UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP) PORQUE AS IDEIAS IMPORTAM: A CRENÇA NO EXCEPCIONALISMO AMERICANO COMO GUIA DE FORMULAÇÃO DAS “GRANDES ESTRATÉGIAS” DOS ESTADOS UNIDOS NO ALVORECER DA SUPERPOTÊNCIA Fernanda Petená Magnotta São Paulo 2013 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC/SP) PORQUE AS IDEIAS IMPORTAM: A CRENÇA NO EXCEPCIONALISMO AMERICANO COMO GUIA DE FORMULAÇÃO DAS “GRANDES ESTRATÉGIAS” DOS ESTADOS UNIDOS NO ALVORECER DA SUPERPOTÊNCIA Fernanda Petená Magnotta Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Programa de Pós-Graduação “San Tiago Dantas” (UNESP-UNICAMP-PUC/SP), como requisito para obtenção do título de mestre em Relações Internacionais, sob a orientação do Prof. Dr. Tullo Vigevani. São Paulo 2013 Magnotta, Fernanda Petená. M198 Porque as ideias importam : a crença no excepcionalismo americano como guia de formulação das “grandes estratégias” dos Estados Unidos no alvorecer da superpotência / Fernanda Petená Magnotta. – São Paulo, 2013. 100 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – UNESP/UNICAMP/PUC-SP, Programa San Tiago Dantas de Pós-graduação em Relações Internacionais, 2013. Orientador: Tullo Vigevani. 1. Estados Unidos – Relações exteriores – Século XX. 2. Excepcionalismo. 3. Estados Unidos – Política e governo – Século XX. 4. Estratégia. I. Autor. II. Título. CDD 327.7300904 PORQUE AS IDEIAS IMPORTAM: A CRENÇA NO EXCEPCIONALISMO AMERICANO COMO GUIA DE FORMULAÇÃO DAS “GRANDES ESTRATÉGIAS” DOS ESTADOS UNIDOS NO ALVORECER DA SUPERPOTÊNCIA Fernanda Petená Magnotta Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Programa de Pós-Graduação “San Tiago Dantas”, (UNESP-UNICAMP-PUC/SP) como requisito para obtenção do título de mestre em Relações Internacionais, sob a orientação do Prof. Dr. Tullo Vigevani. Data de aprovação: ___/___/_____ Banca Examinadora: ________________________________ Prof. Dr. Tullo Vigevani (orientador) UNESP ________________________________ Prof. Dr. Samuel Alves Soares UNESP ________________________________ Prof. Dr. Carlos Gustavo Poggio Teixeira PUC-SP Not ideas, but material and ideal interests, directly govern men's conduct. Yet very frequently the 'world images' that have been created by 'ideas' have, like switchmen, determined the tracks along which action has been pushed by the dynamic of interest. (WEBER, 1958) Aos meus pais, que me deram o mundo de presente e àqueles que têm feito dele o meu local preferido: amados Brunos, amigos, professores e alunos. AGRADECIMENTOS Nos últimos dois anos me redescobri repetidas vezes, e a cada novo encontro fui confrontada com minhas próprias certezas, antes tão absolutas. Foram hábitos, pensamentos, convições e crenças açoitadas sem piedade pela revelação de um mundo particularmente diferente: mais complexo, mais sistemático e certamente mais desafiador. A primeira lição que recebi ao longo deste caminho foi de que a busca pelo conhecimento requer - antes de tudo - muita humildade, pois inevitavelmente acabaremos por reconhecer nossa pequenez diante da vastidão do que nos é desconhecido. O segundo ensinamento, produto do primeiro, tem a ver com a coragem necessária para desbravar o que não é familiar, o que assusta, e que se impõe diante de nós com brutal naturalidade. Neste contexto, palavras certamente são insuficientes para expressar a magnitude de determinados sentimentos, em especial quando pretendem descrever sensações que nos acometeram ante a uma dura e tortuosa jornada. Tão dura e tão tortuosa que seguramente não poderia ter sido cumprida sem a ajuda de muitas pessoas queridas, a quem devo agradecimentos infinitos e à quem dedico os vocábulos que aqui seguem. Limitados, como sempre haverão de ser em ocasiões como estas, mas tão sinceros que já não cabem no meu coração. Em primeiro lugar, ao meu orientador, Prof. Tullo Vigevani, agradeço pelo bom- humor, generosidade e paciência permanentemente dedicadas a mim ao longo desta intensa jornada. Gostaria que soubesse que valorizo muito cada palavra trocada e todos os momentos em que pudemos conviver. Obrigada pelos e-mails mais instantâneos que já pude receber, por me guiar pelo caminho do ‘pensar’ com tamanha liberdade e afeto e, especialmente, por ter me protegido dos voos arriscados demais. Levarei para sempre comigo o seu exemplo de humildade. Aos membros da Banca de Qualificação e Defesa, Prof. Samuel Alves Soares e Prof. Carlos Gustavo Poggio Teixeira, agradeço pelas dicas preciosas, pela disposição, boa- vontade, pelo carinho e por terem me ajudado a organizar - com tamanha maestria - tantas ideias confusas e desencontradas, dignas de uma produção barroca fora de época. Muito, muito obrigada. Além disso, agradeço, com afeto, aos professores Paulo Pereira e Gunther Rudzit, fontes de inspiração acadêmica, por terem aceitado fazer parte da suplência. Gostaria de agradecer também a todos os professores do PPGRI San Tiago Dantas (PUC-SP/ UNESP/ UNICAMP), que compartilharam conosco suas experiências e reflexões ao longo dos últimos anos. Prof. Reginaldo Nasser, Prof. Reginaldo Moraes, Prof. Suzeley Mathias, Prof. Clodoaldo Bueno, Prof. Shiguenoli Miyamoto, Prof. Marco Aurélio Nogueira, Prof. Flávia Campos Mello e Prof. Sebastião Velasco: muito obrigada por tudo. Registro, igualmente, o meu agradecimento sincero às secretárias do Programa - Giovana Vieira e Isabela Silvestre - e à bibliotecária - Graziela Oliveira - pela assistência e gentileza de sempre. Rendo também muitos dos créditos deste trabalho à minha turma do mestrado, responsável por tantos momentos de descontração e aprendizado. Mesmo diante das minhas ausências (que, garanto, ecoam continuamente na consciência), posso assegurar que vocês sempre foram muito queridos e que estarão eternamente armazenados na memória. Em especial, dedico este trabalho ao meu amado partner Lucas Leite, que do alto de sua ‘mineirice’ revelou-se o companheiro fiel que jamais pude imaginar ter ao meu lado. Aproveito para reconhecer, da mesma forma, os veteranos que tornaram-se amigos do coração: Laís Thomaz e Juliano Aragusuku, muito obrigada por partilharem de tantas experiências ao longo do caminho e por terem, pacientemente, me acalmado quando foi preciso. Como não poderia deixar de ser, agradeço ainda àqueles que desempenharam papel central na delimitação do meu objeto de pesquisa e cuja falta representaria necessariamente um prejuízo à qualidade deste estudo; americanistas do mais alto quilate que, desde que tive o prazer de conhecer, mantiveram-se presentes me amparando e protegendo: Erica Resende, Roberto Moll e Tatiana Teixeira, vocês são inspiradores. Agradeço também, com carinho especial, ao Prof. Wayne A. Selcher, do Departamento de Ciência Política do Elizabethtown College, Philadelphia, por todo o apoio oferecido, pelo material indicado, pelas dúvidas esclarecidas e por compartilhar comigo a alegria de estudar o que está tão distante. Aos amigos norte-americanos mais brasileiros que já conheci e que me ajudaram com a revisão das traduções, Betsie de Oliveira e Dan Wheatley, thank you so much. You are amazing. Não é fácil administrar tantas responsabilidades aos 24 anos e reconheço, muitas vezes, minha completa falta de molejo. Por este motivo, faço questão de lembrar, com afeição especial, daquele que sempre confiou na minha vocação e que, desde o princípio, estimulou meu sonho acadêmico. Guilherme Casarões, embora você seja uma constante em qualquer uma das minhas listas de agradecimentos, jamais poderei traduzir em palavras o tamanho do http://www.etown.edu/ https://www.facebook.com/dan.wheatley.39?hc_location=timeline