Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP VANESSA APARECIDA VENTURA RODRIGUES As marcas da memória na escrita de As meninas de Lygia Fagundes Telles ARARAQUARA – S.P. 2014 VANESSA APARECIDA VENTURA RODRIGUES AS MARCAS DA MEMÓRIA NA ESCRITA DE AS MENINAS DE LYGIA FAGUNDES TELLES Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e Crítica da Narrativa Orientadora: Guacira Marcondes Machado Leite ARARAQUARA – S.P. 2014 Rodrigues, Vanessa Aparecida Ventura As marcas da memória na escrita de As meninas, de Lygia Fagundes Telles / Vanessa Aparecida Ventura Rodrigues –2014 104 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Estadual Paulista, ―Júlio de Mesquita Filho‖, Faculdade de Ciências e Letras (Campus de Araraquara) Orientadora: Guacira Marcondes Machado Leite. 1. Literatura Brasileira 2.Memória. 3. Sociedade. 4.Telles, Lygia Fagundes, 1923. I. Título. VANESSA APARECIDA VENTURA RODRIGUES AAASSS MMMAAARRRCCCAAASSS DDDAAA MMMEEEMMMÓÓÓRRRIIIAAA NNNAAA EEESSSCCCRRRIIITTTAAA DDDEEE AAASSS MMMEEENNNIIINNNAAASSS DDDEEE LLLYYYGGGIIIAAA FFFAAAGGGUUUNNNDDDEEESSS TTTEEELLLLLLEEESSS Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teoria e crítica da Narrativa Orientador: Guacira Marcondes Machado Leite Data da defesa: 23/04/2014 (às 14h00) MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador(a):Profª Drª Guacira Marcondes Machado Leite Faculdade de Ciências e Letras UNESP/ Araraquara Membro Titular: Profº Drª Claudia Fernanda de Campos Mauro Faculdade de Ciências e Letras UNESP/ Araraquara Membro Titular: Profº Drª Leila Gouveia Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Dedico este estudo àqueles que acreditam ser a memória força essencial de toda a nossa existência. AGRADECIMENTOS À minha mãe, por todo amor, carinho, dedicação, exemplo de luta e humildade. Ao meu pai, por todo amor, por todas as conversas, pelo interesse gradativo por todas as coisas que eu lia, pelo incentivo à luta por uma vida que deveria fugir ao corte da cana. Minha gratidão eterna. Ao meu companheiro e amigo Marcos Paulo Machado Penteado, pelo amor, compreensão, tolerância, carinho e dedicação aos meus escritos. Agradeço-te por todas as lições aprendidas, por cada abraço, por toda vez que me estendeste a mão nos momentos em que eu mais precisava. À querida amiga Mariana Masotti, como eu amante das letras, pela paciência, ajuda e carinho com o meu trabalho, mesmo estando distante, por cada conversa, cada momento de descontração, risos e desabafos. Às queridas amigas Juliane Gonzaga e Bruna Fernanda de Simone, pelas longas manhãs e tardes de estudos, pelas reflexões e também pelos momentos felizes de festas e comemorações por cada vitória alcançada. Aos sobrinhos, meus amores e peças chaves de minha vida, motivo de inspirações e pensamentos, Cleiton, Mailon, Anderson e Juninho. À minha querida professora e orientadora Guacira Marcondes Machado Leite, por todo conhecimento, confiança e carinho concebidos, pelas longas conversas que me encorajaram a sempre seguir em frente, por me incentivar a trilhar, sempre, o melhor e o mais árduo caminho: o do conhecimento. Gratidão professora, por todos esses anos de dedicação exemplar a todos os seus alunos, obrigada pelos puxões de orelha, pelas broncas, enfim por ser esse exemplo de mulher forte e encorajadora que és. À querida professora Claudia Fernanda de Campos Mauro pela luz de suas palavras, não só durante a disciplina, mas também durante os cafés, que abriram caminho para todo o percurso de minha pesquisa. Obrigada pela paciência e por toda a atenção dada aos meus escritos. Dentre muitas Lygias, a Lygia Fagundes Telles, que por meio de suas palavras tocou e mudou minha vida por completo. E, em especial a minha querida professora do Ensino Médio Edna Terezinha Socorro Gonçalves Balbino, por ter sempre me motivado nos estudos, mesmo em um ambiente hostil, por ter me apresentado Lygia Fagundes Telles e ser a principal responsável por essa grande paixão e, também, pelo rumo de toda minha vida acadêmica. Gratidão eterna. A todos que fazem parte direta e indiretamente da construção desse trabalho. Os autores literários são valiosos aliados e seu testemunho deve ser levado em alta conta, porque têm como conhecer muitas das coisas entre o céu e a terra que não são sonhadas em nossa filosofia. No conhecimento do coração humano, estão muito adiante de nós, pessoas comuns, porque se valem de fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência. (Freud, 1997, p. 46) Aprendi desde cedo que fazer higiene mental era não fazer nada por aqueles que despencam no abismo. Se despencou, paciência, a gente olha assim com o rabo do olho e segue em frente. Imaginava uma cratera negra dentro da qual os pecadores mergulhavam sem socorro. Contudo, não conseguia visualizar os corpos lá no fundo e isso me apaziguava. E quem sabe um ou outro podia se salvar no último instante, agarrado a uma pedra, a um arbusto?... Bois e homens podiam ser salvos porque o milagre fazia parte da higiene mental. Bastava merecer esse milagre. (Telles, 1991, p.39) 9 RESUMO O romance de Lygia é visto pela crítica como um intenso diálogo com a história e a sociedade, compondo um importante painel da sociedade brasileira de uma determinada época, não só literário e cultural, como também histórico-sociológico. Sua literatura intimista eclode em um período de grande insatisfação do indivíduo dos grandes centros urbanos, demonstrando um profundo choque entre um presente conturbado e um passado angustiante de suas protagonistas. Assim concluímos que o retorno à memória associado à invenção é marca fundamental de toda a obra lygiana, como uma forma de sobrevivência, uma busca de equilíbrio nem sempre alcançado, de valores já perdidos em um período histórico tão desestruturado. Sua obra traz uma memória oriunda deste período, contendo relatos verdadeiros da posição do indivíduo na sociedade, juntamente com memórias individuais com seus traumas e conflitos do presente, aliando assim memória e invenção. Buscamos, portanto, investigar em que medida se dá a representação da memória, verificar a maneira com que Lygia buscou recriar a História por meio da ficção, criando por meio de seu romance, uma memória histórica a partir de memórias individuais, visto que a obra literária como um todo não busca explicar o horror a que os homens foram submetidos, mas sim, representar os inúmeros questionamentos e indagações que devem permanecer na mente de cada um de nós, como forma de afrontamento e denúncia de nossas mazelas históricas. Para alcançar tais objetivos, a metodologia adotada baseou-se no levantamento, na seleção, na leitura e no fichamento, primeiramente, da obra de Lygia Fagundes Telles, em especial o romance escolhido, e estudos que compõem o embasamento teórico da pesquisa, agrupados em três grupos: ensaios críticos sobre a obra lygiana em geral e sobre o tema em pauta, a memória; proposições sobre as categorias narrativas, especialmente o espaço, e ensaios/teoria sobre a literatura do trauma e o testemunho. Palavras – chave: Lygia Fagundes Telles. As meninas. Memória. Sociedade.Trauma. 10 ABSTRACT The romance of Lygia is seen by critics as an intense dialogue between history and society, making an important panel of the Brazilian society of a particular era, not only literary and cultural, as well as historical and sociological. Her intimate literature breaks out in a period of great dissatisfaction of the individual in major urban centers, showing a deep clash between a troubled present and a harrowing past of her protagonists. So we conclude that the return to the memory associated with the invention is fundamental mark of the entire Lygia's work, as a form of survival, a search for balance is not always achieved, values that have been already lost in a historical period so unstructured. Her work brings a memory originated from this period, containing true accounts of the position of the individual in society, along with individual memories with their traumas and conflicts of the present, so combining memory and invention. We seek to investigate the extent that gives the representation of memory, check the way Lygia sought to recreate history through fiction, creating through her novel, a historical memory from individual memories, since the literary work as a whole does not seek to explain the horror that men were subjected, but rather represent the countless issues and questions that must remain in the minds of each of us, as a way of confrontation and denunciation of our historical ills. To achieve such purposes, the methodology adopted was based on the survey, selection, reading and book reporting, first, of the work of Lygia Fagundes Telles in particular the selected novel, and of the studies that compose the theoretical basis of the research, grouped into three: critical essays on the work of Lygia in general and about the topic under discussion, the memory; propositions about narratives categories, especially the space, and essays/theory about the literature of trauma and testimony. Keywords: Lygia Fagundes Telles. As meninas. Memory. Society.Trauma 11 SUMÁRIO RESUMO..............................................................................................................................p.9 ABSTRACT.........................................................................................................................p.10 INTRODUÇÃO....................................................................................................................p.12 1 LYGIA FAGUNDES TELLES, SUAS INVENÇÕES E MEMÓRIAS..........................p.14 1.1 O gênero romanesco..........................................................................................................p.29 1.2 O universo romanesco de Lygia Fagundes Telles........................................................... p.40 2 UM PASSEIO PELOS CAMPOS DA MEMÓRIA..........................................................p.43 2.1 Histórias de ―meninas‖ – a (des) construção do romance tradicional..............................p.48 3 O ESPAÇO COMO REPRESENTAÇÃO DA MEMÓRIA...........................................p.56 3.1 Lorena e sua concha...........................................................................................................p.64 3.2 Lião e o aparelho................................................................................................................p.71 3.3 Ana Turva e o espaço público............................................................................................p.77 4 UMA PASSAGEM PELO TESTEMUNHO E PELA MEMÓRIA DO TRAUMA... p.81 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................p.95 REFERÊNCIAS.....................................................................................................................p.99 Bibliografia consultada............................................................................................................p.99 Teses consultadas.....................................................................................................................p.102 Livros de Lygia Fagundes Telles.............................................................................................p.103 Romances.................................................................................................................................p.103 Contos......................................................................................................................................p.103 Vídeos Consultados ................................................................................................................p.104 Sites consultados.....................................................................................................................p.104 12 INTRODUÇÃO Buscando enfatizar a constante