A MODALIDADE NA LITERATURA DE AUTO-AJUDA Anna Flora BRUNELLI 1 • RESUMO: Neste trabalho, baseado nos princípios da Análise do Discurso francesa, seguindo especialmente o pensamento de Maingueneau (1998), analisamos a modalidade na literatura de auto-ajuda, o que nos permitiu verificar que a manifestação da certeza é um dos traços se­ mânticos desse discurso. • PALAVRAS-CHAVE: Análise do discurso francesa; literatura de auto-ajuda; modalidade. Introdução A partir da proposta de Maingueneau (1998), estamos investigando a literatura de auto-ajuda, procurando definir o sistema de restrições semânticas desse discurso. No presente trabalho, examinamos a modalidade na literatura de auto-ajuda, fazendo u m levantamento dos itens lexicais modalizadores que encontramos num texto repre­ sentativo dessa literatura e dos efeitos de sentido que eles veiculam. Mais especifica­ mente, decidimos investigar a modalidade na literatura de auto-ajuda como uma for­ ma de averiguarmos a validade de uma hipótese que formulamos a respeito de um dos traços semânticos desse discurso. Os livros de auto-ajuda, de uma forma geral, pre­ gam que o segredo para que qualquer um consiga melhorar de vida, alcançar o suces­ so, ganhar muito dinheiro etc. está na crença incondicional na realização dos sonhos, do projeto de vida, dos desejos etc. Assim, quem acredita que vai conseguir, consegue e quem duvida, não. Trata-se, portanto, de uma questão de fé, de crença absoluta e, essencialmente, de jamais duvidar do poder que se tem de mudar a realidade. Como se trata de uma questão de acreditar, de não duvidar, entendemos que os autores de auto-ajuda, sujeitos desse discurso, também devem manifestar em seus textos, com relação às teses que propõem, essa mesma crença/confiança que pregam aos seus leitores. Além disso, se as teses que apresentam são verdadeiras, se as fór­ mulas e orientações propostas efetivamente funcionam e se tudo é realmente uma questão de acreditar, então a incerteza e a dúvida devem mesmo ser manifestações excluídas e/ou rejeitadas nos textos desse discurso. Departamento de Estudos Linguisticos e Literários - Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas - UNESP - 15054-000 - São José do Rio Preto - SP - Brasil. E-mail: anna@lev.ibilce.unesp.br. Alfa, São Paulo. 47 (2): 117-137,2003 117 mailto:anna@lev.ibilce.unesp.br Assim, supondo que a manifestação da certeza seja um dos traços semânticos que caracterizam a auto-ajuda, na condição de um dos traços positivos que esse discurso reivindica, ao mesmo tempo em que a dúvida seja u m dos negativos, isto é, dos que rejeita e/ou evita, acreditamos que uma análise das modalidades em seu material de­ ve revelar que o sujeito-enunciador da auto-ajuda não manifesta incerteza com rela­ ção às fórmulas que propõe para seus co-enunciadores. Como corpus para a análise, selecionamos o livro "O sucesso não ocorre por aca­ so", de Lair Ribeiro (1992). Escolhemos essa publicação considerando-a representati­ va desse tipo de material, inclusive em função da fama alcançada por Lair Ribeiro, re­ conhecidamente u m autor de auto-ajuda. Quanto à decisão de trabalharmos com apenas u m exemplar da literatura em questão, remetemo-nos ao próprio Maingueneau (1983) em Sémantique de la polemique. Nessa obra, o autor investiga o discurso do jansenismo e do humanismo, utilizando-se de poucos textos representativos de cada discurso, tendo em vista que, como o discurso pode ser entendido como um conjunto de restrições semânticas, então elas estão em todo e qualquer u m dos textos desse discurso. Assim, basta selecionarmos apenas um texto representativo do discurso em questão para encontrarmos os traços semânticos que o definem. Com isso, evitamos a necessidade de trabalhar com um corpus amplo. Para investigarmos a modalidade na auto-ajuda, baseamo-nos em alguns traba­ lhos funcionalistas sobre o assunto, como Palmer (1979 e 1986), Neves (1996 e 1999- 2000), Dair Agl io-Hattnher (1995) e, principalmente, DalFAgl io-Hattnher (2001) que, considerando a evidencialidade como uma instância semântica superior e necessária para a qualificação modal epistêmica, apresenta uma descrição formal e funcional da expressão da evidencialidade e da modalidade epistêmica em língua portuguesa, re­ velando, inclusive, os efeitos comunicativos relacionados às suas formas de expres­ são. A partir dessa descrição, faremos um levantamento dos enunciados modalizados em Ribeiro (1992), o que nos permitirá avaliar a pertinência da hipótese levantada. Por fim, uma ressalva se faz importante. Como o presente trabalho integra uma in ­ vestigação baseada na Análise do Discurso de linha francesa (AD, doravante), a opção pelo funcionalismo pode, a princípio, parecer para alguns uma impertinência teórica. Na verdade, isso não se verifica, pois o fato de aproveitarmos as informações que os estudos funcionalistas nos fornecem sobre as modalidades não nos leva a perder de vista a ordem própria do discurso, diferente da materialidade da língua. Como se sabe, embora reconheça que essa ordem se realiza na língua, a AD não está definitivamente presa a uma determinada escola ou a um ramo da Lingüística2. Além disso, devemos lembrar que não existe nenhuma harmonia preestabelecida entre os diversos objetos que podem ser pro- Para uma discussão mais detalhada sobre a relação entre a AD e a Lingüística, sugerimos a leitura da introdução de Maingueneau (1989) 118 Alia, São Paulo, 47 (2): 117-137, 2003 postos pela AD e os recursos que a lingüística lhes oferece (devendo-se entender definitiva­ mente que "a" lingüística designa, de fato, "as" lingüísticas do campo). Frente a um corpus, o pesquisador a priori não tem nenhuma razão determinante para estudar um fenômeno em de­ trimento de outro, da mesma forma que nada o obriga a recorrer a um determinado procedimento ao invés de a qualquer outro (MAINGUENEAU, 1989, p.18, grifo nosso). Assim, diante da liberdade de selecionarmos o ponto de vista mais interessante para alcançarmos os nossos objetivos, optamos pelos trabalhos funcionalistas 3, tendo em vista que esses estudos descrevem a função dos modalizadores nos níveis prag­ mático, semântico e sintático de forma integrada. Em função dos distintos fenôme­ nos recobertos pelas modalidades, estas, como se sabe, constituem u m campo de pes­ quisa bastante fértil e, conforme mostramos a seguir, a opção pelos trabalhos funcionalistas nos garante u m tratamento não-redutor. Quanto a isso, remetemo-nos a DallAgl io-Hattnher et al. (2001, p. 103, grifo nosso): Do ponto de vista lingüístico, os quadros teóricos dos quais se pode desenvolver uma in­ vestigação das modalidades são vários. Aciedita-se, no entanto, que os modelos funcio­ nalistas de estrutura frasal que consideram a organização simultânea da sen­ tença como mensagem e como evento de interação permitem uma investigação privilegiada dessa categoria, na medida em que possibilitam a identificação de diferentes instâncias da modalização, bem como o exame das diversas qualifi­ cações que atuam nas camadas da estrutura frasal As modalidades Não há dúvida de que as modalidades constituem uma categoria lingüística bas­ tante complexa, que compreende distintas noções e se materializa de formas muito diferentes, o que se confirma quando se comparam as várias definições de modalida­ de apresentadas pelas distintas teorias lingüísticas que as investigam 4 e que, partindo de diferentes concepções, privilegiam um ou outro de seus aspectos. O conceito de modalidade, como lembra Cervoni (1989), não pertence exclusiva­ mente aos lingüistas, mas também aos lógicos, que foram os primeiros a elaborá-lo, definindo-o como u m de seus conceitos fundamentais e origem da lógica modal. Quanto à contribuição da Lógica à Lingüística, Neves (1996) não nega que o estu- 3 Paia uma exposição dos piincípios e conceitos do funcionalismo, indicamos Neves (1997). 