meu carinho por você. Obrigada por ter rompido as barreiras convencionais da relação ‘professor-aluno’ e por ter mergulhado nas irregularidades do meu mundo. Obrigada por ter me apresentado ao San Tiago Dantas e por ter oferecido todo suporte intelectual e afetivo de que precisei nos últimos tempos. A nossa amizade preenche minha alma com as virtudes mais lindas de que se tem notícia. À FAAP, minha alma mater, agradeço sobretudo pelos alicerces. Fui aluna desta instituição que, mais tarde, me tornou também professora. Tenho clareza de que a confiança e ousadia de seus dirigentes e gestores transformaram radicalmente a minha vida e a de outros jovens acadêmicos. Carrego esta marca com muito orgulho e serei sempre grata pelas tantas oportunidades. Em especial, agradeço ao Embaixador Rubens Ricupero e ao Prof. Luiz Alberto Machado, que são, certamente, os melhores chefes com que o universo poderia me presentear. Sem o apoio, amizade e generosidade de ambos reconheço que não valeria a pena sonhar tão alto. Neste mesmo sentido, há de se admitir também que a batalha cotidiana não teria a mesma alegria sem a presença dos professores-amigos. Anapaula Iacovino, Eduardo Mekitarian, Leny Leitão, Tatiana Berringer e amados PTIs (Gabriela Tessitore, Igor Alves, Lívia Paulucci, Mariana Dal Canton, Mariana Setubal, Nathalie Hornhardt, Rodrigo Serafino, Rodrigo Viana, Silvye Massaini, Vanessa Cepellos e Viviane Oliveira) os dias são mais brilhantes tendo vocês por perto. Muito obrigada por tudo. Raquel Rocha, obrigada por me tomar nos braços quando mais precisei: você é uma linda descoberta desta empreitada. Marcus Vinicius Freitas, obrigada pela confiança de sempre, pela amizade e por tantas oportunidades inesquecíveis. Aos meus alunos, minha maior fonte de inspiração, motivação e felicidade ordinária, agradeço, mais uma vez, pela promessa de um futuro bom. Nos últimos dois anos eles têm sido as testemunhas mais devotadas do árduo processo que é dissertar. Agradeço por sua graciosidade, por sua tolerância, por sua preocupação e, claro, pela torcida. Se Mário Quintana estava correto ao dizer que “amar é mudar a alma de casa”, considerem-se minha tradicional morada. Especialmente aos meus monitores da graduação, Karina Calandrin e Victor Grinberg, agradeço pelo apoio e pela afeição contínua. Por fim, gostaria de agradecer à minha família. À minha avó, Ivone Petená, por seu bem-querer genuíno e por ter conservado o espaço mais estimulante que encontrei durante o processo de redação deste trabalho, que foi tecido, em sua maior parte, ao som do canto dos pássaros. Ao meu irmão, Bruno, por jamais falhar na tarefa de me lembrar de onde vim e de quem sou eu. Aos meus pais, Regina e Vicente, tudo que tenho de melhor, por seu amor e amparo incondicionais. Ao meu amor, Bruno, por ter me conservado em pé quando tudo pareceu perdido. À Josefa, por abrir seu coração e sua casa com tanto afeto. Vocês atribuem sentido à minha vida e às minhas escolhas. Vocêm preenchem a minha alma e me alimentam o espírito. Obrigada por julgarem menos do que poderiam a minha obsessão pelo trabalho e pelos estudos. Perdoem os excessos, por favor. Sem vocês não haveria o novo amanhecer, não haveria horizonte, não haveria nada. Meu amor por vocês não tem medida e sei que minhas fraquezas teriam me deixado pelo caminho, caso não os tivesse por perto. As angústias que fizeram parte desta caminhada foram fruto de uma cobrança permanente que estabeleci comigo mesma: era preciso valorizar a oportunidade de estar aqui. Desta travessia levo não só uma lição de resiliência, mas também muitas lembranças felizes e o desejo de seguir para sempre no caminho da pesquisa e docência, que são a razão do meu viver. Quanto aos deslizes, que eventualmente possam ter existido, assumo a inteira responsabilidade na esperança de que um dia possam ser perdoados e, quem sabe, superados. Muito obrigada, bom Deus. RESUMO No despertar do século XXI, muito se tem discutido a respeito da longevidade do poderio norte-americano e sobre a capacidade do país de manter a estabilidade do sistema internacional. Ao terem emergido como uma superpotência global sem precedentes, os Estados Unidos da América (EUA) tornaram-se um tema indispensável para o entendimento das Relações Internacionais (RI). Não à toa que tanto se tem debruçado, nas últimas décadas, sobre o desafio de desvendar a chamada Pax Americana, em geral, e sobre a tarefa de compreender as origens domésticas de suas escolhas internacionais, em particular. Visando jogar luz sobre tal dimensão, portanto, este estudo se propõe. Esta pesquisa - de caráter qualitativo e explicativo - tem como tema geral o chamado “excepcionalismo americano” e possui como objeto de estudo a política externa dos EUA no período embrionário de sua liderança - particularmente no momento que compreende a consolidação da potência, entre 1917 e 1947. Pretende-se investigar de que modo tal componente ideacional manifestou-se na formulação e implementação das “grandes estratégias” do país desde sua entrada na Primeira Guerra Mundial até o estabelecimento da “Doutrina da Contenção”. O estudo parte da hipótese de que as ações dos EUA encontraram-se sujeitas, no período analisado, a um processo subjetivo de interpretação da realidade que esteve atrelada, sobretudo, à forma como os próprios norte-americanos percebem a si mesmos e ao modo como visualizam o seu papel no mundo em cada momento. Assim, embora tal crença tenha se materializado de diferentes maneiras - provida de caráter missionário ou exemplar, por exemplo - ela representa uma traço de continuidade, uma ideia-força, da política externa do país durante todo o período estudado. Palavras-chave: Estados Unidos. Excepcionalismo Americano. Grande Estratégia. Ideias. Política Externa. ABSTRACT At the dawn of the 21st century, a lot has been discussed about the longevity of American power and the country’s ability to maintain the stability of the international system. Emerging as an unprecedented global superpower, the United States of America (USA) became a crucial factor in the understanding of International Relations (IR). It is not by chance that so much has been addressed over the past decades on the challenge of unraveling the Pax Americana in general, and on the task of understanding the domestic origins of their international choices specifically. Aiming to shed light on such a scale is what this study proposes. This research - of qualitative and explanatory characteristics - has the general theme called “American Exceptionalism” and possesses as subject of study, the U.S. foreign policy in the embryonic period of its leadership - particularly during the consolidation of the superpower between 1917 and 1947. It is intended to investigate how such an ideational component manifested in the formulation and implementation of the “grand strategies” of the country since its entry into World War I to the establishment of the “Doctrine of Containment”. The study starts from the hypothesis that the actions of the U.S. found themselves subject during the period analyzed, to a subjective process of interpretation of the reality that was linked mainly to the way Americans perceive themselves and how they visualize their role in the world at each moment. Although this belief has materialized in different ways - provided by missionary or exemplary character, for example - it represents a trace of continuity, a strong idea, of the country's foreign policy during the entire studied period. Keywords: United States. American Exceptionalism. Grand Strategy. Ideas. Foreign Policy. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – O modelo analítico de Goldstein e Keohane e o desenho da pesquisa ........................ 25 LISTA DE SIGLAS EUA – Estados Unidos da América FDR – Franklin Delano Roosevelt FMI – Fundo Monetário Internacional GOP – Grand Old Party ONU – Organização das Nações Unidas OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte RI – Relações Internacionais URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 1 2. PREMISSAS TEÓRICAS: EXCEPCIONALISMO E POLÍTICA EXTERNA ..................... 7 2.1 Excepcionalismo: a construção de uma crença ............................................................ 9 2.2 As fontes da crença no excepcionalismo ................................................................... 13 2.2.1 Interpretações seculares ...................................................................................... 14 2.2.2 Interpretações religiosas ..................................................................................... 18 2.3 Ideias e Política Externa: consolidação do marco teórico ......................................... 20 3. EXCEPCIONALISMO E ENGAJAMENTO: A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA ENTRE 1917 E 1920 ..................................................................................................................... 27 3.1 1917: uma guerra pela democracia ............................................................................ 29 3.2 Versalhes e a tentativa de construção de uma nova ordem mundial.......................... 37 4. EXCEPCIONALISMO E AFASTAMENTO: A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA ENTRE 1921 E 1933 ..................................................................................................................... 45 4.1 Autonomia decisória e auto-preservação: novas práticas para o combate à guerra e a difusão do American dream .................................................................................................. 49 4.2 O princípio do “individualismo americano” como base da política econômica dos EUA 57 5. EXCEPCIONALISMO E CONTENÇÃO: A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA ENTRE 1934 e 1947 ................................................................................................................................... 62 5.1 FDR: do New Deal à consolidação de uma “hegemonia benevolente” ..................... 63 5.1.1 A Segunda Guerra Mundial e as “quatro liberdades”......................................... 69 5.1.2 A consolidação da Pax Americana ..................................................................... 75 5.2 Truman e a Doutrina da Contenção ........................................................................... 80 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 86 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................ 91 1 1. INTRODUÇÃO Acreditar que não acreditamos em nada é crer na crença do descrer. (Millôr Fernandes) Interpretar o comportamento político talvez seja um dos desafios mais antigos da humanidade. Isso porque implica lidar com um conjunto de elementos que muitàs vezes contestam a rigidez e a racionalidade da ciência positivista mais tradicional, confrontando os analistas à urgência de assumir a relevância de componentes mais sofisticadas, como é o caso dos fatores ideacionais. Indo além, a observação daquilo que é subjetivo ganha complexidade na medida em que passa a envolver o ethos social, cuja ação deriva de uma síntese produzida pela acomodação de visões de mundo particulares e de interesses isolados, todos devidamente delimitados por constrangimentos estruturais. Não é à toa que boa parte da literatura mainstream das Relações Internacionais (RI), em geral, e dos estudos sobre Estados Unidos da América (EUA), em particular, privou-se deste tipo de discussão, deixando inúmeras questões em aberto ou conferindo respostas demasiado vagas para esclarecer a conduta dos Estados. Por vezes marginalizados, o ‘como’ e principalmente o ‘porquê das coisas’ parecem constituir a porção explicativa mais nobre das ciências humanas e, por esta razão, merecem ser explorados com maior acuidade. Diversos são os motivos que, historicamente, têm feito com que políticos e intelectuais sejam estimulados a pensar sobre os EUA. Trata-se da primeira colônia a se tornar independente dentro do continente americano, e do país cuja contribuição para o mundo inclui o pioneirismo político na implementação da república constitucional, do sistema federalista e do regime democrático- representativo. Ademais, a supremacia dos americanos1 ao longo da era moderna e, especialmente no decorrer do último século, ultrapassou todos parâmetros convencionais, uma vez que o país passou a ser o único a deter preponderância decisiva simultânea em todas as esferas de poder: político, militar, econômico, diplomático, institucional, tecnológico, cultural e até mesmo lingüístico (cf. WOHLFORTH, 1999), o que trouxe consigo spillovers teóricos e 1 É importante esclarecer que os termos “americanos” e “estadounidenses” serão aqui ulizados como sinônimos da expressão “norte-americanos”. Tal estratégia está despida de qualquer significado político, representando apenas uma escolha que visa evitar a repetição sequencial dos mesmos termos e, portanto, favorecer uma grafia mais fluida. 2 paradigmáticos igualmente importantes. Não à toa, tornou-se difícil empreender, no marco das Relações Internacionais, qualquer tipo de estudo que desconsiderasse os interesses do país e sua capacidade de projeção. No contexto da conhecida Pax Americana2, portanto, a conformação das chamadas ‘grandes estratégias’3 dos EUA ganhou especial notoriedade, de modo que tanto o direcionamento geral de sua política externa quanto o entendimento sobre as formas de articulação de seus principais objetivos impuseram-se como desafios a serem desvendados pelos analistas da política internacional. Em certa ocasião, Benedict Anderson (2008, p. 10) postulou que nações não correspondem a entidades puramente inventadas, mas fundamentalmente imaginadas, uma vez que “fazem sentido para a alma” e “constituem objeto de desejos e projeções”. Deste modo, ao envolverem a idéia de um ‘nós’ coletivo e de serem pensadas enquanto comunidades, elas são necessariamente limitadas a fronteiras finitas, podendo moldar-se, adaptar-se e transformar-se somente a partir de então. Por este motivo que, segundo tal leitura, “uma nação é [tida como] mais do que território e população, mais do que campo e cidade, governo e economia” (ANDERSON, 2008, p. 98); trata-se de um conjunto de “eventos idealizados, mitos de origem, histórias heróicas e princípios proclamados” (COLES, 2002, p. 410, tradução nossa) a serem investigados e compreendidos. Na esteira destas percepções, portanto, é que o estudo das chamadas ‘tradições políticas’ ganha relevância, já que permite jogar luz sobre as crenças e valores responsáveis por determinar o comportamento e as escolhas dos Estados, além de gerar coerência e continuidade em termos de sua política externa (O’CONNOR, 2009). Em termos simples, as ‘tradições’ são relevantes na medida em que encontram-se incorporadas ao processo de definição do interesse nacional, que corresponde ao pilar básico sob o qual estão assentadas as decisões estratégicas de um país4. 2 Trata-se de um termo utilizado para referir-se ao período em que vigora, no sistema internacional, a hegemonia norte-americana. 