ruptura com o convencionalismo na escrita lygiana, e a luta árdua frente à problemática da vida cotidiana de suas personagens e, principalmente, enfocando o romance As meninas, procuramos verificar em que medida Lygia Fagundes Telles buscou recriar a História por meio da ficção, criar por meio de seus livros uma memória histórica a partir de memórias individuais. A escolha do corpus de trabalho deve-se a uma grande paixão pelos escritos da autora, que nasceu durante os tempos de escola por incentivo da professora de literatura do Ensino Médio. Desde então o gosto pelos escritos lygianos somente cresceu. O objetivo deste estudo é investigar como se dá a representação da memória, seja ela por meio da elaboração de um romance de viés psicológico, por meio do espaço representativo de maneira individual ou por meio do testemunho e do trauma vivido por suas protagonistas em uma determinada época. Meus questionamentos primeiros foram: As meninas de Lygia realmente existiram? São seres reais ou imaginários? Tamanho realismo dado às divagações de Lorena, Ana Clara e Lia, que durante a leitura fui buscando identificar, no que concerne à infância, aos sonhos, aos desejos, à relação familiar e, primordialmente, à mulher frente ao seu desencontro maior com o mundo. Ressaltamos que esta pesquisa se faz necessária, na medida em que a História, de acordo com Maurice Halbwachs (2002), se mantém por meio da memória de um grupo. Acreditamos que Lygia Fagundes Telles reuniu em um único corpus, o romance As meninas, maneiras distintas da desestruturação do indivíduo em uma época bastante importante da história do país. O trabalho é constituído de quatro capítulos. Num primeiro momento do primeiro capítulo contemplamos, em particular, o acervo literário da escritora Lygia Fagundes Telles e sua inserção no cânone literário, fazendo um levantamento de temas comuns em seus contos e romances, e num segundo momento temos uma breve abordagem da evolução do romance como gênero literário, apoiada em teóricos e críticos como Walter Benjamin, Anatol Rosenfeld, Adolfo Casais Monteiro, Mikhael Bakhtin, Silviano Santiago, entre outros. Em seguida, temos um terceiro item, em que apresentamos os quatro romances da escritora: Ciranda de Pedra, Verão no aquário, As meninas e As horas nuas. 13 O segundo capítulo é composto pela busca de maior compreensão dos estudos da memória nos textos literários, por meio de autores como Paul Ricoeur, Maurice Halbwachs e Georges Gusdorf, seguida de uma abordagem mais detalhada de nosso corpus de trabalho, o romance As meninas, suas tessituras narrativas, suas personagens, enredo, contexto e no que concerne a nossa proposta de trabalho, a investigação da memória frente ao contexto histórico. No terceiro capítulo, apresentaremos uma fundamentação teórica sobre o espaço como elemento desencadeador da memória, a partir dos estudos de Michel Foucault, Gaston Bachelard e Ecléa Bosi. E, por fim, no quarto capítulo apontamos em que medida se dá o trauma na representação da memória individual de cada personagem de nosso corpus de pesquisa, particularmente na memória das protagonistas Lorena e Ana Clara, juntamente com a abordagem da memória coletiva das três esferas sociais representadas no romance lygiano. No intuito de alcançar o objetivo proposto, utilizamos como suporte bibliográfico a produção da autora, buscando penetrar no mundo de suas personagens, compreender seus medos, anseios, tristezas e dores inseridos em um mundo abalado pelas instituições decadentes que o regem. Procuramos perceber, o quanto sua ficção contribui para uma significativa compreensão, não apenas, do país nos anos de ditadura militar, mas, também, da essência do ser humano como um todo. 14 1. LYGIA FAGUNDES TELLES, SUAS INVENÇÕES E MEMÓRIAS Lygia Fagundes Telles, escritora brasileira, que hoje ocupa a cadeira de número 16 da Academia Brasileira de Letras, nasceu em 19 de Abril de 1923, no centro da capital paulista. Quarta filha de Durval Fagundes e Maria do Rosário, Lygia teve sua infância marcada pelas histórias, ouvidas de outras crianças ou dos empregados que a mãe contratava, histórias recheadas de magia, folclore, por vezes assustadoras, com mulas-sem-cabeça, lobisomens e tempestades. Teria, portanto, aprendido a viver no universo que gira em torno da palavra. Em 1938, com apenas 15 anos publica seu primeiro livro de contos Porão e Sobrado, que reúne 12 contos, sendo a edição paga pelo pai. Aos dezoito anos ingressa no curso de Direito, um importante passo para sua condição de mulher nos anos 40, passando a frequentar as rodas literárias da faculdade e importantes livrarias como a Jaraguá, lugar onde era comum a passagem de importantes nomes da literatura como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes, que viria a ser o seu segundo marido, mais de duas décadas depois. Em 1950 casa-se com o jurista Goffredo da Silva Telles Jr., que fora seu professor na faculdade de direito, mudando-se para o Rio de Janeiro, em 1954, onde tem seu primeiro e único filho Goffredo da Silva Telles Neto, e é lançado seu primeiro romance Ciranda de Pedra, que nos dizeres de Antonio Candido, foi o romance que marcou a maturidade literária da autora. A partir de então, passa a escrever e publicar outras obras de grande importância para a literatura brasileira, como Verão no Aquário (1963), Histórias escolhidas (1964), O jardim Selvagem (1964), As meninas (1973), As horas nuas (1989),O seminário dos ratos (1977), entre outras. O universo literário de Lygia Fagundes Telles trabalha com a diversidade das palavras, que juntas passam a criar mundos transpostos da realidade para a ficção. Ao escrever seus contos e romances, mostra as profundas transformações pelas quais passou a classe média brasileira a partir dos anos 50. Cria mundos em que os limites, entre o vivido e o imaginário, chegam a se confundir, tocando a imensidão onírica do interior do ser humano. Poderíamos dizer que sua obra é, ao mesmo tempo, real, fantástica e verossímil. Ao criar suas tramas, ela consegue transformar uma experiência particular em uma experiência universal, e ao utilizar-se da clareza, da objetividade, do despojamento de gestos familiares e cotidianos, lida com fios dramáticos os quais chegam a beirar a banalidade, porém são capazes de fixar profundamente a ―tragédia anônima‖ residente no interior de cada um de seus leitores. 15 Para melhor compreensão da posição de Lygia Fagundes Telles no âmbito dos importantes escritores da Literatura brasileira, faremos uma abordagem de parte da fortuna crítica da autora, juntamente com uma rápida apresentação de suas obras mais significativas, sempre a partir de críticos e teóricos como Alfredo Bosi, Antonio Candido, Regina Dalcastagné, Sônia Régis, Silviano Santiago e José Paulo Paes, Manuel da Costa Pinto, José Castello, entre outros. Alguns críticos colocam uma forte problemática quanto à escassez e à classificação de Lygia no cânone literário, uma vez que sua fortuna crítica é bastante significativa, mas não aparece no mesmo patamar de tantos outros escritores brasileiros. Esse fato explica, em parte, a nossa dificuldade ao compor este trabalho já que, como observa Sonia Régis em seu ensaio ―A densidade do aparente‖: ―É tão magnífico o número de artigos e ensaios escritos sobre Lygia Fagundes Telles que se pode perguntar se é possível ainda o acréscimo de alguma observação inédita.‖ (1998, p.84) Alfredo Bosi em História concisa da Literatura Brasileira (1984), no capítulo VIII, intitulado ‗Tendências contemporâneas‘, após destacar que, nos anos 50, ―continua viva a ficção intimista‖, limita-se a inserir Lygia Fagundes Telles entre outros onze ―escritores de invulgar penetração psicológica‖, como Dalton Trevisan, Otto Lara Resende, Aníbal Machado, autores que têm ―escavado os conflitos do homem em sociedade, cobrindo com seus contos e romances-de- personagem a gama de sentimentos que a vida moderna suscita no âmago da pessoa.‖ (p.437) No mesmo capítulo, ao sugerir ―uma hipótese de trabalho‖ para a produção romanesca do período, Bosi (1984) reformula a sistematização que Lucien Goldmann fizera em seu estudo Sociologia do Romance a partir dos trabalhos de George Lukács e René Girard. O seu dado inicial é a tensão entre o escritor e a sociedade. Goldmann pressupõe a existência de ―homologias entre a estrutura social e, mesmo grupal, em que se insere o seu autor.‖ (p.390) Para ele, a tensão dos protagonistas não transpõe uma ruptura absoluta, pois se isso ocorresse o gênero romanesco deixaria de existir, dando lugar à tragédia ou à lírica. Há, portanto, uma oposição ego/sociedade que funda a forma romanesca e a mantém como tal. Com base nas colocações acima, Bosi ainda propõe quatro tendências do romance brasileiro moderno, segundo o grau crescente de tensão entre o herói e o mundo: “romance de tensão mínima, romance de tensão crítica, romance de tensão interiorizada, romance de tensão transfigurada” (p.392, grifo do autor). Lygia Fagundes Telles é mencionada entre os outros autores inseridos nos romances de tensão interiorizada, em que o herói ―se dispõe a enfrentar a 16 antinomia eu/mundo pela ação, e ainda acrescenta que se enquadram nessa tendência ―romances psicológicos em suas várias modalidades (memorialismo, intimismo, auto – análise)‖. (p.442) Seguindo com a leitura, encontramos no sub título ‗Outros narradores intimistas‘ um parágrafo dedicado exclusivamente a Lygia Fagundes Telles, incluindo-a entre os ―romancistas e contistas que atestam, em conjunto, a maturidade literária a que chegou a prosa brasileira de tendência introspectiva.‖ (p.420) Bosi também constrói no mesmo parágrafo uma lista dos livros publicados pela escritora com a data da primeira publicação, afirmando que Lygia Fagundes Telles fixa em uma linguagem límpida e nervosa, o clima saturado de certas famílias paulistas cujos descendentes já não têm norte; mas é na evocação de cenas e estados de alma da infância e da adolescência que tem alcançado os seus mais belos efeitos. (p.420) Ele põe em evidência nosso corpus de trabalho, o romance As meninas de 1973, que abordaremos mais detidamente nos próximos capítulos deste trabalho, em que a autora traçou o perfil de ―estudantes burguesas‖, descendentes de famílias e de uma sociedade sem norte, como tantas outras de suas personagens, seja de seus contos ou de seus romances. É sabido que Lygia produziu muito mais contos do que romances: os livros de contos somam um total de treze, enquanto o gênero romanesco se reduz a quatro obras publicadas. Muitos críticos afirmam ter o conto um lugar de destaque na obra lygiana, pois é possível perceber neles uma significativa atenção ao detalhe incisivo aos objetos simbólicos, às histórias curtas que conseguem fazer o leitor mergulhar no interior de suas personagens. Porém, conseguimos perceber, em ambos os gêneros, a importância do detalhe em suas construções e criações, a presença forte e marcante dos símbolos dentro da narrativa - como a ampulheta no romance As meninas (1964), representando o tempo, esse posicionamento entre o passado e o futuro, dentro de um presente incerto. Também, a ciranda de anões no jardim no romance Ciranda de pedra (1998), mostrando-nos esse círculo enrijecido que jamais se abrirá para que Virgínia faça parte dele; o anjo decepado no cemitério do conto ―Venha ver o pôr do sol‖, representativo da morte de Raquel que se dará ao final da narrativa; o espelho em Verão no aquário (1963) simbolizando a ponte entre passado e presente na vida de Raíza, são, possíveis símbolos associados à história e à visão intimista e angustiada de suas personagens. 