ISABELA CASALECCHI BERTONI UMA CIDADE SEM LIMITES: ENCLAVES FORTIFICADOS RESIDENCIAIS HORIZONTAIS EM BAURU (SP) - 2000-2020 BAURU 2024 ISABELA CASALECCHI BERTONI UMA CIDADE SEM LIMITES: ENCLAVES FORTIFICADOS RESIDENCIAIS HORIZONTAIS EM BAURU (SP) - 2000-2020 Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", câmpus de Bauru, como requisito final para a obtenção do título de Mestre. Orientador(a): Prof. Associado Jefferson Oliveira Goulart BAURU 2024 Bertoni, Isabela Casalecchi. Uma cidade sem limites: enclaves fortificados residenciais horizontais em Bauru (SP) - 2000-2020 / Isabela Casalecchi Bertoni – Bauru, 2024 176 f. : il. Dissertação (Mestrado)–Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru Orientador: Jefferson Oliveira Goulart 1. Bauru. 2. Enclaves fortificados residenciais horizontais. 3. Espaços fechados. 4. Segregação socioespacial. I. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design. II. Título. AGRADECIMENTOS Primeiramente, agradeço a Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio financeiro concedido, o qual foi essencial para a realização desta pesquisa. Meu sincero agradecimento ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGARQ) da Universidade Estadual Paulista, por proporcionar um ambiente acadêmico de estímulo à pesquisa. Agradeço à minha mãe Fabiana, a meu pai Marcus, meu irmão Matheus, meus avós Tereza e José, por tanto. Vocês são parte fundamental de todas as minhas conquistas. Agradeço especialmente, meu orientador, Prof. Dr. Jefferson Oliveira Goulart, por ser uma grande referência para mim. Por toda dedicação, orientação e principalmente ao incentivo na realização entusiasta desta pesquisa. Agradeço ao Eduardo da Silva Correa, colega pesquisador e geógrafo, pela valiosa contribuição ao processo cartográfico e pela perspectiva geográfica imprescindível. Aos meus amigos do mestrado, Carlos Botelho e Thais Ramos Leite, agradeço a construção conjunta e amizade potente. Foi uma honra conhecê-los nesse percurso. Ao Thales Augusto, meu grande companheiro. Estendo meus agradecimentos aos estimados membros da banca examinadora, Dr. Márcio José Catelan e Dr. Estevam Vanale Otero, por suas valiosas contribuições e críticas para construção deste trabalho. RESUMO Enclaves fortificados são espaços privados, fechados e marcados por muros e ostensivos sistemas e segurança de acesso controlado, para moradia, lazer, consumo ou trabalho. Esta pesquisa analisa particularmente a difusão de uma dessas modalidades – os enclaves fortificados residenciais horizontais, popularmente nomeados como “condomínios fechados” – nas duas primeiras décadas do séc. XX em Bauru, município de porte médio do centro- oeste paulista. Tomou-se como hipótese que a combinação do “medo da violência urbana”, o status, a busca por homogeneização social e os atrativos do mercado imobiliário para os que comercializam e consomem esses produtos são razões determinantes para sua difusão. A lógica de insulamento altera o caráter da vida pública e produz espaços baseados na segregação, de modo que o próprio espaço construído contribui para encontros seletivos, marcados pela segregação. A pesquisa compreendeu revisão da literatura, caracterização da evolução urbana recente da cidade e coleta de dados quantitativos a respeito da localização desses empreendimentos, suas dimensões físicas, características arquitetônicas e impactos urbanísticos. Os resultados evidenciam expressiva expansão de enclaves fortificados residenciais horizontais em Bauru entre 2000 e 2020, com a implantação de 26 empreendimentos que abrigam uma parcela significativa da população local, refletindo práticas de segregação socioespacial e fragmentação urbana e moldando uma nova configuração periférica que desafia as tradicionais noções de centro e periferia. A investigação corroborou tendências observadas em muitas cidades contemporâneas, nas quais a segregação socioespacial desafia as definições convencionais e redefine as dinâmicas urbanas com notável protagonismo do mercado imobiliário na produção do espaço urbano. Palavras-chave: Bauru; enclaves fortificados residenciais horizontais; espaços fechados; segregação socioespacial. ABSTRACT Fortified enclaves are private spaces, enclosed and marked by walls and ostentatious security systems with controlled access, intended for residence, leisure, consumption, or work. This research particularly analyzes the diffusion of one of these modalities—the horizontal residential fortified enclaves, popularly known as "gated communities"—in the first two decades of the 21st century in Bauru, a medium-sized municipality in the central-west region of São Paulo state. The hypothesis posited that the combination of the "fear of urban violence," status, the pursuit of social homogenization, and the attractions of the real estate market for those who market and consume these products are determining reasons for their diffusion. The logic of insulation changes the character of public life and produces spaces based on segregation, so that the built space itself contributes to selective encounters marked by segregation. The research included a literature review, characterization of the recent urban evolution of the city, and collection of quantitative data regarding the location of these developments, their physical dimensions, architectural characteristics, and urban impacts. The results show a significant expansion of horizontal residential fortified enclaves in Bauru between 2000 and 2020, with the implementation of 26 developments that house a significant portion of the local population, reflecting practices of socio-spatial segregation and urban fragmentation and shaping a new peripheral configuration that challenges traditional notions of center and periphery. The investigation corroborated trends observed in many contemporary cities, where socio-spatial segregation challenges conventional definitions and redefines urban dynamics with notable prominence of the real estate market in the production of urban space. Keywords: Bauru; horizontal fortified residential enclaves; closed spaces; socio-spatial segregation. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Alternativas à concentração da atividade industrial - planos rodoviários de 1940-1950 ........ 39 Figura 2: Regionalização administrativa unificada do estado de SP e seus polos (1960-1970) ............ 41 Figura 3: Evolução Urbana de Bauru .............................................................................................................. 51 Figura 4: Vista aérea Bauru (1978) .................................................................................................................. 53 Figura 5: Bauru - Av. Rodrigues Alves (1983) ................................................................................................ 54 Figura 6: Distribuição de Conjuntos Populares em Bauru ........................................................................... 56 Figura 7: Bauru - Localização da Avenida Getúlio Vargas ........................................................................... 61 Figura 8:Av. Getúlio Vargas e a região de expansão de loteamentos de acesso controlado ................. 61 Figura 9: Residencial Vista Bella, Ribeirão Preto (SP) ................................................................................. 71 Figura 10: Sistemas de segurança em Bauru (SP) ....................................................................................... 71 Figura 11- Portaria Ilha de Capri fronteira com Ocupação Irregular Jd. Europa ....................................... 72 Figura 12: Edifício Penthouse, São Paulo (SP) ............................................................................................. 72 Figura 13: Localização do condomínio Ilha de Capri e favela do Jardim Europa, Bauru (SP) ............... 85 Figura 14: Localização de Bauru no estado de SP ..................................................................................... 100 Figura 15: Área Urbanizada de Bauru – 2005-2020 ................................................................................... 101 Figura 16: Área Urbanizada de Bauru – 2005-2020 [com imagem de satélite] ...................................... 102 Figura 17: Mapa de ampliações do perímetro urbano de Bauru – 2000-2020 ........................................ 103 Figura 18: Classificação Hierárquica do Arranjo Populacional de Bauru (SP) ........................................ 104 Figura 19: Lei Municipal nº 2.339/1982 / Loteamentos Fechados ............................................................ 108 Figura 20: Lei Municipal nº 2.339/1982 / Condomínios Imobiliários ......................................................... 109 Figura 21: Lei Municipal nº. 5.631 / Zoneamento e Coeficientes de Aproveitamento ............................ 109 Figura 22: Projeto de Lei n.º 90/22 – Processo n.º 166/22 ........................................................................ 110 Figura 23: Projeto de Lei n.º 90/22/ Condomínios de lotes - Processo n.º 166/22 ................................. 111 Figura 24: Zonas caracterizadas pela ocupação do solo (2021) .............................................................. 112 Figura 25: Residências de alto padrão em condomínio de Bauru ............................................................ 119 Figura 26: Localização dos Loteamentos com convênio em Bauru ......................................................... 120 Figura 27: Vias intraurbanas de acesso em Bauru ..................................................................................... 122 Figura 28: Produção do Espaço Urbano – Infraestrutura e atrativos ....................................................... 123 Figura 29: Atrativos e infraestrutura próximos aos enclaves ..................................................................... 124 Figura 30: Farmácia em frente ao Villaggio 2............................................................................................... 125 Figura 31: Clínica estética em frente ao Villaggio 2 .................................................................................... 125 Figura 32: Escola FourC – Villagio 1 e 2 ....................................................................................................... 126 Figura 33: Mapa de Localização de ‘Condomínios de lote’........................................................................ 128 Figura 34: Enclaves fortificados residenciais horizontais em Bauru– 2000-2020 .................................. 131 Figura 35: Todo os enclaves fortificados residenciais horizontais em Bauru - 2000-2020 ................................... 132 Figura 36: Bauru – Evolução dos indicadores de homicídio doloso ......................................................... 137 Figura 37: Bauru – Indicadores de violência urbana ................................................................................... 137 Figura 38: Homicídio Doloso – Bauru, Presidente Prudente, Piracicaba e Marilia ................................ 139 Figura 39: Homicídio Doloso – Bauru, Presidente Prudente, Piracicaba e Marilia ................................ 139 Figura 40: Anúncio imobiliário Empreendimento Cyrela Bauru ................................................................. 141 Figura 41: Anúncio imobiliário Villaggio 2 ..................................................................................................... 142 Figura 42: Portaria Villaggio 2......................................................................................................................... 146 Figura 43: Portaria Residencial Paineiras ..................................................................................................... 146 Figura 44: Portaria Cidade Jardim ................................................................................................................. 