3 Por “estratégia” este estudo assume o “processo pelo qual os fins estão relacionados aos meios; as intenções às capacidades; e os objetivos aos recursos” (GADDIS, 1982, p. viii), e a “grande estratégia” é entendida como uma adequação semântica que se confunde, por vezes, com a própria política externa dos países. Em sintonia com o entendimento de Kennedy (1992, p. 05), portanto, esta pesquisa assume que: “[a grande estratégia] reside na capacidade dos líderes de reunir todos os elementos, militares e não militares, que garantam a preservação do Estado e a busca de seus interesses nacionais de longo prazo em tempos de guerra e paz”. 4 Embora a expressão “interesse nacional” suponha preocupações comuns de uma nação visando o “bem-estar geral”, é importante reforçar que compartilha-se aqui da percepção trazida por Haggins (2008) de que, em um sentido muito prático, o conceito é definido de modo mais restrito, e de que os interesses são determinados a partir de balizas subjetivas que orientam os líderes e encontram-se impregnados nos processos políticos de tomada de decisão. Além disso, é importante destacar que desde seu nascimento a expressão “interesse nacional” 3 No que diz respeito ao ‘imaginário’ norte-americano - objeto de estudo desta pesquisa, em particular - a análise cuidadosa do papel das tradições revela-se não apenas interessante, mas parece fundamental para a compreensão das incursões políticas concebidas e implementadas historicamente pelos EUA, já que de acordo com Walter Mead (2002), o povo estadunidense seria, acima de tudo, “traditionminded”, na medida em que “o respeito pela tradição nacional é um dos traços mais fortes e mais valiosos do país” (MEAD, 2002, p. 96- 97, tradução nossa). Por esta razão, segundo o autor, seria possível justificar o valor atribuído por esta sociedade à sua própria Constituição que - ao lado da Declaração de Independência e da Bill of Rights - é considerada “uma espécie de escritura sagrada” e cuja importância está na “revelação de princípios eternos e válidos para todos os tempos” (MEAD, 2002, p. 96, tradução nossa). Em resumo, tradição e identidade, segundo esta perspectiva, estariam permamentemente conectadas. Deste modo, ao assimilar que a identidade nacional de um país pode ser denifida, nas palavras de Smith (2003, p. 24-25, tradução nossa), a partir da “manutenção e contínua reinterpretação do padrão de valores, símbolos, memórias, mitos e tradições que constituem o patrimônio distintivo da nação, bem como a identificação de indivíduos com essa herança e este padrão”, torna-se possível debater aquele que é considerado por muitos (cf. FONSECA, 2007) a “principal determinante da identidade nacional dos EUA tal como expressa em política externa”: o chamado ‘excepcionalismo americano’, tema central desta pesquisa. Passível de debates de ordem definicional, o conceito remete - do ponto de vista genérico - à percepção dos próprios norte-americanos de que os EUA são uma nação predestinada e particularmente especial em função de sua história e de seus valores políticos, econômicos e religiosos (BUZAN, 2004). Neste sentido, trata-se de um elemento que atravessa a consciência coletiva dos estadounidenses e cujo estudo sistemático permitiria compreender, pela leitura aqui sugerida, tanto estratégias de afastamento quanto ações de engajamento internacional ao longo da história do país. O que é o excepcionalismo americano, de onde parte e quais são seus elementos constitutivos mais elementares? De que modo ideias e política externa podem estar carece de definições rígidas, tendo assumido um caráter abrangente e permeado de convicções políticas específicas. Como ponto pacífico, hoje, o que se aceita é que esta ideia tem sido evocada para referir-se de forma generalista aos objetivos estratégicos do Estado (STROLBERG, 2010). Por esta razão é considerada importante para determinar a “base da política externa do país”, denotando “[su]a direção básica [...], os tipos e volumes de recursos necessários, e a maneira como o Estado deve empregá-los para obter sucesso” (HAGGINS, 2008). 4 conectadas? Como tal narrativa afetou as escolhas políticas dos EUA durante seu período de ascensão global? Visando responder à estas questões e jogar luz sobre as circunstâncias em que a formulação estratégica norte-americana se deu, em particular no período de emergência da superpotência, portanto, este trabalho se apresenta. Em termos simples, ele tem como objetivo central mapear de que modo o excepcionalismo americano esteve presente na política externa dos EUA entre 1917 e 1947. Ou seja, deseja-se não apenas refletir sobre as condições estruturais em que a política externa do país foi pensada em cada momento mas, sobretudo, pensar sob quais influências ideacionais isso se deu. Tendo a narrativa do excepcionalismo como pano de fundo, portanto, pretende-se investigar a elaboração de políticas de manutenção, transformação ou correção de rumos de Woodrow Wilson à Harry Truman. A discussão aqui empreendida parte do pressuposto de que a ação internacional de um país depende, acima de tudo, do modo como ele percebe a si mesmo e da forma como entende seu papel no mundo. Deste modo, a hipótese que orienta o trabalho preconiza que a crença no excepcionalismo funcionou como ideia-força da política externa dos EUA durante o período de consolidação do país como superpotência. É importante esclarecer que embora tenha ganhado vazão somente após a Segunda Guerra Mundial, momento em que os EUA foram alçados à categoria de hegemon global, a preocupação com uma posição marcadamente internacionalista deflagou-se muito antes naquele país, ainda nas primeiras décadas de 1900, quando um novo padrão de relacionamento exterior foi arquitetado pelos presidentes Theodore Roosevelt e Woodrow Wilson, em contraposição à conduta de isolamento verificada desde a independência até fins do século XIX (cf. NASSER, 2010). De certo modo, portanto, se a singularidade do período pós Segunda Guerra é, por um lado inegável, e o conflito funciona como variável interveniente de peso para justificar a ascensão dos EUA, por outro ângulo não parece exagero considerar que a segunda metade dos anos 1940 representa nada menos do que o encerramento de um ciclo de emergência e inserção estratégica inaugurado anos antes. Partilhando desta visão, portanto, o recorte temporal a ser examinado por este estudo compreende desde a decisão americana de participar da Primeira Guerra Mundial, em 1917, até a consolidação da potência e estabelecimento da Doutrina de Contenção, já no início da Guerra Fria. Esta escolha - que engloba desde parte do governo de Woodrow Wilson até o início da administração Truman - justifica-se primeiramente porque contempla marcos que representam dois pontos de inflexão importantes da conduta estratégica americana ao longo 5 de sua trajetória de ascensão: no primeiro, os EUA são inseridos definitivamente na “arena da política mundial”, conforme colocou Kissinger (1994); no segundo consolidam-se como “líderes do mundo livre” e detentores de um conjunto de valores que pautaria o ocidente daí por diante, por meio de uma nova ordem mundial efetivamente americana. Ademais, esta fase coincide com o momento em que tradições da política internacional, em geral, e da norte- americana, em particular, estavam sendo propostas por intelectuais de referência, como o “idealismo” do próprio presidente Woodrow Wilson em sua empreitada acadêmica, e o “realismo” de George Kennan e Hans Morgenthau, no extremo oposto. Além disso, trata-se de um período pouco explorado pela literatura que se faz disponível no Brasil, em português. Neste mesmo sentido, é fundamental