Fernando Luís de Morais Literatura (d)e resistência: o grito aguerrido de escritores quare São José do Rio Preto 2023 Campus de São José do Rio Preto Fernando Luís de Morais Literatura (d)e resistência: o grito aguerrido de escritores quare Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Letras, área de concentração em Teoria e Estudos Literários, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Orientadora: Profª. Drª. Cláudia Maria Ceneviva Nigro São José do Rio Preto 2023 M827l Morais, Fernando Luís de Literatura (d)e resistência: : o grito aguerrido de escritores quare / Fernando Luís de Morais. -- , 2023 252 p. : il. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto, Orientadora: Cláudia Maria Ceneviva Nigro 1. Identidade de raça/etnia, gênero e classe. 2. Interseccionalidade. 3. Analítica queer/quare. 4. Thomas Grimes. 5. Waldo Motta. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Fernando Luís de Morais Literatura (d)e resistência: o grito aguerrido de escritores quare Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Letras, área de concentração em Teoria e Estudos Literários, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Financiadora: CAPES Comissão Examinadora Profª. Drª. Cláudia Maria Ceneviva Nigro UNESP – São José do Rio Preto Orientadora Profª. Drª. Carla Alexandra Ferreira UFSCar – São Carlos Profª. Drª. Dantielli Assumpção Garcia UNIOESTE – Cascavel Prof. Dr. Emerson da Cruz Inácio USP – São Paulo Profª. Drª. Maria Angélica Deângeli UNESP – São José do Rio Preto São José do Rio Preto 09 de março de 2023 Este trabalho – e seus possíveis frutos – é dedicado “àqueles de nós cuja existência social é matizada pelo terror; àqueles de nós para quem a paz nunca foi uma opção; àqueles de nós que fomos feitos entre apocalipses, filhos do fim do mundo, herdeiros malditos de uma guerra forjada contra e à revelia de nós; àqueles de nós cujas dores confluem como rios a esconder-se na terra; àqueles de nós que olhamos de perto a rachadura do mundo, e que nos recusamos a existir como se ele não tivesse quebrado”. (MOMBAÇA, 2017, p. 20, adaptação nossa). AGRADECIMENTOS ESPECIAIS Para alcançar seu lugar no mundo, você deve ser você mesmo, e também reivindicar pelo Outro; deve acreditar na sua verdade, e não na “verdade” que lhe é impingida garganta abaixo. Na busca de quem sou, “[f]alo da minha entrega fatídica e cotidiana em continuar porque, apesar da dor e da luta, preciso resistir. preciso resistir. preciso resistir”. Nesse sentido, esta tese – escrita com suor negro e sangue negro e lágrimas negras – representa uma decolonização de conhecimentos, meu grito aguerrido e indignado, minha luta de resistência contra o cis-heteropatriarcardo branco e elitista que, incansavelmente, tenta amordaçar a minha boca – e tantas outras – e subjugar o meu corpo – e tantos outros – às suas regras arbitrária e eurocentricamente estabelecidas. Configura, de mais a mais, minha diligência e militância antirracista, antissexista, antitrans/homofóbica, anticlassista empreendidas contra o autoritarismo desmesurado e descompassado, que me abate, dizima, massacra e assassina: “I can’t breathe!, I can’t breathe!, I can’t breathe!” Embora interseccionado por inúmeros eixos de opressão, o “subalterno” pode, sim, falar. Aliás, não só pode como deve, ainda, G-R-I-T-A-R um grito que é (e necessita ser!) suficientemente potente para, assim, ferir os tímpanos e estilhaçar os mecanismos de uma sociedade opressora, regida pela lógica da normalização. Como bem coloca o filósofo Jean- Paul Sartre, “[o] que vocês esperavam acontecer quando tiraram a mordaça que tapava essas bocas negras? Que entoassem hinos de louvor? Que as cabeças curvadas pelos nossos pais, à força, até o chão, quando se reerguessem, revelassem adoração nos olhos?” Meu grito não é vindicação feita de uma única voz. Há, com ele, outras várias, em uníssono, que ganham força e ressoam. Diante desse fato, agradecer àquelas que se aliam à minha é digno e preciso. Minha gratidão mais profunda e sincera é dedicada àquela que, desincrustando-me da concha que me resguardava de um mundo cruel e atroz, fez-me perceber o quanto sou uma pérola preciosa. Àquela que, cruzando meu caminho, foi capaz de colar as migalhas do meu coração, espatifado pela incredulidade alheia. Àquela que, tomando-me pela mão, aplacou meus medos, mitigando minhas incertezas, sem nunca, nem sequer por um átimo de segundo, duvidar de minhas potencialidades: a querida orientadora-mãe-amiga-salvadora Profa. Dra. Cláudia Maria Ceneviva Nigro. I was hopeless and broken, you opened the door for me. Yeah, I was hiding and you let the light in, and now I see That you do for the wounded what they couldn’t seem to, [you set them free Like a butterfly kissing a child with an eye for the minor key. Nos instantes mais árduos – e nada raros – nesta minha odisseia pela academia, foi ela quem sempre me inspirou confiança sobre o resultado positivo a ser alcançado ao final desta árida mas recompensadora etapa. Sou grato por cada gesto humano e leniente, cada palavra encorajadora, cada conselho, cada sugestão. Muito obrigado! A precariedade das palavras não me permite propriamente expressar minha profunda gratidão aos meus admiráveis orientadores, Prof. Dr. Jesse Arseneault, na Université Concordia (Montreal, Canadá), e Prof. Dr. Domenico A. Beneventi, na Université de Sherbrooke (Sherbrooke, Canadá) durante os períodos sanduíche de pesquisa. Sou-lhes grato pelo apoio inequívoco, brilhantismo, orientação, inspiração, compaixão, humor e amizade e, igualmente, por me desafiarem de modo contínuo, ensinando-me o que significa ser um estudioso comprometido com o ensino e a pesquisa e, sobretudo, a trabalhar com paixão. É inegável que seus acolhimentos e conversas constantes foram uma fonte vital e prenhe de inspirações para dar forma a este trabalho desde os estágios iniciais. I thank you and salute you! Embora ditos à exaustão, não há – e, seguramente, jamais haverá – “obrigado” o bastante para agradecer meu bem maior, meu eterno xodozinho: Heitor, sobrinho querido, por quem nutro um amor ignaro de quaisquer restrições, mensurações ou destrutibilidades. Como serei, algum dia, capaz de expressar todo o amor encerrado em meu coração? Nem céus, mares, montanhas ou quaisquer outros impedimentos afastá-lo-ão de mim, e juro estar ao seu lado, do berço ao túmulo. Que eu seja o mundo que você é para mim, mon petit prince. “[O] que eu sou pra você ele pergunta / [...] você / é toda esperança / que eu já tive / na forma humana”. “Escolheria você ainda que / não soubesse da sua existência: / daria conta de te inventar só para me sentir / mais seguro no mundo.” Muito obrigado, “coisinha mais rica da vida do tio”, por, nas mais prosaicas atitudes, ensinar-me, de modo despretensioso, a observar as circunstâncias por outros e inusitados ângulos. AGRADECIMENTOS Inicio estes agradecimentos de modo inusual, ao revés, pois são, primeiramente, dirigidos àqueles que passaram por minha vida, mas com os quais não posso mais contar por razões inúmeras. Eles – todos – ensinaram-me uma imprescindível lição: “[o]nde não houver respeito, reciprocidade e afeto não existem motivos pra permanecer”, afinal “se você se doou por inteiro e, mesmo assim, o outro não enxergou a sua entrega, quem perdeu não foi você.” Por esses preciosos ensinamentos, meu mais sincero “obrigado”. Meu apreço e gratidão cabais à minha família – meu altar sagrado – não só pela compreensão e amor imensuráveis mas também pelo amparo incondicional mesmo na cinza das horas. Minhas lutas constantes e cada uma das cicatrizes que carrego são por vocês, sem os quais minha existência seria frívola. Graças a vocês, existo sobre esta terra, continuo seguindo adiante e jamais me calo. Thank you for loving me, For being my eyes When I couldn’t see, For parting my lips When I couldn’t breathe. Thank you for loving me. “Não desejo tratar minhas amizades de maneira delicada, mas com a mais brava coragem. Quando são reais, não são fios de vidro ou flocos de neve, mas, sim, a coisa mais sólida que conhecemos.” Portanto, pela solidez das relações construídas au fil du temps, devo- lhes muitos agradecimentos Alan Casteluber, Daniel Caetano, Eduardo Liebana, Fábio Pinheiro, Gabriela Frutuoso, Gustavo Caetano, Héber da Rocha, Henrique de Seta, Júnior Melo, Karina Rodrigues, Márcia do Carmo, Misael Machado e Ronaldo Groto, amigos excelentes, “que carregam o mundo para mim até novas e nobres profundidades, e ampliam o significado de todos os meus pensamentos”. Sou e serei eternamente grato ao Daniel Beaupré, meu porto seguro, por me fazer sentir sempre pronto para enfrentar meus medos, minhas angústias, minhas fraquezas. Obrigado por me alimentar de esperança e de força e me dar novas cores. Je te remercie infiniment ! O exercício de escrita de uma tese é uma tarefa laboriosa e um desafio instigante. Gostaria, pois, de agradecer a muitas vozes que contribuíram significativamente para o desenvolvimento de minhas reflexões ao longo do percurso de produção deste trabalho. São elas: - as Professoras Doutoras Carla Alexandra Ferreira (UFSCar) e Maria Angélica Deângeli (IBILCE/UNESP) pela generosidade, pela leitura diligente e pelas oportunas sugestões oferecidas durante a qualificação desta pesquisa; - os Professores Doutores Carla Alexandra Ferreira (UFSCar), Dantielli Assumpção Garcia (UNIOESTE), Emerson da Cruz Inácio (USP) e Maria Angélica Deângeli (IBILCE/UNESP), componentes da banca de defesa, pelas sugestões detalhadas de mudanças e adições particularmente relevantes – aportes substanciais no aperfeiçoamento desta tese. - os integrantes do Grupo de Estudos Gênero e Raça do IBILCE/UNESP; - Jordan Rogers, meu irmão (gêmeo) americano de pesquisa, por disponibilizar recursos inestimáveis para a produção deste texto. Thanks, bro!; - os colegas de graduação e pós-graduação, inúmeros para serem aqui elencados. No entanto, desejo citar três deles em especial: Alex Wagner Dias, André Luiz Menezes de Morais e Thiago Sanches. Sou grato pelas nossas conversas, por vezes, lamentosas e dolorosas, mas sempre cingidas de muito carinho e encorajamento. Vocês são exemplos contínuos de humanidade; - o Programa Futuros Líderes das Américas (ELAP), coordenado pelo governo canadense, pela dupla oportunidade de desenvolvimento de estágio de pesquisa no exterior. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Em resumo, sou grato For my family that raised me (Shout out! Shout out!), And my teachers that done praised me (Shout out! Shout out!), To anyone who tried to hate on me (Shout out! Shout out!), Even the ones who tried to break me, Even the ones who tried to take me down. […] To all the givers and the takers, To my crew from way back when, To the cold wars and the stares, And the ones that I ain’t met. For myself for sticking with me, For the ones I miss from up above, Anyone who’s ever been a part of me Para todos/as vocês, Ain’t got nothin’ but love. Nothin’ but, Nothin’ but, Ain’t got nothin’ but love! porque a memória é uma pele. membrana mesmo, dessas que vão acabando com nossa sanidade, fazendo a gente rever e desconstruir conceitos. (SILVA, 2017, p. 103). [...] eles virão para nos matar, porque não sabem que somos imorríveis. Não sabem que nossas vidas impossíveis se manifestam umas nas outras. Sim, eles nos despedaçarão, porque não sabem que, uma vez aos pedaços, nós nos espalharemos. Não como povo, mas como peste: no cerne mesmo do mundo, e contra ele. (MOMBAÇA, 2017, p. 20). Conheço bem aquilo que dói. Leio sobre cada parte do meu corpo a história de uma humilhação. Quando se mastiga a mordaça apenas o corpo medita, melancólico, voluntarista, fora de foco, aquém ou além do que se trata. O corpo não se cala, é testemunha voluntária. O corpo pede para ter voz. O que não foi dito pode ser esquecido? Só o que não se diz é preciso dizer. O verbo se faz carne pelo silêncio. Minhas mãos fazem gestos de lavrador, cuja feroz agricultura me promete o esquecimento. (SISCAR, 2006, p. 21). Por que eu escrevo? Porque eu necessito. Porque minha voz, em todos seus dialetos, tem sido silenciada por muito tempo. (SAM-LA ROSE, 2002, p. 60, tradução nossa). A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos. (EVARISTO, 2007, p. 21). RESUMO Numa sociedade intransigente, que relega ao limbo os indivíduos cujas identidades raciais/étnicas, de gênero e de classe distanciam-se dos ditames preconizados pelo hegemônico padrão eurocêntrico, cis-heterossexual, de classe média/alta, afirmar-se negro-gay-pobre, valorizando a própria identidade, constitui um processo de resistência e confronto em face da constante invisibilidade, obliteração e silenciamento. À vista disso, interessa-nos, nesta tese, perscrutar esses recintos a fim de investigar de que modo a interseccionalidade entabulada entre raça/etnia, gênero e classe em autores negros-gay (pobres) repercute em suas produções literárias, operando como manobra de insubordinação às inflexíveis diretrizes hegemônicas. A partir de uma triagem dos poemas de Thomas Grimes compilados nas antologias Poets on the Horizon: A Collection of Poetry (1988), Milking Black Bull: 11 Gay Black Poets (1995) e em seu livro Reclamations (1994), da produção poética de Waldo Motta nos livros Eis o homem (1987) e Bundo e outros poemas (1996), e também dos escritos que compõem a coletânea In the Life: A Black Gay Anthology ([1986] 2008), buscaremos desbravar leituras que indiciem como os sujeitos negros-gay-pobres foram – e ainda têm sido – subjugados ao anonimato e invisibilizados não só enquanto escritores mas enquanto sujeitos sociais e políticos. Sustentamos que essas produções escritas atuam como um arsenal de instrumentos de denúncia das discriminações sociais e da precária posição ocupada por sujeitos negros-gay de classe baixa num reduto marcado pelos parâmetros da branquidade, da heterossexualidade e do classismo. As reflexões aqui construídas estão em consonância com as analíticas queer e quare. O aporte crítico-teórico sobre o qual se sustenta este trabalho abrange obras como as de Almeida (2018), Butler (2014, 2016, 2018, 2019), Campbell e Kean (1997), Collins e Bilge (2016), Crenshaw (1995), Hall (2003), Johnson (2005), Lorde (2007, 2019), Restier e Souza (2019) e Wilchins (2004). PALAVRAS-CHAVE: Identidade de raça/etnia, gênero e classe. Interseccionalidade. Analítica queer/quare. Thomas Grimes. Waldo Motta. ABSTRACT In an uncompromising society which relegates to limbo individuals whose race/ethnic, gender, class identities deviate from the dictates advocated by the hegemonic Eurocentric, cis- heterosexual, middle/upper-class pattern, asserting oneself as a Black gay poor male, proud of one’s identity, constitutes a process of resistance and confrontation in the face of continual invisibility, obliteration and silencing. In view of this, this doctoral dissertation aims to peer into these zones in order to investigate how the intersectionality between race/ethnicity, gender and class in Black gay (poor) authors is reflected in their literary productions, operating as a maneuver of insubordination to the inflexible hegemonic directives. From a selection of poems of Thomas Grimes compiled in the anthologies Poets on the Horizon: A Collection of Poetry (1988), Milking Black Bull: 11 Gay Black Poets (1995) and in his book Reclamations (1994), from the poetic production of Waldo Motta in the books Eis o homem (1987) and Bundo e outros poemas (1996), and also the writings that compose the collection In the Life: A Black Gay Anthology ([1986] 2008), we attempt to determine readings which indicate how Black gay poor subjects were – and still have been – subjected to anonymity and rendered invisible not only as writers but also socially and politically. We argue that such written productions serve as an arsenal of instruments for denouncing both social discrimination and the precarious position occupied by Black gay lower-class individuals in a stronghold marked by the parameters of whiteness, heterosexuality and classism. The reflections developed here are in line with Queer and Quare analytics. The theoretical framework under which this study is carried out is based mainly upon the contributions of Almeida (2018), Butler (2014, 2016, 2018, 2019), Campbell and Kean (1997), Collins and Bilge (2016), Crenshaw (1995), Hall (2003), Johnson (2005), Lorde (2007, 2019), Restier and Souza (2019) and Wilchins (2004). KEYWORDS: Race/ethnic, gender, class identities. Intersectionality. Queer/Quare analytics. Thomas Grimes. Waldo Motta. RÉSUMÉ Dans une société intransigeante qui relègue aux oubliettes les individus dont les identités de race/ethnie, de genre, de classe s’écartent des diktats préconisés par le modèle hégémonique eurocentrique, cis-hétérosexuel, de classe moyenne/supérieure, s’affirmer en tant qu’un homme noir-gay-pauvre, fier de son identité, constitue un processus de résistance et de confrontation face à l’invisibilité, à l’effacement continuel et à la mise en silence. Dans cette optique, cette thèse de doctorat vise à scruter ces zones afin d’étudier comment l’intersection entre la race/l’ethnie, le genre et la classe chez les auteurs gays-noirs (pauvres) se reflète dans leurs productions littéraires, opérant comme une manœuvre d’insubordination aux directives hégémoniques inflexibles. À partir d’une sélection de poèmes de Thomas Grimes compilés dans les anthologies Poets on the Horizon: A Collection of Poetry (1988), Milking Black Bull: 11 Gay Black Poets (1995) et dans son livre Reclamations (1994), de la production poétique de Waldo Motta dans les livres Eis o homem (1987) et Bundo e outros poemas (1996), ainsi que des écrits qui composent le recueil In the Life: A Black Gay Anthology ([1986] 2008), on essaie de déterminer les lectures qui indiquent comment les sujets gays-noirs pauvres ont été – et sont encore – soumis à l’anonymat et rendus invisibles non seulement en tant qu’écrivains mais aussi en tant que sujets sociaux et politiques. On soutient que ces productions écrites servent d’arsenal d’instruments pour dénoncer, à la fois, la discrimination sociale et la position précaire occupée par les hommes gays-noirs de la classe inférieure dans un bastion marqué par les paramètres de la blancheur, de l’hétérosexualité et du classisme. Les réflexions développées ici s’inscrivent dans la lignée de l’analytique queer et quare. Le cadre théorique dans lequel s’inscrit cette étude est principalement basé sur les contributions de Almeida (2018), Butler (2014, 2016, 2018, 2019), Campbell et Kean (1997), Collins et Bilge (2016), Crenshaw (1995), Hall (2003), Johnson (2005), Lorde (2007, 2019), Restier et Souza (2019) et Wilchins (2004). MOTS-CLÉS: Identité de race/ethnie, genre et classe. Intersectionnalité. Analytique Queer/Quare. Thomas Grimes. Waldo Motta. ILUSTRAÇÕES As ilustrações utilizadas nas aberturas dos capítulos desta tese são creditadas ao artista nigeriano Ken Nwadiogbu. Todas elas foram extraídas diretamente de seu site oficial: https://www.kennwadiogbu.com/. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ROMPENDO A BASTA REDOMA QUE CINGE O LIMBO (OU A MINHA VOZ AINDA ECOA VERSOS PERPLEXOS COM RIMAS DE SANGUE) ............................ 17 CAPÍTULO 1 A MORDAÇA QUE TAPA A BOCA PRETA (OU OUTROS JEITOS DE USAR A BOCA) ..................................................................................................................................... 29 1.1 Desfazendo o nó na garganta: a abolição do silêncio ................................................... 29 1.2 A máscara do silenciamento: vozes constrangidas à absoluta mudez .......................... 53 1.3 Autoexpressão e contramemória: dispositivos de resistência ....................................... 58 1.4 Mas pode o subalterno falar?: gritando (em) nosso próprio nome, (em) nossa própria língua ...................................................................................................................................72 CAPÍTULO 2 TRANSPLANTANDO AS MARCAS FUSTIGANTES DA PELE À PALAVRA (OU PRECEITUÁRIO PARA RACISTAS, HOMOFÓBICOS E ELITISTAS) ..................... 93 2.1 Uma história que se passa na penumbra, e é preciso que o sol transumante que trago comigo clareie os mínimos recantos ..................................................................................... 95 2.2 Mas, depois, o bofe bebe pinga e me xinga e me espanca e me crava uma faca no corpo: o modelo taxativo do gênero e suas violências .................................................................. 121 2.3 Sob a parca luz de uma lâmpada de 40 volts, numa caxanga suburbana: a diferença de classe não é menos ofuscante ............................................................................................. 135 CAPÍTULO 3 NO CU DE EXU, A LUZ (OU ROTAS INTERSECCIONAIS E AS VIAS CRUCIS DO CORPO) ................................................................................................................................ 161 3.1 Encruzilhadas e interseccionalidades: desmantelando o i(deo)lógico alicerce da casa grande para fundar o (est)ético mosaico das diferenças ..................................................... 162 3.2 O corpo-templo quare ressignificado: a materialidade como locus do flagelo e do gozo 191 CONSIDERAÇÕES VOZES E GRITOS POSSÍVEIS (OU NÃO FOMOS FEITOS COM LEVEZA NA LÍNGUA) ............................................................................................................................... 225 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 233 ANEXO .................................................................................................................................. 248 Biografias atualizadas (2008) ............................................................................................. 248 diretamente de seu site oficial: https://www.kennwadiogbu.com/. 17 INTRODUÇÃO ROMPENDO A BASTA REDOMA QUE CINGE O LIMBO (OU A MINHA VOZ AINDA ECOA VERSOS PERPLEXOS COM RIMAS DE SANGUE) nossas costas contam histórias que a lombada de nenhum livro pode carregar (KAUR, 2017, p. 164). Que eu sou uma bicha louca, preta, favelada Quicando eu vou passar e ninguém mais vai dar risada Se tu for esperto, pode logo perceber Que eu já não tô pra brincadeira Eu vou botar é pra foder (DA QUEBRADA, 2017). Quando a questão da identidade (dentre as quais as de raça/etnia, gênero e classe) é trazida à cena, pelo menos no contexto da contemporaneidade, assistimos a uma inevitável renúncia de quaisquer presunções que reconheçam os sujeitos como unos, fixos, estáveis. O arcaico e desgastado consenso a respeito do sujeito centrado, senhor de si, ruiu-se e foi sobreposto por outras concepções mais arejadas e maleáveis. Nessa atual conjuntura, a identidade cis-heterossexual, branca, de classe elitizada, por muito tempo consolidada como o paradigma hegemônico por natureza, abre-se a uma contestação sem precedentes, e sujeitos há muito empurrados em direção ao limbo por não se conformarem a essa configuração imposta passam a vislumbrar uma possibilidade de reconstruírem suas histórias. No circuito das identidades excluídas, raça/etnia, gênero e classe são algumas das categorias que, ao longo do tempo, têm sido encaradas como esferas de experiências mutuamente excludentes. No entanto, tais discriminações, quando dirigidas a corpos negros cuja identidade sexual é tida como dissidente, não podem ser classificadas como instâncias estanques. A professora de direito, pesquisadora e ativista norte-americana Kimberlé Crenshaw alerta sobre os riscos dessa homogeneização. No artigo “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color” [Mapeando as margens: interseccionalidade, políticas de identidade e violência contra mulheres racializadas], 18 publicado pela primeira vez em 1991, explica, contrariando alguns