4 Quanto a esses estudos, remetemo-nos a Coiacini (1991). que relata os fundamentos do tratamento das modalidades se- qundo a peispectiva sintática, semântica e pragmática, apontando-lhes as falhas, e ao pnnieiro capítulo de DalPAglio- Hattnher (1995) no qual se encontram desciitos' (;) um panorama dos diferentes tratamentos que as modalidades iece- bem no campo da Lógica e da Linguística; (ii) as dificuldades no estabelecimento de uma tipologia das modalidades; Ou) as diveisas fornias de expiessão das modalidades. Já no capítulo II. a autora apresenta diferentes trabalhos que abor­ dam o assunto do ponto de vista do funcionalismo Alfa, São Paulo, 47 (2): 117-137,2003 119 do da expressão lingüística das modalidades pressupõe realmente alguma considera­ ção dos modelos idealizados pelos lógicos. Entretanto, Neves (1996, p.163) deixa claro que os estudos lingüísticos estão desvinculados dos modelos dos lógicos por causa do caráter "não-lógico, ou não-ordenado, das línguas naturais". De um modo geral, em Lingüística, as modalidades são entendidas como mani ­ festações de subjetividade, mais especificamente, como índices da atitude do falante perante os enunciados que produz, daí o fato de serem consideradas como parte da atividade ilocucionária (KOCH, 1986, p.227). Segundo Cervoni (1989), a apresentação mais geral a que se recorre quando se pretende tratar da modalidade é aquela ligada a uma análise semântica que distingue, num enunciado, " u m dito (às vezes denominado conteúdo proposicional) e uma mo­ dalidade - um ponto de vista do sujeito falante sobre este conteúdo" (CERVONI, 1989, p.53). Porém, há um inconveniente nessa apresentação, pois ela pode sugerir uma con­ fusão entre a modalidade e a conotação, outra manifestação da subjetividade na l in ­ guagem; a esse respeito, afirma; ao contrário da conotação, a modalidade é constitutiva da significação fundamental, da de­ notação, ela não tem nada de acrescentado; a frase menos modalizada comporta uma mo­ dalidade mínima. Assim, numa frase como: A teria gira em torno do sol, uma modalidade é manifestada pelo modo do verbo, o modo indicativo (CERVONI, 1989, p.53).6 Entendemos, portanto, que nem toda marca de subjetividade é um modalizador. Na verdade, os modalizadores fazem parte de um vastíssimo conjunto de recursos lingüísti­ cos por intermédio dos quais os falantes transmitem suas intenções comunicativas 6. Na presente investigação, partindo dos trabalhos funcionalistas supracitados, con­ sideramos as modalidades como "veiculadoras das atitudes do falante com relação ao que é d i t o " (DALL'AGLIO-HATTNHER, 1995, p.132); daí, a necessidade de focalizar, no estudo das modalidades, o sujeito da enunciação e, automaticamente, o contexto enunciativo 7 . A esse respeito, Coracini (1991), assumindo uma postura eminentemen­ te pragmática - baseada em Rajagopalan (1983) e segundo a qual o valor comunicati­ vo de um enunciado é julgado apenas dentro do contexto da enunciação - afirma: "não posso me ocupar das modalidades enquanto unidades que revelam em si e por si sós o aspecto veridictivo do enunciado, uma vez que considero que ta l análise perde de vista aspectos discursivos importantes que derivam da situação de interlocução" (RAJAGOPALAN, 1983, p.120-1). Para garantir que tais aspectos discursivos sejam 0 Ceivoni (1989) também destaca a necessidade de diferenciar as modalidades da tipologia das frases (declarativa, rnter- iogativa, impeiativa, optativa), que constitui um "fenômeno sensivelmente diferente". É por isso inclusive que o autor considera pouco adequadas denominações como "modalidade" declarativa, "modalidade" interrogativa etc 6 Dall' Aglro-Hattnher (1995). por exemplo, no IV capítulo de seu trabalho, identifica uma série de mecanismos que cons- tioem efeitos de (des)comprometimento do falante e que não são modalizadores. ' Alguns dos principais trabalhos que endossam o ponto de vista segundo o qual o sujeito da enunciação se encontra no centro da investigação das modalidades são citados por DalFAglio-Hattnher (1995. p.71-2). 120 Alfa, São Paulo, 47 (2); 117-137, 2003 realmente considerados no estudo das modalidades, Coracini (1991) postula, então, as seguintes teses, que citamos, tendo em vista a importância que atribuem à enunciação: a) a linguagem e os sujeitos que a utilizam (dentro de um grupo social) não cessam de cons­ truir o universo referencial, criando "modelos de realidade" relativamente arbitrários, com relação aos quais (e apenas com relação a eles) se torna possível determinar o valor de verdade/falsidade do que se enuncia; b) todo enunciado se acha inscrito no interior de um quadro enunciativo do qual é preciso partir se se deseja descrever seu funcionamento alético; c) a modalidade, enquanto engajamento do sujeito-enunciador, preexiste ao texto resultan­ te do discurso, isto é, precede a própria elaboração textual (modalidade implícita). Decor­ re daí a primazia da enunciação em relação às unidades lingüísticas; d) a modalidade pode manifestar o ponto de vista do enunciador apresentando-se textual­ mente implícita ou através de "marcas" modais; e) as "marcas modais" em si não determinam a priori o ponto de vista do sujeito-enuncia­ dor nem as interpretações possíveis: sua presença ou ausência aponta apenas para uma possível interpretação do texto; f) as modalidades constituem verdadeiras estratégias retórico-argumentativas, na medida em que pressupõem uma intencionalidade discursiva, não podendo ser isoladas do ato de fala em que estão inseridas (CORACINI, 1991, p.120). Uma vez apresentada a forma como consideramos as modalidades, podemos par­ tir para o seu exame no discurso da auto-ajuda. Antes, porém, apresentamos sucinta­ mente as principais modalidades investigadas pelos estudos lingüísticos. Tipologia das modalidades De u m modo geral, os estudos sobre as modalidades se referem, pelo menos, a três tipos de modalidades: as aléticas ou aristotélicas, as epistêmicas e as deônticas. As aléticas, primeiras descritas pelos lógicos, referem-se ao eixo da existência e, assim, determinam o valor de verdade das proposições. Como os enunciados de uma ciência podem ser necessariamente verdadeiros ou possivelmente verdadeiros e não simples­ mente verdadeiros, o necessário e o possível são os dois principais modos que podem afetar uma proposição. A partir desses dois modos, definem-se o impossível, contrário do possível, e o contingente, contrário do necessário. Neves (1999-2000) destaca que a modalidade alética, relacionada ao mundo onto­ lógico, fundamental no equacionamento veridictório das proposições e, assim, central na lógica, é periférica nas línguas naturais. Afinal, como observa, são poucos claros, no discurso, casos de sentenças que sejam apenas aleticamente modeli­ zadas e, de facto, é improvável que um conteúdo asseverado em um acto de fala seja porta- Alfa, São Paulo, 47 (2)- 117-137, 2003 121 dor de uma verdade não filtrada pelo conhecimento e pelo julgamento do falante. Isso signi­ ficaria a existência de proposições independentes do contexto de enunciação, restritas a uma organização lógica interna de termos e relacionadas a mundos possíveis dentro dos quais seriam, ou não, verdadeiras (NEVES, 1999-2000, p. 101-2). Com esse esclarecimento, podemos entender porque a modalidade alética não ocupa posição de destaque nos estudos lingüísticos, que investigam a modalidade em enunciados de línguas naturais. Assim, a modalidade alética se diferencia da deôntica e da epistêmica, que constituem, conforme veremos a seguir, "a modalidade lingüísti­ ca stricto senso, isto é, a modalização ocorrente e analisável nos enunciados efetiva­ mente produzidos" (NEVES, 1996, p.172). A modalidade deôntica, relacionada aos valores de permissão, obrigação e proibi­ ção, refere-se ao eixo da conduta; portanto está "condicionada por traços lexicais es­ pecíficos ao enunciador ([+controle]) e, de outro lado, implica que o enunciatário acei­ te o valor de verdade do enunciado, para executá-lo" (NEVES, 1996, p.172). Segundo Lyons (1977), a modalidade deôntica se aplica a uma proposição relacio­ nada à necessidade ou à possibilidade de atos realizados por agentes moralmente res­ ponsáveis, porém o que esta proposição descreve não é um ato propriamente dito, mas o estado-de-coisas que será obtido se o ato em questão for cumprido. Comparando a modalidade deôntica à epistêmica, o autor observa que a necessidade deôntica (a obri­ gação) é sempre derivada de alguma fonte ou causa (uma pessoa, uma instituição, um conjunto de princípios morais ou legais, ou até mesmo alguma compulsão interna). A modalidade epistêmica, por sua vez, refere-se ao eixo do conhecimento e en­ volve os seguintes conceitos: certo, provável, contestável e excluído. Quirck (1985, apud NEVES, 1996, p.172), afirma que a modalização epistêmica pode ser entendida como o " julgamento humano do que é possível acontecer". Tendo em vista a impor­ tância da modalidade epistêmica para a presente investigação, apresentamos no pró­ ximo item, em linhas gerais, como ela foi descrita em alguns trabalhos funcionalistas. Finalmente, podemos ainda falar na existência de u m outro t ipo de modalidade, dinâmica, proposta por Palmer (1979). Comparando os tipos de modalidade que inves­ tiga na língua inglesa, Palmer faz o seguinte comentário a respeito dessa modalidade: Nós podemos, talvez, especular sobre as formas como os diferentes tipos de modalidade po­ dem estar relacionados. Se considerarmos um evento ou uma proposição como um EC8, nós começamos com a modalidade epistêmica que apenas afirma que tal EC é possível ou ne­ cessário. A modalidade dinâmica sugere, no entanto, que há circunstâncias no mundo real que tornam possível ou necessária a realização desse EC. Com a modalidade dinâmica neu­ tra, essas circunstâncias são gerais (e talvez o termo "circunstancial" seja melhor que neu­ tra para indicar isso), enquanto com a modalidade dinâmica orientada para o sujeito elas são características do sujeito. (PALMER, 1979, p.39) Estado-de-coisas. 122 Alfa, São Paulo, 47 (2): 117-137, 2003 Com a modalidade dinâmica orientada para o sujeito, Palmer, inspirado em Von Wright (1951), considera a expressão da possibilidade como uma capacidade/ habi l i ­ dade, contrariando a lógica aristotélica, que relaciona a expressão da capacidade à modalidade alética. Tratando desse tema, Palmer (1979) adverte que, embora normalmente apenas os seres animados tenham habilidades, essa modalidade dinâmica também se aplica a seres inanimados, indicando que eles têm as qualidades necessárias ou o "poder" pa­ ra provocar a realização de u m evento. N u m trabalho mais recente a respeito dessa modalidade, o autor esclarece que uma frase como "João pode falar i ta l iano" expressa o que parece ser uma afirmação factual não-modal, pois "não envolve nem a atitude nem a opinião do falante (exceto a de que se trata de uma verdade), mas apenas afirma que João t em a habilidade de fa­ lar ital iano" (PALMER, 1986, p.102). Com esta constatação, Palmer admite que a mo­ dalidade dinâmica poderia ser descartada da tipologia das modalidades, mas sugere a sua manutenção em função de sua importância para a compreensão do significado dos verbos modais, como o verbo poder, conforme veremos mais adiante. A modalidade epistêmica DalLAglio-Hattnher (1995) apresenta u m estudo que, considerando a organização simultânea da sentença como mensagem e como evento de interação, segundo mo­ delo funcionalista de estrutura frasal proposto por Hengeveld (1988,1989)»e Dik (1989), analisa detalhadamente os mecanismos segmentais de expressão da modalidade epis­ têmica em Português, revelando seus efeitos de sentido. De acordo com a autora, isso foi possível graças à adoção do modelo de análise funcionalista, que lhe permit iu iden­ tificar diferentes instâncias da modalização, bem como as diversas qualificações que atuam em cada uma das camadas da estrutura frasal. Nesse trabalho, sustentando, como Nuyts (1993), que a modalidade epistêmica es­ tá dentro do âmbito de incidência da evidencialidade, a autora descreve a modalidade epistêmica de uma forma não-fragmentada, considerando-a globalmente como a ex­ pressão de uma avaliação feita pelo falante. Mais exatamente, a autora demonstra que, por meio da modalização epistêmica, o falante avalia como certa ou possível a realida­ de de u m EC ou a veracidade de uma proposição, o que faz a partir do conjunto de co­ nhecimentos e crenças que possui. Segundo as intenções comunicativas que tenha, o falante pode explicitar ou não a fonte desses conhecimentos, que podem ser u m saber pessoal (saber que só o falante tem) ou u m saber partilhado (saber comum). Definindo o eixo do epistêmico como u m continuum entre o certo e o possível, DalLAglio-Hattnher (1995) verifica que a língua portuguesa dispõe de meios para ex­ pressar uma gradação muito sut i l entre esses extremos e que a variedade de formas existentes para u m mesmo valor acaba dificultando ainda mais o estabelecimento de Alfa, São Paulo, 47 (2): 117-137,2003 123 graus nítidos no que se refere à noção de possibilidade. Sendo assim, separa os moda- lizadores epistêmicos em dois grandes grupos, segundo o efeito de sentido produzido seja uma indicação de certeza ou de possibilidade, mas adverte que a passagem de um grupo a outro é feita sem ruptura, tendo em vista que "entre o certo e o possível, a ade­ são do falante varia numa progressão contínua" (DALUAGLIO-HATTNHER, 1995, p.92). A investigação de Dall 'Aglio-Hattnher (1995) difere de outros importantes traba­ lhos funcionalistas sobre a modalidade epistêmica - como, por exemplo, Hengeveld (1988,1989), Dik (1989), Palmer (1979,1986) 9 - que a apresentam de uma forma frag­ mentada. Nesses estudos, as noções ligadas ao eixo do conhecimento se dispersam em sub­ tipos diferentes de modalidades, o que não é, conforme demonstra o trabalho de Dall 'Agl io-Hattnher (1995), o único caminho possível para um tratamento adequado da modalidade epistêmica. Por outro lado, é importante destacarmos que, embora a considere como uma categoria individualizada, DalTAglio-Hattnher (1995) desvenda as diferentes funções desempenhadas pela modalidade epistêmica na situação de i n ­ teração. Desse modo, revela que, quando o falante qualifica epistemicamente uma pro­ posição, ele não só a avalia como certa ou possível, mas também se posiciona com re­ lação a essa avaliação. Já no caso da modalização epistêmica de u m EC, o falante o descreve como certo ou possível, mas sem manifestar sua posição com relação a essa avaliação. No primeiro caso, a função da frase que está sendo encarecida é a interpes­ soal e, nesse caso, é a representacional. A tese central do trabalho de Dal l 'Agl io-Hattnher (1995) é a existência de uma correspondência entre o grau de comprometimento do falante e o nível em que atua o modalizador epistêmico. A autora verifica que, quando a qualificação epistêmica está no nível da predicação, o falante descreve a possibilidade de ocorrência de um EC sem a indicação das evidências e apresenta a qualificação como independente da sua ava­ liação; daí que não se compromete com a verdade de seu enunciado. Por outro lado, quando a qualificação epistêmica está no nível da proposição, o falante revela que as­ sume seu enunciado, responsabilizando-se pelo que diz; "nesse caso, o comprometi­ mento do falante é expresso em diferentes graus, segundo as diferentes evidências apresentadas" (DALUAGLIO-HATTNHER, 1995, p.132). Posteriormente, a autora aprofunda a investigação sobre a relação entre a modali­ dade epistêmica e a evidencialidade, esta última definida essencialmente como a i n ­ dicação da fonte de informação a partir da qual o falante qualif ica a proposição. Dall 'Agl io-Hattnher (2001) nos adverte que a evidencialidade, assim como a modali­ dade, recebe conceituações muito variadas, a ponto de ser definida por alguns autores que a investigam como a atitude do falante em relação à informação veiculada pela proposição, o que, conforme foi dito, é uma definição possível para a categoria das mo­ dalidades. Para uma apresentação mais detalhada dessas propostas, lemetemo-nos a DalFAglro-Hattnher (1995). 124 Alfa. São Paulo, 47 (2): 117-137, 2003 Examinando u m conjunto de trabalhos que remetem, cada u m a sua maneira, à discussão sobre a relação entre modalidade epistêmica e evidencialidade, DalTAglio- Hattnher (2001) verifica, então, que estes seguem, de u m modo geral, duas tendências: ou consideram a evidencialidade como uma categoria gramatical englobada pela mo­ dalidade epistêmica ou entendem que a evidencialidade é uma instância semântica superior e indispensável à qualificação modal epistêmica. A part ir daí analisa, num vasto conjunto de textos, as construções epistêmícas e evidenciais na língua portu­ guesa, considerando duas dimensões semânticas diferentes: a avaliação do falante so­ bre o valor de verdade da sua afirmação (o domínio modal) e a indicação do t ipo de evidência que o falante tem para fazer sua afirmação (o domínio evidenciai). Com essa análise, a autora conclui que a evidencialidade é mesmo um domínio semântico não só diferente da modalidade epistêmica, mas também hierarquicamente supe­ rior a ele. De acordo com Nuyts (1993, p.496), podemos dizer que "sem evidência, nenhuma avaliação de probabilidade de um estado de coisas é possível; pode-se então apenas dizer que não se sabe". Reforçando essa posição, concordamos com DeHaan (1997) ao afirmar que, embora os dois processos expressem a atitude do falante em relação ao enunciado que pro­ duz, evidencialidade e modalidade epistêmica são claramente diferentes: enquanto os jul­ gamentos epistêmicos são baseados no grau de certeza que o falante tem sobre o conteúdo enunciado, os evidenciais indicam as fontes a partir das quais o falante obteve a informação enunciada (DALL'AGLIO-HATTNHER, 2001, p.58-9; grifo nosso). Com o trabalho de Dall 'Aglio-Hattnher (2001), entendemos que muitos itens lexi­ cais do português, até então classificados como modalizadores 1 0 (por exemplo, os ver­ bos achai, crer, e acreditar, na primeira pessoa do singular; o verbo dizer, quando usa­ do com sujeito indeterminado ou seguido de "se", numa estrutura de voz passiva; o verbo parecer, na terceira pessoa do singular etc ) , passam a fazer parte do conjunto dos evidenciais. Na verdade, a contribuição do trabalho de Dall 'Aglio-Hattnher (2001) vai mais além. Assumindo, "nos termos de Hoff (1986), que, por meio da evidencialidade, o falante i n ­ dica a evidência que está disponível para assegurar a confiabilidade da informação veiculada", a autora acredita na possibilidade de se estabelecer "uma tipologia dos evidenciais a part ir da observação dos diferentes modos pelos quais o falante teve acesso às evidências que ele apresenta" (DALL'AGLIO-HATTNHER, 2001, p.21) e, as­ sim, avança na investigação do tema ao analisar a expressão da evidencialidade em português, uti l izando como parâmetro os valores evidenciais propostos po rWi l e t t (1988). Com isso, revelam-se não só quais desses tipos de evidenciais se encontram na nossa língua, mas também os seus efeitos de sentido. 1° Veja. por exemplo, Neves (1996) Alfa, São Paulo, 47 (2): 117-137, 2003 225 Análise dos dados Feitas as considerações expostas, partimos para o exame da modalidade na l ite­ ratura de auto-ajuda. Tendo em vista que a evidencialidade é uma categoria superior à modalidade epistêmica, optamos por não analisar os evidenciais presentes no cor­ pus, o que estenderia em muito os nossos objetivos. Também não examinamos aqui as ocorrências de modais deônticos, cuja análise não contribuiria para alcançarmos os nossos objetivos. Considerando a hipótese que formulamos na introdução, o nosso fo­ co é a análise dos modais epistêmicos11. As asserções Ao investigar a modalidade no texto de Lair Ribeiro (1992), notamos a predomi­ nância de enunciados afirmativos nos quais não se encontram modais epistêmicos. Trata-se de esclarecimentos que o enunciador faz a respeito de diferentes aspectos do mundo que nos cerca, a respeito da vida, da realidade etc, conforme os três exem­ plos abaixo, selecionados ao acaso, dada a enorme quantidade de enunciados do mes­ mo tipo encontrados no corpus: (01) Nada impede você de continuar querendo e ambicionando mais coisas. (RIBEIRO, 1992, p.10) (02) Você tem na vida o que escolher. (RIBEIRO, 1992, p.17) (03) A realidade é algo subjetivo. (RIBEIRO, 1992, p.21) A ausência de modais nessas asserções não significa que se trate de enunciados sem modalidade; afinal, como vimos anteriormente, até "a frase menos modalizada comporta uma modalidade mínima" (CERVONI, 1989, p. 53), ou, como esclarece a quar­ ta tese de Coracini (1991, p. 120), "a modalidade pode manifestar o ponto de vista do enunciador apresentando-se textualmente implícita ou através de 'marcas' modais". Então, como "é improvável que um conteúdo asseverado em um acto de fala seja por­ tador de uma verdade não filtrada pelo conhecimento e pelo julgamento do falante" (NEVES, 1999-2000, p. 101), podemos dizer que essas asserções são enunciados com modalidade implícita. Investigando a modalidade no discurso científico, Coracini (1991) esclarece que a modalidade implícita, muito freqüente nesse t ipo de discurso, desempenha nele u m Além dessa ressalva, esclarecemos que, embora a modelização seja um "fenômeno que se processa em todos os niveis de organização da linguagem" (DALUAGLIO-HATTNHER, 1995, p.3), a modalidade da auto-ajuda é investigada aqui so­ mente por meio de itens lexicais (nomes, verbos, adjetivos, advérbios e locuções) modalizadores. Descartamos, portanto, a análrse do modo e do tempo verbal. Como essas categorias verbais estão presentes em quase todos os enunciados do corpus, sua consideração dificultaria muito a realização deste trabalho. 