destacar que, de alguma maneira, o papel das ideias já foi explorado em estudos anteriores como naqueles empreendidos por Zahran (2005) acerca da tradição liberal norte-americana, Teixeira (2006) sobre a influência dos think tanks, e Teixeira (2007) no que se refere ao pensamento neoconservador em política externa dos EUA. Tomando como base, portanto, alguns dos mesmos motes prenunciados por estes autores, mas visando explorá-los a partir de outros ângulos, tal pesquisa visa somar forças para o desenvolvimento desta área de pesquisa no país. Ao orientar-se, da ótica teórica, por leituras que privilegiam o estudo das tradições políticas nos EUA e que tratam do papel das ideias na formulação da política externa, portanto, pretende-se: 1) compreender o que é o excepcionalismo e qual a sua relevância enquanto traço da sociedade norte-americana; 2) identificar a presença desta ideia no período histórico supramencionado; 3) discutir de que maneira tal concepção foi traduzida em percepções sobre o interesse nacional; e finalmente, 4) sistematizar como tal crença materializou-se em ação durante os períodos que chamaremos de “engajamento” (1917-1920), “afastamento” (1921-1933) e “contenção” (1934-1947). Do ponto de vista metodológico, este estudo caracteriza-se por sua abordagem qualitativa, uma vez que pretende levar a compreensão de determinados fenômenos por meio da análise rigorosa do ambiente em que eles estão inseridos. No que se refere aos objetivos, configura-se uma pesquisa explicativa já que buscará registrar decisões, analisá-las, interpretá-las e mapear relações causais, identificando os fatores que determinam ou contribuem para a ação política norte-americana no tocante a formulação de suas “grandes estratégias” em determinado período e, finalmente, com relação aos procedimentos técnicos a serem utilizados, o trabalho tem caráter bibliográfico e documental, incluindo fontes primárias e secundárias, lançando mão, vez ou outra, de análises superficiais de discurso. 6 No Capítulo 01 será estruturado o escopo conceitual e teórico da pesquisa. Assim, em primeiro lugar, pretende-se explorar o excepcionalismo americano quanto à sua definição, construção histórica e suas fontes (seculares e religiosas) mais basilares. Em seguida, será realizada uma breve discussão teórica sobre a relação entre ideias e política externa a fim de jogar luz sobre a estratégia analítica escolhida. Ao longo dos três capítulos seguintes, serão exploradas, por sua vez, as políticas externas de cada um dos períodos históricos aqui delimitados. No Capítulo 02, será investigada a grande estratégia do governo Woodrow Wilson, no qual será destacado de que modo a crença no excepcionalismo americano moldou a ação dos EUA durante a Primeira Guerra Mundial e, ao seu fim, durante as negociações da ordem pós-conflito. No decorrer no Capítulo 03, por sua vez, serão exploradas as políticas externas dos governos Warren Harding, Calvin Coolidge e Herbert Hoover. Nesta seção pretende-se enfatizar como a busca por autonomia decisória e auto-preservação refletiram a crença no excepcionalismo e a propagação do American dream por meio de políticas ligadas ao combate à guerra e à difusão de práticas econômicas internacionais baseadas no princípio do “individualismo americano”. No Capítulo 04 serão debatidos os governos de Franklin Roosevelt e parte da administração de Harry Truman, mostrando como, por meio da narrativa do excepcionalismo, o país recuperou a vitalidade econômica e consolidou-se, sob sua percepção, como uma “hegemonia benevolente”. Neste momento será analisada a participação americana ao longo da Segunda Guerra Mundial, no momento pós-conflito, com a consolidação da Pax Americana e, finalmente, durante a Doutrina da Contenção. Na seção de Considerações Finais será realizado um balanço do percurso realizado pelo trabalho e dos períodos históricos anteriormente investigados. Serão reveladas as impressões derradeiras sobre a hipótese levantada pela pesquisa, serão sintetizadas as principais ideias oriundas do estudo e, claro, indicados possíveis desdobramentos para trabalhos futuros. 7 2. PREMISSAS TEÓRICAS: EXCEPCIONALISMO E POLÍTICA EXTERNA America is more than a country– it is also an ideology. (Lieven) Diversas manifestações políticas e intelectuais destacam o caráter ‘excepcional’ dos EUA ao longo da história norte-americana. Apesar de corrente, no entanto, a expressão enfrenta, desde sua origem, uma espécie de “definitional dilemma”, como já mencionado na introdução deste trabalho. Refletindo sobre o excepcionalismo, Lipset (1996) destacou, no clássico American Exceptionalism: A Double-Edged Sword, que se trata de um conceito sobretudo relacional, uma vez que supõe o contraste entre os EUA e os demais países do globo. Nas palavras do autor, ainda, este é um processo fundamental na análise política já que “é impossível entender um país sem ver como ele varia de outros” e que “aqueles que conhecem um só país não conhecem nenhum” (LIPSET, 1996, p. 17, tradução nossa). Considerado um dos tópicos mais controversos da literatura especializada, o termo refere-se ao entendimento que os norte-americanos fazem a respeito de sua própria existência: a convicção de que os EUA são produto de uma trajetória histórica única e de que os estadounidenses são detentores de uma missão igualmente diferenciada no mundo (COX e STOKES, 2008). Ao conceber o país como “singularmente sagrado” (SCHMIDT, 2006), seus valores são construídos, pela crença no excepcionalismo, como universais e potencialmente revolucionários, ao mesmo tempo em que este povo percebe-se como “particularmente escolhido” e o país é visto como “Israel do nosso tempo; a arca das liberdades do planeta” (LIEVEN, 2004, p. 33, tradução nossa). Não à toa que, ao publicar An American Dilemma (1944), Gunnar Myrdal - que mais tarde venceria o Prêmio Nobel de Economia em parceria com Friedrich Hayek - popularizou o termo “American creed”. Em sua obra, o autor defende a ideia de que “[o]s norte-americanos têm em comum um ethos social, um credo político” (MYRDAL, 1996, p. 45, tradução nossa). Nas palavras de Lipset (1996, p. 73, tradução nossa), nascido de uma revolução, os Estados Unidos são um país organizado ao redor de uma ideologia que inclui uma série de dogmas sobre a natureza de uma boa sociedade. O americanismo, como diversos autores já pontuaram, é um “ismo”, ou 8 uma ideologia tanto quanto o comunismo, o facismo ou o liberalismo também são “ismos”. Como apontou G. K. Chesterton: “a América é a única nação do mundo fundada sobre uma crença. Esta crença é estabelecida com lucidez dogmática e até mesmo teológica na Declaração de Independência [...]” [...] A ideologia revolucionária que se tornou o credo americano é o liberalismo em seu sentido dos séculos XVIII e XIX, distinto do Toryismo, do comunitarismo estadista, do mercantilismo, da cultura da monarquia e dos estados formados a partir da Igreja. [...] “Na Europa a nacionalidade está relacionada à comunidade, e assim alguém não pode tornar-se não-inglês ou não-sueco. Ser uma americano, no entanto, envolve um compromisso ideológico. Não é questão de nascença. Aqueles que rejeitam os valores americanos tornam-se não-americanos. Apesar de parecer simples, no entanto, o conceito revela uma série de embates que merecem ser examinados com maior acuidade. A primeira das dificuldades relacionadas à esta expressão repousa no fato de que, ontologicamente, a literatura diverge quanto ao seu significado. Ao conceber os EUA como excepcionais, questionam-se os autores, pretende-se alegar que