críticos, que as políticas identitárias não negligenciam o reconhecimento das diferenças, mas, antes, desconsideram ou desmerecem as diferenças existentes dentro do próprio grupo. Os dizeres de Crenshaw, no artigo em tela, objetam uma postura reducionista de perceber a complexidade do mundo em termos simplistas e plenos. Contudo, quando se trata de desigualdades sociais, é imprescindível recompor as diferentes dimensões que orbitam a identidade do sujeito, a fim de compreender como esses múltiplos eixos trabalham conjuntamente. Ao propor a utilização da interseccionalidade como ferramenta analítica, a autora leva-nos a pensar e perceber os numerosos níveis de injustiça social e de discriminação. Os estudos de gênero, particularmente em sua vertente queer, parecem carecer de atenção quanto às interseccionalidades entabuladas entre gênero, raça/etnia e classe, para citarmos apenas algumas das potenciais instâncias (JOHNSON, 2005 [2001]; TAYLOR, 2009; MOORE, 2011). Por esse ângulo, o aparato analítico ora em questão parece focalizar as preocupações de LGBTQIA+ brancos, de classe média/alta – aqueles cujas identidades de gênero, raça/etnia e classe distanciam/desvirtuam em menor grau da matriz de sujeitos hegemônicos. Darnell Moore (2011), ao interrogar a presença negra no projeto queer, reconhece que, para serem amoldáveis aos sujeitos racializados, os estudos queer deveriam colocar em xeque as perspectivas enraizadas em noções de branquidade e privilégio branco – princípios revigorantes de uma ideologia racista. O autor e crítico midiático americano Earl Hutchinson, por sua vez, argumenta em “My Gay Problem, Your Black Problem” [Meu problema de gay, seu problema de negro] (2001, p. 3) que, se os gays brancos são encarados como uma “abominação”, os gays negros são “os párias dos párias” em uma sociedade onde se presumem homens negros como “menos que homens”, de acordo com os padrões artificiais do que é ser, de fato, homem. Pautado nessas duas leituras, pressupor que todos os queers são tangidos pelos mesmos mecanismos de opressão implica corroborar forças propulsoras de uma matriz normativa elidente de outras diferenças, supressora dos sujeitos. Tal presunção passa, embora de forma indeliberada, pelo crivo da recusa em legitimar a identidade como cambiante, como um emaranhado inextricável e contingente que trafega pelo sujeito. Por conseguinte, qualquer tentativa de análise dos sujeitos respaldada unicamente na noção de identidade de gênero é, por assim dizer, restritiva, pois desautoriza a emergência de outras identidades patentes porém abafadas. Se há, como evidencia Judith Butler no título do célebre livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (2016 [1990]), um ou diversos problemas de gênero, há, igualmente, como anuncia Johnson (2005 [2001]), um ou diversos “problemas de raça/etnia” 19 que incidem sobre a “teoria” queer. Ao trazer a lume a multiplicidade de posições de sujeitos elididos por essa corrente de pensamento, E. Patrick Johnson, professor de Estudos Afro- americanos e Perfomance na Northwestern University, Estados Unidos, propõe um novo eixo de investigação: os estudos quare. Em “‘Quare’ studies, or (almost) everything I know about queer studies I learned from my grandmother” [Estudos ‘quare’ ou (quase) tudo o que sei sobre estudos queer aprendi com minha avó],1 artigo datado de 2001 e republicado em 2005, o teórico propõe a reconceptualização dos estudos queer, visando a transformar o “simplesmente queer” em quare, a fim de abranger as categorias de raça/etnia e classe e viabilizar uma estratégia de leitura da sexualidade racializada e politizada. Em crítica às inadvertências e insuficiências da analítica queer, argumenta que, em razão de essa “teoria” dedicar-se diligentemente ao debate de noções como subjetividade/individualidade, agência e experiência, omite, embora de modo involuntário, questões enfrentadas por LGBTQIA+ negros provenientes de comunidades “racializadas”. A problemática trazida à luz por Johnson é uma tentativa de correção da miopia caracterizadora do domínio investigativo dos estudos queer. A conjunção entre a significância das considerações aventadas por esse estudioso e a instituição de um novo campo de estudos é a pedra angular de um empreendimento lúcido cujo propósito é minar e combalir as pressuposições teóricas ainda permeadas por certo teor de privilégio dos estudos queer. Esse passo assertivo permite, portanto, retraçar uma trajetória na qual gênero, raça/etnia e classe são esquadrinhados, construindo experiências particulares e discursos contra-hegemônicos que transcendem uma política de identidade mais austera para dialogar com as múltiplas opressões. Adotar uma visada predisposta ao entendimento de que as diferenças existem, devendo ser reconhecidas e respeitadas, é oportunizar a narração da história a partir de um ponto de vista diferente, sem, para isso, usar as “ferramentas do mestre” (LORDE, 1979). A conquista desse espaço, dessa voz, até então interditos, promove “fissuras na ordem social essencialista apregoadora de um discurso que nega as diferenças e enfatiza um pensamento dicotômico e preconceituoso” (JESUS; CARBONIERI; NIGRO, 2017, p. 12). Aliás, a heterogeneidade do mundo e, por conseguinte, o enredamento da experiência humana são impossíveis de serem refreados e abarcados sob a jurisdição de um modelo correligionário de um único fator: a invariabilidade. Cada indivíduo dispõe de um mundo atravessado por uma visão particular. Não há, portanto, uma realidade já, e desde sempre, absoluta; não há ser já, e desde sempre, o 1 A tradução deste ensaio para a língua portuguesa pode ser encontrada, na íntegra, no livro Analítica Quare: como ler o humano (2020), de Fernando Luís de Morais. 20 mesmo. Com efeito, a homogeneização da identidade conduz ao “perigo de uma história única” (ADICHIE, 2019). A quebra dessa “visão única” representa um desnudamento de estigmas opressores e, sobretudo, a deglutição de parâmetros sedimentados. Assim, numa dinâmica de ruptura, problematizar a invisibilidade e o emudecimento dos sujeitos cujas identidades não se amoldam aos ditames preconizados pelo prevalente padrão eurocêntrico, heterossexual, de classe elitizada, e expandir a presença desses sujeitos ditos dissidentes significa romper a basta redoma que cinge o limbo e resgatar-lhes as vidas/vozes. O campo da produção literária, gerador e disseminador de discursos, ainda é fortemente assinalado como espaço excludente. Uma rápida olhadela no inventário de autores elencados no cânone da literatura – quer local, quer mundial – evidencia um protótipo hegemônico de sujeito. Em outros termos, são, sobretudo, homens, cis-heterossexuais, brancos, de classe média/alta, radicados em grandes centros urbanos. Por conseguinte, essa mesma e prevalecente materialidade (também corporal) encontra-se espelhada em suas produções. Ao Outro, configurado como diferente, resta uma completa supressão ou, na melhor das hipóteses, uma condição de mudez e subalternidade, frequentemente crivada de estereótipos. Conforme registra Regina Dalcastagnè, “[d]aí a tensão presente em textos de escritores e escritoras provenientes de outros segmentos sociais, que têm de se contrapor a essas representações já fixadas na tradição literária e, ao mesmo tempo, reafirmar a legitimidade de sua própria construção.” (DALCASTAGNÈ, 2007, p. 17). Esse empreendimento tensivo e cáustico de contestação traduz-se naquilo sugerido pelo crítico literário José Guilherme Merquior (1996) como sendo uma das funções históricas da literatura: a problematização da vida. Em outros termos, significa a “hipertrofia da visão problematizadora” exteriorizada em uma “atitude crítica ante a existência” e a sociedade (MERQUIOR, 1996, p. 208-209). Se, por um lado, o campo literário pode ser caracterizado como espaço monopolizador de lugares de fala (supostamente “superiores”) e, inevitavelmente, de exclusão, por outro, presta-se como arena de combate na qual a consecução da fala e a validação de vozes “marginalizadas” é reclamada – afinal, os “espaços podem ser interrompidos, apropriados e transformados por meio da prática artística e literária” (HOOKS, 2015, p. 234, tradução nossa).2 São essas vozes dissonantes, cotidianamente enclausuradas em redutos negligenciados, as grandes produtoras de narrativas que trafegam no contrafluxo de discursos ortodoxos, fomentando um contínuo desafio contra o cis-heteropatriarcado branco e elitista. Nesse sentido, 2 “[…] spaces can be interrupted, appropriated, and transformed through artistic and literary practice” (HOOKS, 2015, p. 234). 21 tal qual numa prática de resistência, a literatura produzida por escritores como Thomas Grimes, Waldo Motta, Essex Hemphill e tantos outros – cujas vozes ainda ecoam versos perplexos com rimas de sangue e fome3 – esquiva-se do parnaso para se embrenhar no gueto e desvelar uma realidade opressora. Ao empreender tal prospecção e esquadrinhar recintos preteridos, oportuniza-se uma alforria de sujeitos socialmente proscritos. O dramaturgo, ator, artista performático e poeta Thomas Anthony Grimes (1957 - 2003) contribui de forma crucial para o resgate dessas vidas obliteradas. Ao tratar das mazelas que assolam os sujeitos negros-gay, a literatura por ele produzida deflagra um horizonte de (co)existências plurais, um cenário onde as vozes “desarmônicas” podem ressoar como um canto tenaz, refutando o totalitarismo e as formas de dominação. Grimes, empreendendo um desvencilhamento da ótica convencional e cristalizada no panorama da literatura, utiliza-a como ferramenta para suplantar o problemático estreitamento de visão arraigado no âmbito da sociedade norte-americana (mas também recorrente em tantas outras). Notadamente no que diz respeito à produção poética, seus textos circularam por diversos meios como em Black/Out, The Black Voice, The Boston Herald, The Boston Globe, Roxbury Community News, e nas antologias Poets on the Horizon: A Collection of Poetry e em Reclamations. Seus trabalhos são lidos e performados no The Dark Room, The Cantab Lounge, The Nuyorican Poets Café e The Blue Note em Manhattan, The Lizard Lounge, e no International Poetry Slam em 1993, em São Francisco. A poesia do autor também integra outras antologias como Milking Black Bull: 11 Gay Black Poets, editada por Assotto Saint, e Deep Talk, publicada pela editora Parfait de Cocoa Press. Não obstante seu ativismo, seu comprometimento com ações representativas do movimento LGBTQIA+ e sua notável produção (em diversos domínios que não só o da literatura), Grimes é um autor a respeito do qual há uma exígua fortuna crítica. Suas publicações perderam-se no tempo. Alguns números resgatados aqui e acolá, no entanto, dão mostras de sua postura. Por isso, se, sob o efeito dessa carência, surge um entrave em se realizar uma investigação com base em publicações disponíveis, abre-se, em contrapartida, um caminho prolífico sobre a nova literatura na pesquisa acadêmica. Quanto às obras acessíveis desse autor, contamos apenas com os poemas publicados em três antologias, Poets on the Horizon: A Collection of Poetry [Poetas no horizonte: uma coletânea de poesias] (1988), Reclamations [Reivindicações] (1994) e Milking Black Bull: 11 Gay Black Poets [Tirando leite de touros negros: 11 poetas negros-gay] (1995), que constituem 3 Fazemos, aqui, uma apropriação/adaptação dos versos do poema “Vozes-mulheres”, de autoria de Conceição Evaristo. (EVARISTO, 2017, p. 10-11). 