126 Alfa, São Paulo, 47'(2): 117-137, 2003 duplo papel: "a) o de convencer, pelas afirmações, da verdade que está sendo enun­ ciada; b) o de camuflar a 'origem' enunciativa: afinal, aparentemente, é o enunciado quem diz, o fato que se apresenta e não o sujeito-enunciador" (CORACINI, 1991, p. 123). Assim, percebemos que a ausência de u m modal, especificamente de u m epistê- mico, é u m recurso que confere credibil idade ao conteúdo desses enunciados, pois eles se apresentam como afirmações que independem do falante, ou melhor, de sua avaliação. Com isso, esses enunciados afirmativos podem ser mais aceitáveis para os interlocutores. A respeito da ausência de modais, Kerbat-Orecchioni (1977 apud CORACINI, 1991), analisando a questão da modalidade numa perspectiva pragmática, afirma que tal au­ sência deve ser entendida como parte de uma intencionalidade subjacente, ou seja, trata-se de u m recurso que visa causar no co-enunciador a impressão de objetividade e neutralidade, favorecendo a veracidade do conteúdo asseverado. Alexandrescu (1966 apud KOCH, 1993) também investiga os efeitos de sentido da modalidade implícita. Para esse autor, a ocultação da modalidade epistêmica sempre deixa u m rastro: embora a enunciação continue existindo, o locutor finge esquecê-la, criando a impressão de que não manifesta nenhuma atitude com relação a ela, de que seu ato é neutro e de que o valor de seus enunciados é objetivo. A ocultação modal é, nesse sentido, companheira de uma "retórica do neutro" em que o locutor, paia me­ lhor convencer por meio do seu enunciado, oculta sua enunciação, pois, mascarando sua hesitação, torna seu enunciado mais facilmente aceitável pelo interlocutor. Entendemos, portanto, que a ocultação da avaliação epistêmica nos enunciados em questão lhes impr ime neutralidade, aumentando-lhes a veiacidade*do conteúdo asseveiado e, conseqüentemente, a credibilidade. Entretanto, enquanto os autores citados entendem a ocultação da modalidade co­ mo uma estratégia argumentativa, que atende às intenções do sujeito-enunciador, nós colocamos a questão num outro nível, assumindo que se trata de algo mais forte do que uma busca por credibilidade (embora sem deixarmos de reconhecer que isso seja um efeito de sentido obtido a partir das afirmações sem modais epistêmicos): trata-se, na verdade, de uma determinação discursiva, ligada ao conjunto de restrições semân­ ticas que const i tuem o discurso da auto-ajuda, o que aponta para a confirmação da hipótese que formulamos, isto é, que a manifestação da certeza é mesmo u m dos tra­ ços semânticos desse discurso. Lembremos que DallAglío-Hattnher (1995) define o eixo do epistêmico como um continuum entre o certo e o possível. Assim, podemos supor que, quanto maior a cer­ teza do sujeito-enunciador a respeito do que diz, menor a necessidade de utilização de epistêmicos, pois, no ponto extremo da certeza, o que se encontra é um "enuncia­ dor que avalia como verdadeiro o conteúdo do enunciado que produz, apresentando-o como um asseveração (afirmação ou negação), s e m espaço pa ra a dúvida e sem nenhuma relativização" (NEVES, 1996, p.179, grifo nosso). Portanto, concluímos que a manifestação da certeza pode ocorrer também de uma Alfa, São Paulo, 47 (2): 117-137, 2003 127 forma não-marcada, isto é, quando não há modalizadores epistêmicos, como no caso das asserções em questão. Nessas, o sujeito-enuciador se compromete com a verdade do que diz de um modo diferente: ao invés de explicitar que considera certo o conteú­ do do seu enunciado, o falante descarta os modalizadores epistêmicos, apresentando seu enunciado como uma verdade indiscutível. Afinal, não há nada mais certo do que aquilo que se afirma como algo que independe de quem o disse, isto é, independente de sua avaliação. Neves (1996, p.186) reforça essa tese, quando nos lembra que "facil­ mente se atribui maior grau de certeza/evidência/precisão a enunciados sem marcas atitudinais que revelam passagem pelo conhecimento e julgamento do falante". Por outro lado, vimos pelo trabalho de DalF Aglio-Hattnher (2001) que a avaliação epistêmica é, na verdade, hierarquicamente inferior à evidenciai, tese defendida espe­ cialmente por Nuyts (1993), segundo o qual as relações evidenciais estão alojadas nas bases cognitivas da linguagem, o que significa dizer que a evidencialidade atua na ori­ gem de qualquer situação enunciativa. Assim, todo julgamento modal está baseado em uma evidência; o que pode variar, é a qualidade da evidência que se tem. Como o próprio autor afirma, "sem evidência, nenhuma avaliação de um estado-de-coisas é possível - pode-se, então, simplesmente dizer que não se sabe" (DALLAGLIO-HATTNHER, 2001, p.9-10). A partir dessa tese de Nuyts (1993), que considera a evidencialidade como um com­ ponente básico da enunciação, Dall 'Agl io-Hattnher (2001) afirma que a qualificação epistêmica é feita a partir doconjunto das evidências - conhecimentos e crenças que o falante possui - que pode ou não ser explicitado. Os evidenciais indicam que tipo de evidência está disponível para assegurar a confiabilidade do enunciado. Desse modo, se o falante escolhe indicar a fonte do saber que seu enunciado transmite, ele oferece a seu interlocutor a possibilidade de avaliar por si próprio a confiabilidade dessa informação. A avaliação da verdade de uma proposição será feita, então, com diferentes graus de adesão do falante, segundo as diferentes fontes de informação apresentadas, que podem ser um re­ lato de terceiros, uma percepção visual ou auditiva,uma inferência ou suposição do próprio falante. O falante também pode optar por não indicar o tipo de evidência de que dtspõe, se o co­ nhecimento subjacente à sua avaliação for do domínio comum ou, principalmente, se ele qui­ ser fazer parecer que é um conhecimento compartilhado. Dessa forma, a qualificação epistê­ mica incide sobre um estado de coisas que é considerado certo ou possível segundo uma avaliação apresentada como independente da crença do falante (DALLAGLIO-HATTNHER, 2001,p.l0-li). Com esses esclarecimentos, e tendo em vista principalmente o fato de a eviden­ cialidade atuar na origem de qualquer