país é melhor ou que simplesmente é diferente dos demais Estados? (cf. ACHOR, 2012) Fazendo coro com a maior parte da bibliografia existente, esta pesquisa admite a segunda interpretação, embora reconheça que quando se trata da observação rigorosa do que pensam os americanos sobre o seu próprio país as duas leituras se confundam. O segundo dilema refere-se às políticas implementadas em nome do excepcionalismo americano. Para alguns, ele corresponde a um mero discurso legitimador capaz de fazer cumprir qualquer medida imperialista dos EUA. Travestidos de valores supostamente universais, os norte-americanos utilizariam do discurso do excepcionalismo para transmitir uma imagem de “potência benevolente” quando, na verdade, estariam mascarando estratégias capazes de promover seus interesses egoístas no exterior (cf. KAGAN, 2006). Para outros, no extremo oposto, o conceito representaria simplesmente “um código para o internacinalismo liberal” que vê na experiência americana uma inspiração para um mundo de paz e prosperidade (cf. COX e STOKES, 2008). Por fim, uma terceira dimensão - não necessariamente uma dificuldade ou um dilema, mas uma ressalva quanto ao excepcionalismo - remete ao alerta feito por Lipset (1996) quanto à necessidade de analisar a ideia como uma double-edged sword (faca de dois gumes). Isso significa que se por um lado tal visão enaltece a “força dos partidos políticos”, os “princípios organizativos” e as “instituições políticas” dos EUA, não pode ignorar ou anular, ao mesmo tempo, os traços negativos que caracterizam a sociedade americana, tais como “a desigualdade de renda”, “os altos índices de criminalidade”, “os baixos níveis de participação eleitoral” e “uma poderosa tendência de moralizar que às vezes beira a intolerância com 9 minorias políticas e étnicas” (LIPSET, 1996, p. 14, tradução nossa). Feitas tais considerações, portanto, é crucial destacar que, apesar de reconhecer a existência destes debates e sua importância, esta pesquisa não pretende discutir o excepcionalismo da perspectiva moral ou problemátizá-lo quanto às suas intenções políticas. Tampouco pretende avaliar as componentes positivas ou negativas associadas à esta ideia ou julgar a precisão deste status ao longo do período estudado. Almeja-se aqui, ao invés disso, identificar a centralidade de tal crença e suas formas de manifestação durante o processo de consolidação dos Estados Unidos enquanto superpotência global. Por esta razão, inclusive, o presente capítulo faz-se necessário, já que nele pretende-se esclarecer o significado desta ideia, seu processo de formação e os elementos constitutivos dos quais deriva esta manifestação da identidade norte-americana. Feito isso, aspira-se, finalmente, tratar da relação entre fatores ideacionais e política externa, reforçando a percepção de que as ideias correspondem à variáveis intervenientes que “reduzem o número de alternativas aceitáveis” durante o desenho de uma ‘grande estratégia’ e que, como consequência disso, são responsáveis por “moldar a agenda” dos Estados (cf. GOLDSTEIN e KEOHANE, 1993). 2.1 Excepcionalismo: a construção de uma crença A literatura, em geral, costuma admitir que o termo em questão - ‘excepcionalismo’ - foi utilizado pela primeira vez por Alexis de Tocqueville, filósofo político francês que, ao ser enviado à América para uma missão diplomática durante o século XIX, encantou-se com o funcionamento do sistema político do país. Isso ocorre porque no clássico Da Democracia na América, publicado em 1835, o pensador realçou que “a posição dos americanos [era] excepcional” e reconheceu que “[seria] possível acreditar que nenhum povo democrático jamais conseguir[ia] assemelhar-se a ele”. Na ocasião, Tocqueville (2009) enalteceu, como fatores exemplificadores da singularidade norte-americana, a geografia do país, seu sistema legal e judiciário e a moralidade característica daquela sociedade: sua origem estritamente puritana - seus exclusivos hábitos comerciais - até mesmo o país em que habitam, que parece distrair suas mentes a partir do exercício da ciência, da literatura e das artes - a proximidade com a Europa, o que lhes permite negligenciar estas perseguições sem recair na barbárie - milhares de causas especiais de que eu só foi capaz de apontar o mais importante - singularmente concordaram em fixar a mente dos americanos sobre objetos puramente práticos. Suas paixões, seus desejos, sua educação, e tudo sobre ele parecem unir-se para desenhar o nativo 10 dos Estados Unidos em direção à Terra. Vamos deixar então para visualizar todas as nações democráticas sob a máscara do povo americano, e vamos tentar examiná-los longamente com suas próprias características adequadas (TOCQUEVILLE, 2009, p. 17, tradução nossa). Apesar do simbolismo representado por esta obra, no entanto, registros denotam que mesmo antes da independência, quando as treze colônias americanas sequer haviam sido descobertas ou quando ainda respondiam à Corôa Britânica, declarações desta natureza já faziam parte daquele que se consolidaria, mais tarde, como parte do imaginário nacional estadounidense. Para Greene (1993), autor de The Intellectual Construction of America, por exemplo, a construção do caráter excepcional da América teve início ainda na Europa já que “ao longo da Idade Média, os europeus haviam postulado a existência de um lugar - há um tempo para o leste, mas principalmente para o oeste de seu continente - isento da corrupção e das desvantagens do Velho Mundo”. Neste sentido, a descoberta do território americano “apenas [teria] intensificado a nostalgia relacionada à Era de Ouro e ao Paraíso Perdido” (GREENE, 1993, p. 25-26, tradução nossa). Neste mesmo sentido, Greene (1993, p. 26;28, tradução nossa) relembra que mais de duas décadas antes da chegada de Colombo ao continente, em 1492, Thomas More já havia publicado Utopia, no qual concebia a existência de uma sociedade ideal inserida no Atlântico. Esta autor pertencia à uma corrente de escritores que “continuamente identificavam o sonho de uma sociedade perfeita na América e frequentemente localizavam suas ‘ilhas mágicas’, suas ‘Novas Atlântidas’, suas ‘Cidades ao Sol’ em algum lugar distante da Europa e na vizinhança da América”. De modo semelhante, há que se considerar também que, em 1630, quando o navio Arabella deixou a Inglaterra rumo ao Novo Mundo, o puritano John Winthrop alertou seus companheiros de que a América seria como uma “cidade edificada sobre um monte” (“a city upon a hill”) em alusão à conhecida expressão utilizada por Jesus Cristo durante o Sermão da Montanha (FRIEDMAN, 2012). Anos mais tarde, conquistada a Independência, Junqueira (2003, p. 165) lembra que os norte-americanos foram confrontados à necessidade de criar unidade entre as treze colônias distintas, que embora compartilhassem o mesmo idioma e mantivessem algum tipo de interação entre si, eram relativamente autonômas. Como destaca a autora, não seria fácil estabelecer uma identidade nacional na ausência de uma “figura aglutinadora” como um rei, 11 por exemplo. Ao refletir justamente sobre esta questão, portanto, é que Smith (1986, p. 127, tradução nossa) defende a ideia de que a narrativa do excepcionalismo ganhou destaque, neste momento, uma vez que o país “carecia dos fatores que frequentemente servem como fonte de coesão social”. Na ausência de outros elementos objetivos ou de uma “ethnie” dominante, então, é que, segundo Monten (2005, p. 125, tradução nossa), os EUA alicerçaram sua identidade “em termos cívicos e idealísticos”. É possível destacar, neste contexto, também o papel