim Niceia referente aos Cadastros da Secretaria Municipal de Planejamento (SEPLAN), Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) do Jardim Europa, Unidade Básica de Saúde (UBS) do Jardim Europa e Geisel. ......................................................................................... 181 Apêndice B ‒ Roteiro da entrevista semiestruturada com os participantes da pesquisa: .................................................................................................... 182 ANEXOS ........................................................................................................ 183 Anexo I – Parecer Consubstanciado do Comitê de Ética em Pesquisa .. 183 Anexo II – Declaração de autorização da pesquisa da SEBES .................. 186 Anexo III– Declaração de autorização da pesquisa da SEPLAN ................ 187 11 INTRODUÇÃO Desde 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o direito à moradia é reconhecido internacionalmente como um direito humano e um componente do direito a um padrão de vida adequado: Artigo XXV - § 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. (ONU, 1948). Todavia, segundo dados da ONU – Habitat (2017), existe no mundo 1,6 bilhão de pessoas vivendo em moradias inadequadas, das quais 1 bilhão vive em favelas e assentamentos informais, sendo este um desafio complexo e de importância estratégica para o desenvolvimento, a paz e a igualdade das nações. Em escala global, Mike Davis (2006) atribui o aumento o aumento das favelas no Terceiro Mundo aos ajustes fiscais impostos por organismos multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI): Os anos 1980 ‒ quando o FMI e o Banco Mundial usaram a alavancagem da dívida para reestruturar a economia da maior parte do Terceiro Mundo – foram a época em que as favelas tornaram-se um futuro implacável não só para os migrantes rurais pobres como também para milhões de habitantes urbanos tradicionais, desalojados ou jogados na miséria pela violência do “ajuste”. (DAVIS, 2006 p. 203). Na legislação brasileira, a moradia é um direito fundamental, já que o pilar do ordenamento jurídico brasileiro é o princípio da dignidade humana, conforme previsto no artigo 1 – Inciso III, da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), e não há vida digna para uma pessoa que não tem um lugar onde possa construir sua casa para abrigar-se com sua família. A moradia também é reconhecida pela CF/1988 como um direito social, em seu artigo 6º, sendo regulamentado pelas seguintes legislações e normativas: Lei 10.257, de 2001 – Estatuto da Cidade, e Lei 11.124, de 2005 – Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS). 12 No Brasil, os dados sobre a situação de pessoas vivendo em favelas também são aterradores. Segundo o Censo do IBGE (2010), 6% da população brasileira vivia em favelas, o que correspondia, portanto, a aproximadamente 11,4 milhões de pessoas. Os dados do Censo ainda apontam que existem 11.149 moradias fincadas em aterros sanitários, lixões e áreas contaminadas, 27.478 casas erigidas nas imediações de linhas de alta tensão, 4.198 domicílios perto de oleodutos e gasodutos e 618.955 construções penduradas em encostas. Segundo uma pesquisa do Data Popular (2015), com base no Censo (IBGE, 2010), se as favelas brasileiras formassem um Estado, ele seria o 5º maior do país em população. Os dados apontam ainda que a maioria dos moradores da favela é negra (67%), superando a média nacional brasileira, que é de 55%. Assim, é evidente que o acesso à habitação adequada está longe de ser uma realidade para milhões de famílias no Brasil. Neste estudo, o acesso à habitação adequada é entendido não apenas como direito a ter um teto e quatro paredes, mas como um direito humano universal e fundamental que traz consigo outros direitos, como a segurança da posse, a disponibilidade de serviços de infraestrutura e equipamentos públicos, a habitabilidade – que deve garantir proteção contra as variações climáticas e contra eventos extremos e riscos – e a localização adequada (MARGUTI; ARAGÃO, 2016). Os assentamentos informais precários são as formas de viver na cidade que mais representam as contradições do mundo urbanizado e a ausência, o descaso e a incompetência do poder público. As contradições do mundo urbanizado são geradas a partir de outros processos que ocorrem nas cidades capitalistas, como os processos de informalidade urbana e segregação socioespacial. Constantemente os noticiários apresentam situações habitacionais degradantes, nas quais vivem muitas pessoas no País que, por não terem outra possibilidade de moradia, ocupam locais como prédios abandonados nos centros das cidades, áreas de preservação ambiental, áreas públicas, cortiços, ou vivem em situação de rua, quando nenhuma outra opção se tornou possível. Diante desse cenário de desproteção social, decorrente das formas de planejamento da política urbana e da reprodução desigual do espaço, o 13 presente estudo busca abarcar a dinâmica da produção do espaço urbano e suas implicações na vida da população. A pesquisa, denominada “Informalidade urbana e segregação socioespacial em Bauru: o caso do Jardim Niceia”, tem como objeto de estudo os impactos do processo de informalidade urbana e segregação socioespacial nas condições de vida dos moradores da ocupação do Bairro Jardim Niceia. Trata-se de um estudo exploratório de abordagem qualitativa, tendo como método de análise a Ciência Reflexiva, desenvolvida por Michael Burawoy (2014). O recorte da área pesquisada refere-se a um assentamento informal situado na região Sudeste de Bauru, Estado de São Paulo, que compreende famílias residentes em condições precárias, em área não regularizada e com dificuldades em acessar os serviços públicos. Como objetivo geral a pesquisa intenta compreender como o processo de informalidade urbana e segregação socioespacial impacta nas condições de vida dos moradores do assentamento informal do Bairro Jardim Niceia, no município de Bauru. Para tanto, foram estabelecidos os seguintes objetivos específicos: conhecer o perfil socioeconômico das famílias da ocupação do Jardim Niceia; evidenciar os problemas que afetam o cotidiano dos moradores, advindos do processo de informalidade urbana e de segregação socioespacial; e identificar as estratégias de sobrevivência em face das desproteções sociais. Como instrumentais de dados este estudo utilizou a observação participante, entrevistas, revisão bibliográfica e análise documental. Os participantes selecionados para serem entrevistados integram as famílias que recebem o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para idosos e para pessoas com deficiência. A escolha pelos beneficiários do BPC foi motivada por se tratar de um grupo que demanda serviços e infraestrutura específica e apresentar questões relevantes para a discussão do acesso às políticas públicas. O texto da dissertação foi organizado em três capítulos que propiciaram o embasamento teórico e conceitual para o desenvolvimento do tema proposto. Inicialmente, no capítulo 1 buscou-se discutir o conceito de espaço urbano e sua produção no sistema capitalista, bem como as intervenções de urbanização do poder público ao longo da história do País. A partir daí, 14 abordaram-se os processos urbanos de segregação socioespacial e informalidade urbana que, construídos historicamente, refletem a apropriação e a reprodução desigual do espaço que estão presentes na vida de muitos brasileiros. Sobre a questão habitacional, foi apresentado um breve resgate histórico da implementação da Política Habitacional no Brasil, com ênfase no período pós-1964, com a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), até o momento atual. Posteriormente, descreveram-se os problemas habitacionais e urbanos no País, que revelam as formas de desproteção social e as profundas desigualdades sociais no uso e na apropriação da cidade pela população trabalhadora de baixa renda. Concluindo este capítulo, foi analisada a trajetória dos movimentos sociais de luta por moradia, sua relevância na sociedade e seus desafios, ressaltando no percurso histórico desses movimentos sociais a realização do Seminário de Habitação e Reforma Urbana, organizado em 1963 pelo Instituto de Arquitetos Brasileiros; depois, o período em que os movimentos foram silenciados pelo golpe militar de 1964; e em seguida, o momento de retomada, no final da década de 1970, com o processo de redemocratização do País até os dias atuais. No capítulo 2, primeiramente expuseram-se alguns indicadores demográficos, econômicos e sociais do Município, de forma a entender qual o panorama atual da cidade e as demandas a serem pensadas pelas políticas públicas. Em seguida, abordou-se a forma como se deu o desenvolvimento e o planejamento urbano da cidade de Bauru, como se produziram as desigualdades socioespaciais e como se desenrolaram os processos de segregação socioespacial e informalidade urbana. Posteriormente, discorreu-se sobre a trajetória da política habitacional em Bauru, por meio de suas legislações, programas, diretrizes de governos, planos diretores, entre outros. Por fim, discorreu-se sobre os espaços de participação popular e as mobilizações sociais em Bauru. No capítulo 3 apresentou-se a perspectiva teórica e metodológica da pesquisa, tendo por base o estudo de caso alargado que operacionaliza a ciência reflexiva e as técnicas de coletas de dados. Na sequência, descreveu- se o cenário da pesquisa, através do levantamento histórico