situação enunciativa, entendemos, então, que atua também nos contextos em que não está explícita. Assim, a respeito das asser­ ções da auto-ajuda que estamos analisando, podemos dizer que se trata também de 128 Alfa, São Paulo, 47 (2): 117-137, 2003 um caso de ocultação da evidencialidade, isto é, do conjunto de conhecimentos a par­ tir dos quais o falante realiza a sua avaliação epistêmica. Como não indica o t ipo de evidência de que dispõe, o sujeito-enunciador impede seu interlocutor de avaliar por si próprio a confiabilidade da informação, e confere ao conteúdo do enunciado, como efeito de sentido dessa ocultação, a aparência de que se trata de u m conhecimento comum, de uma verdade conhecida, o que, certamente, contribui para a sua aceitação. Tendo em vista que a nossa perspectiva é a da Análise do Discurso de linha fran­ cesa, sugerimos, então, que, em se tratando de discurso, o conjunto de conhecimentos e crenças a partir dos quais um sujeito-enunciador pode fazer uma asserção está rela­ cionado ao lugar de onde enuncia, isto é, u m lugar discursivo; dito de outra forma: ser sujeito-enuciador de um discurso (no caso, da auto-ajuda) significa, entre outras coi­ sas, assumir um certo conjunto de crenças, comprometer-se com certas verdades. As­ sim, embora as asserções pareçam independentes das crenças do sujeito-enunciador, sua validade enquanto verdade está circunscrita aos l imites do(s) discurso(s) no(s) qual(is) circula, o que, obviamente, não é assumido nem colocado em questão por esse sujeito discursivo; daí, a ocultação da evidencialidade. Quanto ao saberá partir do qual os enunciados são formulados, Kerbrat-Orecchioni (1977 apud CORACINI, 1991) tem, mutatis mutandis, u m ponto de vista parecido ao que apresentamos, sustentando que mesmo os enunciados gerais e universais (refe­ rentes a verdades universais, científicas) são verdades apenas com relação a um siste­ ma de crenças, u m ponto de vista, um certo modo de apreensão do real 1 2 . , Portanto, no caso das asserções da auto-ajuda, não é apenas a ocultação da mo­ dalidade o que lhes garante credibilidade. Também a ocultação da evidencialidade produz esse efeito. Nesse sentido, podemos parafrasear o esclarecimento de Neves (1996) apresentado acima, segundo o qual no extremo da certeza não há espaço para a dúvida nem para a relativização, dizendo que aí não há espaço para os evidenciais (que, indicando o t ipo de evidência que está disponível para assegurar a confiabilida­ de do enunciado, subordinam automaticamente a aceitação desse enunciado à credi­ bilidade que tal evidência desfruta com o interlocutor) nem para os epistêmicos - nem mesmo os de certeza - que, de uma forma mais ou menos intensa, retomam o sujeito- enuciador, oculto na sombra de um enunciado que apresenta como se fosse indepen­ dente do seu julgamento. O sujeito-enuciador, por estar tão certo do que diz (tendo em vista que se trata de uma crença discursiva), dispensa o emprego de qualquer evi­ denciai e de qualquer marcador epistêmico, apresentando o que diz como algo inques­ tionável, que independente de sua crença e de sua avaliação. ' 2 Talvez fosse melhor dizer que esses enunciados dependem dos parâmetios estabelecidos pelas disciplinas em cujos in­ teriores são formulados, para não reduzirmos tudo a uma questão de crença, tendo em vista que os enunciados de uma ciência são formulados também a partir dos métodos, tegras e procedimentos aplicados pot ela. Alfa, São Paulo, 47 (2): 117-137, 2003 129 O poder do poder da auto-ajuda Fazendo o levantamento dos itens lexicais modalizadores, encontramos 58 ocor­ rências do auxiliar modal poder, que passamos a analisar nas próximas linhas, tendo em vista que se trata do modalizador mais freqüente do corpus. Koch (1981), desenvolvendo u m estudo semântico-pragmático desse verbo mo­ dal, na perspectiva de uma gramática comunicativa, enfatiza o potencial comunicati­ vo do Português, enquanto sistema lingüístico, ao explorar a polissemia desse auxiliar. Segundo a autora, esse é um dos "modais que, em língua portuguesa, apresenta maior número de matizes de significado, quer do ponto de vista puramente semântico, quer sob o ângulo de sua força ilocucionária" (KOCH, 1981, p.103). Do ponto de vista se­ mântico, o verbo poder exprime os seguintes valores: a) permissão; b) possibilidade; c) capacidade (física, moral ou legal) ou habilidade. Seguindo a terminologia apresenta­ da neste trabalho, no i tem "tipologia das modalidades", temos respectivamente: mo­ dalidade deôntica, modalidade epistêmica e modalidade dinâmica. Koch (1981) escla­ rece também que, em certos enunciados, ocorre ambigüidade entre poder-possibilidade, poder-capacidade e poder-permissão. Assim, entendemos que, em função do valor po- lissêmico do modal, é preciso buscar no contexto em que é empregado elementos que revelem a leitura adequada 1 3. No caso em questão, o "contexto" é o discurso da auto-ajuda. Essa literatura, de u m modo geral, prega que cada indivíduo é o responsável pelo próprio destino, pois tem o poder, a capacidade de atrair coisas boas ou ruins de acordo com a atitude men­ tal e que, portanto, também tem o poder de mudar os aspectos da vida com os quais não está satisfeito. Por isso, imaginamos que o emprego do auxiliar poder como mo­ dal dinâmico, que exprime capacidade, deveria ser freqüente no corpus, o que real­ mente se confirmou (de acordo com o que podemos conferir, mais adiante, na Tabela 1). Assim, entendemos que em enunciados como: (04) Qualquer um pode aprender a aumentar tremendamente a sua capacidade mental. (RIBEIRO, 1992, p.25) (05) Você pode mudar a sua vida. (RIBEIRO, 1992, p.59) com relação ao emprego de poder, recebem as seguintes leituras, respectivamen­ te: (04) "Qualquer um tem a capacidade de/a habilidade de/as condições para apren­ der a aumentar tremendamente a sua capacidade mental" , ou "Qualquer um conse­ gue aprender a aumentar tremendamente a sua capacidade mental"; (05) "Você tem a Entendemos melhor a importância do contexto paia a leitura adequada dos modais, letomando o quinto postulado de Coiacini (1991, p.120): "as marcas 'modais' em si não determinam a priorio ponto de vista do sujeito-enunciador nem as interpretações possíveis: sua presença ou ausência aponta apenas paia uma possível intrapretação do texto" 130 Alfa, São Paulo, 47 (2): 117-137, 2003 capacidade/a habilidade/o poder de mudar a sua vida", ou "Você consegue mudar a sua vida". Lembremos que, segundo Palmer (1979), a modalidade dinâmica sugere que há circunstâncias no mundo real que tornam possível ou necessária a realização de um EC; com a modalidade dinâmica orientada para o sujeito - que é a presente nos exem­ plos em questão - essas circunstâncias são características do sujeito. Sendo assim, os exemplos (04) e (05) podem ser entendidos da seguinte forma, respectivamente: (04) "Qualquer u m é tal que consegue aprender a aumentar a sua capacidade mental " , "Qualquer u m tem tais propriedades que consegue aprender a aumentar a sua capa­ cidade mental", ou "Qualquer um tem a capacidade de aprender a aumentar a sua ca­ pacidade mental " ; (05) "Você é ta l que consegue mudar a sua vida" , "Você