17 Segundo José Paulo Paes, em seu ensaio ―Ao encontro dos desencontros‖ (1998), há em Lygia o que chamamos a ―arte do desencontro‖, a qual se abre para um plano universal, pois relata os conflitos não só da imaginação criadora de Lygia, mas também os conflitos de uma época, de toda uma geração. Os projetos de vida de suas protagonistas, do romance As meninas, por exemplo, que tipificam os caminhos e descaminhos com que se defrontava a juventude universitária dos anos 60 e 70. Lygia exibe em seus romances um realismo capaz de capturar a realidade por meio da minúcia, do detalhe associado ao fantástico, ao devaneio, à magia, elementos próprios da contemporaneidade. Sobre a construção do conto e do romance, segundo José Paulo Paes (1998), a ―pouquidade‖ de espaço em um conto não permite senão um esboço de um desencontro, enquanto o gênero romanesco, graças a sua amplitude, possibilita desenvolvê-lo até chegar a algum tipo de ―desenlace‖. No conto ―O espartilho‖, do livro A estrutura da bolha de sabão de 1991, temos um exemplo bastante simples de um desencontro. Ana Luisa, protagonista, tem como criada e companheira Margarida, negra, filha de Isaura que fora criada de sua avó por décadas. Assim que descobre a paixão da criada por um jovem branco, Ana Luisa a denuncia, fazendo com que Margarida seja humilhada e ridicularizada pela figura dominadora e racista da avó, que a prende em casa e faz com que ela enxergue o seu lugar, sua condição de negra e empregada. Nesse momento Ana Luisa passa a refletir sobre suas atitudes em relação a Margarida, pois não a odeia, nem sente absolutamente nada de mal por ela, e percebe que apenas está seguindo os preceitos, os ensinamentos da família. No conto ―Antes do baile verde‖ (1970) a personagem, Tatisa, vai a um baile de Carnaval enquanto seu pai agoniza doente, sozinho em casa. No transcorrer da narrativa, vai traçando suas justificativas, porém vemos que nada mais subjaz, além do puro e completo egoísmo, que faz parte da essência do ser humano. José Paulo Paes, ainda, alega que desde sempre a autora vem tentando registrar, na moldura de seus contos, etapas bastante isoladas, e na moldura de seus romances, o que ele chama de ―uma sucessão de etapas da construção de ‗eus‘‖, não do eu da ficcionista, mas dos eus alheios, construídos a partir de sua imaginação, e colhidos de sua vivência no mundo. É interessante notar que Lygia Fagundes Telles, em várias de suas entrevistas, demonstra esse forte contato com suas personagens, com esses outros eus criados em seus mundos ficcionais. Em entrevista à revista 18 Cadernos de Literatura Brasileira (1998), foi questionada sobre a afirmação de Jorge Amado, que dizia ter personagens que se revoltavam. Teria acontecido algo parecido com os seus? E Lygia respondeu: ―Sim, a Ana Clara de As meninas. Ela não queria morrer. Protestou. Era como se me dissesse: ‗Eu ainda tenho muito o que dizer,não posso morrer agora.‘. [...] Como muitas pessoas, essas personagens querem uma vida suplementar, uma vida depois da morte.‖ (p.36) Reportemo-nos, agora, ao quanto Lygia deixa transparecer em seus personagens das características de toda uma geração. Em seu romance Praia viva, de 1944, e em alguns de seus contos, José Paulo Paes (1998) aponta o que ele chama de clima da ―geração do imediato pós – guerra‖, a geração de 45, período marcado pelo embate eu x mundo. Há nele uma crise dos valores humanos desencadeada pelos horrores da Segunda Grande Guerra, dos campos de concentração e das cidades devastadas pelas batalhas travadas. Esse embate entre o homem e seu mundo gera todo o sentimento de angústia e horror à existência, justificando assim a ―visada preponderantemente introspectiva‖ de nossos ficcionistas do período, como Clarice Lispector, Murilo Rubião, Osmans Lins. É a partir desse mesmo enfrentamento que as narrativas de Lygia Fagundes Telles vão se constituindo. Quer sejam narradas em primeira ou terceira pessoa, quer seja em contos ou romances, suas personagens são sempre vistas através da interioridade de uma personagem que podemos chamar ―focal‖, utilizando uma denominação de Alfredo Leme Coelho de Carvalho em seu livro Foco Narrativo e fluxo de consciência (2012). Já que falamos dessa interioridade, é importante ressaltar os raros momentos em que, na narrativa de Lygia, se prega a objetividade, em que há a descrição de personagens sem recorrer à interioridade. No conto ―A confissão de Leontina‖, do Livro A estrutura da bolha de sabão (1978), há a descrição objetiva de sua confissão, construída em um único diálogo, com uma leitora, que ela denomina ―senhora‖. Temos um eu feminino dirigindo-se a uma leitora também feminina, não havendo, portanto, nessa construção narrativa, um foco narrativo que perpasse pelo que podemos chamar de fluxo de consciência da personagem Leontina, pois ela mesma narra sua história, seu sofrido passado, retorna a sua casa inúmeras vezes, da prisão onde se encontra, por meio de uma linguagem que a própria Lygia denomina de ―jato‖, pois sem pontuação alguma vai tecendo seus desabafos. 19 No decorrer das análises vemos que acompanhar as obras de Lygia Fagundes Telles é se comprometer a mergulhar nos labirintos da alma humana, vivenciar o sofrimento das opressões, principalmente do universo feminino, seja de fora, ou de dentro, junto com suas personagens que vivenciam temas-chaves de sua obra, como as relações familiares, a morte, a loucura, as relações amorosas, a fuga da realidade por meio do fantástico, do imprevisto, do medo. Sônia Régis, crítica literária, que escreveu o ensaio ―A densidade do aparente‖ nos Cadernos de Literatura Brasileira (1998), discute muito a construção narrativa das obras de Lygia, e diz ser ela, ―a narrativa dos estados mentais‖, e que sua linguagem segue a incompletude dos pensamentos e dos devaneios das personagens que cria. A pontuação da qual Lygia se utiliza também cria fragmentação, seguindo a linha do próprio pensamento, provocando, com isso, a inquietude de seu leitor, pois é uma pontuação que chega a fazer parte da trama. Em outro ensaio, intitulado “O amor tatuagem da escrita‖, publicado em 2005, Régis faz uma breve rememoração das declarações dadas pela escritora em 1968, e dá o percurso do tema do amor nas obras de Lygia, que em uma de suas entrevistas diz: ―A palavra escrita é como uma tatuagem. Escrever é um ato de amor.‖ (TELLES, apud Régis, 2005, p.84) Em 1993, na França, Lygia dá um depoimento sobre sua produção ficcional, intitulado Mysterium, revelando que tem uma ―constante vontade de seduzir o leitor que gosta do devaneio. Do sonho‖ (p.6) E, assim como Clarice Lispector, diz deixar de ser Lygia para se tornar Lygia Fagundes Telles, escritora, que: ―na tentativa de desembrulhar personagens, (se) desembrulha obumbrando de novo no emaranhado dos fios. Então a invenção vira verdade na viragem –voragem do ofício da vida‖. ( TELLES, 2005, p.7) José Saramago (1922 – 2010), autor português, em vários momentos, ao fazer referência a Fernando Pessoa o chama de ―novelo de linha enrolado para dentro‖, remetendo-nos à ideia do que Lygia chamou de emaranhado, da ação de desembrulhar os outros eus que o artista possui dentro de si. No ano de 1998, o escritor enviou um texto para fazer parte também do Cadernos de Literatura Brasileira, número 5, de 1998, em homenagem a Lygia. No capítulo intitulado ―Ciranda de amigos‖, vai passando pelos fios da linguagem com um enorme carinho ao se lembrar da escritora, ao mesmo tempo resgatando a importância da memória de fatos considerados memoráveis. Quando pensa no momento em que conheceu Lygia Fagundes Telles, ressalta: 20 Mesmo que conseguisse determinar, com rigorosa precisão, o dia, a hora e o minuto em que apareci a Lygia pela primeira vez ou ela me apareceu a mim, estou certo de que ainda nesse caso uma voz haveria de sussurrar-me de dentro: ‗A tua memória enganou-se nas contas. Já a conhecias. Desde sempre que a conheces.‘‖ (p.16, grifo do autor) Cita, primordialmente, o conto ―Pomba enamorada‖ (1970), em suas palavras, ―uma verdadeira obra – prima‖, e diz que talvez tenha sido sua trama o caminho percorrido para que ele passasse a morar ―ao lado de Lygia‖, pois enfatiza em vários momentos essa forte ligação existente entre ambos. Apesar dos vários encontros espaçados estão sempre ali, um ao lado do outro: ―O tempo tem razões que os relógios desconhecem, para o tempo não há nem antes nem o depois, para o tempo só existe o agora.‖ (p.17) No momento em que opõe (não com essa denominação) o tempo cronológico ao tempo psicológico, toca em um tema chave da obra lygiana, que é justamente essa fragmentação do tempo: há em suas narrativas sempre um jogo entre o presente, o passado, sempre revisitado, e o futuro, um tempo que perpassa essencialmente na mente de suas protagonistas. Em entrevista cedida na revista Vitrine, da TV Cultura, ao jornalista e crítico literário Manuel da Costa Pinto, em 17 de abril de 2013, em comemoração aos seus 90 anos, Lygia tece profundas reflexões sobre várias de suas obras, fala do prazer de relembrar momentos marcantes, enumera algumas de suas personagens com grande paixão, e diz manter uma postura de busca da compreensão do universo feminino em uma sociedade opressora. Afirma que sua carreira literária iniciou-se a partir de Ciranda de Pedra, dessacralizando, assim, a vertente de que o escritor nasce pronto, e no momento em que diz ― a juventude não justifica um mau livro‖, alega ser seu romance As meninas, o romance mais completo de toda sua carreira literária. Bastante significativo ressaltar, também, sua breve reflexão sobre o conto que julga ser o seu favorito, ―Verde lagarto amarelo‖, do livro Antes do baile verde (1995), que está relacionado às consequências do trauma infantil na vida de duas personagens já adultas. Rodolfo, o narrador angustiado, por meio de seus monólogos interiores, vai descrevendo o irmão Eduardo externamente, busca lembranças infantis, sempre se identificando com o réptil que fica escondido no vão dos muros, em um conto que retrata a inveja, o ressentimento entre os dois irmãos. No decorrer da entrevista, Lygia enfatiza: ―Na natureza humana, a inveja, a inveja do outro é o 21 sentimento mais profundo.‖ Essa mesma inveja que faz parte da vida tão fustigada de Ana Clara, de Ana Luisa, de Ricardo, de Virgínia e de tantos outros personagens de Lygia Fagundes Telles. Em muitas de suas entrevistas, fala com paixão sobre o papel do escritor e o papel do leitor no mundo da ficção. Do leitor, fala com excessivo carinho, relembra fatos de seu cotidiano, em que as pessoas nas ruas vinham lhe pedir justificativas pelos fins trágicos de suas personagens, chama-os de cúmplices e não somente de companheiros, e em relação ao escritor, diz que, por meio da experiência, se transforma em testemunha de uma sociedade, de uma época e de um tempo, e que por um acaso do destino ele pode ser “corrompido, mas que não corrompe o leitor, pode ser louco, mas não enlouquece o leitor, pode ser solitário, mas ainda assim vai fazer companhia ao leitor, tirar o leitor da solidão.”1 Caio Riter (2003), em artigo publicado na Revista Ciência e Letras, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ressalta a maneira como as tramas construídas por Lygia Fagundes Telles ―são pontilhadas por enigmas‖, ao mesmo tempo em que possuem ―retratos do cotidiano.