da formação e 15 consolidação do assentamento informal do Jardim Niceia, assim como o histórico das ações do poder público neste bairro. Em seguida, analisou-se o perfil socioeconômico das famílias nele residentes, os problemas que afetam o cotidiano dos moradores, advindos do processo de informalidade urbana e de segregação socioespacial, e as estratégias de sobrevivência ante as desproteções sociais. Nas considerações finais apresentou-se uma síntese das discussões e as análises obtidas com a pesquisa, destacando seus aspectos mais relevantes e suas contribuições ao tema estudado. Este estudo considera que os processos de informalidade urbana e de segregação socioespacial representam um desafio a ser enfrentado pelo poder público e pela sociedade, em busca da construção de cidades mais democráticas, nas quais a população de baixa renda possa usufruir seus direitos sociais mais básicos, como a moradia, os serviços de saúde, a assistência social e a educação. Nesse contexto, o tema pesquisado é considerado de extrema relevância social e científica, já que intenta contribuir para as discussões no campo acadêmico, junto ao poder público, com organizações sociais e a população envolvida, no que concerne a formas de enfrentamento aos processos de informalidade urbana e segregação socioespacial, de forma a alterar a dinâmica desigual de produção e apropriação dos espaços urbanos, com vistas à materialização do direito à cidade. Essa forma de direito é entendida por Harvey (2009, p. 269) como: “[...] o direito que todos nós temos de criar cidades que satisfaçam as necessidades humanas [...]. O direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já existe na cidade, mas o direito de transformar a cidade em algo radicalmente diferente [...]”. Espera-se que os dados e as reflexões levantadas nesta dissertação possam colaborar para outras discussões que busquem construir formas de atuar em face das contradições do processo de urbanização das cidades. 16 CAPÍTULO 1 A POLÍTICA HABITACIONAL NO BRASIL E OS MOVIMENTOS DE LUTA POR MORADIA Neste capítulo será discutida a produção capitalista do espaço urbano e os processos de segregação socioespacial e de informalidade urbana construídos historicamente. Sobre a questão habitacional, será apresentado um breve resgate histórico da implementação da Política Habitacional no Brasil, com ênfase no período pós-1964, quando da criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), até o momento atual. Em seguida serão discutidos os problemas habitacionais e urbanos no País, com base em dados oficiais de estudos sobre assentamentos subnormais e déficit habitacional. Para finalizar este capítulo será abordada a trajetória dos movimentos sociais urbanos, sua relevância na sociedade e seus desafios. 1.1 A produção capitalista do espaço urbano As cidades, desde a sua origem, são marcadas por conflitos de interesses, disputas de poder, privilégios, contradições e desigualdades. São representadas por espaços socialmente produzidos, nos quais se estabelecem as relações de produção e reprodução da vida social. É nelas que a maioria das pessoas trabalha, mora, se locomove, estuda, exerce a vida política e constitui suas famílias. Em cada período da história, a cidade se desenvolveu em torno de uma função e de uma organização política e administrativa. Com a transição do sistema feudal para o capitalista a partir do século XV, a produção, que se dava no campo, passou a ocorrer na cidade. Impulsionada pelo processo de industrialização, a cidade passa a ser urbanizada. Para compreender a dinâmica socioespacial das cidades capitalistas é necessário compreender como se dá a produção dos espaços urbanos, pois é neles que relações sociais se estabelecem e a vida cotidiana de reproduz. Assim, é indispensável aprofundar alguns conceitos que ofereçam base para esta discussão e que respondam aos seguintes questionamentos: qual a natureza do espaço urbano? Como se dá a sua produção? Quais os agentes que o produzem? E quais os interesses? 17 Segundo Corrêa (1995), o termo “espaço urbano” é um complexo conjunto de diversos usos da terra que definem áreas como o centro da cidade, local de concentração de atividades comerciais, de serviços e de gestão, áreas industriais, áreas residenciais distintas em termos de forma e conteúdo social, de lazer, e entre outras, aquelas reservadas à futura expansão. O autor observa que o espaço urbano deve ser entendido como um espaço fragmentado a partir de suas diferentes áreas; ao tempo que é articulado pelos fluxos de demanda, é reflexo e condicionante social, campo de lutas dotado de símbolos projetados em formas espaciais (monumentos, lugares sagrados, ruas especiais etc.) por diferentes grupos sociais (CORRÊA, 1995). Ainda sobre a fragmentação do espaço urbano, pode-se considerar que: [...] O processo de fragmentação da cidade caminha junto ao processo de mundialização, embora de forma contraditória. Homogênea e fragmentada, a cidade revela, ainda, a hierarquização dos lugares e pessoas como articulação entre morfologias espacial, e social e esta estratificação revela as formas de segregação urbana. (CARLOS, 2007, p. 27). A produção do espaço urbano e o acesso à cidade regida pelo sistema capitalista organizam-se a partir da propriedade privada do solo urbano dos meios de produção, da acumulação, da mais-valia, do trabalho assalariado, do exército de reserva e da exploração do trabalho. Na cidade capitalista, os espaços urbanos são transformados em instrumentos de acumulação do capital. Rolnik (1995, p. 39) considera que “o primeiro elemento que entra em jogo é o da mercantilização do espaço, ou seja, a terra urbana, que era comunamente ocupada, passa a ser mercadoria, que se compra e vende”. Para Marx (2013, p. 97), “a mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie”. Ela possui um valor de uso, que está ligado à sua utilidade, e um valor de troca, que se refere à sua capacidade de ser trocada por outra mercadoria. O valor de troca de uma mercadoria é dado pela quantidade de trabalho humano nela contida, ou seja, pelo tempo de trabalho necessário para produzi-la. 18 Segundo Lefebvre (2011), a cidade até o início do capitalismo era muito mais obra do que produto. A cidade era o centro não só da vida social, política e de acumulação de riquezas, mas um lugar de produção de conhecimento, técnicas e obras. Em outras palavras, era muito mais um valor de uso que de troca. Na dinâmica do processo de produção do espaço urbano da sociedade capitalista, há uma contradição entre valor de uso (vida cotidiana) e valor de troca (cidade como negócio). O valor de troca tende a se sobrepor ao valor de uso (CARLOS, 2007). Para Arantes (2009), com base na tese de Malotch1 revisada por Peter Hall2, a cidade vista como “cidade-negócio” está ancorada numa pseudomercadoria, que é o solo, sendo este outro nome dado para a natureza, que, aliás, não foi produzida pelo homem, muito menos para ser vendida num mercado. Na passagem da construção da cidade enquanto valor de uso para a cidade construída sob a égide do valor de troca, os espaços se transformam em mercadoria trocável, passando a orientar o planejamento político da cidade através da intervenção no espaço (CARLOS, 2007). A intervenção no espaço, por sua vez, se dá pela necessidade de organizar e direcionar o crescimento e o desenvolvimento das cidades, ou seja, a produção do espaço urbano. Para Corrêa (2016), a produção do espaço urbano não é resultado da “mão invisível do mercado”, nem do estado hegeliano ou de um capital abstrato, mas sim da ação de agentes sociais concretos, históricos, dotados de interesses e conflitos entre eles mesmos e com outros segmentos da sociedade. São eles os proprietários dos meios de produção, os proprietários fundiários, os promotores imobiliários, o Estado e os grupos sociais excluídos. Os proprietários dos meios de produção e os proprietários fundiários estão interessados na rentabilidade que a terra pode oferecer. Já os promotores imobiliários são agentes que desempenham o papel de gerir um processo complexo que abarca diferentes ações e agentes. Nessas operações são os promotores imobiliários que definem a compra e o local dos terrenos, os 1 Ver LOGAN, John e MOLOTCH, Harvey; "Urban Fortunes: the political economy of place", University of California Press, 1987. 2 Ver HALL, Peter. Cidades do amanhã. São Paulo: Perspectiva, 1995. 