t em tais propriedades que consegue mudar a sua vida", ou "Você tem a capacidade de mudar a sua vida". Se fizéssemos uma leitura epistêmica, teríamos as seguintes paráfrases: (04) "É possível que qualquer u m aprenda a aumentar a sua capacidade mental" ; (05) "É pos­ sível que você mude de vida". Nesse caso, o sujeito-enuciador estaria avaliando a pos­ sibil idade de ocorrência de um EC, isto é, manifestando incerteza a respeito do que diz. Embora essa leitura seja perfeitamente possível para esses enunciados, se esti­ vessem em outros contextos, ou mesmo fora de contexto, na literatura de auto-ajuda ela se enfraquece em função de outros enunciados desse discurso 1 4 que nos condu­ zem à leitura dinâmica. Uma vez que o sujeito-enunciador desse discurso* prega aos seus leitores que eles acreditem no próprio potencial para mudar de vida, alcançar o sucesso etc , como uma condição para que seus anseios e projetos se realizem, seria muito improvável que ele, na condição de divulgador de um saber 1 6, manifestasse i n ­ certeza a respeito das teses que apresenta. Assim, passamos a investigar a possibilidade de uma leitura dinâmica também para aqueles enunciados nos quais a leitura epistêmica seria mais óbvia. Desse modo, um enunciado como (06) Você pode ser hoje uma pessoa bem diferente do que era há cinco ou dez anos atrás. (RIBEIRO, 1992, p.25) pode receber as seguintes leituras: (;) É possível que você seja hoje uma pessoa bem diferente do que era há cinco ou dez anos atrás (poder = possibilidade; valor epis- têmico); (ií) Você é tal (ou " tem tais propriedades") que consegue/que tem as condi- Lembremos que, na AD, o sentido das palavras, das expressões e dos enunciados se configura no interior das formações discursivas que as empregam, a partir das relações que estabelecem com outras palavras, expressões e enunciados des­ se mesmo discurso. A esse respeito, ver Pêcheux (1988). Lair Ribeiro (1992) chama esse saber de "a Ciência do Sucesso". Alfa, São Paulo, 47 (2): 117-137, 2003 131 ções para ser hoje uma pessoa bem diferente do que era há cinco ou dez anos atrás (poder = capacidade; valor dinâmico). O enunciado em questão aparece inserido no seguinte contexto: "É preciso dar oportunidade para que as pessoas e as coisas possam mudar. Inclusive você. Você po­ de ser hoje uma pessoa bem diferente do que era há cinco ou dez anos atrás". Para­ fraseando, temos: "é preciso dar oportunidade para que as pessoas e as coisas consi­ gam/tenham condições de mudar". Percebemos, portanto, que o sujeito-enunciador está se referindo à não fixidez das situações, ao fato de que elas têm condições de se­ rem alteradas; assim, em função do contexto em que se encontra o enunciado (06), en­ tendemos que a leitura dinâmica lhe é mais adequada. Quando expusemos as características da modalidade dinâmica orientada para o su­ jeito, vimos que, embora normalmente apenas os seres animados tenham habilidades, Palmer (1979) entende que ela também se aplica a seres inanimados, indicando que eles têm as qualidades necessárias ou o "poder" para provocar a realização de u m evento. Sendo assim, incluímos entre esses enunciados que admitem dupla leitura, aqueles cujo sujeito é um ser inanimado. Vejamos um exemplo e as suas leituras possíveis: (07) O azar pode ser sorte. (RIBEIRO, 1992, p.103) = (J) É possível que o azar seja sorte; (ii) O azar é tal que tem condições de ser sorte. Para o exemplo (07), a leitura dinâmica - a leitura (ii) - pode parecer pouco espe­ rada. Entretanto, essa leitura nos parece autorizada em função de certos enunciados que encontramos no corpus, como: (08) A realidade é algo subjetivo. (RIBEIRO, 1992, p.21) (09) O segundo problema de ilusão é pensarmos que "o que é sempre é". (RIBEIRO, 1992, p.25) Assim, ao afirmar "o azar pode ser sorte", o sujeito-enunciador está, especialmen­ te, tratando de uma das características, das propriedades do "azar" (mais exatamente, de sua mutabilidade, de sua condição de ser alterado) e não apenas manifestando uma incerteza a respeito do que diz. É como se estivesse dizendo a seus leitores: "diante do poder da mente, nada na vida é definitivo, conseguimos alterar todas as situações, conseguimos até mesmo transformar uma situação ruim, isto é, uma situação de azar". Por outro lado, como a literatura de auto-ajuda insiste na importância da crença, uma outra paráfrase adequada para o enunciado (07) também seria: Para quem acredita, o azar é sorte. Desse modo, embora não estejamos descartando a leitura epistêmica de enunciados como o exemplo (07), acreditamos que o contexto no qual se encontram conduz também à leitura dinâmica. Na verdade, essa possibilidade de uma dupla leitura epistêmica e dinâmica tem seus fundamentos além do discurso da auto-ajuda, pois existe mesmo uma relação 132 Alfa, São Paulo, 47 (2): 117-137, 2003 muito especial entre essas modalidades, que conduz a nossa atenção para a relação enunciado e enunciação. A esse respeito, reportamo-nos a Neves (1999-2000, p.100), segundo a qual "as quatro modalidades representam realces perceptivos da fronteira entre enunciação e enunciado". Para cada modalidade, há uma orientação diferente, o que a autora esclarece a partir de um esquema, do qual reproduzimos a seguir, de uma forma simplificada, a parte que se refere às modalidades epistêmica e dinâmica16: Mundo do Dizer Epistêmico Nível da Enunciação / \ pressupõe determina \ / Mundo do Ser Dinâmico Nível do Enunciado Pelo esquema, notamos que os modais dinâmicos levam verticalmente aos epis- têmicos. Essa relação, de acordo com a autora, nasce do fato de que, do ponto de vista pragmático, os epistêmicos pressupõem os dinâmicos: alguém crê que alguém fará al­ go, porque está capacitado para isso. Já numa visão horizontal, o epistêmicos afetam o mundo do dizer (o crer), enquanto os dinâmicos afetam o mundo do referente, pois o fazer é uma faceta do ser. Nesse mesmo trabalho, Neves (1999-2000) comenta os resultados de pesquisa que fez sobre o valor polissêmico dos verbos modais no Português contemporâneo. Anal i ­ sando textos escritos, verifica que o verbo poder é empregado essencialmente (em 75% dos casos) como epistêmico. Com os esclarecimentos que encontramos no trabalho de Neves (1999-2000), po­ demos dizer que o discurso da auto-ajuda segue uma tendência contrária à maior par­ te dos discursos correntes a partir dos quais os sujeitos enunciam, que são, provavel­ mente, bem menos otimistas que o discurso da auto-ajuda. Esse discurso desperta, ou melhor, revigora no verbo poder o matiz de sentido dinâmico que se encontra por trás do seu valor epistêmico. Embora o valor dinâmico sempre esteja presente nos empre­ gos epistêmicos do verbo poder (conforme o esquema apresentado por Neves (1999- 2000), ele não se manifesta necessariamente em qualquer discurso, ao contrário do que acontece com o discurso da auto-ajuda, que resgata esse valor, o que provoca, certamente, um enfraquecimento no valor epistêmico deste auxiliar como recurso pa­ ra manifestar incerteza. Tendo esclarecido as leituras que fizemos do verbo poder, apresentamos a seguir a Tabela 1, na qual se encontra o levantamento do seu emprego no corpus analisado. 