22 parcialmente o corpus do nosso trabalho. Quanto ao material científico produzido acerca do autor, valemo-nos dos trabalhos pioneiros Nothing is black or white, it can also be g(r)ay: a study of identity constructions in Thomas Grimes’ poetry [Nada é preto ou branco, pode-se também ser cinza/gay: um estudo das construções identitárias na poesia de Thomas Grimes] (2012) e Diamantes negros sob um arco-íris multicolorido: as identidades negras-gay na poesia de Thomas Grimes (2019), ambos assinados por Fernando Luís de Morais. Ao lado de Grimes, o poeta capixaba Edivaldo Motta (conhecido anteriormente como Valdo Motta, e, agora, como Waldo Motta) é outro escritor engajado na tarefa do resgate dos sujeitos subalternizados pela cor da pele, pela identidade de gênero e pela condição social. Quare – avant la lettre – em todos os sentidos e intersecções do termo, Motta, nascido no interior do Espírito Santo, em 27 de outubro de 1959, é um poeta que não tem medo de ousar, de ser irreverente ou profanador. Tendo iniciado sua jornada literária no fim dos anos 1970, possui uma dezena de obras: Pano rasgado (1979), Os anjos proscritos e outros poemas (1980), O signo na pele (1981), As peripécias do coração (1981), Obras de arteiro (1982), De saco cheio (1983), Salário da loucura (1984), Eis o homem (1987), Poiezen (1990), Bundo e outros poemas (1996), Cidade cidadã. A cor da esperança (1998), Transpaixão (1999), Recanto - poema das sete letras (2002) e Terra sem mal (2015). Desde a publicação do livro Bundo e outros poemas, em 1996, tem sido um dos poetas mais intrigantes no cenário nacional. Dotado de uma sagacidade suis generis, sua escrita é um exercício inveterado de reflexão existencial, forçando-nos a lançar sobre ela um olhar cauteloso porém desautomatizado, aberto a excêntricas e insólitas possibilidades. Debruçar-se sobre a obra poética desse escritor requer uma radical e perpétua desestabilização de concepções sagradas e, portanto, imaculadas do panorama da literatura brasileira – recinto ainda interditado ou pouco acessível àqueles que habitam um corpo, uma pele ou uma posição que os apartam dos privilégios sociais. Trata-se, logo, de uma arena tirânica na qual as diferenças são sufocadas e subjugadas, quando não colocadas sob rasura ou invisibilizadas. Em Waldo Motta, sacro e sacrilégio imiscuem-se, produzindo uma trama de fibras enredadas que se (des)cosem, operando uma inacabável (des)construção de imagens. Em um excerto do poema intitulado “Religião”, reconhece: “[a] poesia é a minha / sacrossanta escritura, / cruzada evangélica / que deflagro deste púlpito. / Só ela me salvará da guela do abismo” (MOTTA, 1996, p. 79). A poesia waldiana, a poesia grimesiana e também os textos dos escritores catalogados em In the Life: A Black Gay Anthology (2008)4 são palavras-jogo de espelho, refletindo mais 4 Os escritores presentes na antologia In the Life: A Black Gay Anthology (2008) abordados nesta tese contam com uma pequena biografia na seção “Anexo” deste trabalho. 23 de uma faceta da vida dos autores, marcados pela condição de excluídos, de estigmatizados e de sofredores de opressões múltiplas. Thomas Grimes, Waldo Motta e os outros autores contemplados na referida antologia são atravessados por, no mínimo, uma identidade diádica, uma identidade quare: são negros e gays. Ao proporem uma tônica de criação poética, investindo continuamente em fazer emergir temas ditos periféricos e aparentemente anti(po)éticos, resgatam o discurso do negro e do homossexual, amiúde imbricados. O gesto escritural de Motta e Grimes e tantos outros é sempre uma empresa incisiva e atinada, pois, em sua materialidade meticulosamente tecida pelo discurso, atrai o leitor para se enredar pelos fios da linguagem e, nela, resgatar e ressignificar sentidos, resgatar e ressignificar vidas obliteradas. O projeto desses escritores não é apenas estético, mas também ético, pois, ao urdirem textos, tramam um jogo entre ficção e realidade, desestabilizando e desautomatizando olhares castradores de diferenças. Os tantos escritores referendados em In the Life, assim como Motta e Grimes, fazem- nos pensar: o que significa um poeta/escritor negro, gay (e, por vezes, pobre) empreender um projeto literário nutrido dessas diversificadas instâncias de opressão? Quais discursos percorrem a materialidade de seus corpos e filtram-se, transformam-se e decantam-se como um discurso iconoclástico e profanador? Qual a relevância desses corpos rotineiramente convertidos em locais de traumas, em locais onde a violência – não só física mas também simbólica – é instituída? O que significa ter o corpo inscrito por dores mutiladoras e engendrar uma dinâmica complexa de produção escrita desentranhada desses excruciantes tormentos adâmicos? Como ressignificar a materialidade corporal “deturpada e subalterna” em proveito de uma materialidade corporal do desejo, portanto, locus de prazer, regozijo e gozo? A partir desses questionamentos, este estudo propõe como objetivo geral analisar algumas obras (poéticas) cujos textos se abram ao viés analítico de uma perspectiva interseccional entre raça/etnia, gênero e classe, e, por conseguinte, promover a visibilidade das escritas quare, cujas contribuições apontam para a construção de um novo e empoderado discurso literário sobre os sujeitos negros-gay. Em conformidade com o intento principal, três outros objetivos específicos são estabelecidos: (i) conceituar a noção de interseccionalidade e descrever o modo como essa concepção dialoga com a formação das identidades quare; (ii) comprovar a hipótese de que a interseccionalidade das identidades de gênero, raça/etnia e classe nos autores selecionados reverberam em suas escritas, operando como estratégia de insubmissão frente ao autoritarismo agenciador de estereotipias heteronormativas, raciais/étnicas e classistas. Em outros termos, evidenciar de que modo os textos desses autores são marcados pela problematização das relações sociais e pelo uso da linguagem como um grito aguerrido contra os horrores do círculo 24 opressor; e (iii) verificar de que modo a identidade quare impacta as manifestações discursivas dos eus líricos5/personagens/narradores nos textos literários selecionados, investigando, igualmente, os recursos presentes nesses textos que, ao rasgar o silêncio, convertem-nos em um ato de contestação/transgressão contra o despótico sistema, revelando, assim, o engajamento desses autores em uma vertente de denúncia social. Porquanto sustentamos a hipótese de que a escrita dos literatos aqui em estudo servem como instrumento de denúncia, descortinando as discriminações sociais, as interdições e a precária posição ocupada por sujeitos negros-gay – em especial aqueles pertencentes à classe baixa – num reduto tão marcadamente branco, cis-heterossexual, de classe alta, a fundamentação teórica eleita assenta-se em estudiosos mobilizadores de um constante debate acerca de pontos específicos que circundam essas questões. Em meio a essa vasta gama de teóricos, encontram-se Bauman (2001, 2005), Butler (2014, 2016, 2018, 2019), Campbell e Kean (1997), Collins e Bilge (2016), Crenshaw (1995, 2002), Hall (2003), Johnson (2005), Kilomba (2019), Wallace (2002), Wilchins (2004) e Ribeiro (2017, 2019). Campbell e Kean (1997) defendem, por exemplo, a necessidade de desafiar os limites da hegemonia racial/étnica, empreendendo uma luta pela autodefinição. Admitem, entre outras coisas, a premência de uma articulação de variados modos de expressão assertivos, que instaurem uma conduta de impostura subversiva frente às traumáticas imposições perpetradas num contexto cultural cuja voz dominante tem sido norteada pelos parâmetros da branquidade. Somente a partir do rompimento com esse nocivo estatuto, o discurso centrado na experiência negra pode ser legitimado. Em especial quanto às questões de gênero, Butler (2016 [1990]) sugere uma teoria performativa, que refuta categorias supostamente consolidadas como as de corpo, sexo, gênero e sexualidade, fomentando uma ressignificação das arcaicas estruturas binárias. Ao questionar suposições tácitas, a teórica queer por excelência investe num intenso trabalho de desconstrução dos sujeitos, investigando os processos pelos quais esses mesmos sujeitos vêm a existir. Adentrar os estudos sobre questões de raça/etnia e de gênero significa constatar os efeitos perniciosos das agruras acometedoras de milhares de vidas. As adversidades que afligem negros, gays e desvalidos de recursos não são, necessariamente, as mesmas que atingem os que sustêm, a um só tempo, essas três identidades, atacadas obstinadamente pelo racismo, pela homofobia e pelo classismo crônicos. Ao propor a utilização da interseccionalidade como ferramenta analítica, Crenshaw (1995) leva-nos a pensar e perceber os múltiplos níveis de 5 Neste trabalho, usamos indistintamente os termos “eu lírico”, “sujeito lírico”, “eu poemático”, “sujeito poemático”, “voz poemática”, “eu enunciador”, “sujeito enunciador”, “voz enunciadora”. 25 injustiça social – a dupla, tripla, quádrupla discriminação. Fundamentado nessa ideia aventada pela estudiosa e colmatando as lacunas deixadas pela analítica queer, Johnson (2005 [2001]) propõe a reconceptualização dos estudos queer como quare, a fim de abarcar as categorias de raça/etnia e de classe até então negligenciadas por aqueles estudos. A partir de uma triagem dos poemas de Thomas Grimes compilados nas antologias Poets on the Horizon: A Collection of Poetry (1988), Milking Black Bull: 11 Gay Black Poets (1995) e em seu livro Reclamations (1994), da produção poética de Waldo Motta nos livros Eis o homem (1987) e Bundo e outros poemas (1996), e também dos escritos que compõem a coletânea In the Life: A Black Gay Anthology ([1986] 2008), buscaremos elementos autorizadores de uma leitura das identidades de gênero, raça/etnia e classe no contexto da contemporaneidade. Tomando as perspectivas de Bauman (2001, 2005) e Hall (2003) como suporte, assumiremos o pressuposto do descentramento do sujeito. Nesse contexto de identidades plurais, variáveis e performativas, estabeleceremos intersecções entre raça/etnia (CAMPBELL; KEAN, 1997) e gênero (BUTLER, 2002, 2016; WILCHINS, 2004) viabilizando uma melhor compressão da interseccionalidade (CRENSHAW, 1995, 2002; COLLINS; BILGE, 2016; AKOTIRENE, 2018) e da analítica quare (JOHNSON, 2005 [2001]). A tese está organizada em três capítulos. O primeiro, intitulado “A mordaça que tapa a boca preta (ou Outros jeitos de usar a boca)”, encontra-se dividido em três tópicos: I - “Desfazendo o nó na garganta: a abolição do silêncio”; II - “A máscara do silenciamento: vozes constrangidas à absoluta mudez”; e III - “Mas pode o subalterno falar?: gritando (em) nosso próprio nome, (em) nossa própria língua”. Nesse capítulo, problematizamos a dinâmica opressora e colonial que busca incessantemente negar e rechaçar os sujeitos situados à parte de uma matriz branca, cis-heterossexual e elistista. Em outros termos, discutimos como o racismo, a homofobia, o elitismo, os estigmas e os impedimentos que transpassam a vida dos sujeitos negros, gays e pobres têm operado uma mecânica implacável de emudecimento e invisibilidade. No enquadramento desse contexto de violenta constrição da pluralidade, assinalamos como é possível, a partir de um conjunto de modos assertivos de expressão, construir um novo léxico, uma nova gramática de vozes audíveis. Sob o título de “Transplantando as marcas fustigantes da pele à palavra (ou Preceituário para racistas, homofóbicos e elitistas)”, abre-se o segundo capítulo, cujo intento é refletir como um enérgico e secular aparato colonial, autocrata e imperativo é perversamente regulado a fim de criar uma representação ilusória e contrafeita dos dissidentes sexuais, dos negros, dos privados de posses e bens. Buscamos, ainda, desvelar as consequências perniciosas dessa padronização social e desse sofisticado sistema estruturado em torno de construções 26 hegemônicas. Esse capítulo está subdividido em três tópicos: I - “Uma história que se passa na penumbra, e é preciso que o sol transumante que trago comigo clareie os mínimos recantos”; II - “Mas, depois, o bofe bebe pinga e me xinga e me espanca e me crava uma faca no corpo: o modelo taxativo do gênero e suas violências”; e III - “Sob a parca luz de uma lâmpada de 40 volts, numa caxanga suburbana: a diferença de classe não é menos