147 Figura 45: Portaria Spazzio Verde ................................................................................................................. 147 Figura 46: Portaria Villaggio 2 com sistemas de identificação de visitantes ........................................... 148 Figura 47: Portaria Spazzio Verde com diferenciação de acesso ............................................................. 148 Figura 48: Sistema ostensivo de segurança Spazzio Verde ...................................................................... 150 Figura 49: Sistema ostensivo de segurança Ilha de Capri ......................................................................... 150 Figura 50: Sistema ostensivo de segurança Lago Sul ................................................................................ 151 Figura 51: Sistema ostensivo de segurança - Lago Sul ............................................................................. 151 Figura 52: Ambiente monitorar 24 horas - Alphaville................................................................................... 152 Figura 53: Caminhabilidade externa - Spazzio Verde ................................................................................. 153 Figura 54: Entornos do Lago Sul .................................................................................................................... 153 Figura 55: Anúncio imobiliário ‘Proteger e zelar’ ......................................................................................... 154 Figura 56: Anúncio imobiliário ‘Vida 5 estrelas’ ............................................................................................ 155 Figura 57: Anúncio Residencial Guestier III.................................................................................................. 158 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Evolução da população urbana e expansão territorial urbana Bauru (1970-1996) .............. 52 Tabela 2: Expansão territorial urbana de Bauru – 1970-1996 .............................................................. 52 Tabela 3: ‘Loteamentos com convênio’ em Bauru ............................................................................... 116 Tabela 4: ‘Condomínios de Lotes’ em Bauru....................................................................................... 127 Tabela 5: Bauru – Indicadores de Violência ........................................................................................ 137 ABREVIATURAS E SIGLAS BNH Banco Nacional de Habitação CDHU Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano CEPAL Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (ONU) COHAB-Bauru EUA Companhia de Habitação Popular de Bauru Estados Unidos da América FAUUSP Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Serviço IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDH Índice de Desenvolvimento Humano LUOS Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Bauru) – Lei Municipal nº 5.631/2008 PDDI Política de Desenvolvimento e Desconcentração Industrial PDP Plano Diretor Participativo de Bauru (2008) PDU Política de Desenvolvimento Urbano PMCMV Programa Minha Casa Minha Vida PND Plano Nacional de Desenvolvimento Proálcool Programa Nacional do Álcool RA Região Administrativa REURB Lei de Regularização Fundiária Urbana - Lei Federal nº 13.465/2017 RMSP Região Metropolitana de São Paulo SEPLAN Secretaria Municipal de Planejamento Urbano (Bauru) SEPROCOM Secretaria Municipal de Projetos Comunitários (Bauru) SBPE Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo SFH Sistema Financeiro de Habitação TJSP Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo VTI Valor de Transformação Industrial ZODI Zona de Ocupação Dirigida SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 13 CAP. 1 .................................................................................................................................................. 19 OS PADRÕES DA URBANIZAÇÃO BRASILEIRA E BAURUENSE ....................................... 19 1.1 PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DA URBANIZAÇÃO BRASILEIRA ............................................ 19 1.2 DESCONCENTRAÇÃO INDUSTRIAL E A INTERIORIZAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO ................... 35 1.3 A URBANIZAÇÃO BAURUENSE ........................................................................................... 46 CAP. 2 .................................................................................................................................................. 66 ENCLAVES FORTIFICADOS E ESPAÇOS FECHADOS: DUAS ABORDAGENS DE UM MESMO FENÔMENO........................................................................................................................ 66 2.1 A LÓGICA DA SEGREGAÇÃO .............................................................................................. 67 2.2 OS ENCLAVES FORTIFICADOS RESIDENCIAIS HORIZONTAIS ................................................. 81 CAP. 3 .................................................................................................................................................. 98 A DIFUSÃO DOS ENCLAVES FORTIFICADOS RESIDENCIAIS HORIZONTAIS NA CIDADE SEM LIMITES ..................................................................................................................................... 98 3.1 A CONFIGURAÇÃO CONTEMPORÂNEA DE BAURU E OS ENCLAVES FORTIFICADOS RESIDENCIAIS HORIZONTAIS ......................................................................................................................... 99 3.1.1 Conformação urbana e socioeconômica de Bauru ...................................................... 99 3.1.3 Enclaves fortificados residenciais fechados no território bauruense .......................... 113 3.1.4 As ações do mercado imobiliário local ...................................................................... 133 3.2 RAZÕES E CONSEQUÊNCIAS DOS ENCLAVES .................................................................... 134 3.2.1 O tema da violência e sua percepção ....................................................................... 135 3.2.2 O protagonismo do mercado imobiliário na expansão urbana ................................... 157 3.2.3 Segregação socioespacial ........................................................................................ 162 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................... 165 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 170 13 INTRODUÇÃO O cerne desta pesquisa concentra-se na investigação sobre os enclaves fortificados residenciais horizontais nas duas primeiras décadas do séc. XXI no município de Bauru, cidade situada no centro-oeste paulista. Ao reconhecer a relevância deste tema no contexto urbano contemporâneo e a lacuna de estudos urbanos sobre realidades não-metropolitanas, a pesquisa buscou identificar as razões subjacentes à disseminação desses empreendimentos, ao mesmo tempo em que também investigou o ambiente circundante e as implicações urbanísticas, sociais e ambientais que deles resultam. A difusão de “condomínios fechados” em Bauru no período contemporâneo demanda uma análise aprofundada para elucidar as motivações que impulsionaram essa expansão, considerando fatores como a percepção de insegura urbana, o prestígio social que envolve esses empreendimentos, a busca de homogeneização social de seus consumidores e os estímulos oferecidos pelo mercado imobiliário, assim como o retorno financeiro almejado pelos investidores. Do conceito amplo de enclaves fortificados/espaços fechados, a pesquisa se deteve apenas sobre a modalidade dos enclaves fortificados residenciais horizontais (“condomínios/loteamentos fechados”), a razão desta escolha metodológica foi motivada pelo fato de esses empreendimentos consumirem extensas áreas de terra urbana e transformarem grandes porções do território urbano em espaços fechados. Essas características alteram as dinâmicas intraurbanas, impactando significativamente a estrutura social e espacial da cidade. A pesquisa adotou a hipótese de que a combinação do “medo da violência urbana”, o status social, os incentivos e a busca pelo insulamento social e os atrativos oferecidos pelo mercado imobiliário ensejam elementos cruciais que impulsionam a disseminação dos enclaves fortificados residenciais horizontais nas cidades. Esse fenômeno impacta o tecido urbano, influencia a vida pública e gera espaços de segregação que redefinem os encontros sociais e limitam o acesso democrático aos espaços públicos, enfim, consumam-se elementos que reforçam a segregação socioespacial. 14 A segregação socioespacial constitui um fenômeno marcante na configuração urbana das cidades brasileiras. Esta dinâmica é evidenciada pela distribuição desigual de recursos como habitação, serviços públicos e infraestrutura, resultando em uma heterogeneidade acentuada em termos de qualidade de vida, acesso a recursos essenciais e oportunidades socioeconômicas entre diferentes territórios da mesma cidade. São processos que reforçam a estratificação social, limitando a mobilidade social e perpetuando ciclos de pobreza e marginalização. A distribuição espacial desigual de recursos e serviços contribui para a cristalização de barreiras sociais e econômicas, configurando um ambiente urbano que intensifica as divisões socioespaciais. Assim, “a segregação resulta da radicalização e do aprofundamento de múltiplas formas de distinção, de segmentação, de desigualdades e, portanto, de diferenciação, sem que a recíproca seja sempre verdadeira” (SPOSITO; GÓES, 2016, p.81). O termo "socioespacial" é utilizado para qualificar o substantivo, tornando-o mais preciso e enfatizando que o processo só pode ser compreendido através das articulações e codeterminações entre condições sociais e espaciais, e como se expressa tanto social quanto espacialmente. A pesquisa indica que um novo padrão de segregação urbana está emergindo, caracterizado pela criação de enclaves fortificados/espaços fechados. Esse fenômeno é parte complementar de um processo mais amplo de privatização da segurança e de transformação das concepções de espaço público. Embora a segregação seja um traço histórico estrutural das cidades, os mecanismos e normativas que a fomentam têm evoluído significativamente. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que, metodologicamente, recorreu à revisão da literatura, à caracterização urbanística do município de Bauru, objeto do estudo e à pesquisa documental. Mesmo delimitada como uma investigação de natureza qualitativa, descritiva e exploratória, os procedimentos metodológicos também compreenderam a mensuração quantitativa e a correspondente distribuição territorial de enclaves fortificados residenciais horizontais no município de Bauru, com respectiva produção cartográfica. Preliminarmente, procedeu-se à revisão sistemática da literatura, coleta de dados primários e secundários para caracterização da expansão urbana do município e 15 catalogação de enclaves fortificados residenciais horizontais, além de incursão de campo exploratória para verificação in loco. A pesquisa foi desenvolvida em três etapas: num primeiro momento, foi desenvolvida a revisão bibliográfica relativa aos padrões da urbanização brasileira e bauruense. Essa incursão adotou um diálogo com referencial bibliográfico interdisciplinar, nos campos da Arquitetura e Urbanismo, do Planejamento Urbano e Regional, da Antropologia Urbana, da Sociologia Urbana, da Geografia, da História e da Ciência Política/Políticas Públicas, os quais contribuíram para o estudo e a análise dos dados históricos. A segunda etapa compreendeu a fundamentação teórica dos enclaves fortificados e espaços fechados, com ênfase na tipologia dos enclaves fortificados residenciais horizontais, recorrendo a uma dupla abordagem complementar, da Antropologia Urbana e da Geografia, a partir das quais se evidenciam as motivações e consequências do fenômeno. Finalmente, a terceira etapa consistiu na coleta, catalogação e sistematização de dados empíricos pertinentes à implantação dos enclaves fortificados residenciais horizontais no recorte temporal 2000-2020, com produção de mapas territorializados desses empreendimentos, além da análise dos dados obtidos e seus efeitos socioespaciais em diálogo com a literatura teórica. Esse levantamento de informações sobre o município de Bauru foi executado por meio do acesso a dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Planejamento Urbano, análise da legislação urbanística (Plano Diretor, leis relativas ao parcelamento e uso do solo e outras normas), IBGE, Fundação Seade, COHAB-Bauru. Tais informações foram complementadas com pesquisa de campo, observação in loco, visitas técnicas e registros fotográficos dos locais de interesse, para assim compreender e analisar o contexto em que se inserem os enclaves fortificados residenciais horizontais e suas condições locais de existência, dimensionando os problemas existente nas estruturas físicas e nas configurações sociais que os distinguem. É importante destacar as dificuldades enfrentadas no acesso aos dados essenciais para esta pesquisa. Em particular, o acesso e obtenção de informações junto à Prefeitura Municipal de Bauru, notadamente em razão da relocação física da Secretaria de Planejamento (Seplan) e da falta de dados organizados de maneira 16 sistemática referente ao parcelamento do solo e aos enclaves residenciais fechados horizontais. Além disso, registro as limitações de acesso aos dados censitários do IBGE de 2022, uma vez que as informações atualizadas estão previstas para divulgação somente em junho de 2024. Dessa forma, não foi possível incluir esses dados atualizados, o que limitou a abrangência da análise. Sinteticamente, o objetivo geral da pesquisa consistiu em investigar a difusão e os efeitos socioespaciais dos enclaves fortificados residenciais horizontais (popularmente conhecidos como “condomínios fechados”) no município de Bauru (SP), os quais se caracterizam pelo insulamento social e acesso controlado, analisando o contexto em que se inserem e suas motivações, dimensionando suas consequências urbanísticas, sociais e ambientais e, ademais, as formas através das quais se acentua a segregação socioespacial na cidade a partir das dinâmicas imobiliárias correspondentes. Subsidiariamente, os objetivos específicos consistiram em: a) analisar a trajetória recente de expansão urbana de Bauru e suas principais características, colocando em evidência a permanência (ou não) do padrão centro-periferia a partir da difusão dos enclaves fortificados/espaços fechados; b) catalogar a produção quantitativa de enclaves fortificados residenciais horizontais no recorte selecionado 2000-2020; c) catalogar a produção de enclaves fortificados residenciais horizontais, situá-los espacialmente e relacioná-los aos padrões de expansão urbana do município; d) identificar as principais motivações para a difusão dos enclaves fortificados residenciais e analisar seus impactos para as diferentes formas de segregação urbana; e) analisar o formato legal desses empreendimentos e a conduta do poder público, relacionando-os com a normativa urbanística (Plano Diretor, legislação de parcelamento do solo e outras). Cumpridas todas as etapas da pesquisa, a dissertação foi estruturada da seguinte forma: O Cap. 1 (“Os padrões da urbanização brasileira e bauruense”) aborda as principais características da urbanização brasileira, tomando como recorte prioritário a segunda metade do séc. XX em razão de sua simbiótica relação com a industrialização do país: o impacto do modelo nacional-desenvolvimentista; a clivagem centro-periferia e a oposição “cidade legal” x “cidade ilegal”; a desconcentração industrial e a 17 interiorização do desenvolvimento no período da ditadura por meio de políticas de descentralização e seus efeitos no interior paulista e particularmente em Bauru. No âmbito estritamente local, o foco recaiu sobre a urbanização de Bauru a partir da década de 1950: o perfil terciário e de polarização regional da economia local; a consolidação dos vetores de expansão urbana conforme as distinções socioespaciais; fragmentação socioespacial; os impactos das políticas habitacionais (notadamente da COHAB-Bauru) e o renitente do problema da moradia como condicionantes dos padrões de expansão urbana local; a difusão de vazios urbanos e a disponibilidade e oferta de terras nas franjas da cidade; o perfil, o protagonismo e o dinamismo do mercado imobiliário local. O Cap 2. (“Enclaves fortificados e espaços fechados: definições diferentes para um mesmo fenômeno urbano”) trata teoricamente os conceitos-chaves: a conceituação do tema/problema com base na revisão bibliográfica, notadamente dos campos da Antropologia Urbana e da Geografia; o contexto e origens do fenômeno originalmente nas grandes concentrações urbanas e sua irradiação para além das grandes regiões metropolitanas para cidades médias, caracterização na qual se enquadra o município de Bauru; e os efeitos e consequências urbanísticas, sociais e espaciais desse fenômeno. O Cap. 3 (“A difusão dos enclaves fortificados na cidade Sem Limites”) investiga empiricamente o caso bauruense. São abordados o contexto local e as principais características do surgimento do fenômeno na cidade mediante análise de sua configuração urbanística, da produção do mercado imobiliário e da legislação municipal que se reporta à regulamentação dessa modalidade específica de empreendimento. Assim, procede-se à quantificação, identificação e distribuição territorial dos enclaves fortificados residenciais horizontais, ensejando um quadro contemporâneo da caracterização urbanística e arquitetônica desses empreendimentos: inserção no tecido social, acessibilidade/mobilidade, disponibilidade de serviços. Finalmente, a seção de “Considerações Finais” formula hipóteses explicativas que abordam as transformações na estrutura urbana e social de Bauru. Primeiramente, observa-se que as periferias, tradicionalmente associadas à habitação de populações de menor renda, agora também abrigam segmentos mais ricos da sociedade. Isso 18 reflete uma mudança significativa na dinâmica socioespacial dessas áreas. Em segundo lugar, a busca pelo insulamento social nos enclaves fortificados residenciais horizontais tem motivação na percepção da violência urbana (não necessariamente nos indicadores reais), no status e na homogeneidade social de vizinhança, o que é facilitado pelas tipologias arquitetônicas e pelo predominante transporte motorizado (automóvel) nos deslocamentos intraurbanos. E finalmente, a difusão dos enclaves em Bauru é inseparável do protagonismo do mercado imobiliário na expansão urbana local. 19 CAP. 1 OS PADRÕES DA URBANIZAÇÃO BRASILEIRA E BAURUENSE Este capítulo introdutório foi organizado em três seções complementares, cada uma delas dedicada a abordagens específicas de investigação. A primeira seção se debruça sobre os principais traços que definiram o processo brasileiro de urbanização. Tais características são delineadas a partir de um variado repertório de referências que contemplam as marcantes condições resultantes desse processo. A segunda seção empreende uma análise das ações em nível nacional e estadual relacionadas à desconcentração industrial e à interiorização do desenvolvimento. Tal análise é realizada de forma abrangente, visando à compreensão ampla desse processo e de seus desdobramentos na configuração do desenvolvimento de cidades médias no interior do estado de São Paulo. Dessa forma, busca-se examinar a crescente importância que as cidades médias do interior paulista passaram a desempenhar a partir da segunda metade do século XX. Por fim, a última seção concentra sua análise no objeto central da pesquisa: o município de Bauru. Por meio de uma abordagem sócio-histórica, empreende-se uma análise sobre o desenvolvimento urbano local e suas fundamentais características de urbanização, com ênfase no período das políticas desenvolvimentistas. Essa abordagem visa obter uma visão abrangente do progresso que moldou a cidade em sua evolução recente. 1.1 Principais características da urbanização brasileira Tomando como recorte prioritário a segunda metade do século XX, a urbanização no Brasil, apesar de constituir um fenômeno espacial com suas próprias categorias analíticas e conceituais, está intrinsecamente ligada à adoção e consolidação do modelo desenvolvimentista a partir de 1930, com o fim da Velha República e a ascensão do varguismo. A partir de então, o país adotou um padrão de substituição de importações que promoveu a industrialização pesada e determinou fluxos migratórios intensos que contribuíram decisivamente para a urbanização brasileira e para a acentuação de intensas assimetrias regionais. 20 Não foi uma trajetória linear e tampouco homogênea, mas essas mudanças impactaram o espaço urbano em diversos aspectos do território nacional. Houve um aumento na concentração econômica e demográfica no centro-sul do país, assim como investimentos significativos tanto do setor público quanto do setor privado nas indústrias de base e na matriz energética. No entanto, tais transformações também resultaram em desigualdades profundas no acesso à infraestrutura urbana, levando a disparidades socioespaciais complexas. Dessa forma, o ambiente urbano construído escancara a simbiose entre modernização e desenvolvimento do atraso (MARICATO, 2003b). A partir da década de 1930, portanto, emergiram novas condições políticas, institucionais, econômicas e sociais que impulsionam a industrialização no país e, dessa forma, o mercado interno ganhou uma atenção que se mostrará crescente no país, por meio de uma nova lógica econômica e territorial (SANTOS, 1993). O modelo nacional-desenvolvimentista desenhado durante a era fordista corresponde a um tipo clássico de planejamento regulatório autoritário, com o objetivo de impulsionar e modernizar o sistema capitalista. O paradigma desenvolvimentista adotado no contexto de um Estado "forte" ganhou expressão no cenário brasileiro especialmente das décadas de 1950-1970, incorporando abordagens políticas de cunho keynesiano (de intervenção e regulação estatais na economia) que colaboram para estimular diversos setores econômicos (SOUZA, 2006, apud CORGHI, 2008). O Estado adotou uma estratégia de soberania nacional para o desenvolvimento que implicou a implantação de um sistema industrial de base e produção energética e possibilitou o uso interno mais intenso da agricultura, da mineração e da industrialização, primeiro associando-as ao mercado nacional (CANO, 2002) e depois estimulando a exportação e commodities. O modelo desenvolvimentista dos anos de 1950 e sua ideologia como projeto de nação soberana alavancaram o crescimento econômico do Brasil, com a difusão da ideia de potência no período subsequente, mudanças que legitimaram a orientação do gasto público em benefício de grandes empresas. A articulação entre o Estado, o capital multinacional e a burguesia nacional – sob uma moldura protecionista e autárquica – permitiram que o desempenho dessas empresas aumentasse suas exportações para poder se equipar mais rápido e melhor (SANTOS, 1993). 