19 construtores, os projetos, a propaganda e a forma de comercialização (CORRÊA, 1995). Ao contrário do proprietário fundiário tradicional, o promotor imobiliário é um proprietário temporário, ou seja, apenas pelo período necessário para construir e vender imóveis. Seu objetivo é a máxima rotação do capital e os sobrelucros por meio da venda rápida de edifícios (SANTOS, 2016). Para Villaça (1999), desde o início da história do planejamento urbano no Brasil, os interesses imobiliários estavam presentes nos grandes projetos urbanos, os quais patrocinavam, discutiam, defendiam ou atacavam. O Estado é um agente que atua com diferentes papéis na produção do espaço urbano. Sua diversidade de atuação decorre do fato de o Estado ser permeado por diferentes interesses e conflitos (CORRÊA, 1995). Entre suas múltiplas atuações, a depender do contexto, o Estado pode assumir uma função de comprador/consumidor do espaço, proprietário fundiário, promotor imobiliário, produtor industrial, regulador da produção e do uso do espaço, por meio de legislações. Por fim, os grupos sociais excluídos são os agentes que não têm acesso à cidade considerada formal ou legal e que ocupam áreas públicas ou privadas da cidade para construir suas próprias moradias. Essas áreas, muitas vezes, apresentam precariedade de infraestrutura e de equipamentos públicos. Corrêa (1995) considera que os grupos sociais excluídos atuam como agentes modeladores, porquanto produzem seu próprio espaço, independentemente de outros agentes. A produção deste espaço é uma forma de resistência e, ao mesmo tempo, uma estratégia de sobrevivência. Resistência e sobrevivência às adversidades impostas aos grupos sociais recém-expulsos do campo ou provenientes de áreas urbanas submetidas às operações de renovação, que lutam pelo direito à cidade. Considerada a diversidade dos agentes que produzem a cidade, os interesses ou necessidades e a complexidade de suas ações, pode-se afirmar que a relação de forças que se estabelece entre eles vai, em grande medida, modelar as cidades e definir como será sua dinâmica e quais as suas prioridades. Assim, a produção da própria ordem urbana “negociada, 20 disputada, agenciada” (TELLES, 2015, p. 25) é uma arena de luta em que atuam os diferentes agentes. Em seguida será abordado o processo de urbanização no Brasil e a trajetória da política pública de habitação no País. 1.2 O processo de urbanização e as políticas habitacionais no Brasil A urbanização no Brasil ocorre desde o período colonial, intensificando- se a partir do século XIX. O fenômeno urbano na sociedade e na economia brasileira não surge apenas a partir da industrialização, todavia, a partir dela, o urbano se redimensionou, passando ele mesmo a ser a sede da indústria enquanto aparelho produtivo (OLIVEIRA, 1982 apud SILVA, 1989). Maricato (2001) refere alguns fatores que ocorreram antes da urbanização da sociedade e que exerceram forte influência nesse processo: a importância do trabalho escravo na construção e na manutenção dos edifícios e das cidades; a pouca importância dada à reprodução da forca de trabalho; o poder político relacionado ao patrimônio pessoal. Até 1920 predominou na economia brasileira o modelo agroexportador, que passou, de forma progressiva, para o modelo urbano-industrial (SILVA, 1989). A partir de 1930, o Estado passa a investir decididamente em infraestrutura para o desenvolvimento industrial, em busca da substituição de importações. A burguesia industrial assume a hegemonia política na sociedade, porém sem romper com os interesses hegemônicos estabelecidos (MARICATO, 2001). Com o surgimento da fábrica como unidade produtiva e as exigências de concentração dos meios de produção e da força de trabalho num só lugar, a classe trabalhadora passa a necessitar de algumas condições para a sua reprodução: habitação, alimentação, transporte, energia, assistência à saúde, lazer, saneamento e outras. Ao mesmo tempo, a fábrica como unidade de acumulação do capital apresenta outras condições necessárias à sua reprodução: transporte de matérias-primas, energia, comunicação, saneamento, escritórios, bancos, unidades de distribuição e comercialização (SILVA, 1989). 21 No período inicial de industrialização, o Estado passa a exercer duas funções importantes: muda o padrão de acumulação por meio da transferência de excedentes da agricultura para a indústria e pela regulamentação entre capital e trabalho. Assim, o Estado cria as condições necessárias para estabelecer um novo modelo de acumulação (SILVA, 1989). Enquanto os países desenvolvidos passaram por um processo de industrialização e, consequentemente, de urbanização de forma gradativa, o Brasil, num período de apenas 60 anos e a partir da década de 1950, deixou de ser um país de população rural, constituindo-se num país urbano, com 84,4% de sua população residente na cidade (IBGE, 2010). Esse processo de industrialização que impulsionou a urbanização acelerada e pautada pelos interesses do capital trouxe muitas consequências de ordem social e ambiental, como desemprego, pobreza, periferização, segregação socioespacial, gentrificação, poluição do ar e da água, falta de serviços públicos e de infraestrutura básica, falta de moradias, violência, entre outros. Com a industrialização e o crescimento das cidades, a falta de moradia é um problema a ser enfrentado como condição necessária para a reprodução da força de trabalho. O sistema capitalista tem como necessidade primordial a redução do custo da reprodução da força de trabalho, por meio da diminuição da cesta de consumo dos trabalhadores. A habitação é o item mais importante desta cesta, entretanto, para suprir essa necessidade, a maior parte da população não tem condições de acesso por via do mercado, considerando seu custo incompatível com os salários (MARICATO, 1987). Com isso, “surge uma demanda economicamente inviável para o mercado, porém socialmente inegável”. Diante dessa contradição, nasce a Habitação Social como resposta estatal à questão social em que ela é transformada (SINGER, 2004, p. 8). Para compreender a questão habitacional no Brasil, entendida como questão social, é necessário revisitar o processo histórico de intervenção do Estado no planejamento e na efetivação das políticas habitacionais e urbanas, e suas repercussões na produção das cidades e no cotidiano da população, principalmente a de baixa renda, a partir do entendimento de que esse 22 processo é atravessado por rupturas, interesses antagônicos, conflitos, crises econômicas, avanços e retrocessos. Para analisar as políticas habitacionais, Cardoso (2017a, p. 88) propõe dividi-las por períodos que são reconhecidos nos estudos urbanos e nas Ciências Sociais. São eles: (a) Período pré-1930 (1850-1930), marcado pela passagem do Império à República e pela emergência do problema habitacional, entendido inicialmente enquanto um problema sanitário; (b) Período pós-1930 (1930-1964), marcado pela reorganização do Estado ocorrida a partir da Revolução de 1930 e do Estado Novo (1937), quando o Estado assume de forma clara (porém ainda com restrições) a responsabilidade pela provisão de acesso à moradia para os trabalhadores; (c) Período Militar (1964-1986), marcado pelo regime ditatorial, pela modernização administrativa e por uma política habitacional desenvolvida sob a égide do Banco Nacional de Habitação (BNH); (d) Período Pós-BNH (1986-2003), marcado pela redemocratização, sucessivas crises econômicas e pela crescente perda de centralidade da política habitacional, com fragmentação e fragilização institucional, e (e) Período do Lulismo (2003-2016), marcado pela retomada da centralidade da política habitacional, particularmente a partir de 2008 com o Programa Minha Casa Minha Vida (CARDOSO, 2017, p. 88, grifos nossos). Além desses períodos, será discutido como foram direcionadas as políticas habitacionais no governo de Michael Temer, nos anos de 2016 a 2018, e no governo de Jair Messias Bolsonaro. De acordo com Silva (1989), até 1937 a ação do Estado em relação à habitação era ligada a medidas sanitaristas e higienistas. Os cortiços, localizados próximos das classes dominantes, eram a alternativa de habitação popular da época para a maioria dos trabalhadores. Ao serem tratados como foco de doença, passaram por intervenções e/ou demolições que estimulavam o setor privado a construir “vilas higiênicas”. As reformas urbanas, realizadas em diversas cidades do Brasil até o final do século XIX e início do século XX, ofereceram as bases de um urbanismo moderno “à moda” da periferia. Ao tempo que as obras de saneamento eram realizadas para combater as epidemias, também se promovia o embelezamento dessas áreas e se implantavam bases legais para um mercado imobiliário da corte capitalista. A população excluída deste processo era expulsa para os morros e franjas da cidade (MARICATO, 2001). 23 Aos trabalhadores empobrecidos da classe média, a moradia podia ser acessada por meio do lote e da autoconstrução. Outra possibilidade, ainda que restrita, foi a construção das vilas operárias aos trabalhadores das indústrias que ficavam longe das áreas centrais da cidade. Já para a população mais pobre, expulsa dos cortiços, não havia alternativas (CARDOSO, 2017a). Ocupar espaços da periferia era muitas vezes a única solução. Assim, o primeiro período pré-1930 foi marcado pelas precárias e parcas possiblidades habitacionais para os mais pobres, fator que contribuiu para o início do processo de segregação socioespacial das cidades (BONDUKI, 2004; CARDOSO, 2017a). No período pós-1930, o Estado criou instituições para tratar a questão habitacional como política social. Mesmo que de forma insuficiente e seletiva, a partir desse período houve algumas respostas para os problemas da moradia. Até 1930 eram poucos os trabalhadores de baixa renda e da classe média que conseguiam adquirir uma moradia. Em São Paulo, tanto os operários como a classe média estavam há pouco tempo residindo na cidade (BONDUKI, 2004). Como resultado de uma herança do período colonial que dificultou o acesso à terra desde 1850 com a Lei de Terras, a propriedade privada estava ligada aos indivíduos mais abastados. Esta constatação precisava ser alterada, pois na ideologia do novo Estado que estava se constituindo era necessário promover o acesso do povo à propriedade, porém sem afetar os interesses oligárquicos (BONDUKI, 2004). Propagar a ideologia da casa própria e torná-la algo possível aos trabalhadores atendia a muitos interesses presentes numa sociedade que se industrializava e urbanizava