desempenhado pelos chamados “pais fundadores da América”. Novak e Novak (2006), por exemplo, buscaram demonstrar, em sua obra, que George Washington acreditava que Deus era central para a fundação do país e que a causa americana era favorecida pela vontade divina. Curiosamente, os autores registram que, de acordo com a documentação disponível, existem ao menos 102 diferentes nomenclaturas pelas quais Washington referia-se a Deus e à Providência Divina durante seus pronunciamentos oficiais. Neste mesmo sentido, Anders Stephanson (1995) lembra que mesmo Thomas Jefferson, considerado deísta, serviu-se do discurso do “povo escolhido” em seu segundo Inaugural Address, de 04 de março de 1805, quando já era presidente do país. Ao evocar a ajuda do Criador, associou os EUA à Israel e atribuiu a prosperidade da nação à influência divina. Anos antes, em 1776, no panfleto revolucionário Common Sense, Thomas Paine também já havia enaltecido a América associando-a a “um farol de liberdade para o mundo”. Ao evocar igualmente a figura divina no processo de formação desta nação cabe retomar também a passagem de O federalista, em que James Madison (2003, p. 173, tradução nossa) afirma que “é impossível ao homem de reflexão piedosa não perceber [na Constituição] um dedo do Todo-Poderoso, que assinaladamente e frequentemente tem auxiliado com o alívio [dos americanos] nas fases críticas da revolução”. Além disso, é importante relembrar que analisando a autobiografia de Benjamin Franklin, Madsen (1998, p. 36-37, tradução nossa) enquadra-o como um dos principais responsáveis por distanciar o conceito de excepcionalismo de suas origens religiosas e atribuir-lhe um sentido secular. Por esta razão, nas palavras da autora, Franklin redefiniu, de modo poderoso, a missão Puritana: reformulando os termos do sucesso, em que a prosperidade material assumiu uma proeminência que não havia antes, em que as condições de vida para os americanos eram menos definidos em termos espirituais do que antes, em que a salvação coletiva da comunidade foi transformada em uma forma de governo que poderia proteger os direitos dos cidadãos. O que restou foi a percepção de que a América continuaria sendo julgada por outras nações do mundo para quem permaneceria sendo um modelo, um guia, uma medida. Além de uma guardiã dos direitos inalienáveis do homem, tão 12 recentemente consagrados na Constituição (MADSEN, 1998, p. 37-38, tradução nossa). Anos mais tarde, já durante o século XIX, além da mencionada contribuição de Tocqueville, novas manifestações foram fundamentais para a consolidação do excepcionalismo enquanto ideia dominante da sociedade americana. Entre 1801 e 1809, como já enunciado anteriormente, Thomas Jefferson ocupou a presidência dos EUA; algumas décadas depois, entre 1829 e 1837, foi a vez de Andrew Jackson. Nos dois governos, segundo Mead (2002), prevaleceram visões de mundo particularmente ligadas ao excepcionalismo. Não à toa, inclusive, estes presidentes passaram a servir de referência para designar duas das ‘tradições políticas’ propostas pelo autor em The Special Providence. De acordo com seu entendimento, tanto Jeffersonianos quanto Jacksonianos, cada uma à sua maneira, acreditam que o patrimônio cultural, social e político dos Estados Unidos é um tesouro precioso a ser conservado, defendido, e transmitido às gerações futuras; eles celebram o que vêem como elementos únicos e singularmente valiosos da vida americana e acreditam que o objeto da política externa deveria ser defender esses valores em casa ao invés de estendê-los no exterior (MEAD, 2002, p. 175, tradução nossa). Entre ambos, não se pode esquecer ainda, da passagem de James Monroe pelo poder. Responsável pela doutrina política que levou seu sobrenome, este corresponde a um momento histórico importante, pois revela a pré-disposição dos EUA em assumir a “gerência” do continente americano ao mesmo tempo em que reforça o desejo dos americanos de permanecer distantes dos valores e práticas do “Velho Mundo”. No campo intelectual este também é o período de efervescência do pensamento de autores como Emerson, Hawthorne, Thoreau, Whitman e Melville, que - conforme lembra Madsen (1998, p. 70-71, tradução nossa) - também adotam a retórica do excepcionalismo em suas obras. Em 1845, por sua vez, John O’Sullivan - o responsável por cunhar o termo “Destino Manifesto” - atribuiu aos americanos a missão de “estabelecer na terra a dignidade moral e a salvação do homem”. Neste mesmo sentido, discursando ao Congresso norte-americano em 01 de dezembro de 1862, Abraham Lincoln disse que os Estados Unidos representavam “a última esperança da Terra”. Em 1886, por fim, vale lembrar, o monumento Liberty Enlightening the World, popularmente conhecido como Estátua da Liberdade, foi instalado na 13 cidade de Nova York. Considerado, hoje, um dos mais expressivos símbolos nacionais dos EUA, ela foi entregue aos norte-americanos como presente da França pela abolição da escravatura e pelo fim da Guerra Civil, bem como em reconhecimento pelo governo democrático e pelas ideias iluministas que guiavam o país (MADSEN, 1998). O romper do século XX trouxe, por sua vez, novos contornos à narrativa do excepcionalismo. Com Theodore Roosevelt, primeiro presidente desta era, o internacionalismo norte-americano ganhou impulso jamais verificado anteriormente. Além disso, em 1906, por exemplo, ao questionar-se sobre porque as classes operárias norte- americanas não sentiam-se atraídas pelo pensamento socialista, o sociólogo Werner Sombart concluiu que este fenômeno denunciava um conjunto de “idiosincrasias da cultura espiritual” daquele povo (MCDOUGALL, 2012). Anos depois, em 1929, ao ser informado pelo líder comunista Jay Loverstone de que o proletariado norte-americano não estava interessado na revolução, Stalin - o líder soviético em exercício - reagiu alegando que era preciso “acabar com a heresia do excepcionalismo americano”. A expressão ganhou, nesta ocasião, o sentido político que lhe cabe atualmente e foi, portanto, oficialmente cunhada nos termos hoje propagados (FRIEDMAN, 2012). Conforme os registros de McDougall (2012), portanto, o conceito - que foi fortemente disseminado pelos intelectuais de esquerda nos EUA nos anos 1930 - teve, mais tarde, na década de 1940, seu uso largamente ampliado, já que os EUA saíram da Segunda Guerra Mundial como a maior superpotência do planeta. Como já mencionado anteriormente, não à toa, portanto, este trabalho pretende debater, ao longo dos próximos capítulos, a presença desta ideia justamente durante este momento de formação da hegemonia americana. Por ora, no entanto, cabe ainda destacar os elementos que compõem o excepcionalismo do ponto de vista teórico. A clareza sobre estes critérios será fundamental para mapear a presença desta crença ao longo do período a ser estudado adiante. 