21 Essa ideologia do desenvolvimento e do crescimento econômico ajudaram a criar uma “metrópole corporativa” – isto é, empreendida sob o comando dos interesses das grandes empresas (nacionais e multinacionais) –, muito mais focada na erradicação das desvantagens urbanas no âmbito capitalista do que na oferta de serviços sociais e no bem-estar coletivo (SANTOS, 1990). Em 1940, quando apenas 31% da população brasileira era urbana, as cidades eram vistas como o lado moderno e avançado de um país predominantemente agrário e atrasado, e os processos de urbanização e industrialização representavam um caminho para a independência e a soberania depois de séculos de dominação colonial, da produção agrário-exportadora e de mando coronelista (MARICATO, 2003a). Nessas condições: A partir dos anos 1940-1950, é essa lógica da industrialização que prevalece: o termo industrialização não pode ser tomado, aqui, em seu sentido estrito, isto é, como criação de atividades industriais nos lugares, mas em sua mais ampla significação, como processo social complexo, que tanto inclui a formação de um mercado nacional, quanto os esforços de equipamento do território para torna-lo integrado, como a expansão do consumo em formas diferentes, o que impulsiona a vida de relações (leia-se terciarização) e ativa o próprio processo de urbanização. Essa nova base econômica ultrapassa o nível regional, para situar-se na escala do País; por isso a partir daí uma urbanização cada vez mais envolvente e mais presente no território dá-se com o crescimento demográfico sustentado das cidades médias e maiores, incluídas, naturalmente, as capitais de estado (SANTOS, 1993, p.27). De 1956 em diante, foi implantada a industrialização pesada de bens de consumo durável, o que modificou o marco de dominação do mercado nacional e seu padrão de acumulação que prevaleceram em períodos anteriores. Esse novo padrão reforçou ainda mais a concentração econômica e populacional em São Paulo e, secundariamente, em regiões vizinhas (CANO 1998). A partir de então, o Brasil experimentou uma série de mudanças através da industrialização, como o crescimento das áreas urbanas, a consolidação de um proletariado urbano fabril, a expansão da classe média, a adoção generalizada do trabalho assalariado e a produção em massa de bens duráveis de consumo. Essa era 22 pós-1950 constituiu, em síntese, o simulacro da modernidade brasileira. A partir dos anos de 1960, ocorreu um aumento da conectividade do território através do aprimoramento das infraestruturas de transporte e comunicação, além da expansão do mercado interno. Essa evolução da rede urbana desencadeou uma reconfiguração na forma como o trabalho estava dividido na sociedade e tais transformações tiveram impactos significativos, incluindo mudanças nos padrões de urbanização e nas dinâmicas regionais. A modernização da agricultura e a expansão industrial nas áreas metropolitanas (SANTOS, 1993) contribuíram para esse cenário de mudanças marcantes (MARICATO, 1996). O intenso movimento de urbanização que se intensificou após o término da II Guerra Mundial ocorreu simultaneamente a um substancial aumento populacional. A partir de então a integração territorial tornou-se uma realidade, com a interligação das antigas ferrovias previamente desconexas em grande parte do país, juntamente com a construção de rodovias que conectaram diferentes regiões entre si e com a região central do país. Além disso, um ousado programa de investimentos em infraestrutura foi implantado (SANTOS,1993). Não se pode ignorar que a década de 1950 foi marcante sob vários aspectos e ações, com destaque para o papel da construção de Brasília e do ambicioso Plano de Metas (“50 anos em 5”) no governo de Juscelino Kubitschek. A partir da década de 1960, após o pioneiro polo automotivo instalado na região do ABC paulista, intensificaram-se os investimentos na construção e ampliação de estradas de alta qualidade no país. O Brasil passou a ser atravessado por uma extensa rede de rodovias, incluindo um considerável número de autoestradas (SANTOS,1993). Não por acaso, a opção pelo rodoviarismo coincide com o início do declínio do modal ferroviário, decadência que terá impactos logísticos, econômicos e urbanísticos. Esse período se estenderia até o final dos anos de 1960. No entanto, o golpe de Estado em 1964 surgiu como um ponto de virada, pois foi o movimento militar que estabeleceu as condições para uma rápida inserção do país em um processo de internacionalização que se apresentava irresistível em escala global. A economia se desenvolveu, seja para atender a um mercado consumidor em crescimento rápido, seja para satisfazer a demanda externa por commodities. E assim o Brasil se tornou 23 um importante exportador de produtos agrícolas não tradicionais, tirando vantagem do aumento da classe média e das novas dinâmicas de um consumo popular (SANTOS,1993). Foi um modelo de Estado peculiar: Ao longo de sua existência, este Estado [varguista] cumpriu o papel de núcleo organizador da sociedade, deixando pouco espaço para a organização e a mobilização autônomas de grupos sociais (sobretudo dos vinculados às classes populares), funcionando como alavanca para a construção de um capitalismo industrial, nacionalmente integrado, mas dependente do capital externo. A despeito da continuidade, esta forma de Estado se organizou sob vários regimes políticos, desde os autoritários, como o Estado Novo e o regime militar de 1964-85, até os de democracia restrita, como o que vigorou entre 1934 e 1937 e o que teve abrigo no curso ao abrigo da Constituição de 1946 (SALLUM JR., 1995, p.16). Do final dos anos 1960 ao término da década de 1970, o enfoque da política econômica foi orientado principalmente para a expansão e diversificação dos setores agropecuário e agroindustrial, com ênfase especial na exportação. Além disso, houve um impulso na expansão industrial, abrangendo a consolidação de segmentos mais elaborados, como insumos básicos e bens de capital. Paralelamente, ocorreu um notável crescimento na infraestrutura de transporte, energia e telecomunicações (CANO, 2002). Desde suas origens até a década de 1970, o modelo desenvolvimentista permitiu que o país registrasse uma das maiores taxas de crescimento econômico do mundo capitalista. À frente desse processo, São Paulo crescia a taxas anuais superiores à média nacional, concentrando parcelas crescentes do Produto Interno Bruto (PIB) nacional (CANO, 1998). A riqueza produzida nesse processo – que permitiu ao Brasil alcançar a posição de 8ª economia do mundo capitalista em tempo curto de metade de um século – continuou altamente espacialmente centralizada e socialmente concentrada, mesmo que, apesar da desigualdade de renda, o notável crescimento econômico tenha contribuído de alguma forma para a melhoria das condições de vida da população, no entanto, 24 essa tendência não se estendeu aos trabalhadores rurais que buscavam melhores oportunidades nas áreas urbanas (MARICATO, 2000). Na década de 1970, além da continuidade do fator do baixo custo da terra e da mão- de-obra barata, novos estímulos se somaram ao processo. Isso incluiu melhorias na infraestrutura pública, um aumento no acesso ao crédito, participação no mercado de câmbio (desregulado) por meio das exportações, e uma especulação ainda mais intensa sobre o valor da terra e, adicionalmente, incentivos fiscais em regiões específicas (CANO, 2002). O crescimento populacional em ascensão, a expansão da classe média e o atrativo do consumo variado para as camadas mais desfavorecidas, apoiados por sistemas abrangentes de crédito atuaram como forças propulsoras para o crescimento da indústria (SANTOS, 1993). A atividade industrial registrou um crescimento ainda mais acentuado em comparação aos outros setores. O destaque foi para São Paulo, cuja participação na produção nacional da indústria de transformação aumentou de maneira contínua até 1970, atingindo 58,2%. Além disso, não podemos subestimar os acontecimentos cruciais que moldaram a política econômica desse período. Observou-se uma expansão significativa do papel do Estado, a consolidação do sistema nacional de planejamento e o estabelecimento de instituições e ferramentas orientadoras da política de desenvolvimento regional (CANO, 2002). Como se verá, essa “distribuição do desenvolvimento” será especialmente marcante para o interior paulista a partir das políticas de desconcentração industrial e interiorização do desenvolvimento. Se é indiscutível que o regime autoritário promoveu uma autêntica ruptura antidemocrática com largas consequências negativas para a sociedade, de outra parte não só manteve como aprimorou o modelo desenvolvimentista de Estado, cuja expressão mais emblemática foi o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) no governo Geisel. A industrialização impulsionou o processo de modernização das cidades brasileiras, resultando em um alto índice de crescimento demográfico. A indústria atraiu trabalhadores de diversas regiões que necessitavam de moradia. No entanto, nesse cenário, com ausência completa de regulamentações para controlar os impactos 25 ambientais, investir na expansão da infraestrutura urbana ou fornecer um mercado residencial acessível, agravou a degradação ambiental e promoveu a formação de assentamentos residenciais ilegais em áreas periféricas. Assim: Essa equação, num contexto de altos índices de crescimento demográfico (20,42% por ano nos anos 60 e 11,23% nos anos 70), provocou uma expansão periférica, ocupando áreas não urbanizadas e consumindo vorazmente toda a terra não destinada para usos industriais, inclusive as áreas de preservação ambiental. Sem outra alternativa, com uma oferta quase inexistente de zonas destinadas para os pequenos lotes residenciais de baixa renda, a expansão urbana foi, em sua maior parte, irregular, feita por mercados informais que não se adequavam a qualquer padrão de urbanização (ROLNIK, 2000, p.104). A produção ilegal de moradias e o urbanismo segregador estão intrinsecamente interligados às particularidades do processo de desenvolvimento, por meio do qual o salário do trabalhador fabril não era suficiente para adquirir uma casa no mercado imobiliário capitalista. Nesse cenário, não houve qualquer preocupação com a implantação da função social da propriedade. Além disso, essa dinâmica também direcionou os investimentos públicos, os quais frequentemente favorecem a infraestrutura industrial e um mercado concentrado e limitado (MARICATO, 1996). Esse paradoxo se refletiu na contraposição entre a “cidade legal” (em geral localizada em territórios urbanisticamente consolidados e mais bem servidos de serviços e infraestrutura) e a “cidade ilegal” (em geral localizada nas periferias e marcada por profunda precariedade urbanística). A primeira ordenada com normas rígidas, e a segunda não suscetível às regras do ordenamento urbanístico. A industrialização com baixos salários revelou uma relação predatória da força de trabalho, resultando em altos níveis de rotatividade, falta de formação adequada e condições de trabalho precárias. As cidades refletiram o processo industrial que se baseou na exploração intensa da força de trabalho e gerador de segregação social. No entanto, o ambiente construído vai além da mera descrição. Ele é uma parte intrínseca das características assumidas pelo processo de acumulação capitalista no Brasil, tornando-se um polo moderno ao mesmo tempo em que desempenha o papel 26 de sujeito e objeto na reprodução ou criação de novas formas arcaicas em seu interior, como contrapartida dessa mesma dinâmica (MARICATO, 1996). A sequência dos eventos demonstrou que, paralelamente ao notável crescimento econômico, o processo de urbanização contribuiu para um aumento das disparidades sociais, culminando em uma concentração sem precedentes e de grande escala da pobreza em determinadas áreas. Portanto, a segregação socioespacial foi uma característica intrínseca aos progressos de industrialização e da urbanização no Brasil. Consequentemente, exclusão e concentração emergem como padrões recorrentes no contexto do sistema capitalista brasileiro, conforme já mencionado (MARICATO, 1996). Surge então, uma imensa construção urbana realizada à margem da lei, desprovida de apoio governamental, recursos financeiros e técnicos substanciais, e sem infraestrutura urbana básica, a “cidade ilegal”. Estamos diante de uma extensa ocupação da periferia que se configura como projeto, contudo, notavelmente carente de recursos financeiros e erguido por meio de métodos antiquados, pela autoconstrução e alheios às normas do mercado convencional, em regiões de baixa valorização (MARICATO, 1996). Essa dinâmica de adensamento das áreas periféricas também refletiu os equívocos das políticas urbanas e habitacionais limitadas à produção de novas unidades nas franjas urbanas, características do período em que o Banco Nacional da Habitação (BNH) e o Sistema Financeiro Habitacional foram dominantes (1964-1986). Desse modo, o país conheceu definitivamente a ocupação periférica. A decisão de estímulo à industrialização em diversas regiões impulsionando a ocupação do território foi decisiva para marcar esse processo de ocupação. O mercado teve papel fundamental, junto aos mecanismos reguladores, sob comando do Estado e da economia (SANTOS, 1988), isto é: A periferia estrutura-se como lugar de estratégias de sobrevivência para uma grande parcela da população na metrópole; é também, todavia, o lugar da vida cada vez mais deteriorada. Se a cidade é a produção histórica da sociedade sua apropriação privada define o lugar de cada um na classe, no espaço e no tempo. Tal processo funda a segregação (CARLOS, 2006, p.81). 