‖ (p.107). Enfatiza também o quanto o discurso indireto livre, bastante utilizado pela autora, bem como o entrecruzamento entre as vozes narrativas de suas personagens favorecem o ―espaço para manifestações mais íntimas, em que o freio da moral é rechaçado numa luta interna entre o estar vivo e viver‖. (107) Essa afirmação de Riter (2003) é bastante interessante, na medida em que nos faz pensar nos entrecruzamentos pelos quais passam muitas de suas protagonistas, e principalmente na liberação sexual da mulher que, mesmo estando viva, não se entrega à vivência materializada do sexo, como Rosa Ambrósio (As horas nuas) e Lorena (As meninas). Lygia, ao traçar o caminho do amor para suas personagens, na maior parte das vezes o traça não como uma benção, mas sim como uma experiência cujo fim reside na tragédia. Lygia descreve a história daqueles que de alguma forma padecem, ou do ―chão‖ ou do ―alto‖, todos aqueles que de alguma forma estão aflitos com a existência, os aflitos de todas as classes sociais. Suas personagens adentram um universo amargo, vivendo um isolamento profundo. Sejam personagens masculinas ou femininas, elas enfrentam sempre uma batalha interior bastante intensa. Tomás (As pérolas – 1958), personagem movido pelo desejo de posse, representa o medo constante da perda, em relação à mulher Lavínia. Virgínia (Ciranda de Pedra – 1997) é a personagem traumatizada, ferida e isolada desde a infância, sofreu primeiro pela loucura da mãe, depois pela rejeição do suposto pai Natércio e da ciranda, composta pelos irmãos e primos que 1 http://www.youtube.com/watch?v=vgMn9NjYYT8 22 sempre a maltrataram. Ricardo (―Venha ver o pôr do sol‖ – 1995) é o personagem preso ao seu ciúme doentio, submetido aos seus mais sórdidos pensamentos, até que acaba por matar seu grande amor, Raquel. Rafael (―A fuga‖ -1978) passa toda a narrativa fugindo de sua casa, fugindo de seus pais, de algo monstruoso que o persegue, que não sabe exatamente o que é. Doente e bastante frágil, consegue sair correndo, eufórico, sempre olhando para trás, sente-se livre, caminhando, olhando as árvores e pensando em seu grande amor, sua amante Bruna. No retorno, imerso em tristezas por pensar em voltar para o seio familiar, vê-se dentro de um caixão com sua mãe posta sobre ele entre lágrimas. Nesse conto temos dois temas marcantes das obras de Lygia, que são a fuga e a morte como meios de libertação. Miguel (―A testemunha‖ -1978) vive imerso em seus pensamentos, buscando recordar-se da noite anterior, pois ela simplesmente evaporou-se de sua memória. A única coisa da qual se lembra é da presença de seu amigo Rolf. Começa então a refletir, durante um passeio noturno, que Rolf é a única ponte entre o hoje e o ontem, do qual não se lembra, e como solução resolve matá-lo, jogando-o em um lago. Temos outro personagem masculino bastante significativo de Lygia Fagundes Telles, atormentado por esse passado tão próximo, não suportando essa lacuna em sua existência. A mistura entre o real e o fantástico é outro tema explorado por Lygia. Leitora de autores como Edgar Allan Poe, faz com que suas personagens se insiram em um mundo de dimensões fantásticas, e que o leitor fique a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural para ocorrências que ponham em xeque a credibilidade do real ou verossímil representado em suas narrativas. O personagem de seu conto ―A caçada‖ de 1965, que não tem nome, está preso em uma atmosfera onírica e fantástica, imerso em uma caçada, por meio da imagem de uma tapeçaria. Morre ferido por uma flecha vinda de dentro do quadro. Nos dizeres de Sônia Régis, em seu texto ―A densidade do aparente‖ (1998), Lygia Fagundes Telles expõe o desejo de plenitude do signo poético, de querer realizar o objeto que representa, oferecendo-se, de modo provocativo, como a encarnação da realidade. É um conto que desenvolve a metáfora da criação, fundando-se no questionamento da mais traumática realidade humana: sua absoluta dependência da representação [...] nesse (conto) o mundo criado simbolicamente compete com o real, fazendo com que o protagonista se enrede nas malhas do tecido poético. (p.85) 23 Em ―Natal na barca‖, do livro Mistérios, de 1981, temos três personagens em um barco na noite de natal, um homem já velho, uma mulher que embala o filho imersa numa profunda angústia durante a viagem e a narradora que observa e relata toda a atmosfera de solidão que os envolve. O diálogo entre eles faz com que a narradora constate que o filho embalado pela mulher está morto. Tomada assim por um forte temor e pelas tristes histórias daquela gente sofrida ela sente necessidade de fugir daquela barca para não presenciar o sofrimento da mãe, quando descobrir o filho morto. Assim, quando chegam ao destino quer sair correndo da barca, no momento em que ouve ―Acordou o dorminhoco!‖. Neste momento dá-se o fantástico na obra: perplexa e feliz a narradora segue seu destino com a certeza de que a criança está viva. Já em seu romance As horas nuas (1989), Lygia trabalha o fantástico aliado à repressão sexual. Dentre as vozes narradoras trabalhadas por Lygia neste romance, que são Rosa Ambrósio e seu gato Rahul, temos também um narrador em terceira pessoa que relata a vida de Ananta, personagem bastante exótica, psicóloga de Rosa Ambrósio, sem nenhuma sexualidade aflorada. Vive sozinha em seu apartamento e passa os dias à espera da chegada de seu vizinho no andar de cima, homem fechado consigo mesmo, e que ao adentrar no apartamento sofre com suas angústias, libertando-se da vida social e entregando-se à dor. Ananta, imersa em seus pensamentos, imagina o vizinho metamorfoseado num grande centauro, com o qual quer realizar seus mais íntimos desejos sexuais. Assim é que o fio do fantástico se entretece no realismo psicológico da trama de As horas nuas (1989) e tantas outras obras, trabalhado pela arte refinada de Lygia Fagundes Telles. A loucura é outra constante nos escritos lygianos, movendo o destino de importantes personagens, como, por exemplo, o de Virgínia (Ciranda de Pedra) que sofre com a loucura da mãe, o de Lorena (As meninas) que carrega a dor da morte do pai em um hospício, e também com a loucura da mãe que vive imersa em um relacionamento instável com um homem mais jovem, Mieux. No conto ―A testemunha‖, há um discurso bastante representativo sobre a loucura: ― – Presta atenção, Miguel, o que passou, passou. Não se preocupe mais, somos todos normalmente loucos. Fingimos até uma loucura maior mas não tem importância,faz parte do sistema, é preciso. De vez em quando, dá aquela piorada mesmo, que diabo. E daí? O tal cotidiano acaba prevalecendo sobre todas as coisas que nem na bíblia. Isso de dizer que só um fio de cabelo nos separa da loucura é total tolice.‖ ( TELLES, 1991, p.30) 24 Significativo destacar também a importância da memória, que abordaremos mais especificamente nos próximos capítulos. Em entrevista a José Castello, (2013) em O grande Banquete da Ficção, Lygia evoca, por meio de suas lembranças e memórias, passagens marcantes de sua vida com grandes amigos escritores da literatura brasileira, como Clarice Lispector e Vinícius de Moraes. Insiste em falar da importância que a memória exerce em nossas vidas, e lamenta-se ao afirmar que hoje se dá muito pouco valor à memória, em outras palavras, fala da pouca importância que as pessoas dão ao fato de trazer o passado para fazer parte do presente. Lygia fala a Castello sobre a morte do renomado escritor da literatura brasileira, o romântico Gonçalves Dias, da data trágica e fatídica, em que foi esquecido em seu leito durante o naufrágio do navio Ville de Boulogne, que o trazia de volta da Europa, depois de tentar curar-se da tuberculose. Todos se salvaram, porém esqueceram o poeta que estava enfermo. Metaforicamente ela nos coloca no lugar dos passageiros do Ville de Boulogne, esquecendo um Gonçalves Dias para morrer sozinho, sem socorro, no andar inferior. A cada pergunta respondida, percebemos um leve saudosismo acompanhado de uma alegria imensa por poder recordar e passar adiante momentos dos quais se lembra com ternura e muita sensatez: o amor com que fala de seu pai, Durval de Azevedo Fagundes, e de quando este a levava para as casas de jogos, do filho Gofredo Telles Neto, morto no ano de 2006, o carinho com que relata passagens de sua vida com seus dois maridos, o primeiro, Gofredo da Silva Telles (1915 – 2009), pai de seu único filho e depois Paulo Emílio Salles Gomes (1916 – 1977), por quem não esconde ter tido uma intensa e grande paixão. Por meio dessas inúmeras evocações do passado, ela nos traz de volta a figura misteriosa de Clarice Lispector que sempre dizia: “Liginha, não sorria nas fotos. Ninguém leva a sério mulheres que aparecem sorrindo na fotografia!".2 Outra passagem que merece destaque é sua entrevista ao Sabático, também em 2013, em homenagem aos seus 90 anos, onde narra com profunda tristeza o momento em que conheceu Monteiro Lobato na prisão. O carcereiro a levou para que pudesse vê-lo e sua imagem fugiu completamente da imagem que esperava encontrar. Em suas reflexões, memórias trazidas de um 2 http://www.youtube.com/watch?v=djj_gdxUrPI – Entrevista de Clarice Lispector transmitida pela TV cultura, no ano de 1977. http://www.youtube.com/watch?v=djj_gdxUrPI 25 passado tão significativo, Lygia faz com que seus leitores, por meio de suas obras, falas e rememorações, retomem acontecimentos importantes de nossa história e de nossa literatura. Muitas de suas personagens são aturdidas por um passado que insiste em sobreviver, marcando de maneira incisiva um presente que não se desenrola. Ana Clara (As meninas) é uma de suas personagens atormentadas pelas lembranças do passado, o abuso sexual na infância e a morte da mãe que tomou formicida. Ana Luísa (―O espartilho‖ – 1978) passa toda a infância em um casarão, restos de uma aristocracia decadente, ouvindo as histórias de sua avó, observando e admirando os retratos de família, até que a verdadeira história da família vem à tona pela voz da criada negra Margarida. A partir de então, descobre que ―as mulheres do álbum estavam tão apavoradas quanto [ela].‖ (p.47) e que ―Tudo era harmonioso, sólido, verdadeiro. No princípio. As mulheres, principalmente as mortas do álbum, eram maravilhosas.‖ (p.35) O conflito entre mãe e filha é outro tema bastante presente em grande parte de sua obra. Suas personagens, primordialmente jovens, estão sempre em conflito com a postura de suas mentoras, sejam elas avós, mães, tias, etc. No conto ―A medalha‖ (1978), Lygia retrata uma personagem chamada Adriana que, na véspera do casamento, chega em casa de manhã depois de uma suposta festa. Sua mãe, inválida, presa a uma cadeira de rodas quer fazê-la entender que está errada, que tem que se casar e ter um marido, sinônimo de segurança. Ana Luísa (―O espartilho‖) é outra personagem conflitante com os ideais burgueses e racistas de sua avó, o contexto é a segunda guerra e tem que tolerar todo um enaltecimento a Adolf Hitler quando sabe ser descendente de judeus, por parte de mãe, odiada pela avó até a morte. Ana Clara, de As meninas carrega consigo uma grande mágoa de sua mãe que a deixava ser violentada por seus amantes, pelo seu suicídio que a deixou no abandono ainda em sua infância. Já num romance como Verão no aquário (1963), os sucessivos conflitos e desencontros entre mãe e filha vão traduzindo etapa de uma aprendizagem de vida, como diz a própria personagem Raíza. Conseguimos perceber que Lygia trabalha com figuras representativas, essencialmente, do universo feminino, carrega consigo um ideal de liberdade desde sua adolescência quando atingiu seu primeiro objetivo, ingressar na Universidade e cursar Direito, curso destinado aos homens de seu tempo. Assim, ao compor suas obras, a autora vai refletindo sobre a condição da mulher, e exemplifica, busca em seu passado acontecimentos para nos mostrar o quanto essa condição evoluiu ao longo do tempo, e o quanto isso a alegra. Em entrevista à revista Cadernos de Literatura brasileira, Lygia responde a várias questões sobre o papel da mulher como escritora, 26 como dona de sua vida e de seu próprio corpo; faz também uma reflexão sobre o surgimento da mulher escritora no Brasil, o que não foi nada fácil, pois esta sempre viveu sob um regime de castração patriarcal, escrevendo seus versos em livros de receitas e por vezes queimando-os para que nunca fossem encontrados. Conta-nos de uma tia que, apaixonada e tendo seu namoro proibido pelo pai, escrevia versos e os escondia, ao mesmo tempo que, durante a noite, colocava um pano molhado no peito para adoecer lentamente e morrer; pediu, então, que fosse enterrada com seus versos. Lygia lamenta o fato de que nunca saberemos se perdemos uma grande escritora. Afirma também ter sido uma das maiores contribuições da mulher na literatura escrever sobre os ideais libertários, pois começaram a escrever sobre suas próprias ideias, poemas eróticos, abrindo assim espaço para novas gerações. Uma das convidadas que participa desse encontro, no Cadernos, é a escritora brasileira Adélia Prado, que faz para Lygia a seguinte pergunta: ―Você concorda ou não com a afirmativa corrente, segundo a qual ―a mulher é dona de seu corpo‖? Por quê? Lygia Fagundes Telles: ―Ela é dona sim. Depois desse passado terrível, depois de ser tão reprimida, tão espartilhada, a mulher se apossou do próprio corpo com uma força muito grande, numa espécie de reivindicação. Eu acredito nisso pelo que vejo – as vezes a mulher até exorbita nesse campo, usa o seu corpo fazendo dele um objeto. Eu acho tudo tão sério! Os pés, as mãos, os seios – tudo é tão sério, e a mulher muitas vezes, pensando que se vinga, torna-se escrava! Mas de um modo geral, ela tem o domínio desse corpo, mesmo que o use mal. Ela é dona do próprio corpo‖. (p.40, grifo nosso) Em muitas de suas obras trabalha com a posição da mulher dentro de nossa sociedade, posição esta que depende de escolhas que podem marcar sua vida para sempre. Ana Clara (As meninas), por exemplo, é a personagem que vê na retomada da virgindade, por meio de uma cirurgia, a solução para todos os seus problemas, ―Fico virgem pomba. [...] Operação fácil, Loreninha me empresta.