rapidamente. Ao buscar estabilidade política, econômica e social, o Estado passou a difundir aos trabalhadores a ideia da casa própria como um sinal de progresso material e moral, em detrimento dos cortiços e das moradias coletivas. A moradia, além de ser um bem necessário para a sua sobrevivência, deveria ser também uma ferramenta de mudança do trabalhador em proprietário, exercendo uma função importante “na criação de um modo de vida conservador e reproduzindo comportamento moral e cultural burguês entre trabalhadores” (BONDUKI, 2004). Viabilizar o acesso à casa própria se apresentava como um desafio que deveria ser cumprido sem exigir aumento de salários. Assim, além de 24 convencer o trabalhador de que a moradia unifamiliar era a melhor forma de morar, era imprescindível, para complementar as ações do Estado, o esforço do próprio trabalhador para buscar os meios necessários e poupar seus recursos financeiros a fim de sair do cortiço e adquirir a casa própria (BONDUKI, 2004). As primeiras instituições a prover habitação de interesse social no Brasil foram os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs), criados entre os anos de 1933 e 1938. Os IAPs eram organizados por categorias: IAPM (marítimos), IAPB (bancários), IAPC (comerciários), IAPI (industriários), IAPETEC (condutores de veículos e empregadores de empresas de petróleo) e IAPE (estivadores). Os recursos dos IAPs advinham das contribuições compulsórias dos trabalhadores. A prioridade dos institutos era administrar os benefícios previdenciários e de assistência médica. A questão da habitação ficava em segundo plano, sendo tratada mais como um investimento do que como um direito (BONDUKI, 2004). Em 1937 foram criadas as carteiras prediais dos Institutos, divididas em três tipos de planos: (a) a locação ou venda de unidades habitacionais, construídos para atender os associados; (b) o financiamento aos associados para a compra da moradia ou a construção em terreno próprio, pelos associados; (c) e a realização de empréstimos hipotecários ou outras operações imobiliárias com o objetivo de ampliar a rentabilidade do fundo, contribuindo assim para a expansão do mercado imobiliário nas grandes cidades brasileiras a partir da década de 1940 (CARDOSO, 2017a). Bonduki (2004) pontua que havia uma disputa pelos recursos públicos nos IAPs. De um lado, a habitação social, e de outro, as incorporadoras imobiliárias privadas, interessadas em construir para as classes altas ‒ disputa esta que nunca mais deixou de existir. Ao analisar os investimentos dos IAPs, percebem-se as repercussões do contexto político e social em cada período. Até 1945, período da ditadura, os investimentos foram maiores no plano C. De 1945 a 1950, período de pós- guerra que coincidiu com o aumento da crise habitacional e o avanço do Partido Comunista do Brasil (PCB), a prioridade foi a HIS, ou seja, os planos A e B e a criação da Fundação da Casa Popular, que passam a perder 25 investimentos devido às perdas com a Lei do Inquilinato, em 1942, que congelou os aluguéis e aumentou a inflação (BONDUKI, 2004). Em 1946 foi criada a Fundação Casa Popular (FCP), com a atribuição de centralizar a política habitacional no país. Para Villaça (1986 apud RUBIN e BOLFE, 2014), a FCP foi o primeiro órgão em escala nacional criado com a finalidade de oferecer habitação popular ao povo em geral. Sua posposta era financiar não apenas casas, mas também infraestrutura urbana, produção de materiais de construção, estudos e pesquisas. Bonduki (2004, p. 115) acrescenta que a FCP, durante os 18 anos de sua existência, teve uma atuação tímida: chegou a produzir 18.132 unidades habitacionais, enquanto os IAPs no mesmo período produziram 123.995 unidades habitacionais. O autor atribui o fracasso do projeto da FCP à incapacidade do Estado em resolver a questão da moradia e à falta de organização da população que seria beneficiada, diferentemente daqueles que por outros interesses eram contrários a esta política e estavam organizados para enfraquecê-la. No que se refere aos assentamentos informais, chamadas de favelas, a ação pública até a década de 1960 foi a busca de sua erradicação (DENALDI, 2003). Simultaneamente à política de produção de novas unidades, o Governo Federal e os governos locais aplicaram ações altamente ambíguas em relação aos assentamentos informais, como as favelas. Para Bonduki (2004), desde o final do século XIX há relatos sobre assentamentos precários no Brasil, mas é a partir da metade do século XX que ganham maiores proporções, como resultado de seu crescimento contínuo, com a rápida passagem de País agrário-exportador para urbano-industrial. Silva (1989), ao discutir a trajetória da política habitacional brasileira, indica que as primeiras ações sobre as favelas estavam voltadas para atitudes de repressão e à proibição, pois elas eram vistas como um mal que deveria ser evitado. Conforme constava no Código de Obras de Cidade do Rio de Janeiro, em 1933, não era possível construir novos barracos ou melhorar os que já existiam. Para atender a população removida das favelas, o Governo Dutra propôs a criação de conjuntos habitacionais no mesmo local. Assim, de forma provisória, a população foi alojada em pavilhões construídos em madeira e 26 denominados de Parques Proletários. Entretanto, o que era provisório se tornou definitivo e os parques proletários se transformaram novamente em favelas. Entre 1955 e 1960 o governo do Distrito Federal também desenvolveu uma política de urbanização de favelas, através do Serviço de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-higiênicas ‒ SERFHA (CARDOSO, 2017a). No governo de Jânio Quadros e João Goulart, de 1961 a 1964, havia um processo crescente de favelização, cortiços e moradias precárias, longe dos centros urbanos e sem acesso a serviços de saneamento básico, saúde e educação, consequência do processo de autoconstrução somado à maior taxa de urbanização (SILVA, 1989). Com a renúncia de Jânio Quadros, o governo de João Goulart passa a apoiar reformas de base e uma política externa independente. Instaura-se uma crise econômica no país após 1962 e, com isso, ocorre um aumento de manifestações e greves que se estendem para a zona rural, com a criação das ligas camponesas (SILVA, 1989). Havia nesse momento disputa entre dois projetos políticos, um socialista e outro alinhado aos interesses do capital internacional. O Golpe Militar de 1964 representou a vitória do projeto voltado para o capital (IANNI, 1978 apud SILVA, 1989), que adotaria a ideologia da modernização, com concentração e centralização do capital. Em 1967, dada a necessidade de amenizar a tensão social, foi criado durante a ditadura militar o Banco Nacional de Habitação (BNH), tendo o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) como seu principal financiador. A justificativa para criar o BNH era reduzir o déficit habitacional que existia no Brasil. O BNH achava-se organizado da seguinte maneira: as Companhias Habitacionais (COHABs) seriam responsáveis pelo atendimento às famílias de baixa renda; as Cooperativas Habitacionais (INOCOOPs) atenderiam as famílias com renda mensal de três a seis salários mínimos; e as Caixas Econômicas, Associações de Poupança e Empréstimos e Sociedade de Crédito Imobiliário estariam destinadas às famílias com renda mínima de seis salários mínimos (LEHFELD, 1988). 27 Além de prover moradias, o BNH tinha como meta atender a expectativas de diferentes ordens. Silva (1989) aponta que o Estado precisava conciliar muitos interesses: a legitimação de seu regime na sociedade, de forma a fundamentar suas intenções com o golpe de 1964; as necessidades da população urbana, que sofria com a inflação e o desemprego, assim como a da população rural, que esperava a reforma agrária; e a necessidade de desenvolvimento para sair da crise econômica, gerando empregos e estimulando o mercado da indústria de material e da construção civil. As favelas, especialmente no Rio de Janeiro, foram o primeiro alvo a ser atendido pelo BNH, por meio de programas de remoção para as “casas- embrião” e apartamentos localizados em áreas distantes. Os objetivos das remoções eram liberar áreas bem localizadas para as classes medias e alta e desmobilizar as favelas, consideradas um espaço de resistência que ameaçava a ordem estabelecida (SILVA, 1989). Valladares (1978 apud SILVA, 1989) anota que as remoções não acabaram com as favelas, pois muitos dos que foram removidos abandonaram suas residenciais, colocando em dúvida esse tipo de resposta habitacional. Entre os anos de 1964 e 1969, 40% dos financiamentos do BNH destinavam-se aos programas de desfavelamento. Porém, a dificuldade da população em arcar com os custos gerou um alto índice de inadimplência, levando a uma crise financeira que contribuiu para o governo mudar o foco da política habitacional, elitizando-a (VALLADARES, 1978 apud SILVA, 1989). A partir de 1966 são criados o Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) e a correção monetária para o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE). Os recursos da poupança e do FGTS são direcionados para a produção habitacional, ocorrendo, assim, um boom imobiliário que dinamizou a economia e gerou crescimento econômico no país – o que foi chamado de “milagre brasileiro” (CARDOSO, 2017a). Nesse período, marcado pela frase que o governo iria “fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”, Silva (1989) aponta que havia, de um lado, crescimento do PIB e diminuição da inflação, e, de outro, o aumento da concentração de renda e a superexploração da força de trabalho. Esse contexto econômico, somado aos mecanismos de repressão política, criou condições para rever a política habitacional. 