ofuscante”. O terceiro capítulo – “No cu de Exu, a luz (ou Rotas interseccionais e as vias crucis do corpo)” – destina-se a apresentar considerações sobre o corpo, mais especificamente quando transpassado, a um só tempo, por vetores como o gênero, a raça/etnia e a classe. Em “Encruzilhadas e interseccionalidades: desmantelando o i(deo)lógico alicerce da casa grande para fundar o (est)ético mosaico das diferenças”, defendemos a pertinência de uma mirada analítica calcada na interseccionalidade, ângulo a partir do qual a construção e inclusão de distintas experiências e vivências são viabilizadas. Em “O corpo-templo quare ressignificado: a materialidade como locus do flagelo e do gozo”, argumentamos a importância da materialidade corporal, seja porque reduzida a locus de perpetuação da violência, seja porque convertida a lugar de regozijo e prazer. Como consequência do trabalho aqui desenvolvido – partindo do completo abafamento da voz até o grito liberado de denúncia –, esperamos que esta tese possa prover recursos substanciais para a construção de um pensamento teórico-crítico situado na contramão de disposições provenientes de uma ordem arbitrariamente prescrita. Desejamos que este trabalho seja um grito aguerrido, produto de “uma linguagem de facas e picaretas, de ácidos e labaredas” (PAZ, 1995, p. 159, tradução nossa),6 e, em sua potência, preste-se a “execrar, exasperar, excomungar, expulsar, expropriar, expelir, excluir, expurgar, escoriar, expilar, exprimir, expectorar, exulcerar, excrementar (os sacramentos), extorquir, extenuar (o silêncio), expirar” (PAZ, 1995, p. 159, tradução nossa)7 condutas que segregam, consternam, devastam e exterminam. Replicando os dizeres de Malcolm X em sua incansável e respeitável luta pelos direitos humanos, [...] ousei sonhar para mim mesmo que, um dia, a história pode até dizer que minha voz – perturbadora da presunção do homem branco, de sua arrogância e de sua condescendência –, que minha voz ajudou a salvar a América [talvez pudéssemos dizer “o mundo”] de uma cova, possivelmente até de uma 6 “[...] un lenguaje de cuchillos y picos, de ácidos y llamas” (PAZ, 1995, p. 159). 7 “[...] execrar, exasperar, excomulgar, expulsar, exheredar, expeler, exturbar, excorpiar, expurgar, excoriar, expilar, exprimir, expectorar, exulcerar, excrementar (los sacramentos), extorsionar, extenuar (el silencio), expiar.” (PAZ, 1995, p. 159). 27 catástrofe fatal. (MALCOLM X, 1968, apud CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 91, tradução nossa).8 Nosso grito foi dado. Afinal, um grito negro de liberdade é imperativo; ferir os tímpanos do cis-heteropatriarcado branco, elistista e repressor é um gesto premente e crucial. 8 “I have dared to dream to myself that one day, history may even say that my voice—which disturbed the white man’s smugness, and his arrogance, and his complacency—that my voice helped to save America from a grave, possibly even a fatal catastrophe.” (MALCOLM X, 1968, apud CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 91). 28 29 CAPÍTULO 1 A MORDAÇA QUE TAPA A BOCA PRETA (OU OUTROS JEITOS DE USAR A BOCA) Eu fui emudecido, desautorizado a falar, oprimido pelas sombras e silêncios. Agora eu falo, e o meu fardo é aliviado, suspenso, eximido. (RIGGS, 2007, p. 255, tradução nossa).9 [...] damos início à abolição do silêncio que rodeou nossas vidas à medida que começamos a nos estabelecer, à medida que começamos a ascender ao poder. Somos sobreviventes e viemos contar nossas histórias de homens que amam homens. Falamos pelos irmãos cujo silêncio lhes custou a sanidade. Falamos pelos irmãos aprisionados, cujas palavras, no mínimo, devem ser libertas. Falamos pelos estranhos frutos pendurados nas árvores. Falamos pelos irmãos afogados no álcool, e cujos espíritos foram trespassados por agulhas. Falamos pelos irmãos que nunca tiveram permissão de sonhar. Falamos pelos 2500 irmãos mortos em decorrência da AIDS. Falamos pelos irmãos mortos no Vietnam, em Granada, na África do Sul, nas esquinas, nos bares de bairro. (BEAM, 2008, p. xxiii-xxiv, tradução nossa).10 1.1 Desfazendo o nó na garganta: a abolição do silêncio No contexto de uma cultura cuja voz tradicionalmente imperativa e soberana é branca, cis-heterossexual e elitizada, a história – e, portanto, a biografia – de sujeitos negros, gays e pobres tem sido regida por uma dinâmica opressora de emudecimento e invisibilidade. Instala- se, pois, na memória, nas reminiscências desses sujeitos, a aspiração de uma contra-história, 9 “I was mute, / tongue-tied, / burdened by shadows and silence. / Now I speak / and my burden is lightened / lifted / free.” (RIGGS, 2007, p. 255). 10 “[...] we begin to end the silence that has surrounded our lives, as we begin creating ourselves, as we begin to come to power. We are survivors and have come to tell our stories of men loving men. / We speak for the brothers whose silence has cost them their sanity. / We speak for the brothers behind bars whose words, at the very least, must be liberated. / We speak for the strange fruit hung from trees. / We speak for the brothers who drowned in alcohol, and whose spirits were pierced by needles. / We speak for the brothers who have never been allowed to dream. / We speak for the 2500 brothers who have died of AIDS. / We speak for the brothers killed in Nam, Grenada, South Africa, on street corners, in neighborhood bars.” (BEAM, 2008, p. xxiii-xxiv). 30 que defronte falsas generalizações há muito impostas, promovendo, desse modo, um verdadeiro estado democrático. Esse exercício contínuo e necessário de questionamento de uma visão cristalizada, obstinada a silenciar e apagar os “vencidos”, os “derrotados”, é anunciado por Walter Benjamin como uma operação de “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 1994, p. 225). Para o crítico, é imprescindível que a máscara da suposta harmonia seja arrancada, deixando transparecer a face das contradições até então ali encoberta. Como num jogo de forças que, por fim, empurra ao chão os mais fracos (a saber, os “diferentes”), identidades têm sido prescritas e impostas, precarizando milhares de vidas, extenuando e desagregando laços humanos. Os “vencedores”, respaldados na referência a si mesmos, constroem posições hierarquicamente subordinadas àqueles atirados ao solo. Perpetuando uma agenda celerada e eliminatória, essa manobra de “abatimento” dos sujeitos ditos dissidentes não só pode repeli-los e segregá-los mas também invisibilizá-los ou impossibilitá-los de serem percebidos, transformando-os em abjetos (BUTLER, 2000). No encalço dessas reflexões, o teórico cultural e sociólogo jamaicano Stuart Hall explicita que As identidades podem funcionar, ao longo de toda a sua história, como pontos de identificação e apego apenas por causa de sua capacidade para excluir, para deixar de fora, para transformar o diferente em “exterior”, em abjeto. Toda identidade tem, à sua “margem”, um excesso, algo a mais. A unidade, a homogeneidade interna, que o termo “identidade” assume como fundacional não é uma forma natural, mas uma forma construída de fechamento: toda identidade tem necessidade daquilo que lhe “falta” – mesmo que esse outro que lhe falta seja um outro silenciado e inarticulado. (HALL, 2003, p. 110, grifo nosso). Fundamentados no posicionamento de Hall, podemos ler que, num quadro social onde o dessemelhante configura uma ameaça, uma atemorização, as identidades assim rechaçadas são relegadas a um status secundário de experiência, encobertas pelo véu infausto do obscurantismo. Em termos literários, um dos ápices e uma das mais nítidas advertências da condição de invisibilidade são, sem dúvida, resgatados em Invisible Man [O homem invisível] (1952), célebre livro do romancista estadunidense Ralph Ellison. Ao tratar dos assentamentos da história, o autor, discorrendo acerca de vários temas sociais e intelectuais enfrentados pela comunidade negra nos Estados Unidos, no começo do século XX, observa sagazmente que [...] a história registra os tipos de vida dos homens, dizendo [...] quem lutou, quem ganhou e quem viveu para depois mentir sobre isso. Diz-se que todas as coisas são devidamente registradas – isso é, todas as coisas de importância. Mas não é bem assim, pois, na verdade, apenas os fatos conhecidos, vistos, ouvidos e, entre esses, somente os eventos considerados importantes pelo 31 registrador são dignos de nota – aquelas mentiras com que os guardas guardam seu poder. (ELLISON, 1952, p. 353, tradução nossa).11 É interessante perceber como esse fragmento efusivo de Ellison, escrito em 1952, parece indissoluvelmente conexo ao de Walter Benjamim em suas teses “Sobre o conceito da História”, produzidas em 1940. Ambos os autores, numa atitude de impugnação, revelam a falta de compromisso do historiador com a veracidade e expõem a falência de um projeto ancorado na imagem por ele comumente romantizada, registrada e reproduzida. Daí, então, o apagamento, a invisibilização daqueles que destoam dos parâmetros compulsórios. Agarrando-se a pontos de referência morais, Benjamim e Ellison demandam, portanto, um dever ético e honesto no ofício do investigador historicista. Em uma das passagens da sexta tese, Walter Benjamim assinala que “[o] dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.” (BENJAMIM, 1994, p. 224-225). Enquanto este teórico traz à tona a imagem do adversário (poder hegemônico), constantemente vencedor, e do historiador infundido de princípios íntegros, aquele escancara a realidade e, como num reflexo, aponta o inimigo como “guardas [que] guardam seu poder”, destoando verdades e desferindo fatos “dignos de nota”, embora sintomaticamente corrompidos pelas marcas do engodo e da farsa. Tanto Benjamim como Ellison vindicam uma contra-história que abone e autorize identidades outras, que dessoterre subjetividades reduzidas à não-existência. Quer no contexto norte-americano, quer no contexto brasileiro, o empreendimento e os esforços de uma luta por autodefinição dos sujeitos cujas identidades são comumente encaradas como subalternas (SPIVAK, 2010) são travados a partir da proficuidade de um complexo conjunto de modos assertivos de expressão, de uma “voz expressiva” (CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 74, tradução nossa).12 Aliás, conforme nos ensinam Neil Campbell e Alasdair Kean (1997), esse conceito toma uma diversidade de formas, dentre as quais as autobiografias, as ficções, os discursos políticos, os raps e os filmes, que tentam debelar as repressões e fazer frente aos padrões culturais cujos ditames sempre traduziram e refletiram uma voz exclusivamente branca, masculina, cis-heterossexual e abastada. A partir da quebra do “silêncio imposto [...] e perpetrado na história escrita” (CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 74, tradução 11 “[…] history records the patterns of men's lives, they say [...] who fought and who won and who lived to lie about it afterwards. All things, it is said, are duly recorded—all things of importance, that is. But not quite, for actually it is only the known, the seen, the heard and only those events that the recorder regards as important that are put down, those lies his keepers keep their power by.” (ELLISON, 1952, p. 353). 12 “expressive voices” (CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 74). 