‖ ( p.39). Ana Luisa (―O espartilho‖) é um essencial exemplo dessa criação baseada na castração, não busca o prazer, e sim uma vida ―digna‖ e estável. Com sua avó aprendeu desde sempre que ―As jovens se dividiam em dois grupos, o das virgens, e o grupo daquelas que não eram mais virgens [...] – uma agressão direta para a família.‖ (p.60) E ao falar sobre o papel da mulher nas tarefas conjugais, percebemos por meio dos escritos lygianos o quanto o prazer para a mulher sempre ficou em segundo plano: ―Raríssimas mulheres sentem prazer, filha. O homem, sim. Então a mulher precisa fingir um pouco, o que não tem essa importância que parece. Temos que 27 cumprir nossas tarefas, o resto é supérfluo. Se houver prazer, melhor, mas e se não houver? Ora, ninguém vai morrer por isso.‖ (TELLES, O espartilho, p.60) Um outro exemplo, particularmente ilustrativo desse tema, é ―Senhor Diretor‖, conto do livro Seminário dos ratos de 1977. A narrativa vai se compondo por meio do fluxo de consciência da personagem Maria Emília, professora aposentada e solteirona que se revolta com as imagens de nudez expostas em revistas nas bancas da cidade. Por meio de suas reflexões moralistas notamos o terrível desencontro em que a personagem vive, a estreiteza dos princípios sob os quais foi submetida durante toda a sua criação e os desejos ardentes que nunca pôde satisfazer. Nesse conto, o simbólico, o detalhe trabalhado com maestria por Lygia, é bastante evidente. No momento em que passa por uma das bancas, Maria Emília lê: ―Seca do Nordeste‖, em oposição a uma escandalosa referência aos ―óleos e unguentos‖ das orgias de Sodoma e Gomorra. Quando chega ao fim da narrativa, faz a seguinte reflexão: ―Seca tudo, a velhice é seca, toda a água se evaporou de mim, minha pele secou, as unhas secaram,o cabelo que estala e quebra no pente. O sexo sem secreções. Seco. Faz tempo que secou completamente, fonte selada. A única diferença é que um dia no nordeste, volta a chuva.‖ (p.23) Vê-se que essa evolução pela qual a mulher passou ao longo dos anos, em relação à dominação masculina, é algo muito presente nas falas e na escrita de Lygia Fagundes Telles, talvez por sua formação profissional e também pessoal, mesmo vivendo em uma época em que muitas mulheres não tinham o mesmo privilégio, submetidas à castração de um regime patriarcal. Lygia quis mostrar às mulheres de seu tempo e deixar para a posteridade, que as coisas poderiam e podem ser diferentes, por meio, talvez, da inversão de algumas atitudes e pensamentos da sociedade de um modo geral, ou do pensamento individual de cada um. Um conto que representa, e muito, a visão patriarcal extremamente preconceituosa e machista sobre a condição da mulher é ―A testemunha‖, já mencionado anteriormente, em que Rolf, um dos personagens, ao se deparar com a situação em que o amigo Miguel se encontra, diz: ―Acho que você está precisando é de mulher, essa nossa vida, uma solidão miserável. Se tivesse por aí umas putinhas simpáticas hum? Por onde andam nesta cidade as putinhas simpáticas, antigamente tinha tanta gueixa, vem me esquentar, vem me agradar! Elas vinham. Agora só encontro umas meninas chatas, tudo intelectual. Mania de feminismo, competição. Andei aí com uma nortista que me deixou tonto, fala feito uma patativa. Era socióloga, já pensou?‖ (TELLES, 1991, p.27, grifo nosso). 28 Essa, portanto, era a postura do homem em relação à mulher em uma época que Lygia chama de ―A grande Revolução da Mulher‖, momento de grande importância para a história do papel feminino na sociedade brasileira, uma conquista ―imensurável‖. É preciso lembrar, finalmente, que Lygia foi uma escritora ousada, e conseguiu alcançar objetivos mesmo em uma época de perseguição, censura e tortura que foi a do Regime Militar que perdurou no Brasil de 1964 a 1985. Esses são alguns exemplos do quanto a obra de Lygia consegue tocar no mais íntimo sentimento humano, sem deixar de lado acontecimentos históricos importantes, mostrando que ao reproduzir a vida do homem comum e seu cotidiano nem sempre há a possibilidade do final feliz. Há, portanto, o relato de um mundo, há muito tempo desestruturado, decadente em relação aos valores sociais instituídos. São temas que de alguma forma estão presentes, como diria Lygia, ―mascarados‖ ou não, na maior parte de seus escritos e também em nosso corpus de trabalho, que é seu romance As meninas. 29 1.1 O gênero romanesco Na modernidade, o romance pede ao leitor que compartilhe das experiências das personagens, que acontecem ao longo da narrativa; daí, a aventura da escritura no romance moderno. O texto acontece no momento da leitura, por meio da qual o leitor participa da construção da história, preenchendo as lacunas do relato narrativo. Nesse contexto, o narrador pós-moderno perde a totalização da narrativa, por causa da mudança do olhar. Se antes o narrador olhava a totalidade da história, dominando todas as esferas narrativas, bem como os pensamentos das personagens , e havia, por isso, sequência e unidade nas ações; agora, o narrador tenta ausentar-se da história e permite que a personagem relate sua experiência. Contudo, o relato sofre desmembramentos, não há unidade, porque ele parte sempre da visão unilateral dessa personagem. Cada uma vê de uma forma. E cada forma é um fragmento da história. Um novo modo de olhar, presente na estrutura narrativa, é explicado por Donaldo Schüler, sobre as alterações sofridas pelo romance na década de 50: Na década de 50, tornaram-se intensos os rumores da morte do romance, quando um grupo de ficcionistas franceses (Alain Robbe-Grillet, Michel Butor, Nathalie Sarraute) afrontaram preceitos consagrados da arte romanesca tais como tempo, espaço, ação. Sartre, ao chamar de anti-romances essas produções, declara que destroem o romance sob nossos olhos. Enriqueceram, na verdade, a arte de narrar com recursos reservados à cinematografia (SCHÜLER, p. 08, 1989). Assim, de acordo com o autor, a forma do romance sofreu mudanças porque deixou de ser o único meio de se narrar em histórias, uma vez que o cinema tornou-se um dos recursos preferidos pelo homem moderno para fazer parte do mundo da ficção. Para Adorno, Assim como a pintura perdeu muitas de suas funções tradicionais para a fotografia, o romance as perdeu para a reportagem e para os meios da indústria cultural, sobretudo para o cinema. O romance precisaria se concentrar naquilo de que não é possível dar conta por meio do relato. Só que, em contraste com a pintura, a emancipação do romance em relação ao objeto foi limitada pela linguagem (ADORNO, 2003, p. 56). De acordo com Elisângela Maria Ozório professora em Literatura e crítica literária pela PUC – SP em seu artigo ―O romance pós-moderno em As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles‖ 30 (2012)3, limitado pelo relato puro e simples do jornalista e pela nova arte fictícia, o narrador tradicional perde o encanto, pois não atende mais aos interesses da sociedade moderna, principalmente após a Segunda Guerra, quando o homem não quer ouvir histórias criadas sobre experiências vividas, porque está diante da morte. As vozes estão em um momento silenciador. Esse homem opta pela vida, não pela morte. O narrador, então, é obrigado a reinventar o seu papel e escolhe a vivência entre o duelo de narrar e relatar, portanto entre estar na obra como contador ou como mais um participante na experiência. Cabe ao narrador a tarefa de contar, como o tradicional, ou relatar e vivenciar as experiências por meio da escritura. Desse modo, de acordo com Ozório (2012), ―a estrutura convencional é rechaçada, mais uma vez, pela linguagem de uma nova escritura, como se o narrador se lembrasse de sua ausência e trouxesse o relato puro e direto da personagem ou das personagens narradoras, que podem contar sua própria história no decorrer da narrativa intercalando suas vozes.‖ Lygia Fagundes Telles usufrui dessa imagem do narrador pós-moderno e cria em seus romances essas atmosferas, suas personagens retratam as histórias umas das outras, fazendo com que seus enredos não sigam a estrutura convencional cronológica da narrativa. Em seus dois romances As meninas (1973), e As Horas Nuas (1989), o narrador aventura-se na não integração na narrativa, concedendo às personagens condições de relatar o enredo. Todavia, mesmo o narrador abolindo-se, ele (re)aparece em fragmentos como auxiliador de toda a trama. O tempo psicológico e o flashback unem-se ao fluxo de consciência das protagonistas de Lygia para demonstrar o quanto desejam experimentar as recordações da memória, o que nos faz pensar em Walter Benjamin quando afirma, ―a experiência é um fato de tradição, tanto na vida privada quanto na coletiva. A experiência não consiste precisamente de acontecimentos fixados com exatidão na lembrança, e sim, de dados acumulados frequentemente de forma inconsciente, que afluem à memória.