28 O fracasso dos investimentos do BNH em habitação popular, devido aos altos índices de inadimplência e à necessidade de buscar clientes com condições de pagar os juros de seus financiamentos, fez com que os recursos fossem redirecionados, a partir da década de 70, para atender a interesses de promotores imobiliários, agentes financeiros e indústrias de construção pesada. Assim, na habitação, os financiamentos passaram a atender às camadas de alto poder aquisitivo, e a indústria da construção passou a receber recursos, por meio de governos municipais e estaduais, para obras urbanas de infraestrutura de implantação ou melhoria de sistemas de saneamento, energia elétrica, pavimentação, transporte, comunicação e educação, e grandes projetos de abrangência nacional. Além disso, também financiou estudos para a elaboração de leis e projetos (MARICATO, 1987). Em 1974 o governo toma algumas medidas para tornar o Sistema Financeiro de Habitação mais atrativo às camadas de maior poder aquisitivo, oferecendo taxa de juros mais baixa, aumentando o prazo para o pagamento dos financiamentos, ampliando as faixas de renda de três para cinco salários mínimos, e, no processo de seleção, exigindo documentos oficias para a comprovação de renda. Isso demonstra a elitização do público atendido nesse período, constituído por operários mais qualificados, funcionários públicos e técnicos de nível superior (SILVA, 1989). Entre os anos de 1970 e 1974 foram construídas 404.123 unidades habitacionais para o mercado médio (acima de 12 SMs), 157.748 para o mercado econômico (de seis a dez SMs), e somente 76.746 para o mercado popular (de um a cinco SMs) (AZEVEDO & ANDRADE, 1982 apud SILVA, 1989). Esses dados revelam a enorme desigualdade no atendimento das classes populares em relação às demais. Ao analisar esses números, Silva (1989) afirma que as classes médias e altas tiveram financiadas cinco vezes mais unidades habitacionais que as classes populares, que, por sua vez, representam 80% da população com renda até três SMs. Destas, 50% possuem renda de até dois SMs. Ou seja, a classe com menores condições de acessar a moradia foi a mais excluída desta política, sem contar a população desempregada ou no mercado informal, que simplesmente foi ignorada. 29 As medidas do BNH foram cada vez mais seletivas e restritivas, tornando o acesso inviável às classes de menor renda. Esse quadro piorou com o aumento dos preços dos terrenos e dos materiais de construção, desproporcional à renda das famílias, que crescia lentamente (SILVA, 1989). A partir da década de 1970, com o redirecionamento de recursos para as classes mais abastadas, o Estado passa a aceitar a urbanização das favelas como uma forma de intervenção, e a realizá-la com “programas alternativos” de pequeno alcance, desvinculados do eixo estrutural da política habitacional e das estruturas institucionais (DENALDI, 2003). Em 1973 o governo lança o Plano Nacional de Habitação Popular (PLANHAP), com o mesmo discurso da lei que criou o BNH, ou seja, de erradicação do déficit habitacional brasileiro para a população de um a três SMs, com a intenção de corrigir as experiências anteriores pouco exitosas de habitação popular (MARICATO, 1987). Nesse período, surgem nas maiores cidades do país movimentos populares reivindicando esgoto, água, luz e moradia, colocando em questão a política habitacional. Com este cenário, em busca de obter legitimação e estabilidade social, em 1975 o BNH cria o Programa de Lotes Urbanizados (PROFILURB), com o objetivo de atender a população de zero a três SMs que não se enquadrava nos moldes dos financiamentos concedidos pelo Sistema Financeiro de Habitação (SFH). Esse programa não apresentou resultados significativos, o que só foi reconhecido pelo governo em 1977. Um ano depois, foi reestruturado, com aumento de prazo e valor do financiamento destinado para oferta de lotes com unidades sanitárias ou para um modelo de casa-embrião destinado à população de baixa renda (SILVA, 1989). Em 1979 o governo cria o Programa de Erradicação da Sub-Habitação (PROMORA), visando urbanizar as favelas. Em pouco tempo esse programa se mostrou autoritário: derrubou barracos sem indenizar as famílias, buscando resolver o problema da moradia, obrigando-as a comprar uma casa mesmo sem condições financeiras para assumir o financiamento de trinta anos (SILVA, 1989). As COHABs, que tinham a função de atender as famílias com renda de um a três SMs, estavam com muitas dificuldades de atender às regras da 30 produção capitalista: todos os custos que envolviam a construção das unidades habitacionais deveriam resultar num produto (mercadoria) acessível à população de baixa renda, e, ao mesmo tempo, deveriam remunerar muito bem o capital financeiro, mantendo altas taxas de lucros para as construtoras e garantindo ganhos para as empresas públicas, tudo isso sem nenhum subsídio ao consumidor final. Assim, a lógica mercadológica imposta pelo BNH não garantiu o atendimento adequado das necessidades habitacionais da população de baixa renda, pois o preço da mercadoria habitação e a forma de pagamento não condiziam com o poder aquisitivo das famílias. Ademais, os residenciais estavam isolados, longe dos locais de trabalho e dos equipamentos públicos (MARICATO, 1987). No governo Geisel (1974-1979), o país experimenta um contexto de crise econômica nacional e mundial, de elevação da inflação, aumento da dívida externa e baixo índice de crescimento econômico, que desconstruiu a retórica de “milagre econômico” que lastreava as medidas autoritárias do governo (SILVA, 1989). O aumento da inflação a níveis acima de 100% no final da década de 1970 e início da década de 80 atingiu o SFH e paralisou os investimentos do BNH. O desemprego, ao provocar queda na arrecadação do FGTS e retiradas nas cadernetas de poupança, também colaborou para o colapso do SFH/BNH (MARICATO, 1987). O contexto de crise econômica no País nos anos 1980 corroborou para o aumento da inadimplência da classe média, que havia se comprometido com o pagamento de fortes dívidas hipotecárias ao longo da década de 1970; estas se reajustavam de forma desproporcional aos salários. Ao sofrer pressão política dos setores médios, o BNH acabou modificando seu mecanismo de reajuste, adequando-o à correção dos salários, gerando assim um imenso rombo no sistema – que deveria ser coberto por recursos orçamentários, o que nunca aconteceu. Devido à crise financeira e econômica, o BNH reduziu as suas atividades e passou a discutir de forma pública a necessidade de reestruturação. Em 1986, durante o Governo Sarney, o BNH foi extinto (CARDOSO, 2017a). 31 O BNH, durante sua vigência, financiou 4,8 milhões de habitações, em torno de 25% das moradias construídas no país entre 1964 e 1986. Os financiamentos eram destinados a todas as faixas de renda, pela promoção privada das Companhias de Habitação Popular e pela incorporação imobiliária. Contudo, a população de baixa renda ficou com apenas 20% dos financiamentos (RUBIN; BOLFE, 2014). O percentual pequeno de atendimento à população de baixa renda demonstra que, apesar de o BNH haver ser criado com o objetivo de atender as classes populares, na prática isso não se concretizou. Em 1986 inicia-se o período pós-BNH com o processo de redemocratização do país e a elaboração da Constituição Federal (CF) de 1988 (BRASIL, 1988). O direito à propriedade passou a não ser absoluto, mas vinculado ao cumprimento da sua função social. Na CF de 1988 a questão urbana foi mencionada no capítulo sobre a Política Urbana. O direito à posse foi reconhecido, abrindo assim possibilidades à regularização de assentamentos precários e informais. Passou-se a exigir dos municípios com mais de 20 mil habitantes a criação de um Plano Diretor, definido como um instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana; todavia, não foi estipulado um prazo, o que só se deu com o Estatuto das Cidades, criado em 2001 para regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, que tratam da política de desenvolvimento urbano e da função social da propriedade. No processo de redemocratização do país, esperava-se uma transformação na política de habitação, porém ela foi marcada por um vazio após a extinção do BNH. Até a criação do Ministério das Cidades em 2003, a gestão da política habitacional esteve subordinada a sete ministérios ou estruturas administrativas diferentes, o que resultou em descontinuidade e falta de estratégia para resolver o problema (BONDUKI, 2008). Durante as décadas de 1980 e 1990, as “décadas perdidas”, a concentração da pobreza se torna urbana. Na década de 1980, a taxa de crescimento da população moradora de favelas triplicou em relação à população urbana; e na década de 1990, duplicou (MARICATO, 2011). Ao analisar a dinâmica da urbanização no Brasil durante o século XX, Maricato (2001) constata que houve a construção de grandes proporções das 32 cidades, sendo parte delas de forma ilegal, com recursos da própria população, sem apoio financeiro ou técnico dos governos, caracterizando-se como um grande empreendimento descapitalizado. É importante lembrar que nas décadas de 1980 e 1990 o Brasil sofre também com o impacto do declínio econômico e do processo de restruturação produtiva3 que atingira países capitalistas centrais no início da década de 1970, ajustes neoliberais estabelecidos pelo Consenso de Washington, aumento do desemprego e das relações informais, aumento da violência e recuo das políticas sociais (MARICATO, 2001). O cenário nesse período se apresenta contraditório, pois ao tempo que a nova legislação aponta os avanços no campo dos direitos sociais e da política urbana, a realidade da maioria da população, que passa a viver nas cidades, é marcada pelo aprofundamento da desigualdade social. Há o esvaziamento da política habitacional e, por consequência, a falta de uma direção e definição oficial da política de habitação atrelada a um contexto de abertura política. A nova Constituição Federal estabelece que a política habitacional é de responsabilidade dos três entes federados, possibilitando a estados e municípios desenvolver suas próprias propostas nesta área (FERREIRA, 2014). Assim, os governos estaduais e municipais realizaram várias experiências no que se refere à provisão de moradia, indo além dos modelos tradicionais e investindo em novos programas com processos participativos e autogestionários, integrados à política urbana (BONDUKI, 2008). 