32 nossa),13 busca-se dar voz ao oprimido. Ao sustentarem que “[é] ‘a voz’, ‘a contradita’, ou ‘a réplica’ que propicia a resistência à [...] cultura-mestra”,14 Campbell e Kean (1997, p. 85, tradução nossa) estão, a nosso ver, admitindo a possibilidade de fala, de revide desses sujeitos e seus discursos de emancipação como fomentadores de uma releitura da história, testemunhada a partir de uma perspectiva outra, desafiadora de predisposições excludentes. Por meio dos ruídos provocados por essa nova predicação, “esses outros jeitos de usar a boca” (KAUR, 2017), tenciona-se uma objeção reverberada com base nos questionamentos nevrálgicos postulados por Glenn Jordan e Chris Weedon: A quem pertence a cultura a ser oficializada e a quem pertence aquela a ser subordinada? Quais culturas devem ser consideradas dignas de exposição e quais devem ser ocultadas? A quem pertence a história a ser lembrada e a quem pertence aquela a ser esquecida? Quais imagens da vida social devem ser notabilizadas e quais devem ser marginalizadas? Quais vozes serão ouvidas e quais serão silenciadas? Quem está representando quem e com base em quais critérios? (JORDAN; WEEDON, 1995, p. 4, tradução nossa).15 As questões acima colocadas levam-nos a pensar nas flagrantes estruturas de referências ortodoxas e revelam como as culturas e discursos racializados, gendrados – assim como tantos outros – têm sido sistematicamente suplantados e sabotados em detrimento de uma história narrada por sujeitos hegemônicos (leia-se, brancos, cis-heterossexuais, de classe média/alta). A subalternização dos saberes e a violação da voz do Outro – recursos-arma que, paradoxalmente, colocam a sociedade branca em posição de fragilidade, pois possibilitam recontar a história por uma perspectiva distinta – são apresentadas por Campbell e Kean na apreciação que fazem do pensamento do historiador norte-americano Lawrence Levine. Abordando especificamente as estratégias implementadas pelos escravizados ao tentarem continuar seus rituais de contação e difusão de histórias, Levine toca naquilo que James Baldwin entende ser o “temível paradoxo” (BALDWIN, 1963, p. 71, tradução nossa).16 Segundo explicitam Campbell e Kean, 13 “[…] the imposed silence [...] and perpetuated in the written history” (CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 74). 14 “It is ‘voice’, ‘backtalk’, or ‘talking back’ that provides the resistance to the [...] master-culture.” (CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 85). 15 “Whose culture shall be the official one and whose shall be subordinated? What cultures shall be regarded as worthy of display and which shall be hidden? Whose history shall be remembered and whose forgotten? What images of social life shall be projected and which shall be marginalized? What voices shall be heard and which be silenced? Who is representing whom and on what basis?” (JORDAN; WEEDON, 1995, p. 4). 16 “fearful paradox” (BALDWIN, 1963, p. 71). 33 Levine revela uma das formas pelas quais os escravizados continuaram esses rituais de contação e propagação [de histórias], não obstante os olhos sempre vigilantes dos supervisores, e registra os dois lados do “temível paradoxo” [...]. Descreve como os escravizados continham os sons de seus gritos, cânticos e rituais de diversas maneiras, por exemplo, cantando dentro de uma grande chaleira que abafava a voz, de modo que não fossem descobertos. Comenta ainda: “podiam gritar e cantar o que quisessem e o barulho não iria para fora” [...]. O paradoxo está certamente no desejo dos escravizados de se expressarem e, ao mesmo tempo, serem impedidos de se moverem “para fora”, em direção a um verdadeiro ponto de contato público com o mundo além da plantação. Isso sintetiza um aspecto importante da luta pela voz e pela expressão na vida negra. Como poderia o espírito criativo, a afirmação de uma história válida e negra, ser ampliado em vez de ser continuamente asfixiado pela presença de uma voz mais dominante e poderosa da cultura- mestra branca? (CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 78, grifo nosso, tradução nossa).17 São, portanto, as práticas contestatórias da naturalização dos alicerces sociais que possibilitam constatar posicionamentos e projetos ideológicos propagados pelas mais diversas instituições culturais e, inclusive, pela/na própria linguagem. Dessa intricada tessitura discursiva, desafiadora da violenta constrição da pluralidade, irrompem posturas insurgentes, ampliando o léxico de vozes audíveis e conquistando múltiplas arenas de expressão. A propósito, talvez seja refletindo sobre questões inerentes à própria linguagem que o intelectual e ativista martinicano Frantz Fanon tenha sustentado que “falar é existir absolutamente para o outro” (FANON, 2008, p. 33). O pensador admite ainda haver “uma zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada, onde um autêntico ressurgimento pode acontecer” (FANON, 2008, p. 26). Numa leitura conjugada dos excertos do filósofo, podemos depreender que a voz do subalternizado viabiliza, se não uma equiparação entre negros e brancos, uma reavaliação dos valores da raça/etnia e cultura negras dentro de um complexo nuclear a partir do qual um outro saber no discurso acerca do negro pode vir à tona, onde um outro projeto de vida pode ser empreendido e ganhar corpo. Num veio interpretativo análogo, o mesmo ocorre no discurso sobre os dissidentes sexuais e sobre aqueles socialmente estratificados como pertencentes à classe baixa. 17 “Levine tells of a way the slaves continued these rituals of telling and passing on despite the ever-watchful eyes of the overseers, and captures the two sides of the ‘fearful paradox’[...]. He describes how slaves would contain the sounds of their shouts, songs and rituals by various means, for example, by chanting into a large kettle which muffled their voices so they would not be found out. He comments, ‘they could shout and sing all they wanted to and the noise would not go outside’ [...]. The paradox is surely in the slaves’ desire to express themselves and yet at the same time being unable to move ‘outside’, into a genuine, public point of contact with the world beyond the plantation. This encapsulates an important aspect of the struggle for voice and expression in black life. How could the creative spirit, the assertion of a valid, black history, be extended rather than be continually stifled by the presence of a more dominant and powerful voice of the white master- culture?” (CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 78). 34 Todos eles, portanto, vislumbram a visibilidade, a manifestação vocal, a possibilidade de lançarem seus gritos, como nos ensina Maya Angelou em seu belíssimo poema “Caged Bird” [Pássaro engaiolado]: “[m]as um pássaro à espreita / em sua pequena gaiola / quase nem vê / por entre as grades de ira / suas asas estão presas / e seus pés estão atados / então ele abre sua garganta para cantar.” E, na continuação, “[o] pássaro preso canta / num gorjeio triste / sobre coisas que não conhece / mas ainda deseja / e seu canto é ouvido / na colina distante / pois o pássaro preso / canta sobre a liberdade.” (ANGELOU, 1983). Urdem-se, pois, outros fios da linguagem até então interdita. Tramam-se e enredam-se outros entrelaçamentos discursivos elaborados com fibras e filamentos de uma expressão libertadora. Refletir sobre o processo de tessitura de vozes que emergem narrando outras histórias e operam, consequentemente, na produção da autoidentidade é pensar estratégias eficazes para transpor fronteiras, delatar intolerâncias e dirimir exclusões. Na arena conflituosa de uma sociedade reacionária e antidemocrática como a nossa, na qual homens negros são presumidos como “menos que homens” – de acordo com os padrões artificiais e prescritivos do que é ser, de fato, homem – e os gays negros são “os párias dos párias” (HUTCHINSON, 2001, p. 3), a mudança na provável resposta à pergunta “Quem é você?” anuncia o colapso da hierarquia identitária instaurada por uma matriz cis-heterossexual branca, instiladora de efeitos normalizadores e padronizadores. Para mais, a composição de uma “identidade coletivamente construída”, como admitem Campbell e Kean, [...] é parte essencial da luta pela liberdade para acompanhar o desmantelamento mais específico dos aspectos econômicos, jurídicos e sociais do racismo, pois fortalece a comunidade negra com expressões de dignidade humana, afirmadoras de “um senso de ‘ser para nós mesmos’, e não para os outros” (CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 94, tradução nossa).18 Por estar teoricamente alinhado às novas concepções de abertura e incompletude da identidade, julgamos ser relevante mencionar os posicionamentos do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, mais especificamente no livro Identidade (2005). Um dos pontos muito convenientemente salientados pelo teórico diz respeito à noção de identidade como um fator poderoso de estratificação social, sendo essa uma de suas esferas mais implacáveis e diferenciadoras. Bauman reconhece estarem situados em um dos polos da hierarquia global 18 “[…] is an essential part of the freedom struggle to go alongside the more specific dismantling of the economic, legal and social aspects of racism, for it empowers the black community through expressions of human dignity which assert ‘a sense of ‘being-for-ourselves’, and not for others’” (CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 94). 35 emergente aqueles que (des)articulam suas identidades de acordo com a vontade própria, escolhendo-as diante de amplas possibilidades. No outro, conforme sustenta, estão aqueles cujo acesso à escolha identitária foi negado. Esses são, portanto, oprimidos por identidades impostas, identidades das quais se ressentem, pois “estereotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam...” (BAUMAN, 2005, p. 44). Ainda a esse respeito, a maioria de nós hesita – e aqui poderíamos dizer transita – entre esses dois extremos. Particularmente notável quanto a isso é a proposição de Max Frisch. Comentando a perspectiva desse autor, Bauman declara ser a identidade definida como “a rejeição daquilo que os outros desejam que você seja” (BAUMAN, 2005, p. 45). Nessa mesma linha de conceituação, busca lançar luz sobre um ponto bastante obscuro e tortuoso: as guerras pelo reconhecimento. O sociólogo assim se expressa: As guerras pelo reconhecimento, quer travadas individual ou coletivamente, em geral se desenrolam em duas frentes, embora tropas e armas se desloquem entre as linhas de fronteira, dependendo da posição conquistada ou atribuída segundo a hierarquia de poder. Numa das frentes, a identidade escolhida e preferida é contraposta, principalmente, às obstinadas sobras das identidades antigas, abandonadas e abominadas, escolhidas ou impostas no passado. Na outra frente, as pressões de outras identidades, maquinadas e impostas (estereótipos, estigmas, rótulos), promovidas por “forças inimigas”, são enfrentadas e – caso se vença a batalha – repelidas. (BAUMAN, 2005, p. 45). Em seguida, observa: Mas mesmo as pessoas a quem se negou o direito de adotar a identidade de sua escolha (situação universalmente abominada e temida) ainda não pousaram nas regiões inferiores da hierarquia de poder. Há um espaço ainda mais abjeto – um espaço abaixo do fundo. Nele caem (ou melhor, são empurradas) as pessoas que têm negado o direito de reivindicar uma identidade distinta da classificação atribuída e imposta. Pessoas, cuja súplica não será aceita e cujos protestos não serão ouvidos, ainda que pleiteiem a anulação do veredicto. São pessoas recentemente denominadas de “subclasse”: exiladas nas profundezas além dos limites da sociedade – fora daquele conjunto no interior da qual as identidades (e assim também o direito a um lugar legítimo na totalidade) podem ser reivindicadas (BAUMAN, 2005, p. 45). De acordo com o exposto, podemos inferir que, se um indivíduo é destinado à subclasse, fazendo, portanto, parte das categorias arbitrariamente excluídas da lista daquelas julgadas como ajustadas ou passíveis de serem admitidas, qualquer identidade pretendida lhe é a priori recusada. Podemos concluir, por conseguinte, ser o significado da identidade da subclasse a ausência da identidade. Uma análise embora superficial e apressada da obra de Bauman permite 36 desvelar a tendência catastrófica do sufocamento da diferença, da alteridade. Essa coibição encontra-se delineada em diversos poemas de Thomas Grimes. Ocupemo-nos de “Equations” [Equações],19 no qual o poeta registra: Equações Perguntar-me se sou Negro antes de ser gay Ou um gay que porventura é negro É o mesmo que perguntar Sobre a história de quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha O que quer que tenha tido precedência é irrelevante Não há denominadores comuns Teoricamente falando Eu não tenho de ser definido Por uma mera equação Eu não tenho de ser Adicionado Subtraído Multiplicado E dividido por Afro e Homo-centricidades Nem tenho de ser fracionado Calculado e arredondado Por uma raiz de bunda quadrada Eu mesmo me elevo À primeira potência de ser simplesmente o que sou. (GRIMES, 1995, p. 110).20 A problemática aqui abordada pauta-se na questão do poder discursivo operante na produção de tipos específicos de sujeitos. Essa (tentativa de) prescrição e imposição de identidade pelo Outro (ou pelas diferentes instituições – intransigentemente violentas, racistas e homofóbicas) suprime ou obsta a possibilidade de o indivíduo falar por si, reinventando/reinscrevendo sua 19 A fim de possibilitar um exercício de leitura mais fluido, apresentamos, no corpo do trabalho, o texto em tradução e, em nota de rodapé, o poema/texto literário original. Aproveitamos para ressaltar que todas as traduções poéticas referenciadas neste trabalho são de nossa inteira autoria. 