‖ (BENJAMIN, 2000, p.38) Silviano Santiago (1989) apresenta a questão do olhar como fundamental na mudança da posição do narrador. O olhar tradicional predominava sobre as personagens e o enredo. Ele não se perdia no escrito, porque estava presente em todas as camadas da criação. Todavia, o olhar pós- moderno é de experimentação: experimentar a escritura e as experiências das personagens, porquanto também quer participar da narrativa como o ser que deseja a vida. O desejo pela 3 Disponível em - http://nuvenspoeticas.blogspot.com.br/2012_03_01_archive.html http://nuvenspoeticas.blogspot.com.br/2012_03_01_archive.html 31 experiência concomitante derrubou o narrador tradicional que, na atualidade, deu voz às personagens. Em outras palavras, o narrador transformou-se num leitor: ―Como se o narrador exigisse: Deixem-me olhar para que você, leitor, também possa ver‖ (SANTIAGO, 1989, p. 45). O capítulo, então, segue no sentido de estabelecer, superficialmente, as bases das modificações pelas quais o romance passou no final do século XIX e início do século XX. A forma romanesca passou por várias modificações ao longo da história. Um exemplo pode ser o do vocábulo romance; este, na Idade Média, passou por diferentes designações: num primeiro momento, referia-se à língua vulgar, recebendo depois um significado literário, passando a denominar composições narrativas. Tratava-se de composições em verso, para serem recitadas e lidas. Tanto o romance medieval quanto o romance do renascimento apresentam um mundo idealizado e fabuloso, pautado pela imaginação exuberante, com ―[...] abundância de situações e aventuras excepcionais e inverossímeis‖ (SILVA, 1976, p.254). Essas características ainda estarão presentes no século XVII, durante o período barroco, período de muita importância para a história do romance, já que foi sob sua égide que surgiu o romance moderno. Seu marco principal é Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, de 1605. Feito esse preâmbulo, podemos pensar que não há contradição em dizer que Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, e Ulisses, de James Joyce, são romances modernos, embora sejam bastante diferentes. Assim, sabemos que existem diferentes manifestações de romances modernos, relacionados às transformações ocorridas nos últimos três séculos, que nos levam a pensar nas diferentes ramificações do romance moderno e sua temática. A partir dessas considerações sabemos que tais romancistas passaram a criar personagens com alto nível de complexidade, dialogando com aspectos de sua psicologia bastante profunda. Por meio de seu romance, Lygia busca mostrar a complexa interioridade de ‗suas meninas‘ com artimanhas narrativas. Podemos entender essa forma de lidar com as personagens, com ênfase em sua psicologia profunda e condição de classe social, ambas imbricadas, como uma investigação narrativa, uma verdadeira busca. Nesse sentido, as três personagens são investigadas e esquadrinhadas de maneira relacional, fazendo parte do movimento elaborado pela escritora ao retratar a história, pois ao mesmo tempo em que conhecemos as subjetividades das personagens, os estratos sociais em que se inserem, também vão sendo apresentados. Pensando no referencial teórico bakhtiniano intitulado cronotopo, que constrói, no texto literário, um ponto de intersecção, para nós, fundamental, entre as relações temporais e espaciais 32 artisticamente assimiladas pela experiência estética, é cabível pensar que Bakhtin parte de uma mediação precisa, uma metáfora voltada às características específicas dos objetos estéticos, fazendo do cronotopo uma categoria conteudístico-formal reveladora das conexões entre as situações humanas e os eventos existentes nas obras de arte: ―Em arte e em literatura, todas as definições espaço - temporais são inseparáveis umas das outras e sempre tingidas de um matiz emocional.‖ (BAKHTIN, 1998, p.349). Essas relações espaço-temporais estão contaminadas pelas situações existenciais do narrador ou da personagem, cada qual portador de um ponto de vista e de um ideologema distinto, detectáveis em seus respectivos discursos ou vozes, bem como no diálogo que entre eles se estabelece, remetendo-nos à sua entoação. Portanto, esse referencial teórico nos permitirá discutir a relação entre o mundo e a obra de arte, e os diferentes pontos de vista tomados por cada uma das personagens lygianas. Assim, o mundo interior das protagonistas traz consigo marcas de sua posição social, ao mesmo tempo em que mostra suas particularidades e suas fraquezas, levando o leitor a participar de suas experiências. No romance de Lygia há três vozes narrativas, representativas de três estratos de nossa sociedade: Lorena é representante da classe burguesa decadente; Lia faz parte da militância política que se colocava contra o regime militar; e Ana Clara, que está mergulhada em uma situação de indefinição social que mistura a pobreza material com desejos de ascensão social, é uma personagem que vive à margem de tudo, vive em seu mundo de prostituição, drogas e álcool, e, sendo assim, é a personagem mais intensamente explorada pela autora, pois vive imersa em suas memórias amargas. Têm-se no romance confissões de três mulheres e por meio delas tem-se acesso a um painel social da época, pois, [...] quem faz a história são mulheres comuns – indivíduos amedrontados que não só possuem outros problemas além daqueles enfrentados num regime autoritário como os explicitam continuamente. A violência nas ruas, a repressão, a censura só fazem agravar existências já conturbadas, trazendo à tona dúvidas e angustias, ou, pelo contrário, escondendo sentimentos que deveriam estar descobertos. [...] Por isso mesmo, entregar a narrativa a uma mulher é olhar a história sob outra perspectiva. (DALCASTAGNÉ, 1996, p. 116) Lygia Fagundes Telles utiliza-se, também, de aspectos objetivos e subjetivos das personagens para trabalhar literariamente questões sociais e existenciais que perpassavam a 33 experiência contraditória e intensa dos jovens que viveram sob o Regime Militar. Sua técnica narrativa remete à grande importância da relação dialética do sujeito com a sociedade, do olhar desse mesmo sujeito e aquilo que por ele é focalizado. São três olhares distintos, de um mesmo momento da história do país, que observam o exterior e também os seus próprios interiores: ―Os olhos nus. Em verdade vos digo que chegará o dia em que a nudez dos olhos será mais excitante do que a do sexo.‖ (TELLES, 1998, p.10) O trecho acima nos dá a ideia da importância do olhar e das imagens dele decorrentes. É, portanto, pela pluralidade de olhares que se dá essa forte e envolvente narrativa. Suas histórias de vida e experiências se entrecruzam, uma completando a outra no decorrer da obra. Adolfo Casais Monteiro, em seu livro Teoria e Crítica (1964), propõe uma discussão para expor em que medida o romance é profundamente romântico, é realista ou não possui regras fixas, e não há dúvida de que a própria dificuldade em lhe fixar regras constitui uma tábua de salvação para o gênero, pois evitará a mesma sorte que tiveram os gêneros que o classicismo levou ao esgotamento. O realismo, portanto, é um elemento fundamental do gênero romanesco: ―enquanto os gêneros nobres do classicismo vão afastando cada vez mais a literatura do ‗homem de carne e osso‘, surge do fundo das tradições orais, das histórias do canto da lareira, esse gênero a principio malvisto, tido como indigno de ser classificado como arte, que é o romance‖ (1964, p.4) Monteiro vai ao longo de sua escrita colocando-se contrariamente às proposições de Gaspar Simões (1903- 1987), crítico e historiador da literatura portuguesa que classifica o romance do início do século XX em Portugal como neo-realista, e se posiciona contrário aos teóricos que pregavam a existência do neo-realismo se apegando à crítica marxista de Georg Lukacs, na qual ele trabalha as colocações de Marx e Engels sobre a função dos grandes artistas: ― O fato é que, antes do problema de saber se o romance deve ser naturalista, realista, psicológico ou metafísico, se deve ser subjetivo ou objetivo (admitamos provisoriamente que estes termos tenham todos igualmente sentido e correspondam a algum conteúdo), há a inquirir, como coisa mais importante, se as obras que representam esse gênero contem ou não uma expressão profunda do homem implícita nas personagens e na ação, graças à qual a obra se baste a si própria e constitua uma unidade, seja um ―corpo‖ com cada parte no seu lugar, um todo indivisível cuja autenticidade se afirme independentemente das teorias em que o autor tenha pretendido inspirar-se. [...] Ora, a conclusão inevitável, a meu ver, é ser o realismo consubstancial ao romance, à margem de quaisquer tendências, pois me parece evidente ser ele como, já disse atrás, um traço 34 comum a todas as grandes obras do gênero, independentemente de épocas e de escolas”. (MONTEIRO, 1964, p.8 grifo nosso) Para Casais Monteiro, é uma ilusão linguística pensar que a linguagem pode copiar o real e que a literatura pode representá-lo fielmente. Temos que pensar a literatura não sob a questão ―como a literatura copia o real?‖ Mas sim sob a questão ―como ela nos faz pensar que copia o real?‖ Portanto, a finalidade da mimésis, que de acordo com Auerbach (1971) é a representação da realidade na literatura ocidental, não é mais a de produzir uma ilusão do mundo real, mas uma ilusão do discurso verdadeiro sobre o mundo real. O realismo é, pois, a ilusão produzida pela intertextualidade: ―O romance, seja qual for a deformação que possam sofrer nele quaisquer fatos, exige o respeito pela expressão do ritmo próprio de existir; para ele, a vida humana, quer a interior, quer a de relação, impõe-lhe o tempo como valor a respeitar antes de qualquer outro e a situação no espaço como seu indispensável complemento; pelo contrário, a poesia não que saber do espaço nem do tempo, com os quais joga com a máxima arbitrariedade, pois é da sua essência ignorar o aqui ou o acolá, o hoje, o ontem ou o amanhã‖. (MONTEIRO, 1964, p.9) Lygia Fagundes, em sua narrativa, reflete as condições de vida humana ao ir decifrando suas protagonistas no decorrer dos discursos, porém ela brinca, arbitrariamente, com a categoria do tempo, faz com que passado, presente e futuro se mesclem, enquanto o espaço pode ser identificado, pois mantém ao longo do texto uma relação direta com cada personagem do romance. Adolfo Casais Monteiro (1964) defende a ideia de que o romance, para retratar a realidade humana, não pode simplesmente ser anódino, ele precisa, além de se prender aos fatos narrados, tocar o leitor com a ajuda deles. E uma longa discussão permanece sobre a distinção entre o historiador e o romancista, o qual, como disse Aristóteles em sua Poética,―não narrar o que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido‖, o que é chamado de verossimilhança. Lygia narra fatos históricos, evocando toda uma atmosfera de repressão daqueles que, de alguma maneira, vivenciaram os anos da ditadura militar. Há no decorrer da narrativa relatos verdadeiros através do discurso de uma de suas protagonistas e aliado a eles, a autora nos mostra o quanto sua linguagem pode ser metafórica, cheia de recursos poéticos que vão jogando com o tempo no decorrer da narrativa, ou seja, Lygia retrata acontecimentos reais, porém de maneira 35 que toca o leitor, indo ao encontro das colocações de Adolfo Casais Monteiro (1964) quando diz que: [...] uma coisa há que se torna necessária para dar validade a todos [os elementos] que entram na elaboração romanesca: é que essa representação não deixe escapar isso a que muitas vezes se chama verossimilhança, ou então verdade, e que é no fundo a própria densidade da experiência humana. (1964, p.44) Lygia buscou criar personagens que fossem reflexos da juventude da década de 70 e ao mesmo tempo, criar personagens com uma forte densidade psicológica, que buscassem por meio de seus devaneios uma transformação de vida, uma transformação de seu meio social; trabalhou estrategicamente com três estratos sociais bastante diversificados, principalmente em suas origens. [...] quando se pretende que o romance seja um espelho da sociedade, o sentido de tal expressão depende da ideia sobre o que isto quererá dizer. No sentido literal seria uma sugestão de cópia, de imitação. Mas poderia também sê-lo duma certa forma de espelhar aquilo que não é aparente.‖ [...] Na realidade o espelho é o romancista, e, irremediavelmente, só pode ver a sociedade de acordo com aquilo que ele próprio seja. [...] A „sociedade‟ é, em cada romancista, um mundo próprio, cujas leis são as próprias leis da formação intelectual do romancista. E aqui uma verdade realmente nos aparece, pois que, não podendo ser um espelho fiel da sociedade, é – o todavia, de um dos sistemas criados pela sua época para interpretar. (MONTEIRO, 1964, p.24, grifo nosso) Em entrevista ao Cadernos de Literatura Brasileira, Lygia fala sobre sua função como romancista de retratar o seu tempo, criar sua obra baseada no que viveu ou vive, pois esta tem a função de oferecer sua visão , sua interpretação de uma época e não uma certeza. Somente assim um romance torna-se verdadeiro, quando pretende fazer o retrato da sociedade ou também do indivíduo, colocando diante do leitor acontecimentos e personagens verossímeis: ―Vivendo a realidade de uma escritora de Terceiro Mundo, considero a minha obra de natureza engajada, ou seja, comprometida com a condição humana dentro da circunstância de um país, participante e testemunha de uma sociedade.