27 Nas grandes cidades, especialmente, houve uma ocupação ampla de áreas entre espaços vazios. Esse padrão de cidades espraiadas criou uma relação entre várias características espaciais, como a escala urbana, a infraestrutura viária, a especulação imobiliária, a falta de serviços essenciais e a migração para as periferias. Isso resultou em um modelo específico de clivagem centro-periferia, influenciado pela dimensão da pobreza e sua distribuição geográfica. Nessas condições: O modelo rodoviário urbano é fator de crescimento disperso e do espraiamento da cidade. Havendo especulação há criação mercantil de escassez e o problema do acesso à terra e à habitação se acentua. Mas o déficit de residências também leva à especulação e os dois juntos conduzem à periferização da população pobre e, de novo, ao aumento do tamanho urbano. A organização dos transportes obedece a essa lógica e torna ainda mais pobres os que devem viver longe dos centros, não apenas porque devem pagar caro seus deslocamentos, como porque os serviços e bens são mais dispendiosos nas periferias. E isso fortalece os centros em detrimento das periferias, num verdadeiro círculo vicioso (SANTOS, 1993, p.96). Assim, a clivagem centro-periferia se consumou no Brasil no período desenvolvimentista, por meio de um desenvolvimento urbano desigual marcado pela segregação socioespacial. Enquanto as áreas centrais experimentavam um progresso econômico e social mais substancial, com acesso a infraestrutura, as regiões periféricas continuavam a enfrentar desafios significativos e desigualdades persistentes, composta por diversas ilegalidades. No contexto brasileiro, a dicotomia entre "cidade legal" e "cidade ilegal" diz respeito à separação entre zonas urbanas oficialmente planejadas, com infraestrutura consolidada, e áreas não regulamentadas, carentes de planejamento, caracterizadas pela ausência de infraestrutura fundamental, em terrenos ocupados por habitações em sua maioria construídas de forma independente. Isso destaca desigualdades e deficiências no planejamento urbano e na distribuição de recursos nas cidades brasileiras. A cidade legal concentra a maior parte dos investimentos públicos, buscando espelhar-se nos padrões das cidades de países desenvolvidos. No entanto, essa abordagem arbitrária gera conflitos na aplicação das leis. Prevalece uma dinâmica de 28 favoritismo, presente na gestão, regulamentação e nos parcos investimentos nas áreas periféricas, que frequentemente seguem uma lógica de troca de padrão clientelista. A situação urbana de países como o Brasil envolve uma regulamentação excessivamente detalhada para o mercado imobiliário formal, que é notadamente excludente, enquanto, por outro lado, apresenta completa ausência de regulamentação e negligência para grande parte do espaço urbano (MARICATO, 1996), os quais, não por acaso, coincidem com os assentamentos populares nas periferias urbanas. A análise do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e do Banco Nacional de Habitação (BNH) oferece um exemplo bastante ilustrativo da modernização excludente. Criados durante o regime militar em 1964, o SFH e o BNH desempenharam um papel estratégico na estruturação e consolidação do mercado imobiliário urbano capitalista. Ao investirem valores significativos – parte originária, da contribuição compulsória ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e parte originária dos recursos disponíveis no Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos (SBPE) – para financiar habitação, saneamento e infraestrutura urbana, tais iniciativas transformaram a paisagem das cidades brasileiras. Isso incluiu o financiamento da verticalização das áreas residenciais centrais, contribuindo para a especulação imobiliária, estimulando a promoção e construção de imóveis (elevando o mercado imobiliário a novos patamares e escalas), diversificando a indústria de materiais de construção, subsidiando apartamentos para a classe média urbana, e apoiando a formação e o crescimento de grandes empresas nacionais na área de edificação, bem como em projetos de construção pesada, como as obras monumentais de saneamento básico (MARICATO, 1996). Porém, o financiamento imobiliário não contribuiu para democratizar o acesso à terra através da efetivação da função social da propriedade. Com a combinação de investimentos públicos e medidas regulatórias, o Estado estabeleceu um mercado imobiliário capitalista que favoreceu apenas algumas parcelas restritas da população, enquanto a maioria da população seguiu com alternativas como favelas, cortiços ou loteamentos ilegais nas periferias não urbanizadas das cidades (MARICATO, 1996). É importante notar que muitas habitações foram edificadas pelo Sistema Financeiro de Habitação (SFH) proporcionando moradia para uma considerável quantidade de 29 pessoas (2,4 milhões de unidades entre 1964 e 1986). No entanto, poderia ter sido adotado um curso mais vantajoso: uma abordagem com menor desperdício, estimulando o desenvolvimento da cadeia produtiva com tecnologias mais apropriadas e políticas urbanas mais sensatas, que priorizassem a maioria da população (MARICATO, 2000). Mesmo a parcela favorecida pelos programas e políticas do SFH/BNH foi levada a morar em áreas periféricas, opção justificada pelo argumento de serem terrenos mais acessíveis em termos de preço, o que por vezes levou à expansão de serviços públicos, como eletricidade, água e, às vezes, esgoto, pavimentação e transporte, custeados pelo mesmo financiamento. Foi dessa maneira que o Banco Nacional de Habitação (BNH) contribuiu para agravar a tendência de crescimento disperso das cidades e estimular a especulação imobiliária (SANTOS, 1993). Como parte do processo de monopolização da terra como reflexo dos conflitos fundiários, os governos de diferentes níveis (federal, estaduais e municipais) direcionam investimentos para infraestrutura, especialmente viária, criando as condições essenciais para a geração de renda fundiária. Na década de 1970, de acordo com Brandão (1981 apud Maricato, 1996), metade das residências na cidade eram construções ilegais. As transformações na estrutura da propriedade fundiária e a expansão da rede viária, paradoxalmente, resultam em escassez. Mais ainda: Maricato (1996) revela que parte considerável dos recursos do BNH foi direcionada para o financiamento habitacional dos estratos médios e altos e para projetos de infraestrutura urbana, sobretudo os de maior visibilidade e impacto político, caso emblemático da Ponte Rio-Niterói. Durante as décadas de 1970-1980, o aumento da população urbana já superava o crescimento da população total. O processo de urbanização experimentava uma intensificação e alcançava níveis cada vez mais elevados, sendo consolidado na década seguinte (SANTOS, 1993). Entre 1940 e 1980, a proporção da população vivendo em áreas urbanas aumentou de 26,35% para 68,86%. Ao final desse intervalo, cerca de 40 milhões de pessoas, equivalente a 33,6% da população, haviam realizado migrações internas. Somente entre 1970 e 1980, mais de 30 milhões de novos habitantes foram incorporados à população urbana. No ano de 1960, apenas duas cidades no Brasil contavam com 30 mais de um milhão de habitantes, São Paulo e Rio de Janeiro. Entretanto, em 1970 esse número aumentou para cinco cidades, em 1980 chegou a dez e, em 1990, o total atingiu doze cidades nessa categoria populacional (SANTOS, 1993, apud MARICATO, 1996). A evolução urbana no Brasil contrariou as expectativas de muitos analistas, que esperavam uma transição do atraso, do arcaico e da marginalização para um contexto moderno e capitalista. O processo de urbanização rápido e centralizado, caracterizado como um "desenvolvimento do atraso", começou a cobrar um alto preço a partir dos anos de 1980. Isso ocorreu após algumas décadas de crescimento econômico vigoroso no país, manifestando-se na degradação ambiental, baixa qualidade de vida, extrema pobreza e na crescente violência urbana (MARICATO, 2000). Em 1980, o Brasil passou por uma crise econômica caracterizada por altas taxas de inflação, endividamento insustentável e instabilidade política. A acumulação de dívida externa, a incapacidade de controlar gastos públicos, a incapacidade de honrar dívidas e a queda nos preços das commodities agravaram a situação. O fim dos financiamentos externos no final dos anos de 1970 e o início da tentativa de quitação da dívida externa (mediante acordos de empréstimos do FMI) marcaram o início da recessão. Outro dado da conjuntura internacional, o aumento das taxas de juros provocou forte explosão da dívida brasileira (MARICATO, 1996). Assim transcorreu a “década perdida”, com estagnação econômica e carestia, fenômeno que não se restringiu ao Brasil e atingiu quase todos os países da América Latina. A hiperinflação e as políticas econômicas ineficazes, combinadas com mudanças frequentes de governo, ampliaram os desafios. Essa crise teve impactos sociais profundos, desencadeando altas taxas de desemprego e desigualdade: A recessão que se seguiu nos anos 80 e 90 - quando as taxas de crescimento demográfico superaram as do crescimento do PIB, fazendo com que a evolução do PIB per capita fosse negativa na década de 80 trouxe um forte impacto social e ambiental, ampliando o universo de desigualdade social. Nessas décadas, conhecidas como “décadas perdidas” a concentração da pobreza é urbana. Pela primeira vez em sua história, o Brasil tem multidões concentradas em vastas regiões (morros, alagados, várzeas ou mesmo planícies) marcadas pela pobreza homogênea. Nos anos 80 a sociedade brasileira conheceu também, pela primeira vez, um fenômeno que ficaria 31 conhecido como violência urbana: o início de uma escalada de crescimento do número de homicídio, sem precedentes na história do país (MARICATO, 2000, p.23). O novo aspecto trazido pelo agravamento da pobreza na década de 1980 foi a intensificação da violência urbana, que alcançou números e proporções até então inéditos. Nesse contexto, referimo-nos especificamente à violência manifestada por meio de atividades criminosas, especialmente homicídios, assaltos, roubos, sequestros etc. No entanto, é essencial lembrar que a violência também é expressa por meio da exclusão econômica, social, cultural, legal e ambiental que abordamos até este ponto. Em uma sociedade tão desigual, a concepção de violência frequentemente está associada à criminalidade praticada por indivíduos marginalizados ou economicamente desfavorecidos. Isso reflete um conceito de violência moldado pelas classes sociais dominantes em uma sociedade que prioriza a proteção do patrimônio individual em detrimento, por exemplo, da segurança do trabalhador ou da criança (MARICATO, 1996). É nesse contexto que a busca por “condomínios fechados” e similares como opção de moradia para se proteger da violência urbana começou a ganhar destaque, nas décadas de 1980 e 1990. As altas taxas de criminalidade, a sensação de insegurança urbana e o aumento da violência contribuíram para que parte da população dos estratos médios e altos considerasse a ideia de viver em comunidades fechadas como forma