20 “Equations // Asking me if I’m / Black before being gay / Or gay who just happens to be black / Is the same as asking about / Chickens and eggs / Whatever came first is irrelevant / There are no common denominators // Theoretically speaking / I am not to be defined / By some simple equation // I am not to be / Added up / Subtracted / Multiplied / And divided up by Afro and / Homo-centricities // Nor am I to be fractionalized / Calculated and rounded off / By a square-ass root / I carry my own self over / To the first power of just being me.” (GRIMES, 1995, p. 110). 37 história, sua raison d’être. Nessa lógica regimentada crua e discricionária, os sujeitos “não falam por si, mas são o motivo do falar; são objetos do discurso, não seus participantes” (WILCHINS, 2004, p. 61, tradução nossa).21 A proposta de Grimes é convulsionar esse entendimento, erodindo hierarquias brutais e segregacionistas. Se o corpo negro-gay na trajetória histórica (e também na literatura) tem sido violado em sua integridade, servido como território de subjugação, de dominação, impedido de falar por si, no projeto desse poeta, ganha novos contornos e passa a qualificar-se como um campo político de autossuficiência. Retraçando novas cartografias, rotas e protagonismos, expresso já a partir da atitude de insubmissão nos versos “Eu não tenho de ser” e “Nem tenho de ser”, Grimes dá um primordial e certeiro duplo salto mortal, pois se aparelha de um Discurso que subverte não só o sistema literário [...] mas também contesta a história [...] que prima em ignorar eventos relativos à trajetória dos africanos e seus descendentes [...]. Constitui-se como uma escrita que corresponde ao que Homi Bhabha fala da poesia do colonizado. Essa não só encena o “direito de significar” como também questiona o direito de nomeação que é exercido pelo colonizador sobre o próprio colonizado e seu mundo. (EVARISTO, 2009, p. 24). Evocando os valiosos e esclarecedores dizeres de Conceição Evaristo, acima citada, quando trata do corpo negro feminino em “Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face” (2005), é viável, consideradas as devidas particularidades dos gêneros e dos vetores interseccionais que atravessam tal corporeidade, estabelecermos um paralelo, uma correspondência com o corpo negro-gay em questão. A mesma admissão no tocante àquela materialidade corporal se amolda a esta: Se há uma literatura que nos inviabiliza ou nos ficciona a partir de estereótipos vários, há um outro discurso literário que pretende rasurar modos consagrados de representação da mulher negra na literatura. Assenhorando-se “da pena”, objeto representativo do poder falocêntrico branco, as escritoras negras buscam inscrever no corpus literário [...] imagens de autorrepresentação. Criam, então, uma literatura em que o corpo-mulher-negra deixa de ser o corpo do “outro” como objeto a ser descrito, para se impor como sujeito- mulher-negra que se descreve, a partir de uma subjetividade própria experimentada como mulher negra na sociedade [...]. Pode-se dizer que o fazer literário das mulheres negras, para além de um sentido estético, busca semantizar um outro movimento que abriga todas as nossas lutas. Toma-se o lugar da escrita, como direito, assim como se toma o lugar da vida. (EVARISTO, 2005, p. 54). 21 “[…] do not speak for themselves but are spoken for and about; they are objects of discourse, not participants in it.” (WILCHINS, 2004, p. 61). 38 Em “Equações”, a tentativa tirânica de classificação – norteada em termos de operações simplistas e universalizantes (adição, subtração, multiplicação, divisão, fracionamento, arredondamento) – diz respeito à fixação de formas totalitárias de conhecimento, que policiam, refreiam e sufocam a alteridade, a diferença e, portanto, novas formas de existência. Grimes, consciente do potencial político de sua escrita, trabalha-a de forma a desautomatizar e desautorizar visões consolidadas do Outro, provocando o despertar de uma consciência crítica e expurgadora dos efeitos das segregações. Assim, comprometido com estratégias político- emancipatórias (“Eu mesmo me elevo / À primeira potência de ser simplesmente o que sou.”) e de alteridade (pois, ao falar de si, fala do Outro), aventa uma contestação das imagens uniformizantes e estereotipadas dos negros e gays de forma a desafiar a versão hegemônica e radicada do conhecimento. Em uma sociedade na qual uma matriz reprodutora de discursos hegemônicos produz indivíduos (materialmente) privilegiados, presumivelmente dotados da capacidade de falar por outros, definindo-lhes, resistir estoicamente às delimitações, confrontar silêncios e falar por si constitui uma manobra fulcral de antagonismo. Nesse mesmo diapasão, Campbell e Kean explicam que Em um mundo onde o poder [de narrar ou de impedir a produção de outras narrativas] determina, autoriza e controla o que pode ser dito, feito e pensado, há uma necessidade de intervir no processo e ‘desobstruir’ o domínio imperialista baseado em uma versão única, e ‘avançar para além de uma série de pressupostos aceitos de forma acrítica por muito tempo’. (CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 82, tradução nossa).22 Em outro momento, os mesmos teóricos endossam que “o processo de libertação está intimamente ligado à capacidade de se expressar e se definir na sociedade” (CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 79, tradução nossa).23 Falar por si é ter a própria voz, ser senhor dos próprios discursos, criar a própria cultura e posicionar-se estratégica e politicamente na tentativa de “desobstruir o domínio imperialista” e desarticular a identidade sufocada e secundária impelida pelos opressores. Sendo assim, uma transição do silenciamento ao pronunciamento representa um grito aguerrido, a réplica de uma 22 “In a world where such power dictates, authorises and controls what can be said, done and thought, there is a need to intervene in the process and ‘un-block’ the imperialist grip on a single version, and to ‘progress beyond a number of assumptions that have been accepted uncritically for too long’.” (CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 82). 23 “[…] the process of liberation is intimately connected with the ability to express and define oneself in society”. (CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 79). 39 “voz liberada” (HOOKS, 1989, p. 9, tradução nossa).24 A expressão, por meio do discurso emancipado, ganha um significado particular enquanto mecanismo de resistência, converte-se em “ato de criação de um ‘eu’ público, histórico” (BAKER, 1987, p. 108, tradução nossa),25 ensejando uma transmutação decisiva de objeto da prescrição a sujeito da inscrição. Relativamente a essa voz liberta do jugo – e, por isso mesmo, vitriólica e incisiva –, que força a desobstrução de espaços despoticamente ocupados, bell hooks argumenta: Passar do silêncio ao discurso é para o oprimido, o colonizado, o explorado e aqueles que permanecem e lutam lado a lado um gesto de rebeldia, que cura, possibilitando uma nova vida e um novo desenvolvimento. Esse ato de fala, de “réplica” – não mero gesto de palavras vazias, ou seja, a expressão de nossa passagem de objeto a sujeito – é a voz liberada. (HOOKS, 1989, p. 9, tradução nossa).26 O transcurso da categoria de objeto à de sujeito, conforme aponta hooks, marca a obtenção da voz e, consequentemente, confere à fala uma dimensão de magnitude enquanto ato político e de decolonização. Avocando os dizeres de Grada Kilomba e tomando a liberdade de reajustá- los, sustentamos que falar “é um ato de descolonização no qual quem [fala] se opõe a posições coloniais tornando-se [a/o falante] ‘validada/o’ e ‘legitamada/o’ e, ao reinventar a si mesma/o, nomeia uma realidade que fora nomeada erroneamente ou sequer fora nomeada” (KILOMBA, 2019, p. 28). Dentro dessa concepção política e decolonizadora que rompe a clausura discursiva, o recurso da “voz liberada”, como evidenciado acima, pressupõe uma trajetória no contrafluxo dos processos de exclusão, descompondo um círculo vicioso para, enfim, instaurar uma nova e amplificada órbita de revolução e autonomia. Ter acesso à voz e recrutá-la é, antes de tudo, implementar uma estratégia de sobrevivência. Ainda discorrendo sobre a consecução dessa voz legítima, até então asfixiada e conspurcada – uma tessitura vocal que só pode resultar como severamente contestadora e, por conseguinte, traduzida em retorção e retruque –, hooks justifica o ato de relutância e renitência incutido em tal vocalização: Para nós, a fala verdadeira não é mera expressão de poder criativo; é, antes, um ato de resistência, um gesto político que desafia políticas de dominação 24 “liberated voice” (HOOKS, 1989, p. 9). 25 “act of creating a public, historical self” (BAKER, 1987, p. 108). 26 “Moving from silence into speech is for the oppressed, the colonized, the exploited, and those who stand and struggle side by side, a gesture of defiance that heals, that makes new life, and new growth possible. It is that act of speech, of ‘talking back’ that is no mere gesture of empty words, that is the expression of moving from object to subject, that is the liberated voice.” (HOOKS, 1989, p. 9). 40 responsáveis por nos relegar ao anonimato e à mudez. Logo, é um ato de coragem – e, como tal, representa uma ameaça. Para aqueles que exercem um poder opressivo, aquilo que constitui uma ameaça deve necessariamente ser erradicado, aniquilado e silenciado. (HOOKS, 1989, p. 8, tradução nossa).27 Na busca pelo desejo de liberdade e de derrubada de condicionamentos e convenções totalitários, as vozes que então eclodem retêm uma vivacidade e, ao mesmo tempo, uma pujança capazes de transpor obstáculos; exteriorizam-se como “a queixa das almas ferventes com a mais amarga angústia [...], as tristezas do coração” (DOUGLAS, 1982, p. 47, tradução nossa).28 Sob esse viés, as narrativas, fortalecidas contra o poder repressivo e dominante – e a ele irredutíveis –, são resolutamente vocalizadas, instituindo a expressão máxima de um novo mundo, de uma vida interior nunca antes cartografada. Articulam, portanto, a exteriorização e o alastramento de uma verdade outra. O processo de embrenhar-se no mais recôndito de si e, então, desentranhar das profundezas mais íntimas uma voz reterritorializante, um grito visceral infundido de denúncias e reivindicações, “envolve uma revisão crítica e profunda de nossa percepção de si e do mundo” (RIBEIRO, 2019, p. 8). Colocadas a serviço da resistência e ao dissabor dos ditames dogmáticos e alienantes, essas vozes – tecido de uma consciência racional, dotada da capacidade de empatia pelo Outro – relatam a negatividade, as depreciações, os ocultamentos, as aniquilações, as perdas – desfechos de uma lógica dominante e genocida. Desmontando a aparelhagem condicionada às leis do funcionamento do establishment, não só descortinam um discurso sonegador e disciplinador, construído com brutalidade e exclusão, mas também revelam o desejo de um presente erigido sobre o terreno da equidade social. Segundo defende o militante e intelectual negro trinitino Stokely Carmichael, além do arrebatamento da voz, seu tom tem o compromisso de ser matizado. Ao investigar o teor da fala de organizações peticionárias das necessidades de uma comunidade específica, o ativista reconhece que qualquer movimento “deva falar no tom daquela comunidade [...] [de forma que] os negros vão usar as palavras que desejarem – não apenas aquelas que os brancos querem ouvir” (CARMICHAEL, 1966, não paginado, tradução nossa).29 Expandindo as postulações do 27 “For us, true speaking is not solely an expression of creative power; it is an act of resistance, a political gesture that challenges politics of domination that would render us nameless and voiceless. As such, it is a courageous act – as such, it represents a threat. To those who wield oppressive power, that which is threatening must necessarily be wiped out, annihilated, silenced.” (HOOKS, 1989, p. 8). 