‖ (TELLES, 2008, p.01). De acordo, ainda, com Adolfo Casais Monteiro (1964), citando Plekhanov, é muito confortável dizer que ―a literatura e a arte são o espelho da vida social‖, pois a relação que se estabelece entre a obra de arte e o que ela reflete de seu tempo é falaciosa, pois, será que ela refletiria de maneira ―verdadeira‖ a sua esfera social, mesmo sendo descoberta anos depois da 36 morte de seu autor? O romancista compõe suas obras baseado no que viveu ou vive, pois se este esperasse somente o que o historiador tivesse a contar haveria somente o romance histórico. Nietzsche, o grande filósofo alemão, diz ter aprendido muito mais com as obras de Dostoievski do que com qualquer psicólogo, e sobre Balzac, a crítica revelou que ele descreveu em seus romances uma sociedade que ainda estava por nascer. Assim, vemos que a literatura progrediu ao longo do tempo como uma forte expressão humana, assumindo uma posição marcante, na medida em que, o homem foi tomando consciência de si próprio, esse homem que não é um modelo estabelecido que permanece, e sim um homem em constante transformação: ―[...] não cabe à arte fornecer uma imagem da perfeição, exatamente por o homem ser imperfeito‖. (MONTEIRO, 1964, p.36) Lygia Fagundes Telles retratou em suas obras arquétipos de mulheres inseridas em um contexto de angústia, revelou seus medos, seus anseios, construindo, assim, um painel histórico. Partiu, daquilo que vem a ser o cerne do nosso trabalho, do individual para o coletivo por meio das memórias de suas meninas, memórias as quais segundo Halbwachs ( 2006) são construções de grupos sociais, que determinam o que é memorável. O gênero romanesco, ao longo de sua trajetória, lida com toda a espécie de problemas, faz intervir, implica, alude a muitas ideias que constituem a intelectualidade da época, e não somente as ideias do autor, mas as que ele deixa transparecer em sua obra sem serem suas. Tem como uma de suas principais funções traduzir a personalidade complexa do homem contemporâneo. A partir de Dostoievski pode-se dizer que se abriu uma nova era para o gênero romanesco, pois ele foi inaugurador do romance do século XX; suas personagens e as histórias a que estavam submetidas, os ambientes em que estas se situam, trazem um ritmo aos seus romances: ― Não se pode dizer que Dostoievski tenha sido o criador do ‗romance pisicológico‘, aliás a expressão é por demais vaga, tanto mais que todo o romance moderno, já desde a Princesse de Clèves de Mme de Lafayette, se caracteriza pela sobreposição da análise à pura e simples descrição dos acontecimentos e dos estados de espíritos, vistos sob o exclusivo ponto de vista da ação ‗visível a olho nu‘. O que podemos dizer é que Dostoievski deu o primeiro lugar à análise em profundidade, e, simultaneamente, fez passar a frente do estudo do indivíduo dependente do meio o seu estudo como personalidade irredutível, na sua essência, à ação exterior. Quer dizer: o que lhe importou aprofundar não foi tanto o acidental, o idêntico, o comum, como tudo o que no homem vive para lá do costume, da opinião pública ou da privada, dos hábitos, do artifício produzido pela aceitação da ordem social. Além disso a quase totalidade das suas personagens é constituída por indivíduos anormais‖. (MONTEIRO, 1964, p.) 37 O romance polifônico, trabalhado por Dostoiévski, insere, justamente, essa exposição de diferentes ideias, personagens que batem de frente com suas ideologias e pontos de vista, que vão se chocando ao longo da narrativa. Pois é na medida em que desperta ―paixões de ideias‖, e nenhum gênero as desperta melhor, que o romance atrai toda espécie de confusões, em sua função de criar e recriar a vida e não simplesmente copiá-lá. Os irmãos Karamázovi (1879), ou mesmo, Os Demônios (1972) são romances admiráveis pela profundidade da análise psicológica, e quando se fala da ‗psicologia‘ de um romance, entende-se a revelação viva, concreta e artística, de estados psíquicos ou lances em que a verdade sobre o que o homem é nos aparece como arte, isto é, dando a impressão da vida: ao passo que a psicologia que apreciamos no tratado é o estudo dos estados psíquicos isolados, ―extraídos da duração humana, pousados na mesa do psicólogo como se fossem coisas individualizadas e independentes‖. (MONTEIRO, 1964, p.57) Assim, o gênero romanesco foi ao longo do tempo adquirindo, de fato, um valor em tudo diferente daquele que tinha ainda até para muitos romancistas do século XIX. Podemos citar, além da forte importância de Dostoievski, nomes como os de Balzac, Stendhal, Georg Eliot e Dickens, e dizer que o grande autor russo se destaca pelo seu tom revolucionário, isto é, ao ter demonstrado por meio de seus personagens uma nova dimensão do homem. Não há em seus romances um só caso de homens ou mulheres que não queiram saber senão das necessidades e dos interesses imediatos; todos eles possuem, por miseráveis que sejam, social, psicológica ou fisiologicamente, pelo menos um cantinho de espírito no qual lhes cabe a inquietação e a angústia perante o drama da existência. Todos eles querem saber aquelas coisas que ―não servem para nada‖, os ―porquês‖ e os ―comos‖ da vida. (p.61/62) Walter Benjamin (1994) fala sobre os vários tipos de narradores que temos dentro de uma obra literária, e sobre a importância dos vários olhares, pontos de vistas ao mostrar a sociedade em que estão inseridos: A Experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. ―Quem viaja tem muito que contar‖, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o 38 homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. (BENJAMIN, 1994, p.198). Para o filósofo, a melhor narrativa escrita é aquela que traz traços da narrativa oral, carregada de certa experiência. Ele opõe, em seu texto, dois sujeitos, um camponês e um marinheiro, vindo ao encontro das ideias citadas acima: temos o relato da distância temporal, ou seja, do homem que viveu sempre no mesmo lugar e o da distância espacial, o homem que trouxe histórias de lugares distantes. Como observa Benjamin, podemos ter dentro de uma obra uma troca de experiências sejam elas vindas de dentro ou de fora de seu contexto. Pensemos, então, em uma distinção básica do narrador tradicional para o narrador pós – moderno. Enquanto aquele se utilizava da experiência e do olhar, este se utiliza da experiência do outro, ―ele não narra enquanto atuante‖ (SANTIAGO, 1989) e sim, por meio do olhar lançado ao outro. As meninas (1973) é a obra de Lygia em que a fragmentação da memória e a pluralização das vozes guiam o fluxo de toda a narrativa. Caracterizado, utilizando os termos de Bakhtin, como um romance ―plurivocal, plurilinguístico e pluriestilístico‖ 4, constrói-se, ao longo do livro, uma "topografia da memória", que pode ser lida como encenação da memória do trauma das personagens, cujas narrativas vão se intercalando ao longo do romance, e é por meio das personagens, de suas vozes, de seus corpos que seus dramas são expostos e enraizados no tempo. Temos quatro vozes narrativas diferenciadas, um narrador tradicional que observa e vai encadeando o fio condutor da estrutura narrativa das três protagonistas em primeira pessoa, que seguem relatando cada uma o seu ponto de vista e suas experiências em relação ao mundo em que estão inseridas, por meio de seus diálogos desencontrados nos espaços multifacetados. Ao iniciarmos a leitura do romance questionamos, Quem nos fala? De quem são essas vozes angustiantes? Até que mergulhamos na vivência de cada uma delas e passamos a conhecer cada uma de suas experiências. A linguagem utilizada por Lygia para construir seu romance é truncada, as personagens desembocam em si mesmas, desacomodam palavras, desencontram diálogos interrompidos por ações e assuntos que surgem e vão se sobrepondo ao longo da tessitura narrativa: ―Te dou um osso de ouro volta me lambe a cara a mão ai que dor. Que frio quero o tapete. Vem Aninha vem 4 Bakhtin, Questões de Literatura e estética, p.73. 39 aqui no tapete eu chamo e obedeço. Não chora que te dou. Não chora vem.‖ (TELLES, 1974 p.76) Segundo Rosenfeld (1969) o romance moderno inova na medida em que o narrador desaparece e quem passa a se manifestar é a consciência da personagem criando, muitas vezes, aquilo que chamamos fluxo de consciência: ―Já não existe um Eu narrador fixo face a um Eu narrado em transformação.‖ (ROSENFELD,1969, p.93) No trecho acima, extraído do romance de Lygia temos a personagem Ana Clara narradora de si mesma. Em seu romance, a autora traça uma linha entre literatura e realidade utilizando-se das artimanhas do romance moderno, por meio da desestruturação da narrativa tradicional, que vem representar a desestruturação do próprio ser humano em seu contexto histórico-social. 40 1.2 Uma breve passagem pelo universo romanesco de Lygia Fagundes Telles Lygia é autora de apenas quatro romances, sendo consagrada por inúmeros críticos, como escritora de contos. As obras pertencentes ao gênero romanesco são, respectivamente, Ciranda de pedra (1954), Verão no Aquário (1963), As horas nuas (1989) e As meninas (1973), este sobre o qual faremos uma análise mais detalhada nos próximos capítulos. Lygia Fagundes Telles ao produzi-los, faz com que tenhamos uma visão, em grande parte, bastante negativa da evolução de suas personagens, estas marcadas pela impossibilidade do equilíbrio, possuindo reações sombrias e silenciosas, inseridas em convenções sociais, valores e tradições do seio familiar. A autora define a composição de seus romances como ―uma prática de questionamento dos limites da verdade aparente.‖ (TELLES, apud Régis, 2005, p.85). O romance psicológico de Lygia – como Ciranda de Pedra - centraliza-se nas grandes cidades, e traz à tona membros de uma sociedade decadente, descendentes de uma aristocracia cafeeira arruinada, os novos ricos dos anos 50. Ela se mostra frente a problemas profundos do ser humano, retrata principalmente o universo feminino, um mundo repleto de percepções e desejos do perfil da mulher. O desejo de ascensão social, de liberação sexual, de autoafirmação, o desejo de reviver a juventude, o desejo da liberdade, entre tantos outros. Importante ressaltar que nas décadas de 60 e 70 a instituição familiar deveria seguir o modelo patriarcal, estruturada em um espaço do aconchego, com a presença da mãe dedicada ao lar, do pai mantenedor da ordem e da situação financeira e dos filhos que deixariam a casa somente por meio do casamento. Lygia, em seus romances e alguns de seus contos, rompe com essa estrutura, criando personagens que vivem de uma insatisfação em relação à família, movidas pelo desejo, pela necessidade da experiência, pela angústia e também pela rememoração, por vezes bastante amarga e questionadora perante a família. Há na estrutura dos romances de Lygia, como demonstrado anteriormente, a intercalação das vozes narrativas, que é característica essencial da passagem para o romance moderno. Seus romances, em sua maioria, escritos em primeira pessoa, são carregados de intensa subjetividade. Em Ciranda de pedra, seu primeiro romance, a narração dá-se em terceira pessoa, um narrador onisciente que nos permite conhecer o interior de Virgínia e nos deparar com toda a angústia que a personagem vive. Lygia retrata a decadência de uma família, e a compõe por meio de alguns de seus temas fundamentais, como a morte, a loucura, o medo, a crueldade, a fragilidade da alma humana, entre outros. O narrador nos mostra, ao longo da trama, as 41 divagações e os questionamentos de Virgínia, e também dos outros personagens como Conrado e Natércio, apresenta-nos, sempre, algo que se desintegra e se vai desnudando até que mostrem seus medos mais profundos, suas loucuras e suas fragilidades. Lygia trabalha, ainda, com bastante naturalidade, os poderes da metáfora e o símbolo, que de acordo com José Paulo Paes (1998) destaca-se no título de três dos quatro romances de Lygia. O título de Ciranda de Pedra diz respeito às estatuas dos cinco anões posicionados no jardim da mansão do pai, Natércio, que Virgínia julga ser seu pai biológico. Após a morte da mãe, Virgínia parte para a tão sonhada vida ao lado de suas irmãs e do pai, porém passa a ser alvo de desprezo, excluída da roda de amigos metaforizada pela ciranda dos anões. Enclausurada em si mesma, e após descobrir ser filha do adultério da mãe, resolve partir para um colégio interno, no qual permanece inclusive durante o período de férias. Quando retorna depara-se com toda sua fantasia desmoronada: ―O mal maior foi [Virgínia] não estar nunca presente, não ver de perto as coisas que assim de longe se fantasiavam como num sortilégio. Teria visto tudo com simplicidade, sem sofrimento. [...] Os semideuses eram apenas cinco criaturas dolorosamente humanas.