de obter mais segurança e privacidade. Esse movimento se relaciona à crescente desigualdade social e à falta de confiança nas instituições públicas de segurança (CALDEIRA, 2000). A partir dos anos de 1980, portanto, o padrão de urbanização no Brasil exibe mudanças notáveis. Embora as metrópoles ainda mantenham um crescimento proporcional mais acelerado do que o país como um todo, a velocidade desse crescimento reduziu. Nos anos 1980-1990, as cidades de porte médio, com população entre 100 mil e 500 mil habitantes, registram taxas de crescimento superiores às das metrópoles (4,8% contra 1,3%) (MARICATO, 2000). Até o final da década de 1980, portanto, prevaleceu um sistema econômico baseado na interdependência entre as estruturas produtivas regionais e na unificação do 32 mercado interno. Isso é observado no padrão de distribuição industrial, nas regiões de fronteira e nos movimentos migratórios, que deram forma, em termos estruturais, a áreas de atração e emigração da população (CORGHI, 2008). Em fins do séc. XX a urbanização no Brasil continuou acelerada devido às mudanças na economia. Configura-se nesse quadro a interiorização do fenômeno urbano, crescimento de cidades médias, periferização urbana, formação de aglomerações metropolitanas e não-metropolitanas, e integração comercial entre indústria e agropecuária. O importante a ressaltar é que a virada do séc. XX para o séc. XXI registra mudanças que já não permitem reduzir as caraterísticas da urbanização à tradicional clivagem centro-periferia. Essa tendência permanece como síntese do fenômeno de segregação socioespacial, mas já não é mais suficiente para explicar os termos em que se processam a distribuição dos diferentes segmentos sociais no território urbano e as correspondentes formas de interação entre distintos grupos e classes sociais. Ao analisar as dinâmicas entre fragmentação e a formação de uma metrópole corporativa, Santos (1990) antecipava uma redefinição do tradicional modelo de estruturação centro-periferia, destacando a emergência de novas formas de segregação urbana e indicando uma evolução nos padrões de organização espacial das cidades que se confirmou no período subsequente (SPOSITO; GÓES, 2016). A segregação socioespacial nas cidades brasileiras tem se aprofundado, revelando um crescente processo de fragmentação. Esse fenômeno está intrinsecamente ligado às lógicas e subjetivações de privatização do espaço público e mercantilização das dinâmicas urbanas (neoliberais), que se contrapõem à ideia de direito à cidade. Este processo de fragmentação altera o conteúdo da diferenciação e das desigualdades urbanas, redefinindo os sentidos do direito à cidade em vários aspectos (RECIME, 2024). Sobrepostas ao tradicional padrão centro-periferia, as transformações urbanas recentes têm criado espaços nos quais diferentes grupos sociais estão frequentemente próximos, mas permanecem separados por muros e tecnologias de segurança, resultando em uma tendência de não circulação ou interação em áreas 33 comuns. O principal mecanismo desse novo modelo de segregação espacial é o que se denomina como “enclaves fortificados” (CALDEIRA, 2000). Primeiramente, ocorre uma mudança na lógica socioespacial, saindo de uma configuração centro-periférica tradicional para uma estrutura fragmentada, na qual o espaço urbano é dividido de maneira complexa e muitas vezes incongruentes. Isso se reflete nas formas contemporâneas de diferenciação e desigualdade, que são percebidas através das práticas cotidianas urbanas (RECIME, 2024). A fragmentação também impacta a dinâmica entre o espaço público e o privado, criando novas configurações e interações entre essas esferas. Além disso, o papel das instituições políticas, dos agentes econômicos dominantes e dos sujeitos sociais marginalizados é crucial, pois todos influenciam e são influenciados por esse novo arranjo espacial. Para entender melhor essas mudanças, o processo de fragmentação é analisado através de cinco dimensões empíricas: habitar, trabalhar, consumir, lazer e mobilidade. Essas dimensões ajudam a mapear como as alterações na organização espacial afetam diferentes aspectos da vida urbana e como os cidadãos interagem (ou não) com e dentro desses espaços fragmentados (RECIME, 2024). A fragmentação socioespacial nas cidades contemporâneas pode ser entendida como uma interação complexa entre a homogeneização de espaços e a diferenciação social. Enquanto espaços urbanos e grupos de pessoas tendem a se homogeneizar em certos contextos, existe um esforço distinto de diferenciação por parte daqueles que possuem os meios econômicos para fazê-lo. Esses indivíduos frequentemente recorrem ao mercado para construir barreiras físicas e adotar estratégias de separação e controle, particularmente em relação aos grupos sociais economicamente desfavorecidos. Essa busca por diferenciação não se limita apenas à segurança e ao status, mas também se estende a um tratamento individualizado que, apesar do intenso marketing envolvido, muitas vezes resulta mais em encenações do que em uma verdadeira reversão da massificação (SPOSITO; GÓES, 2016). No contexto das práticas espaciais urbanas, essa fragmentação adquire um caráter tanto multidimensional quanto multiescalar, refletindo a individualização crescente da 34 sociedade. As estratégias de diferenciação, embora visem a separar e distinguir, paradoxalmente conduzem a uma experiência urbana mais fragmentada, que pode ser vista como uma das novas dimensões da experiência urbana contemporânea. Através dessas lentes, a fragmentação não é apenas uma consequência, mas também uma faceta ativa da configuração urbana moderna, moldando significativamente como os indivíduos interagem com o espaço e entre si nas cidades (SPOSITO; GÓES, 2016). Essa reconfiguração está diretamente relacionada à criação de ambientes voltados para o consumo de bens e serviços altamente segmentados. Além disso, as formas de mobilidade e acessibilidade são cada vez mais determinadas pela posição social dos indivíduos, afetando a maneira como diferentes sujeitos sociais se deslocam entre os diversos fragmentos da cidade contemporânea. A fragmentação socioespacial emerge como um fenômeno significativo, refletindo diretamente as interações entre mudanças sociais e suas manifestações no espaço urbano. Prévôt-Schapira (2000) descreve esse fenômeno utilizando a metáfora de um arquipélago, onde bairros pouco integrados ao restante do território formam ilhas isoladas de privilégio e exclusividade. Enquanto o mundo exterior é frequentemente percebido como uma ameaça. Essa percepção de insegurança e o consequente discurso sobre ela são destacados por Prévôt-Schapira como um dos problemas- chave de insulamento na contemporaneidade (SPOSITO; GÓES, 2016). A cidade, dividida por fronteiras de todos os gêneros, não será mais “uma”. Se ela não é, efetivamente, mais que uma acumulação de enclaves, residenciais, comerciais, de lazer etc., ela não é mais cidade, como tendem a sublinhar certos autores. Ela, então, não seria mais somente segregada, seria igualmente fragmentada, o que significa que não haveria mais relações entre os diferentes fragmentos que a “compõem”, os “enclaves” que se ignoram mutuamente (CAPRON, 2006, p.15 apud SPOSITO; GÓES, 2016, 295). Dessa forma, a noção de "fragmentação urbana" é fundamental para entender a dinâmica da urbanização brasileira nos finais do século XX e início do século XXI. Tal conceito descreve um padrão de desenvolvimento urbano que resulta na criação de partes ou territórios urbanos cada vez mais separados e segregados. Tais espaços 35 tendem a se tornar mais autônomos dentro da configuração intraurbana, refletindo uma divisão espacial que enfatiza a independência funcional e administrativa de diferentes setores da cidade. Essa fragmentação é característica marcante do urbanismo contemporâneo brasileiro, influenciando a formação física das cidades e as relações sociais, econômicas e políticas que se desenrolam em seus espaços. 1.2 Desconcentração industrial e a interiorização do desenvolvimento Nesta seção, exploraremos as intervenções governamentais no planejamento e suas consequências na configuração dos territórios urbanos e regionais do estado de São Paulo, como parte das políticas desenvolvimentistas patrocinadas pelo Estado brasileiro face às clivagens regionais, notadamente no interior paulista. De acordo com Tavares (2018), esse movimento se desdobrou em quatro ações principais, em distintos períodos: (1) Institucionalização da infraestrutura e criação de uma região mononuclear para controle político; (2) Busca por equilíbrio territorial através de economias de aglomeração; (3) Consolidação da estrutura territorial através da formação de polos urbanos e redes viárias; (4) Descentralização da metrópole paulista para mitigar desvantagens da aglomeração e promover o crescimento da atividade industrial. Essa abordagem focaliza a influência abrangente da industrialização na configuração do espaço em São Paulo. Essa reconstituição e o detalhamento que segue são baseados na análise de Tavares (2018). O primeiro período (da Institucionalização da infraestrutura) é caracterizado pelas estratégias de organização territorial da política getulista pós-1935. Os principais marcos estaduais foram a criação do Plano de Viação (1913), que alterou o modelo ferroviário de circulação terrestre para se adequar à migração do capital produtivo da economia agrícola para a industrial, e o Decreto Lei Federal nº 311 (1938), estabeleceu os princípios de controle territorial e a prática de regionalização administrativa. O segundo período (da busca por equilíbrio territorial) é notável pelo estímulo à industrialização no Brasil por parte de organismos internacionais como a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) e a Comissão Mista Brasil- Estados Unidos, pelas políticas desenvolvimentistas lideradas pelo governo de 36 Juscelino Kubitschek (1956-1961) e pelas disparidades regionais no desenvolvimento, agravadas pela concentração industrial no Sudeste. No âmbito estadual, esse período é caracterizado pelo Plano Rodoviário Estadual (1941), que propôs uma malha rodoviária mais equilibrada, e pelo Plano de Ação do Governo Carvalho Pinto (1959), que buscou reduzir as discrepâncias entre a capital São Paulo e o interior paulista. O terceiro período (polos urbanos e redes viárias) foi caracterizado pela instauração do regime militar em 1964 e pelas políticas autoritárias que visaram à centralização das decisões e a promoção de investimentos em grandes projetos de infraestrutura nas áreas historicamente consolidadas pelo desenvolvimento. No contexto estadual, os marcos desse período incluem a concepção e implantação da Rodovia Castello Branco (1963), que introduziu o conceito de Eixo de Desenvolvimento Econômico, e o Decreto Estadual nº 48.162, de 03/07/1967, que estabeleceu o conceito de polo urbano e unificou a regionalização do Estado de São Paulo (TAVARES, 2018). O último período (da descentralização) foi caracterizado pelo impacto das desvantagens da excessiva aglomeração nas principais cidades industrializadas, pelo reconhecimento da dimensão metropolitana no planejamento e pela predominância de políticas macroeconômicas nacionais de alto impacto em termos urbanos e regionais. Isso incluiu os significativos investimentos em infraestrutura durante o período do chamado Milagre Econômico (1967-1973), bem como a formulação do I Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND, 1972-1974) e o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND, 1975-1979). No nível estadual, destacam-se a publicação da Ação Regional (1971), que estabeleceu programas de planejamento regional com impacto direto na rede urbana de São Paulo, e a formulação das Diretrizes para a Política de Desenvolvimento e Desconcentração Industrial (PDDI, 1982), que contribuíram para a consolidação de uma rede urbana organizada com base na divisão territorial do trabalho. De forma geral, essas quatro