3 Antunes (2009, p. 31-33) explica que a partir da década de 1970, o capitalismo viu-se ante um quadro crítico acentuado, apresentando o seguinte cenário: queda da taxa de lucro, aumento da força de trabalho e redução dos níveis de produtividade do capital; esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista de produção; hipertrofia da esfera financeira; maior concentração de capitais; a crise do Welfare State ou do “Estado do bem-estar social”; e incremento acentuado das privatizações. Como resposta à sua própria crise, iniciou-se um processo de reorganização do capital e de seu sistema ideológico e político de dominação, cujos contornos mais evidentes foram o advento do neoliberalismo, com a privatização do Estado, a desregulamentação dos direitos do trabalho e a desmontagem do setor produtivo estatal, da qual a era Thatcher-Reagan foi a expressão mais forte; a isso se seguiu um intenso processo de reestruturação da produção e do trabalho, com vistas a dotar o capital do instrumental necessário para tentar repor os patamares de expansão anteriores. Iamamoto (2008) diz que a reestruturação produtiva caracteriza-se pela flexibilização das relações trabalhistas, pelo incremento tecnológico em substituição ao trabalho vivo, num cenário de mundialização da economia, condensando um contexto de desregulamentação e liberalização. Tem-se, pois, que “o capital, ao invés de voltar-se para o setor produtivo, é canalizado para o setor financeiro, favorecendo um crescimento especulativo da economia” (IAMAMOTO, 2008, p. 141). 33 A partir de 1990, o Banco Mundial, com o objetivo de minimizar os efeitos sociais das políticas de ajuste fiscal, adota estratégias de alívio à pobreza e inclui no centro da agenda o aumento da “produtividade da economia urbana”, como estratégia básica para enfrentar a questão da pobreza. Os projetos urbanos passam a ter maior espaço nas linhas de financiamento do banco, tendo a urbanização de favelas (slum upgrading) como um componente fundamental dos projetos (CARDOSO, 2007). A estratégia de aumento de produtividade econômica impôs a lógica de disputa entre as cidades para atrair investimentos. Para isso foi desenvolvido um novo modelo de planejamento urbano, denominado Planejamento Estratégico:4 Inspirado em conceitos e técnicas oriundos do planejamento empresarial, originalmente sistematizados na Harvard Business School, o planejamento estratégico, segundo seus defensores, deve ser adotado pelos governos locais em razão de estarem as cidades submetidas às mesmas condições e desafios que as empresas [...]. (VAINER, 2000, p. 76). Durante a década de 90, as experiências de urbanização e regularização de assentamentos precários foram realizadas em quase todas as grandes cidades do país, conforme dados apresentados pela pesquisa desenvolvida pelo Observatório das Metrópoles sobre os cinquenta municípios brasileiros mais populosos. Evidenciou-se que os programas mais registrados nas agendas locais foram os de urbanização de assentamentos e de regularização fundiária, com valores expressivos de recursos próprios (ARRETCHE, 2000, CARDOSO; RIBEIRO, 2000 apud CARDOSO, 2013). Essas experiências influenciaram a Política Nacional de Habitação do governo Fernando Henrique Cardoso5, que trouxe entre outros os seguintes elementos: (i) a discussão da política habitacional integrada à política urbana e à de saneamento; (ii) a defesa de uma política fundiária urbana que desestimulasse a formação de estoques de terra para fins especulativos; (iii) o 4 O planejamento estratégico é orientado pelas seguintes linhas: identificação de uma crise na centralidade econômica da cidade; necessidade de torná-la competitiva aos investimentos estrangeiros; uma ação que venda a imagem da cidade para o mundo a partir da descoberta de algo que possa se constituir em sua marca de identidade; “parceria” entre os recursos públicos e o capital privado; busca de um consenso entre todos os atores urbanos, a fim de que o projeto possa ser realmente efetivado (BORJA E CASTELLS, 1996; ARANTES, 2000; VAINER, 2000B apud CARVALHO, 2000). 5 FHC ‒ 1995 a 2002. 34 reconhecimento da cidade real, com linhas e programas destinados à urbanização de favelas e recuperação de áreas degradadas; (iv) o reconhecimento do papel dos governos municipais como agentes promotores da habitação popular; (v) a diversidade de programas, rompendo com a rigidez e a padronização excessiva (programas Pró-Moradia, Habitar Brasil, Carta de Crédito Individual e Associativo, Apoio à Produção, Programa de Arrendamento Residencial; (vi) o reconhecimento da importância da produção associativa privada não lucrativa (Carta de Crédito Associativo) (FERREIRA, 2014). As experiências municipais inovadoras em habitação dos anos de 1990 exerceram forte influência no conteúdo do Estatuto da Cidade, aprovado em 2001. Esse Estatuto trouxe um avanço para a política urbana no país, pois criou importantes instrumentos urbanísticos, tributários e jurídicos, subordinados ao Plano Diretor e que visam garantir sua efetividade, sendo tal plano o responsável pelo estabelecimento da política urbana na esfera municipal e pelo pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. Neste período, Bonduki (2008) assevera que passam a ser seguidos, ao menos no discurso, os princípios de flexibilidade, descentralização, diversidade, reconhecimento da cidade real, entre outros, estando assim de acordo com um debate nacional e internacional que apoiava formas alternativas para a questão habitacional. Para o atendimento da questão da habitação, no governo FHC foram criados diferentes programas, divididos em três grupos durante o primeiro mandato (1995 a 1998) (BARBOSA, 2007 apud SHIMBO, 2010). No primeiro grupo destacam-se os programas que buscavam melhorias no funcionamento do mercado privado de habitações para as rendas acima de 12 SMs, como o Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade do Habitat (PBQP-H) e o Sistema Financeiro Imobiliário (BARBOSA, 2007 apud SHIMBO, 2010). O segundo grupo tratou de programas voltados ao financiamento de estados e municípios, com o objetivo de recuperar áreas degradadas que foram ocupadas presencialmente pela população de baixa renda (com até três SMs), por meio de melhorias ou construção de unidades habitacionais e infraestrutura, sendo eles: o Programa Pró-Moradia, financiado pelo FGTS, e o Habitar Brasil, financiado pelo Orçamento Geral da União (OGU). A adesão a 35 esses programas foi baixa em virtude do alto grau de inadimplência dos municípios, sendo esse um dos critérios para acessar os recursos (BARBOSA, 2007 apud SHIMBO, 2010). Por fim, o terceiro grupo abarcou os financiamentos habitacionais de forma direta ao mutuário final, com renda de três a 12 SMs, oferecidos pelo Programa Carta de Crédito e Apoio à Produção (SHIMBO, 2010 apud BARBOSA, 2007). Em relação aos anos de 1995 a 2003, 78,84% do total dos recursos para habitação foram destinados a famílias com renda superior a cinco SMs e apenas 8,5% foram destinados para a baixíssima renda (até três SMs), onde se concentram 83,2% do déficit quantitativo (BONDUKI, 2008) O que se percebe é que, mesmo mudando o regime político, de um período ditatorial para a democracia, e avançando nos direitos sociais, com a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade de 2001, a prioridade da política pública de habitação permanece voltada para a classe média, enquanto a maior parte da população de baixa renda segue sem atendimento. No final da década de 1990, o país inicia um processo de reestruturação do setor imobiliário que implica mudanças nas formas de produzir e consumir os espaços urbanos. Segundo Cardoso e Jaenisch (2017b), a financeirização deste setor é um elemento crucial para entender como se dá esse processo que é parte das reformas econômicas neoliberais realizadas no governo FHC. Para Rolnik (2015, p. 26), o processo de financeirização do mercado imobiliário é resultado de um “longo processo de desconstrução da habitação como um bem social e de sua transmutação em mercadoria e ativo financeiro”. A autora acrescenta que a tomada do setor habitacional pelo setor financeiro não se refere somente a mais um campo de investimento para o capital, mas, sobretudo, diz respeito a um meio de reserva de valor, por ligar diretamente a macroeconomia com os indivíduos e famílias, e conectar vários atores centrais do sistema financeiro global, como os fundos, bancos de investimentos, sistema bancário paralelo, instituições de crédito e instituições públicas (AALBERS et al., 2014 apud ROLNIK, 2015, p. 28). Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2003, inicia-se o período lulista. Foi então criado o Ministério das Cidades (MCidades), que tinha como missão melhorar as cidades, tornando-as mais humanas, social e 36 economicamente justas e ambientalmente sustentáveis, por meio de gestão democrática e integração das políticas públicas de planejamento urbano, habitação, saneamento, mobilidade urbana, acessibilidade e trânsito, de forma articulada com os entes federados e a sociedade (BRASIL, 2003). Entre essas políticas estão a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) – 2004; a Política Nacional de Habitação (2004); a Política Nacional de Saneamento – 2007; o Plano Nacional de Habitação (PLANHAB, 2009); e a Política Nacional de Mobilidade Urbana (2012). Também foi criado o Conselho das Cidades, e realizadas as Conferências das Cidades, nos três níveis de governo – União, Estados e Municípios. Assim, a partir do governo Lula estruturou-se uma nova Política Urbana, pautada pelo modelo de gestão democrática e participativa das cidades. A Política Nacional de Habitação, criada em 2004 pela Secretaria de Habitação do MCidades, tem como componentes principais: integração urbana de assentamentos precários, urbanização, regularização fundiária e inserção de assentamentos precários, provisão da habitação e integração da política de habitação à política de desenvolvimento urbano (BRASIL, 2004). Com isso, os assentamentos precários ganharam relevância na política habitacional federal. Em 2005, com a aprovação da Lei Federal 11.124, de 16 de junho de 2005 (BRASIL, 2005), instituíram-se o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS)6 e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS). A proposta era desenvolver um sistema integrado para financiar habitação à população de baixa renda, por meio de programas de produção de novas unidades, voltados para atender ao déficit habitacional, e programas de urbanização e integração de assentamentos precários, incluídos os loteamentos populares, os conjuntos habitacionais degradados e, principalmente, as favelas. Para aderir aos programas, exigia-se dos Estados e municípios a elaboração de um plano municipal de habitação e a criação dos seus próprios fundos, com os respectivos conselhos gestores. A perspectiva instituída pelo Governo Federal de gestão da política urbana com participação democrática passa a mudar à medida que o cenário 6 O SNHIS é fruto do primeiro projeto de lei de iniciativa popular no movimento pela reforma urbana. Ele tramitou por 13 anos no Congresso Nacional até ser aprovado. 37 político também se transforma. Em 2007 foi criado o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que envolve um conjunto de medidas econômicas centradas, principalmente, em investimentos públicos em obras de infraestrutura com o objetivo de impactar positivamente a economia (CARDOSO; DENALDI, 2018). O PAC foi organizado em duas etapas para atender aos seguintes eixos: Infraestrutura Energética (geração, transmissão, petróleo e gás, refino, indústria naval, combustíveis renováveis) e Infraestrutura Social e Urbana (iluminação, metrôs, recursos hídricos, habitação e saneamento). A Urbanização de Assentamentos Precários (PAC-UAP) estava inserida no Eixo Infraestrutura Social e Urbana. Denaldi et al. (2016) consideram que a inserção do tema Urbanização de Favelas no PAC-UAP, em 2007, constitui um marco no posicionamento da esfera pública federal em relação a essa questão, uma vez que se torna uma das prioridades do governo. Apesar de o PAC prever um subprograma voltado exclusivamente para a urbanização de favelas, com um volume expressivo de recursos de subsídios (mais de 30 bilhões investidos entre 2007 e 2014, sendo cerca de 25 bilhões referentes a recursos do Orçamento Geral da União), o seu modelo institucional não incluiu a participação popular na elaboração dos projetos e na gestão dos recursos, mostrando-se assim avesso a um dos princípios do SNHIS (FNRH, 2020). Na primeira etapa (PAC-1), houve um investimento de R$ 20,8 bilhões para a urbanização de 3.113 assentamentos precários em todo o país. Em 2012 o PAC-2 contratou 415 novas ações em assentamentos precários, que totalizam investimentos de R$ 12,7 bilhões em 337 municípios de 26 estados (CARDOSO; DENALDI, 2018). Os valores investidos no PAC se mostraram como o maior investimento já realizado no país para a urbanização de favelas (CARDOSO; DENALDI, 2018). Contudo, desde 2011, no Governo Dilma (2011-2016), os recursos do PAC-2 para a urbanização de favelas diminuíram drasticamente7 (CARDOSO; DENALDI, 2018). 7 Cardoso e Denaldi (2018) elenca alguns fatores que podem ter colaborado para que o PAC- Urbanização de Assentamentos Precários – PAC-UAP perdesse a importância no núcleo central do Governo Federal. Ele aponta problemas como a execução dos contratos, tendo em vista a complexidade das obras, por se tratar de territórios em constante transformação, a falta de experiência técnica dos governos que se estende também para o setor privado, como as 38 Para dar resposta à crise econômica mundial de 2008, conhecida como a crise imobiliária americana ou a crise dos suprimes8, o Governo Federal lançou o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), instituído pela Lei 11.977, de 7 de julho de 2009, tendo como finalidade, conforme seu artigo 2º, “criar mecanismos de incentivo à produção e à aquisição de novas unidades habitacionais pelas famílias com renda mensal de até dez salários mínimos que residam em qualquer dos municípios brasileiros” (BRASIL, 2009). De acordo com a legislação (BRASIL, 2009), o PMCMV contém dois subprogramas distintos por área de atuação: o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR) e o Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU). O papel das construtoras e das entidades organizadoras (EOs) dá-se segundo a modalidade de operação. O PNHR visa subsidiar a produção ou aquisição de imóveis para agricultores, familiares e trabalhadores rurais com renda anual bruta de até R$ 60.000,00, por meio de uma entidade organizadora (EO). O PNHU trabalha com três modalidades para atender a população de baixa renda da Faixa 1: Sub 50, Entidade e Fundo de Arrendamento Residencial. Por fim, as modalidades Carta de Crédito e Imóvel na Planta, mais conhecidas como PMCMV Faixas 2 e 3. Nessa modalidade de mercado popular, o candidato ao benefício deve procurar uma agência da Caixa Econômica Federal (CEF) diretamente, e pode optar pelo financiamento para a aquisição de imóvel pronto (Carta de Crédito) ou pela construção do imóvel (Imóvel na Planta). Segundo o FNRU (2020), o PMCMV foi laborado pelo setor da construção civil para atender às suas necessidades, uma vez que o setor sofria os impactos da crise de 2008. Além de não garantir a participação do Conselho das Cidades na deliberação desse programa, a provisão de moradia passa a ter centralidade na política habitacional, dando autonomia à atuação do setor privado. construtoras e escritórios de engenharia contratados para este tipo de intervenção, e as dificuldades dos governos em arcar com os custos de contrapartida referentes a serviços que não fizeram parte dos contratos. 8 A crise mundial teve origem no estouro duma bolha imobiliária nos Estados Unidos. A bolha foi provocada pela provisão competitiva de crédito a cada vez mais compradores de habitações, gerando uma demanda em contínuo aumento por imóveis, cujos preços não cessaram de subir durante cinco anos. A alta dos preços dos imóveis realimentava a bolha, fazendo que os seus efeitos afetassem o conjunto da economia. Os novos proprietários utilizavam a valorização dos seus patrimônios, que serviam como garantia, para tomar mais empréstimos, originando gastos adicionais que transmitiam a alta a outros setores econômicos. O aumento da demanda por mais consumo alcançava até mesmo produtos importados, fazendo que os efeitos da bolha imobiliária estadunidense se propagassem pelo mundo (SINGER, 2009). 