‖ (p.125) O segundo romance de Lygia, intitulado Verão no Aquário (1963), também tem por protagonista uma jovem chamada Raíza, cujos desencontros existenciais estão simbolicamente condensados no título do romance. Raíza vive imersa em sonhos e recordações obsessivas pela figura e memória do pai, já falecido, em seu espaço lúdico, o porão da antiga casa, e vê-se em um embaçado espelho brincando com o pai e o tio, sem, no entanto sobrar espaço para a mãe, Patrícia, sempre preocupada com os afazeres práticos da casa. A narrativa transcorre num verão de calor intenso e termina com o fim da estação: ―Enxuguei as lágrimas. E fechei a janela ao sentir o sopro frio do vento. O verão terminara.‖ (p. 206) Por sua vez, o pequeno aquário com dois peixes, na prateleira, ganha destaque no romance quando é transferido para a mesa: podemos assim relacioná-lo com as palavras trocadas entre mãe e filha. Raíza sente-se presa como um peixe no aquário e em um de seus monólogos interiores diz: ―Estou me despedindo do meu aquário, mamãe, estou me preparando para o mar, não percebe?‖ (p.187) 42 Se em Ciranda de Pedra, Verão no Aquário e As meninas, do qual falaremos mais adiante, nos dizeres de José Paulo Paes, Lygia buscou retratar ―a fase juvenil da construção da ipseidade feminina‖, em seu romance As horas nuas (1989) Lygia mostra, por meio da protagonista Rosa Ambrósio, os profundos desencontros de uma mulher madura que sofre com a passagem e os estragos do tempo. É uma atriz de meia idade que sozinha se dispõe a escrever suas memórias sem sucesso, possui apenas um gravador no qual dita parte de seus devaneios e lembranças, e então por meio dessas divagações, de seus monólogos interiores e de seus desabafos com sua psicanalista conseguimos adentrar em sua interioridade. O título faz referência ao desvelamento, à nudez, ao “strip tease” emocional da protagonista. No segundo capítulo do livro, Rosa está diante do espelho e começa a despir-se para admirar o próprio corpo e esconder com tintura os fios brancos que começam a aparecer nas têmporas e no púbis. Esse encontro com elas mesmas, esse desvelamento pelo qual suas personagens passam e se entregam à culpa como forma de redenção é um caminho tortuoso, que dificilmente culmina em um final feliz. Sua tessitura narrativa imerge o leitor num mundo verossímil, de pessoas vivas e angustiadas buscando uma forma de reencontro com o passado e a memória. 43 2. UM PASSEIO PELOS CAMPOS DA MEMÓRIA Partindo de uma definição geral, podemos dizer que a memória é a capacidade de armazenar dados ou informações referentes a fatos vividos no passado ou a reminiscências do passado, que vão aflorando no pensamento de cada indivíduo social. Hoje, visto como instrumento essencial dos laços sociais, a memória vem funcionando mais do que um ―objeto da história‖, nos dizeres de Paul Ricoeur (2007) que faz uma distinção entre memorização, a qual vem a ser uma forma de memória-hábito, uma forma privilegiada de memória feliz e rememoração, que vem a ser o retorno à consciência despertada de um acontecimento. ―Para falar sem rodeios, não temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela.‖ (RICOEUR, 2007,p.40) Em relação à manipulação da memória, Ricoeur fala das mediações simbólicas da ação em que a memória é incorporada à constituição da identidade por meio da função narrativa. E como os personagens da narrativa são postos na trama simultaneamente à história narrada, ―a configuração narrativa contribui para modelar a identidade dos protagonistas da ação ao mesmo tempo que os contornos da própria ação‖.( 2007, p.98) O autor afirma, ainda, que a narrativa oferece inúmeros recursos de manipulação e, quando pensamos no romance de Lygia temos protagonistas que manipulam a memória cada uma de uma maneira distinta. Dentro da tessitura narrativa de Lygia Fagundes Telles, há personagens que compõem suas memórias individuais que não deixam de existir, porém estão enraizadas nos três diferentes contextos apresentados pela autora. Suas meninas buscam, justamente, essa memória, elas querem questionar e explicar suas memórias, vivendo e reorganizando o passado, por vezes por meio da invenção. Contudo a cada rememoração entristecem-se por não conseguir modificar o passado. Em seu texto intitulado Tratado da memória e da reminiscência (1985), Aristóteles propõe o seguinte questionamento: ―A que parte da alma pertence a memória? É evidente que a esta parte da qual brota também a imaginação‖. É a origem do que chamamos memória, em grego mnemosyne, que era uma deusa, mãe das musas, filha de Urano (céu) e Gaia (terra), irmã de Chronos (tempo) e de Okeanos (mar), e simboliza todas as metáforas de infinitude. Essa divindade feminina revela, de acordo com Adélia B. Menezes (1995), todas as ligações obscuras entre o rememorar e o inventar, pois, como nos diz Aristóteles, a memória está ligada à 44 imaginação. Portanto, ―[...] da perspectiva da literatura, é isso a memória: matéria prima de um processo de mimese‖. (MENEZES, 1995,p.35) Essa mimese que vem a ser o poder de por em palavras o que ainda não tinha representação. Maurice Halbwachs (1877 – 1945), teórico no qual apoiamos essencialmente os questionamentos de nossos estudos, trata a memória como um fator essencialmente social, alega que a memória pessoal de cada indivíduo prende-se à memória de seu grupo, sendo este, por sua vez, parte de uma esfera maior, a chamada memória coletiva. Em seu livro intitulado Memória coletiva (2006) Halbwachs coloca-nos a seguinte situação: Um grupo de amigos, de longa data, faz uma viagem, porém fora as circunstâncias externas, comum a todos, cada um deles possui suas próprias reflexões e pensamentos com outros grupos reais ou imaginários, que escapam uns aos outros. Algum tempo depois se encontram novamente e um se lembra de coisas de que o outro não se lembra. Para elucidar tal questão, tem-se que, esquecemos tudo o que ele [o outro] evoca e inutilmente se esforça por nos fazer lembrar. Em compensação lembramos aquilo que sentíamos então, sem que os outros soubessem, como se este gênero de lembrança houvesse marcado sua impressão mais profundamente em nossa memória porque dizia respeito exclusivamente a nós. [...] Será que por isso a memória individual, é uma condição necessária e suficiente da recordação e do reconhecimento das lembranças? De modo algum, pois se esta primeira lembrança foi suprimida, se não nos é mais possível reencontrá-la, é porque há muito tempo não fazemos parte do grupo na memória do qual ela se mantinha. Para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser constituída sobre uma base comum. (HALBWACHS, 2006, P. 39) Para o autor (Apud BOSI, 1979, p.17), o caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória é muito raro. Frequentemente, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. Para ele, se lembramos, é porque os outros, ou a situação presente nos fazem lembrar; quando deixamos de lembrar é porque deixamos de fazer parte de determinado grupo. Maurice Halbwachs (2006) afirma, ainda, que é em um passado vivido, mais do que num passado apreendido pela história, que se apoiará a memória de um individuo. (p.90) Neste sentido é que a história vivida se distingue da história escrita: ela tem tudo o que é necessário para constituir um panorama vivo e natural sobre o qual se 45 possa basear um pensamento para conservar e reencontrar a imagem de seu passado. ( HALBWACHS, 2006, p. 90) E que, ―a lembrança é uma reconstrução do passado com a ajuda de dados tomados de empréstimo ao presente e preparados por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora já saiu bastante alterada. [...] se pela memória somos remetidos ao contato direto com alguma de nossas antigas impressões, por definição a lembrança se distinguiria dessas ideias mais ou menos precisas que a nossa reflexão, auxiliada por narrativas, testemunhos e confidencias dos outros, nos permite fazer de como teria sido nosso passado. Não obstante, ainda que seja possível evocar de maneira tão direta algumas lembranças, é impossível distinguir os casos em que assim procedemos e aqueles em que imaginamos o que teria acontecido.‖ ( HALBWACHS, 2006, p. 91) Valem, também, para a fundamentação da escolha desse viés de pesquisa, os argumentos do estudioso francês Georges Gusdorf (1912- 2000) sobre os escritos autobiográficos, pautados no artigo de Brigitte Monique Hervot intitulado George Gusdorf e a autobiografia (20135). Seus estudos nos servem, na medida em que define a autobiografia no campo da arte literária, assim como romance, como meio de desvendamento do ser humano. Para Brigitte, (2013), Gusdorf defende a existência do eu indo de encontro às teorias de alguns pensadores contemporâneos que negam essa mesma existência do eu e a singularidade do sujeito, como Foucault, Lacan entre outros, para os quais, ―quando alguém escreve sobre si, não é sua individualidade que dita o texto, mas uma entidade representativa de um coletivo do qual o eu é apenas um porta – voz‖(p.8). Porém, a teoria de Gusdorf não contesta o fato de que não haja influências referenciais históricas, que é o ponto de defesa de nossa pesquisa, porém nos serve na medida em que afirma ser o próprio sujeito que interpreta esses elementos ―a partir de seus sentimentos e de sua subjetividade no momento no qual escreve.‖ (p.107) A premissa principal de Gusdorf é a de que a verdade reside não nos fatos, mas sim na vida interior do homem. O autor entende que a escrita da autobiografia, assim como o faz Lygia Fagundes Telles com suas personagens, não necessita seguir a ordem cronológica de sua existência, mas sim ―buscar o sentido da vida interna‖, e na medida em que define a autobiografia como ―un espace intermédiaire entre le réel et l’imaginaire‖, como uma ―résurrection du passé à partir d’un prélèvement sur la masse flottante de ce moi virtuel, fait de songe et de réalité, de souvenir et d’imaginaire.‖ (GUSDORF, APUD HERVOT, 2013, p.9). Essa definição remete-nos 5 Disponível em < http://seer.fclar.unesp.br/lettres/article/view/6430/4745> 46 às maneiras de narrar suas próprias histórias das personagens lygianas, que ao longo do romance deixam-se levar pela imaginação, regressando ao passado, muitas vezes, por meio de seus devaneios e divagações, mesclando assim memória e invenção. Para o autor não existe uma verdade absoluta, visto que as lembranças são retomadas ao longo de nossa existência ―por meio da imaginação que inventa e preenche as lacunas deixadas pela memória‖ (p.9), esta que, de acordo com Lygia Fagundes Telles,