ações/períodos compõem uma fase do desenvolvimento nacional que visava à construção do Brasil industrial, concentrando a produtividade principalmente no estado de São Paulo. O impacto dessas ações no território foi notável, com a criação de uma região privilegiada chamada Região dos Vetores Produtivos. A sobreposição no tempo e espaço das ações de planejamento estatal 37 evidencia sua persistência no território paulista, transformando-o uma área propícia e de vanguarda para o desenvolvimento. A ditadura militar (1964-1985) representou o estágio em que a modernização e o avanço do capitalismo no Brasil resultaram em uma urbanização orientada para fomentar o desenvolvimento industrial nacional. Esse período desempenhou um papel crucial na configuração do cenário territorial urbano-industrial do país, com ênfase notadamente no II PND (1975-1979) (CORGHI, 2008). No II PND emergiu um movimento de tentativa de desconcentração industrial. Essa política foi implantada no contexto desenvolvimentista, no qual o Estado assumiu o papel de planejamento e liderança para enfrentar os desafios estruturais das economias no âmbito do capitalismo periférico (GOULART; TERCI; OTERO, 2017). Duas ações emblemáticas foram empreendidas na tentativa de enfrentar essas questões. A primeira ocorreu com o II PND – considerado o ápice do projeto desenvolvimentista durante a ditadura – sob o governo do General Ernesto Geisel, em 1974. Esse Plano buscou abordar as questões urbanas ao incluir um capítulo específico dedicado à Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Entretanto, esses esforços não tiveram sucesso devido à prevalência de uma perspectiva industrialista concentrada na região centro-sul do país, ou seja: Outra espantosa divergência, esta constante do próprio II PND, era o antagonismo entre as diretrizes da política urbana de caráter eminentemente descentralizador (da sociedade e do espaço) e as diretrizes do plano de caráter centralizador. Enquanto a política [urbana] alertava para as áreas de dinamização e promoção, insistindo na problemática dinâmica do centro do sistema, o II PND propugnava por grandes investimentos na região sudeste, alvo da contenção e controle da política urbana. Com tais disparidades, fica evidente que a aplicabilidade da política urbana definida em 1974 ficaria totalmente comprometida. Os interesses setoriais representados pelos distintos agentes que apoiavam o regime serão os vencedores na implantação da política, que permaneceria de fato, e não de direito, até hoje [2004] salvo evidentemente as honrosas e quase imperceptíveis exceções, como foi o caso do governo do estado de São Paulo e a implantação de sua política urbana em 1975 (SOUZA, 2004, p.141-142). 38 A economia agrícola predominante no século XIX em São Paulo levou à concentração de recursos e à infraestrutura ferroviária, facilitando a transformação produtiva do início do século XX. A atividade industrial subsequente influenciou e foi influenciada pela urbanização paulista. O trabalho assalariado, a demanda de mercado e o capital industrial valorizaram o espaço urbano, contrastando com o declínio rural. A industrialização fortaleceu as bases urbanas, impulsionando o crescimento populacional e a formação de polos de serviços atrativos, que por sua vez atraíram mais indústrias, estabelecendo um ciclo de desenvolvimento predominante no contexto brasileiro (TAVARES, 2018). De acordo com Cano (1977) a concentração industrial em São Paulo possui raízes profundas. Ela está historicamente ligada ao desenvolvimento das principais cidades do estado, como Bauru, Campinas, Ribeirão Preto, São José dos Campos, São Paulo e Sorocaba, bem como à centralização das atividades produtivas na capital e região circundante. Na década de 1920, o interior e a cidade de São Paulo concentravam 60,91% dos empregos industriais do estado, sendo que a cidade de São Paulo isoladamente abarcava 18,15% do total do país (TAVARES, 2018). Uma contribuição significativa desse plano de desenvolvimento foi o suprimento das necessidades dos centros urbanos de segunda ou terceira importância, incluindo as cidades sedes regionais das Regiões Administrativas. Isso foi realizado por meio de uma malha reticulada que complementava a hierarquia estabelecida pelas estradas radiais (Figura 1). 39 Figura 1: Alternativas à concentração da atividade industrial - planos rodoviários de 1940-1950 Fonte: Tavares (2018, p.351), modificado pela autora para destacar a localização de Bauru. Esse padrão de planejamento começou a ser implantado ainda na década de 1960, alinhado com as políticas e programas que incentivavam a interiorização da atividade industrial, o que valorizou determinados municípios que se tornaram essenciais no processo de urbanização, isto é: Ao buscar integrar o mercado consumidor brasileiro, essas soluções rodoviárias posicionaram os principais municípios nos nós de uma cadeia produtiva ainda em formação, no intuito de equilibrar o desenvolvimento paulista. A partir do reconhecimento desses nós e com o objetivo de equilíbrio territorial, planos urbanísticos buscaram alternativas à tendência de concentração demográfica e industrial (TAVARES, 2018, p.350). O estudo intitulado "Problemas de Desenvolvimento – Necessidades e Possibilidades do Estado de São Paulo" (1954) apresentou uma abordagem regional do território paulista, fundamentado nas influências exercidas pela capital e pelos principais centros urbanos do interior sobre as demais cidades do estado. Ao perceber a 40 marcante concentração de atividades industriais na capital em contraste com o interior, o estudo propôs a descentralização das indústrias para os principais polos de cada região. Essa sugestão foi embasada no potencial natural da região, na presença prévia de atividades industriais e na urbanização dessas áreas (TAVARES, 2018). Durante esse período, as ações foram guiadas por estratégias territoriais com o objetivo de promover um desenvolvimento mais equilibrado por meio da expansão industrial. A presença da indústria se tornou sinônimo de desenvolvimento. Dessa forma, estender a indústria além da capital e seus arredores se tornou uma maneira importante de reduzir as desigualdades evidenciadas pelas concentrações desproporcionais de população e emprego, principalmente na cidade de São Paulo. Enquanto no governo democrático a abordagem visava a proporcionar maior equidade, no período da ditadura militar essa abordagem foi substituída pela busca do crescimento, apoiada por políticas e estratégias territoriais. A desconcentração da produção e a interiorização do desenvolvimento modificaram a geografia da indústria no Brasil. Conforme apontado por Cano (2008), esse processo de desconcentração industrial ocorreu em duas direções: primeiro, de São Paulo em direção a outras regiões do país e, segundo, da Grande São Paulo para o interior do estado paulista. Com as medidas estatuais bem direcionadas, o interior de São Paulo ganhou destaque nesse processo. Entre 1963 e 1967, no estado de São Paulo firmou-se um padrão de organização territorial baseado em eixos rodoviários e polos urbanos. Embora a urbanização já estivesse ligada ao desenvolvimento regional, a consolidação ocorreu com a concepção e execução da Rodovia Castello Branco em 1963 e a implantação das Regiões Administrativas, organizadas em polos urbanos, estabelecida pelo Decreto Estadual nº 48.162, de 03/07/1967, o que conferiu legitimidade à estrutura territorial paulista (TAVARES, 2018). As rodovias paulistas ganharam destaque devido à sua relevância na integração da cadeia produtiva industrial em níveis regional, nacional e internacional, promovendo mudanças na maneira como a terra era valorizada e qualificada e transformando o estado de São Paulo em uma região altamente adequada para diversas atividades produtivas. 41 Tais orientações visavam à descentralização da gestão e à padronização da divisão regional, para regionalizar as atividades estatais e alocar recursos em um padrão de desenvolvimento territorialmente equilibrado. O Decreto Estadual nº 48.162/67 organizou de forma sistemática as principais orientações em âmbito regional por meio do conceito de polo urbano, estabelecendo a regionalização administrativa como o primeiro instrumento de planejamento (Figura 2). Nesses termos: Como polo urbano, foi considerada a cidade de uma região que, pela relação de interdependência social e econômica com as cidades circunvizinhas, delimitava um raio de influência capaz de definir um aglomerado de cidades a ela subordinadas. A partir do referido decreto, foram estabelecidas 10 regiões – Região da Grande São Paulo, Região de Araçatuba, Região de Bauru, Região de Campinas, Região de Presidente Prudente, Região de Ribeirão Preto, Região de São José do Rio Preto, Região de São Paulo Exterior, Região de Sorocaba e Região do Vale do Paraíba –, que se tornaram “[...] divisões geográficas harmônicas para fins de planejamento [...]” (DECRETO ESTADUAL 48.162 de 03/07/67). Então, a região polarizada foi definida como o espaço de integração das políticas estadual e municipal (TAVARES, 2018, p.354). Figura 2: Regionalização administrativa unificada do estado de SP e seus polos (1960-1970) Fonte: Tavares (2018, p.351), modificado pela autora para destacar a localização de Bauru. 42 A consolidação da indústria pesada, os desafios derivados de um crescimento urbano rápido e desordenado, além do aumento significativo das camadas sociais mais pobres, revelaram perspectiva desfavorável em relação à continuidade do modelo de desenvolvimento metropolitano. Nesse contexto, entre 1975 e 1985, iniciativas diretas e indiretas impulsionaram a expansão e diversificação econômica (agroindustrial, industrial e setorial) e um crescimento urbano significativo no interior do estado de São Paulo, conhecido como "interiorização do desenvolvimento econômico" (CANO, 1998). A rigor, o que se convencionou chamar de "desconcentração industrial" não implicou a realocação física de instalações industriais ou econômicas em grande escala, pois houve pouca transferência e remanejamento de plantas industriais. Em vez disso, ocorreu uma descentralização de novos investimentos, guiados por novas lógicas estratégicas de ampliação e redistribuição territorial. Como uma "estratégia de ação", foi estabelecida a Política de Desenvolvimento Urbano (PDU) em 1982, planejada com o intuito central de avançar a desconcentração industrial. Tanto na Política de Desenvolvimento e Desconcentração Industrial (PDDI) quanto na PDU, a especialização funcional de determinadas cidades reforçou a hierarquia territorial e solidificou uma divisão do território fundamentada na divisão social do trabalho (TAVARES, 2018). A estratégia envolvia conceder, por um lado, maior favorecimento à concentração industrial nas cidades mais avançadas e preparadas, as quais teriam a capacidade de impulsionar de maneira mais eficaz o crescimento dos rendimentos para as indústrias interiorizadas. Por outro lado, atribuíram-se menos benefícios às cidades menos desenvolvidas, que, por consequência, não seriam tão eficazes em impulsionar o crescimento dos rendimentos para as indústrias que se estabelecessem nelas. Em paralelo ao processo de descentralização da indústria de São Paulo a favor da indústria da periferia nacional, observou-se um movimento mais intenso no espaço paulista de desconcentração da indústria metropolitana. Sua contribuição no Valor da Transformação Industrial (VTI) do estado declinou de 74,7% para 56% no período de 1970 a 1985, e continuou a declinar até 1990. Em compensação, o VTI do interior em relação ao total estadual subiu de 25,3% para 43,5% no mesmo período. Esses dados exemplificam o fenômeno reconhecido como a "expansão industrial pelo interior de 43 São Paulo", que se fez notar de maneira significativa nas áreas administrativas de Campinas, Vale do Paraíba, Ribeirão Preto, Sorocaba e no litoral (NEGRI, 1993). A partir de 1970, a indústria do interior expandiu-se em ritmo