28 “[…] the complaint of souls boiling with the bitterest anguish [...], the sorrows of his heart.” (DOUGLAS, 1982, p. 47). 29 “[…] must speak in the tone of that community [...] black people are going to use the words they want to use – not just the words whites want to hear.” (CARMICHAEL, 1966, não paginado). 41 autor, é possível aplicar a mesma lógica a quaisquer categorias de sujeitos subjugados, tomando-se sempre por base a relação autoritariamente construída pelo opressor – quer seja sectário de entendimentos cis-heteronormativos, quer seja sectário de predisposições elitistas – e a retórica fremente do oprimido em toda sua fluência verbal. Restituindo sentidos primordiais e infringindo o emudecimento, reivindicações, clamores e queixas vão sulcando terrenos inexplorados, estabelecendo rotas atualizadas, prenhes de renovadas significações. Investindo contra códigos totalitários, quais discursos essas vozes podem carregar e, por fim, articular? Como narrar a história de vidas enclausuradas na penumbra, a história de corpos materialmente “estranhos”, discrepantes, não infrequentemente hostilizados? Como implementar um estratagema de ressignificação dessas peles negras “tóxicas”, recônditas, por efeito de constrangimento e, por muito tempo, sob “máscaras brancas”? Como tramar um discurso numa linguagem que desoprima, possibilite a expressão e sirva como gesto de acolhimento e humanização – logo, reverso ao do colonizador? Uma manifesta rebeldia contra os limites de exclusão, uma negação e um rechaço da identidade do Outro são-nos apresentados em “Glass Closet” [Armário de vidro], poema de Thomas Grimes. Armado de profunda consciência crítica e particularmente contrário às condutas de servilismo e sujeição frente aos discursos hegemônicos, o poeta adota a autoafirmação como um de seus temas: Armário de vidro Se você não afirmar sua própria existência Ninguém o irá fazer Ninguém o defenderá Ou lutará suas lutas Ninguém derramará uma gota de sangue por você Ninguém o irá proteger de ser chamado de “Bichinha rebelde” Ninguém irá arrancar as línguas das bocas Daqueles que cospem em você Ou quebrar os braços Daqueles que usam pedaços de pau para espancá-lo Assuma o controle Abandone seus medos Faça-o por si mesmo Se você não afirmar sua própria existência Ninguém o irá fazer Você tem de manter a cabeça erguida Como o rei ou a rainha que você é Você tem de andar pelas ruas desafiadoramente Onde sabe que não é desejado 42 E dizer: “Dê passagem!” Lute se você tiver de combater Sangre se for preciso Mas afirme sua própria existência Não há esconderijos Viver em um armário de vidro não O irá proteger Se ele se estilhaçar, seja forte Não deixe as pedras atiradas Aniquiliarem-no. (GRIMES, 1995, p. 121).30 O clamor expresso nessa produção apregoa um sentimento de desacordo e a defesa da própria identidade, despontados como efeito rebote aos discursos prevalecentes e, por isso, adscritos como postulados presumivelmente intocáveis e incontestáveis. Diante desse fato, autoafirmar- se significa buscar – ainda que o percurso seja árido e excruciante – um ponto de irredutibilidade frente às devastadoras consequências de uma guerra maciça e anuladora da dicção do Outro. Posicionar-se adquire, por conseguinte, uma relevância tópica, pois, além de servir como operação lúcida de investimento contra o peso das opressões, contra a experiência perturbadora do deslocamento e do desajuste, serve, igualmente, como mecanismo capaz de deter as investidas contra a história e a identidade pessoais. Perfilha-se, ao longo dos versos, uma retórica insuflada de um novo vigor, que avista na voz “cacofônica”, contraventora e beligerante a abertura de possibilidades para que os indivíduos se repensem de modo a desestruturar hierarquizações e, consequentemente, a eminência de identidades – quase sempre degradadas e viciosas – infligidas, impostas, imputadas. Os esforços dedicados à luta por equidade e justiça não podem ser refreados pelo medo e pela insegurança de andar pelas ruas “[o]nde sabe que não é desejado”. Empreender um mergulho em si, buscando a autoafirmação, deve ser um exercício cotidiano para aqueles cujas vidas são marcadas pelas agruras impelidas pelo opressor. Urge, assim, reclamar o comando, abandonar as fraquezas e vulnerabilidades, opor- 30 “Glass closet // If you don’t affirm your own existence / Nobody else will / Nobody will stand your ground / Or fight your battles / Nobody will bleed for you / Nobody will protect you from being called / “Faggot sissy punk” / Nobody will rip the tongues from the mouths / Of those who spit at you / Or break the arms / Of those who uses sticks and bats to beat you / Take control / Shed your fears / Do it for yourself // If you don’t affirm your own existence / Nobody else will / You have to stand tall and proud / Like the king or queen you are / You have to walk defiantly down streets / Where you know you aren’t wanted / And say “step aside” / Fight if you have to / Bleed if you must / But affirm your own existence / There is no hiding place / Living in a glass closet will not / Protect you // If it shatters be strong / Don’t let the rocks that are thrown / Cause you to crumble.” (GRIMES, 1995, p. 121). 43 se com determinação, sangrar se preciso for: “[l]ute se você tiver de combater / Sangre se for preciso”. Como sustenta Fernando Luís de Morais, Especialmente notável aqui é o empenho auto-afirmativo do sujeito explicitamente anulando discursos patriarcais. Sua retórica revitalizante abre uma possibilidade para que os indivíduos pensem em si de forma a desestabilizar a eminência de identidades infligidas. Como consequência da reivindicação do “eu”, isto é, o brado libertador que oferece resistência a categorias inflexíveis de opressão, evidencia-se um desdobramento do “eu” enquanto objeto da autoridade e dominação do outro, à possibilidade de autodefinir-se e tornar-se sujeito de si. Resistir à definição e falar por si mesmo usando toda a potência da voz para tentar expressar essa totalidade do “eu” é vital para a afirmação da identidade. (MORAIS, 2015, p. 93). Ousar um passo em direção à autoafirmação é desafiar a consequência direta desse arranjo arbitrário e coercitivo que veta ao subalternizado uma identidade positiva, elaborada por si mesmo. Sob a condição de serem negros-gays-pobres pesam opressivamente as mecânicas de precarização e esfacelamento de vidas, quais sejam, o racismo, a homofobia, o elitismo, os estigmas e os impedimentos. Em um extrato de outro poema, “10 de fevereiro de 1993”, Grimes expõe esse desacato a milhares de existências ao afirmar serem convertidas a meros “rostos invisíveis / Cujos tributos fúnebres nunca serão televisionados nacionalmente / Cujos nomes não estarão estampados nas capas dos jornais” (GRIMES, 1995, p. 118).31 Notadamente, traz a lume a presença desses sujeitos remetidos ao esquecimento, compelidos a ocupar um locus horrendus, e cujas vidas são “desbotadas”, tornadas ilegíveis pela força da indiferença e do descaso. Excluídos de um quadro de referências tomado como soberano e amplamente difundido, os sujeitos apartados das normas prescritas são escalonados na base de uma pirâmide hierárquica que os classifica de acordo com vetores interseccionais. Nessa estratificação piramidal, encontram-se, no topo, modalidades hegemônicas consideradas mais “normais” ou “naturais”, cujo parâmetro norteador é reiteradamente o homem branco, cisgênero, heterossexual, de classe média/alta, habitante dos grandes centros urbanos. Em contrapartida, próximas à base, estariam modalidades mais desprezadas, abjetas, a saber, os gays, as lésbicas, os bissexuais, os transexuais, as travestis, ainda mais se matizados pela cor (mais) negra e destituídos de recursos materiais. Se o fato assim se dá, são direcionados ao pior reduto possível, como se tais conformações de existência configurassem categorias menos racionais, toleráveis 31 “[…] invisible faces / Whose eulogies will never be nationally televised / Whose names will not appear on the front pages.” (GRIMES, 1995, p. 118). 44 ou, em casos mais extremos, anunciassem tipos abomináveis. Definir os sujeitos rotulados como diferentes/desviantes dentro do perímetro desse plano de representação focaliza, entre outras coisas, uma gritante e assimétrica disposição de poder e status entre os “detentores da fala” e os dela destituídos. Ser “senhor da fala” implica valorizar a si mesmo e seus sistemas, posicionar-se num ponto de autossuficiência. Significativamente, reforçar e insistir na condição do divergente como inferior, como subjugado, alimenta a engrenagem de um aparato impiedoso e brutal, corroborativo da supremacia do poderio branco, elitizado, falocêntrico. Empregando uma metodologia de análise relativamente distinta, porém repercutente de formas correlatas de intolerância, Campbell e Kean, seguindo a esteira de Levine (1977), sustentam que os sujeitos racializados são mediocrizados por uma coletividade controladora de corpos, cuja tendência é encará-los como um tipo de tabula rasa: [...] a herança da escravidão na cultura afro-americana e seu impacto no posicionamento dos indivíduos racializados, em um quadro de valores controlados pela cultura dominante dos brancos, tendem a assumir o escravizado como ‘um tipo de tabula rasa sobre a qual o homem branco poderia escrever o que quisesse’[...] A ‘cultura-mestra’, tal qual o senhor de engenho que procurava governar a vida dos escravizados, tentou impor normas e valores aos grupos minoritários, ridicularizados por conta de sua cor e por conta de uma visão europeia herdada, na qual os africanos são tachados como bárbaros, pagãos e inferiores. (CAMPBELL; KEAN, 1997, p. 75, tradução nossa).32 É essa cultura-mestra mencionada acima a responsável por tentar forçar drasticamente corpos “estranhos” a se conformarem às normas, a cumprirem os regulamentos de uma pedagogia de produção de subjetividades hegemônicas. Partir de tal enunciado é, antes, perceber como o grupo dominante volta para si um olhar que se perde em si mesmo – portanto, visceralmente narcisista – e ampara seu poder num sistema contínuo de negação do Outro. Trata-se de uma perspectiva umbilical, glacial e desumana, traduzida sob a forma de uma dinâmica violenta, processada à base de recusas e rejeições daquilo que lhe é desconhecido – quer seja da história, da identidade, da comunidade, das práticas, das epistemologias, da língua, da fala, dos discursos, da humanidade. Denunciando essa maquinaria de coerções e despotismo, Lucas Veiga salienta que “[o] estabelecimento de um determinado modo de ser no