1 6 No esquema que apiesenta, a autora trata também da relação entre a modalidade deõnüca e a alética. Alfa, São Paulo, 47 (2): 117-137, 2003 133 Tabe la 1: Emprego do verbo poder Valor N s de ocorrências % Deôntico 02 03,5% Exclusivamente epistêmico 09 16% Epistêmico e Dinâmico 11 19,7% Dinâmico 34 60,8% Total 56 - A tabela nos revela que, no corpus analisado, é mais freqüente o emprego de po­ der com valor dinâmico, enquanto seu emprego como modalizador epistêmico é bai­ xo, o que aponta para a confirmação da hipótese que fizemos a respeito da manifesta­ ção da dúvida como sendo um traço semântico rejeitado pelo discurso em questão. Reforça essa confirmação o fato de que o poder epistêmico, em nenhum dos casos en­ contrados, faz parte de u m enunciado que se refere a alguma das teses da auto-ajuda. No que se refere à temática da auto-ajuda, são enunciados que se referem a temas, por assim dizer, periféricos, provavelmente mais ligados à construção do texto em que se encontram do que ao discurso da auto-ajuda em si. Portanto, a baixa ocorrência de poder com valor epistêmico no corpus reforça nos­ sa hipótese inicial, tendo em vista que se trata de uma manifestação de incerteza lo­ cal, ligada às questões textuais. A esse respeito, vale a pena lembrarmos que "texto" e "discurso" são realidades diferentes e que, embora muito ligadas - afinal, é nos textos que os discursos se manifestam - não devem ser confundidas. Além disso, conforme veremos no próximo item, quando emprega esse modalizador, o sujeito-enunciador não assume como sua a incerteza presente em seu enunciado. A modalidade epistêmica Finalmente, analisamos neste i t em os modalizadores epistêmicos presentes no corpus. Para tanto, apresentamos inicialmente u m levantamento de todos os modali­ zadores que encontramos. Tabe la 2: Classificação dos modalizadores presentes no corpus Tipo de modalizador N° de ocorrências % Epistêmico/Dinâmico 11 11,4 Epistêmico 18 18,8 Deôntico 33 34,4 Dinâmico 34 35,4 Total 96 - 134 Alfa, São Paulo, 47 (2): 117-137, 2003 Conforme mostra a tabela, o número de modalizadores presentes no corpus é pe­ queno: em 112 páginas, existem somente 96 modalizadores, dos quais apenas 18 são epistêmicos (menos de 20% das ocorrências). A tabela seguinte apresenta-os d iv id i ­ dos conforme a camada da frase em que se encontram (predicação ou proposição). Tabe la 3: Classificação dos modalizadores epistêmicos segundo a camada frasal e m que atuam Nível de atuação N° de ocorrências % Predicação 10 55,6 Proposição 08 44,4 Total 18 - Embora o número de ocorrências de epistêmicos de proposição seja bastante pró­ ximo ao de predicação, verificamos que a qualificação epistêmica de u m EC é o que predomina com 10 ocorrências. Dessas, nove são do verbo auxiliar poder, conforme apresentado na Tabela 1. Segundo vimos no trabalho de Dal lAgl io-Hattnher (1995), a qualificação epistêmica de um EC se apresenta como independente da avaliação do falante; "desta forma não há nenhuma manifestação do comprometimento do falante com a verdade de seu enunciado" (DALLAGLIO-HATTNHER, 1995, p.132), o que "cons­ t i tu i poderoso recurso para sugerir distanciamento; com isso o falante, adquirindo foros de isenção, obtém dar maior autoridade a suas declarações" (NEVES, 1996, p.181). Por isso, embora as ocorrências em questão sejam manifestações de possibilidade, elas não se apresentam como manifestações de incerteza do falante em si, que se esquiva des­ se comprometimento, apresentando a possibi l idade como algo que independe dele, o que parece ser mais um indício da pertinência da hipótese que formulamos. Quanto à qualificação epistêmica de proposição, todas as ocorrências do corpus são de advérbios, o que também reforça a nossa hipótese tendo em vista que, embora nesse t ipo de qualificação epistêmica o nível do comprometimento do falante seja maior do que no caso da qualificação epistêmica de predicação, em se tratando de efeito de sentido, temos o mesmo resultado, pois, conforme postula Nuyts (1993), a qualificação expressa por advérbios modalizadores é recebida pelos interlocutores co­ mo independente da avaliação do falante. Ou seja, não há no corpus modalizadores que manifestem incerteza assumida pelo sujeito-enunciador. Aliás, embora tenhamos optado por não investigar os evidenciais, notamos que não há no corpus verbos de opinião e crença (como achar, crere acredi­ tar) que, empregados na primeira pessoa do singular, são os principais recursos de ma­ nifestação de dúvidas e incertezas assumidas pelo falante, tendo em vista que a evi- dencialidade que eles indicam é uma crença ou inferência do próprio falante 1 7. Também A esse respeito, reportamo-nos a Dall'Aglio-Hattnhei (2001, p. 57). Alfa, São Paulo, 47 (2): 117-137,2003 135 estão totalmente ausentes construções com efeito de sentido semelhante, como "eu tenho a impressão de que", "parece-me que", "penso que" etc. Como indicam que a in­ ferência é do próprio falante, esses evidenciais intensif icam o grau de incerteza do enunciado. Assim, existem no corpus registros de incerteza, mas não de incerteza as­ sumida pelo sujeito-enunciador quanto às teses da auto-ajuda. Notamos que os advér­ bios modalizadores, assim como o que aconteceu com o emprego epistêmico do verbo poder, se encontram em enunciados periféricos ligados a explanações sobre as teses da auto-ajuda, mas não em enunciados que as apresentam. Nos enunciados que tra­ zem especificamente essas teses não há nenhuma manifestação de incerteza, isto é, o sujeito-enunciador desses enunciados não diz "talvez você consiga mudar de vida", "provavelmente o poder da mente funciona", "quem sabe Deus nos ajuda se tivermos fé" etc. Pelo contrário, no que se refere à exposição das fórmulas dessa literatura, o que notamos é a presença de um sujeito-enunciador bastante convicto do que diz. Enfim, encontramos na análise que desenvolvemos u m conjunto de sinais que apontam para a confirmação da hipótese de que a manifestação de certeza é u m dos traços que constituem o discurso da auto-ajuda, ao passo que a manifestação da dú­ vida é u m dos que rejeita. Essa confirmação se apoia especialmente no fato de que não encontramos nenhum registro de incerteza assumida pelo sujeito-enunciador dos enunciados analisados que, certo do que diz, sempre se distancia de-seus enunciados quando há neles marcas do possível (isto é, do que não é dado como certo, como ga­ rantido). Trata-se, portanto, de um sujeito-enunciador que foge do terreno da incerte­ za, aumentando a credibilidade do que diz. BRUNELLI, A. F. Modalíty in self-help books. Alfa, São Paulo, v.47, n.2, p. 117-137,2003 • ABSTRACT: Based on Maingueneau 's discourse theory (1998), this paper tackles modalíty in self-help books. The analysis reveals that instantiation of certainty is one ofits outstanding semantic features. • KEYWORDS: French discourse analysis; self-help counseling líterature; modalíty. Referências bibliográficas CERVONI, J. A enunciação. São Paulo: Ática, 1989. CORACINI, M.J. Um fazer persuasivo: o discurso subjetivo da ciência. São Paulo: Educ; Campi­ nas: Pontes, 1991. 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