superior à da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). Em 1985, o interior tornou-se o segundo polo industrial mais importante do país, atrás apenas da RMSP (NEGRI, 1993). Essa mudança de direção foi viabilizada por uma combinação de fatores: da expansão de indústrias originalmente estabelecidas na RMSP em direção ao interior, incluindo a indústria automobilística; da construção das duas maiores refinarias de petróleo do país; avanços notáveis no Programa Nacional do Álcool (Proálcool), tanto na produção agrícola quanto no processamento industrial e nas indústrias de bens de capital, em resposta às crises do petróleo; nos impactos diretos e indiretos de políticas de estímulo à exportação de produtos industriais e agroindustriais (como café, soja, suco de laranja e carnes); no estabelecimento de centros de pesquisa e tecnologia que impulsionaram a atração de empresas nos setores eletroeletrônico, informática e aeronáutico; no fortalecimento de polos industriais e grupos de empresas; investimentos substanciais em infraestrutura, principalmente na expansão e modernização das estradas; e nas restrições legais e ambientais ao crescimento mais intenso na RMSP (NEGRI, 1988). Esse fenômeno influenciou fluxos migratórios internos em várias regiões paulistas, fortalecendo a urbanização nas regiões beneficiadas pela desconcentração, tais como Campinas, Sorocaba e Vale do Paraíba. O crescimento econômico mais acelerado do interior em relação à RMSP também atraiu imigrantes de outras regiões do país e, após esse período, houve uma desaceleração tanto na atividade econômica quanto nos movimentos migratórios (CANO, 1998). Assim: A partir dos anos 70, o processo de urbanização alcança novo patamar, tanto do ponto de vista quantitativo quanto do ponto de vista qualitativo. Desde a revolução urbana brasileira, consecutiva à revolução demográfica dos anos 50, tivemos, primeiro a urbanização aglomerada, com o aumento do número – da população respectiva – dos núcleos com mais de 20.000 habitantes e, em seguida, uma urbanização concentrada, com a multiplicação de cidades de tamanho intermediário, para alcançarmos, depois, o estágio de metropolização, com o aumento considerável de número de cidades milionárias e de grandes cidades médias (em torno de meio milhão de habitantes) (SANTOS, 1993, p.69). 44 Esse conjunto de medidas ampliou a relevância das cidades médias e grandes do interior paulista. Além de atrair novos investimentos privados, esses municípios também receberam apoio estatal para expandir sua oferta de bens, serviços e infraestrutura. Essas mudanças não foram apenas quantitativas, em termos de aumento de novas instalações industriais e de dinamismo econômico, mas também qualitativas, com a modernização do setor agroindustrial e investimentos em setores avançados, como metalomecânico, petroquímico e eletroeletrônico (GOULART; BERTONI, 2022). Ao analisar as estratégias de planejamento, fica evidente que as políticas e iniciativas governamentais resultaram na progressiva interligação entre as regionalizações e a oferta de infraestrutura, criando melhores condições para que os centros urbanos estratégicos e as redes viárias principais desempenhassem um papel fundamental na organização do território. A configuração desses centros e vias estabeleceu uma área propícia ao desenvolvimento da atividade industrial, denominada por Tavares (2018) como a “Região dos Vetores Produtivos”. Junto com outros aspectos ligados ao ambiente natural e ao cenário político, essas iniciativas exerceram uma função central na urbanização dessa região do estado. O progresso não se originou apenas de fatores industriais ou econômicos, mas soube habilmente incorporá-los para estimular o crescimento, por meio das estratégias de planejamento governamental, consolidando um processo em constante evolução que abrange várias décadas e se mantém ao longo do tempo. Segundo Tavares (2018), essas iniciativas de descentralização não resultaram na criação de uma região totalmente nova; pelo contrário, solidificaram-na através de abordagens que espelharam os resultados proeminentes de um período de crescimento industrial em nível nacional. Esse processo escolheu um território historicamente mais dinâmico para receber benefícios especiais e para dar continuidade à posição econômica dominante do estado de São Paulo. Isso é notável, considerando a predominância nessa região dos principais centros urbanos que acumulam tomadas de decisão e atraem investimentos desde os primeiros anos do século XX. Embora o estímulo econômico ao interior de São Paulo tenha efetivamente contribuído para modernização e crescimento industrial, ele também trouxe consigo problemas 45 característicos das grandes cidades. Esses problemas incluem escassez de oferta habitacional, questões ambientais, desigualdades sociais profundas, aumento da violência urbana. O crescimento territorial acelerado e desordenado incentivou especulação imobiliária e a concentração fundiária, agravando problemas de infraestrutura e segregação social. Negri (1996) enfatiza que, além das indústrias, os desafios das metrópoles também migraram para esses centros urbanos. Cano (2011) observa que todas as cidades de médio porte que receberam a influência da industrialização passaram a enfrentar problemas urbanos antes restritos às metrópoles, no entanto, este autor salienta que tais problemas também podem ser encontrados em cidades que, mesmo fora do processo de desconcentração industrial, estão repletas de indivíduos empobrecidos, vítimas não apenas da exploração industrial, mas do sistema capitalista como um todo. A Região dos Vetores Produtivos se destaca por uma característica notável: o seu desenvolvimento contraditório. Isso é evidenciado pelos impactos tanto positivos quanto negativos que se manifestaram no território, especialmente no contexto urbano. Esses aspectos surgiram devido aos conflitos de diferentes escalas, confrontos entre progresso e preservação ambiental, desafios sociais agravados e lacunas na prestação de serviços públicos em áreas urbanas: A interpretação e a aplicação desses conceitos no caso paulista ganharam um aspecto particular com a organização territorial fundada na lógica da atividade industrial: centralizada, hierarquizada e dividida funcionalmente. Os polos urbanos não equilibraram o desenvolvimento, mas concentraram o crescimento. Já as rodovias assumiram um papel preponderante no direcionamento da urbanização, pois consolidaram vetores de propagação de novas frentes de expansão da atividade produtiva. A partir da polarização da capital, a infraestrutura rodoviária reforçou a economia de escala e a importância da própria capital e seus arredores, induzindo uma controlada interiorização da atividade industrial. Dessa maneira, ambos (polos e eixos) solidificaram um padrão de urbanização que proporcionou condições para a reestruturação produtiva, sem trazer, contudo, o equilíbrio territorial (TAVARES, 2018, p.366). 46 Bauru, objeto desta pesquisa, apesar de ser uma cidade que está historicamente ligada ao desenvolvimento como uma das principais cidades do estado, marcada com Região Administrativa e Polo Regional e contemplada pelo eixo rodoviário paulista, não se consumou como polo industrial. Em meio à euforia desenvolvimentista, as elites locais se embriagaram com a ideia de uma cidade interiorana industrial, um polo da indústria no centro-oeste paulista. Os governantes locais insistiram muito nesse estímulo nacional, mas em Bauru não se firmou um expressivo centro industrial, destacando-se na economia terciária. A definição padrão de “cidade média”, conforme o IBGE, com base em critérios estritamente demográficos, se baseia na população de 100 mil a 500 mil habitantes, mas essa abordagem é insuficiente, pois não considera o papel desses municípios na rede urbana ou regional (GOULART; BERTONI, 2022). Assim, é analiticamente apropriado e recomendável, em termos metodológicos, adotar classificações abrangentes que ultrapassem critérios baseados apenas na população. Tais interpretações podem incluir o reconhecimento de sua significância na configuração urbana regional, sua capacidade de polarizar cidades menores e liderar a coordenação de fluxos em uma escala que vai além das fronteiras municipais, englobando áreas como consumo e serviços. Essas perspectivas enfatizam as relações interdependentes e hierárquicas entre as cidades (GOULART; TERCI; OTERO, 2017). Ademais, é preciso considerar a especificidade territorial de Bauru, localizada na porção centro-oeste do estado de São Paulo, posição central privilegiada que potencialmente fortalece a integração da rede urbana regional, sinaliza hierarquias entre as cidades que a compõem (conforme classificação do IBGE, trata-se de “Capital Regional B”) e que, ademais, reforça seu papel como polo regional de serviços. 1.3 A urbanização bauruense As mudanças políticas e socioeconômicas que redefiniram a fisionomia do país não demoraram a se refletir em Bauru, e assim o poder público e as elites locais manifestaram grande interesse em fazer com que a cidade se desenvolvesse 47 apostando no processo de industrialização (CATELAN, 2008) já desde a década de 1950. Durante a fase desenvolvimentista, na segunda parte da década de 1950, Bauru foi administrada pelo prefeito Nicola A. Junior (1956-1959), alcunhado de "Nicolinha", que priorizou a ideia de transformar a cidade em uma metrópole interiorana, com ênfase nos avanços nos setores de transporte e comunicação. Avallone Jr. desempenhou papel essencial na tentativa de viabilizar ações e projetos monumentais que modificariam a dinâmica urbana. Nesse período, não casualmente, Bauru adotou o lema "Cidade Sem Limites" (CORGHI, 2008). O prefeito possuía vínculos com o mercado imobiliário e especialmente com as atividades de parcelamento do solo (loteamentos), e durante o período de seu mandato houve uma considerável intensificação no processo de parcelamento e venda de lotes (LOSNAK, 2004). A expressão "Cidade Sem Limites" passou claramente a representar as intenções políticas e econômicas do grupo liderado por Avallone Junior, resultando em intervenções substanciais que reconfiguraram a cidade de Bauru (CATELAN, 2008). Essas ações incluíram a construção de infraestruturas como: estradas e ferrovias para melhorar a conectividade da cidade; incentivos à industrialização para diversificar a economia local; criação de instituições de ensino e pesquisa para promover a educação e inovação; e investimentos na modernização da agricultura para aumentar a produtividade. Essas iniciativas tiveram como objetivo transformar regiões, cidades e setores, estabelecendo bases para o progresso a longo prazo. Nesse período tornam-se mais evidentes os fluxos migratórios, impulsionados, sobretudo, pela modernização agrícola, pelo estabelecimento de instituições de ensino superior e pela crescente interiorização da indústria de bens de consumo não duráveis, direcionada para atender às necessidades da própria região. O comércio e o setor terciário, voltados para o apoio à agricultura e à população passam por um notável crescimento, desempenhando um papel significativo nas altas taxas de expansão urbana da cidade (CORGHI, 2008). De acordo com Souza (2004), durante as décadas de 1960 e 1970, o regime militar no Brasil enfatizou a segurança nacional e o desenvolvimento capitalista. O planejamento nesse período foi conservador e autoritário, mantendo a ordem econômica e social existente, sem participação popular. O principal objetivo era tornar 48 a cidade atrativa para o capital, especialmente imobiliário e industrial. Em Bauru, nas mesmas décadas, ocorreu uma grande campanha de modernização através desse impulso nacional, com destaque para a industrialização e a criação de grandes avenidas, refletindo a busca pelo progresso e pela consolidação do slogan "Cidade Sem Limites" (CATELAN, 2008). Nesse período, na cidade de Bauru, a industrialização, o progresso, a modernidade e a configura