39 De acordo com Rolnik (2015), além de atender às necessidades habitacionais, o PMCMV foi criado como medida emergencial para minimizar o impacto da crise internacional de 2008 sobre o emprego e o crescimento econômico no Brasil, com o objetivo de promover o aquecimento da economia, por meio do estímulo ao setor da construção civil, segmento que gera demanda significativa por mão de obra de baixa qualificação, sendo frequentemente mobilizado como elemento de políticas econômicas anticíclicas em momentos de recessão. A autora observa que o PMCMV deveria se transformar na mais importante “ação no campo econômico-social, articulando a oferta de moradia, demanda histórica e ativo eleitoral tradicionalmente forte, com uma estratégia keynesiana de crescimento econômico e geração de renda” (ROLNIK, 2015, p. 301). Na mesma Lei Federal 1.977/2009, que dispõe sobre o “Programa Minha Casa, Minha Vida”, foi instituída em seu capítulo III a regularização fundiária de assentamentos urbanos. Este foi o primeiro marco jurídico de caráter nacional a dispor sobre a regularização fundiária em áreas urbanas de maneira abrangente. Além de conceituar, a lei cria novos instrumentos e procedimentos e define competências e responsabilidades, visando agilizar e tornar efetivos os processos de regularização, especialmente nos casos em que esteja configurado o interesse social. Desde a criação do PMCMV, em 2009, até junho de 2018, foram contratados 5,31 milhões de unidades habitacionais (UHs) e entregues 3,95 milhões, atingindo mais de 15 milhões de pessoas em todo o País. As UHs contratadas representam um investimento de R$ 430 bilhões (BRASIL, 2018). Em dezembro de 2016, havia 80% das UH concluídas pelo PMCMV, sendo 1,32 e 1,87 milhões das Faixas 1 e 2, respectivamente, e 366 mil de unidades da Faixa 3. Desse total, 3,14 milhões de UHs foram entregues, sendo 1,15 e 1,72 milhões das Faixas 1 e 2, respectivamente, e 265 mil da Faixa 3, ou seja, 71% do total de UHs contratadas (BRASIL, 2018). Referente à área de Urbanização de Assentamentos Precários, o Programa visava implementar 3.343 operações de urbanização de assentamentos precários, por meio do investimento de R$ 28,4 bilhões. Até 40 junho de 2018, foram concluídas 1.060 obras e 1.595 planos de habitação de interesse social, projetos de urbanização e ações de assistência técnica, totalizando o valor de R$ 6,4 bilhões. São ações integradas de caráter urbanístico, habitacional, fundiário, social e ambiental para mais de 470 mil famílias em 1.820 municípios. Neste momento, 679 empreendimentos se acham em execução em todo o País (BRASIL, 2018). O PMCMV atendeu, de fato, uma parcela da sociedade com renda de 0 a R$ 1.800 (Faixa 1), negligenciada historicamente pelos governos anteriores, não exigindo comprovação de renda e incluindo a população que trabalha na informalidade e possui restrições de crédito. Porém, por se tratar de uma política anticíclica criada nos moldes de resposta às crises do capital, ela trouxe várias implicações para o direito à habitação, que devem ser apontadas. Exemplos nesse sentido são a falta de articulação do planejamento urbano e habitacional, assim como a localização dos empreendimentos voltados à Faixa 1 nas periferias das cidades ou em regiões isoladas, com acesso precário aos serviços e equipamentos públicos. O estudo “Morar Longe: o Programa Minha Casa Minha Vida e a expansão das regiões metropolitanas”, realizado pelo Instituto Escolhas, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), revela que a maior crítica ao modelo do PMCMV concerne à localização dos imóveis. Como as construtoras não precisavam atrair os compradores finais, pois os beneficiários eram indicados pelos municípios, e o pagamento era garantido pelo governo, elas buscavam terrenos mais baratos, distante dos centros das cidades. Assim, as famílias ficavam privadas do acesso aos serviços de transporte, educação e saúde (INSTITUTO ESCOLHA; FGV, 2019). Para Klintowitz (2016), o PMCMV acabou se transformando no eixo central da política habitacional no Brasil, com atuação apenas na produção de novas moradias, atendendo plenamente aos interesses do mercado imobiliário e da construção civil e deixando de lado outras modalidades de enfrentamento às diferentes necessidades habitacionais. Após o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em agosto de 2016, assumiu o governo o vice-presidente Michael Temer, que deu continuidade aos programas existentes (PMCMV e PAC) e preservou a estrutura do Ministério das Cidades. Contudo, houve uma alteração nas 41 prioridades da política habitacional, com a suspensão da participação popular, uma vez que o governo, por meio do decreto 9.0769, adiou a realização da 6ª Conferência Nacional das Cidades para 2019 e retirou a função do Conselho Nacional das Cidades (Concidades) para convocar o evento e eleger o Conselho das Cidades, delegando tal atribuição ao Ministério das Cidades. O decreto também altera o intervalo de realização das Conferências, de três para quatro anos (FNRU, 2020). O PMCMV passou a priorizar as “Faixas 2 e 3” (que atendem as famílias com renda mais elevadas em relação à “Faixa 1”) e criou a “Faixa 1,5”. Assim, percebe-se a diminuição dos subsídios diretos, o que já vinha acontecendo desde 2015, e a queda da produção para a população de baixa renda. Também houve a diminuição da contratação da modalidade Entidades e a revisão de suas normativas, o que dificultou a contratação e a implementação de novos projetos (FNRU, 2020). No governo de Jair Bolsonaro, eleito em 2018, o Ministério das Cidades, que geria o programa desde sua criação, foi incorporado ao Ministério do Desenvolvimento Regional. Este governo está no início do seu segundo ano de mandato e ainda não apresentou uma proposta de política urbana e habitacional para o País. Todavia, tem deixado evidente em seus discursos que não haverá espaços institucionais de participação popular e de diálogo com os movimentos sociais de moradia. Até mesmo representantes do setor da construção civil vêm se queixando de não serem consultados sobre as medidas do governo (FNRU, 2020). O PMCMV permanece no governo, mas devido à diminuição do orçamento para subsídios ele tem sido realizado com recursos do FGTS. Tudo indica que o programa será descontinuado ou será mantido para as famílias com maiores rendas (correspondentes às “Faixas 2 e 3”) apenas com recursos do FGTS, mas em quantidades bem menores. Já a modalidade “Entidades” e as políticas de urbanização de favelas, previstas no PAC, possivelmente não terão espaço na agenda governamental (FNRU, 2020). Assim, a perspectiva é de diminuição dos espaços de controle social e de desmonte da política habitacional, assim como está ocorrendo com as 9 Ver: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/D9076.htm Acesso em 7 fev. 2020. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/D9076.htm 42 demais políticas públicas, o que é típico de governos neoliberais, com pouca intervenção do Estado e provável dependência do setor privado, e com a habitação de interesse social excluída da agenda prioritária de governo. Isso tende a piorar as condições de moradia, que já se apresentam precárias, e a acentuar a questão socioambiental, com maior cerceamento ao direito à moradia adequada (FNRU, 2020). Quanto à política de Regularização Fundiária, o FNRU (2020) aponta que o modelo nacional de regularização fundiária sofreu um ataque em 2016, com a edição da Medida Provisória 759, que revogou o capítulo III da Lei 11.977/09. Trata-se da mudança de um formato que favorecia a garantia de direitos de moradores de áreas irregulares de baixa renda, para outro que beneficia ações de titulação dos imóveis sob o regime jurídico da propriedade privada, com a ampliação de mecanismos voltados às classes média e alta. Com base nesse entendimento, foi proposto um projeto de lei (PL 4.960/2016) indicando alterações pontuais no capítulo III da Lei 11.977/09, de modo a aperfeiçoar alguns instrumentos e procedimentos da regularização fundiária. Todavia, com a ascensão de Temer, esse projeto foi retirado. Poucos meses depois, foi editada a Medida Provisória 759, em dezembro de 2016, com a revogação total e imediata do capítulo III da Lei 11.977/09 e uma modificação radical na regulamentação do instrumento e da política de regularização fundiária nacional (FNRF, 2020). O novo modelo de Regularização Fundiária, acompanhado da grave crise fiscal e política que aflige o Estado brasileiro desde antes da edição da Lei 13.465/17, revogou quase inteiramente o paradigma da regularização fundiária plena que previa melhorias urbanísticas, sociais e ambientais, antes de precedência obrigatória à titulação, de forma a garantir os direitos dos moradores de áreas irregulares (FNRF, 2020). Segundo o FNRF (2020), o novo modelo de regularização fundiária, ligado à formalização por meio da concessão de títulos, se mostra mais barato, rápido e de maiores resultados políticos ao executor da política pública, com base na propriedade privada individual. Diante do breve histórico da política habitacional, conforme abordado anteriormente, o Estado brasileiro mostrou-se incapaz de estabelecer políticas habitacionais que garantam o direito à moradia para a maioria da população. 43 Observou-se que os programas habitacionais criados pelos governos desde a década de 1920 foram fragmentados e descontinuados, o que resultou no atendimento insuficiente das demandas, levando parte da população a buscar, por conta própria, resolver essa questão, muitas vezes de forma precária, informal e distante dos centros urbanos. Ademais, as intervenções do poder público para atender a população de baixa renda, com habitação subsidiada, não levaram em conta a capacidade financeira das famílias de arcar com os custos, o que acabou por excluir grande parte da população. Essa realidade se alterou apenas em 2009 com o PMCMV, que previa o atendimento àqueles que não conseguem comprovar renda fixa. Outra questão importante na trajetória da política habitacional é o fato de o Estado, durante os períodos de ditadura e de opressão aos movimentos sociais, diminuir os investimentos na habitação de interesse social, quando a conjuntura assim o favorece, e de retomar esses investimentos nos momentos de perda de legitimidade de poder e de organização população. O percurso da Política Habitacional (e suas nuances) pode oferecer pistas de como uma sociedade organizada e mobilizada pode influenciar e mudar os rumos da história. Faz-se necessário salientar que a falta de moradia adequada e os problemas a ela relacionados impactam negativamente na vida da população de baixa renda que aces