2.2 As fontes da crença no excepcionalismo Conforme apresentado na seção anterior e, de acordo com a síntese proposta por Buzan (2004, p. 03, tradução nossa), a auto percepção dos norte-americanos quanto à sua própria existência busca “demarcar as qualidades que distinguem e diferenciam os EUA em relação a outros Estados”. Isto posto, cabe problematizar, agora, quais elementos constituem 14 tal crença. A literatura especializada discute uma série de princípios que fundamentam o credo no excepcionalismo. Neste sentido, como alertou Fonseca (2007), admitem-se tanto interpretações seculares quanto religiosas. No primeiro caso, são enfatizadas “as peculiaridades do modelo político democrático e liberal construído no país, por vezes advogando a necessidade de promovê-lo (e reproduzi-lo) mundo afora”. Além disso, “destaca-se a importância da história, as particularidades do sistema colonial inglês, a importância dos princípios da Natural Law, presentes tanto na Carta Magna quanto na Declaração de Independência norte-americana”. Em geral, tal leitura também “reitera a importância da geografia, a ocorrência de um “isolamento continental”, que permitiu ao país se desenvolver em uma redoma, isolado das ameaças e influências de outras nações” (FONSECA, 2007). No segundo caso, “sublinha-se o papel especial da fé, dos valores morais e, ocasionalmente, de mitos “fundacionais” protestantes na formação de uma identidade nacional tipicamente norte-americana” (FONSECA, 2007). As próximas seções pretendem explorar um pouco mais tais dimensões. 2.2.1 Interpretações seculares Ao refletir sobre o tema do excepcionalismo, Cox e Stokes (2008, p. 25, tradução nossa, grifo nosso) sustentam que “a América é excepcional, tanto na prática quanto em percepção, porque mais do que qualquer outro Estado na história, o país incorporou e avançou uma visão ideológica que centra seu modo de vida na liberdade”. Como bem pontuou Hartz em The Liberal Tradition of America (1991), o país diferencia-se da Europa, sobretudo, pela ausência de um passado feudal e de um pensamento marxista que tivesse sido capaz de impulsionar um levante revolucionário, já que - de acordo com esta leitura - não teria desenvolvido-se, na sociedade americana, um tipo de “consciência de classe” com força suficiente de promover rupturas marcantes. Retomando Tocqueville (2009), o autor relembra que o filosofia predominante no país é de que os americanos “nascem iguais, ao invés de tornarem-se iguais”. A igualdade, vale ressaltar, seria entendida, aqui, no sentido de igualdade de oportunidades. Como propõe a máxima que atribui-se a 15 Thomas Jefferson: buscar a própria felicidade, e ter a liberdade para fazê-lo, constituiriam um direito natural e inalienável de todos os indivíduos. Não à toa, portanto, que Lipset - autor de outro clássico já referenciado anteriormente - trata do “credo americano” como um produto de cinco valores democráticos liberais tais como “liberdade, igualitarismo, individualismo, populismo, e laissez-faire”. Para ele, a identidade norte-americana, portanto, seria resultado “da ênfase conferida às relações sociais igualitárias, à ausência de uma demanda que os menores na ordem social devam deferência ostensiva para seus superiores, do destaque dado à meritocracia e da igualdade de oportunidade para que todos possam crescer economicamente e socialmente” (LIPSET, 1996, p. 53, tradução nossa). Neste sentido, faz parte da construção desta sociedade também o anti-estadismo e o repúdio ao despotismo, conforme lembram Cox e Stokes (2008). À luz das chamadas ideias iluministas e da teoria de auto-governo proposta pela filosofia política de John Locke, Morinelli (2009) lembra que os norte-americanos aproveitaram do isolamento em relação à Europa, no início de sua história, para refletir e implementar novas formas de governo. Como resultado, foram responsáveis por fundar a república em sua concepção contemporânea, a democracia representativa e o estado federativo. Assim, “quando a República Americana foi fundada, como o país era ainda amplamente aberto e inexplorado [...] foi possível distanciar- se de tudo que consideravam velho e corrupto. Isso reforçou a crença de que eles eram diferentes e que estavam aptos a começar algo novo e melhor” (MORINELLI, 2009, p. 07, tradução nossa). Documentos importantes do país, como a Declaração de Independência, a Constituição federal, as constituições estaduais e a Bill of Rights, por esta razão, codificam os valores liberais por meio da institucionalização dos direitos e liberdades civis, do estabelecimento da soberania popular, da limitação do governo via sistema de “checks and balances”, da democracia multi-partidária, da defesa da propriedade privada e do capitalismo de mercado, bem como do apreço conferido ao Estado de Direito e às cortes independentes, da liberdade religiosa e da separação entre Igreja e Estado (COX e STOKES, 2008). Em termos de política externa, por sua vez, este sistema regula o engajamento externo do país na medida em que estabelece, por exemplo, a necessidade de que se atinja a maioria de dois terços do Senado para ratificar acordos internacionais. Neste sentido, a percepção de que os EUA correspondem a um país excepcional e que suas instituições e valores devem ser 16 preservados acima de tudo, faz com que os documentos mais básicos da nação enfatizem sua centenária tradição soberanista. Indo ainda mais longe no que diz respeito aos impactos desta característica no relacionamento internacional dos EUA, Hartz (1991) adverte que em razão da tradição liberal a sociedade norte-americana tornou-se, pouco a pouco, intolerante ao “diferente”. Por esta razão, inclusive, o autor classifica como o grande desafio dos norte-americanos interagir com outros Estados considerados diferentes deles próprios, do ponto de vista ideológico. Segundo essa perspectiva, [os norte-americanos] criaram não só uma sociedade única, mas um modelo de organização universal, que deveria ser seguido por todos; qualquer outra alternativa estaria caminhando na direção errada. Dentro dessa ordem de ideias, construíam um modelo de sociedade profundamente excludente: no plano doméstico eram excluídos índios, negros, católicos e imigrantes (iniciou-se depois da Independência a versão de que os Estados Unidos, a “América profunda”, era formada pelo homem branco, anglo-saxão e protestante), e tratavase de uma sociedade excludente também no plano internacional, pois a idéia de povo e de sociedade exclusiva que montavam tornou difícil reconhecer culturas diferentes da cultura protestante (JUNQUEIRA, 2003, p. 167). Fazendo coro à uma percepção análoga, Erica Resende (2012) afirma que a “outrocidade” é traço permanente da identidade nacional norte-americana. Neste sentido, as ideias de exclusão e pertencimento aparecem como figuras centrais para a delimitação do que é o “americano” e a “América”, já que apenas no contato com o exterior é que são construídas as relações de alteridade. Uma vez pontuados estes elementos, cabe destacar, para além do liberalismo, outra interpretação secular que favorece a compreensão do excepcionalismo americano; esta vertente, por sua vez, repousa nas características geográficas e demográficas do país. É sabido que os EUA correspondem à única potência do Norte que está separada de outras por dois enormes oceanos, o que lhes concede vantagem estratégica significativa. Em referência à tal circunstância, Walt (2005) chegou a resgatar uma famosa afirmação de Jules Jusseraud, embaixador francês, que dizia: “a América é abençoada entre as nações. Ao norte ela tem um vizinho fraco, ao sul outro vizinho fraco, ao lado leste, peixe, ao lado oeste, peixe”. Do ponto de vista demográfico, por sua vez, o excepcionalismo manifesta-se na medida em que os americanos vêem a si mesmos como uma nação fundada por imigrantes de múltiplas nações, que tinham como principal objetivo a busca por uma condição de vida melhor do que aquela oferecida nos países de origem (MORINELLI, 2009). 17 Ao debater a formação da identidade cultural deste povo, por exemplo, o historiador Michael Lind (1995) propôs a tese das chamadas “três gerações americanas”. A primeira, designada por ele “anglo américa” diz respeito aos colonos do país e aos seus descendentes diretos, particularmente ingleses e escoceses. São brancos, protestantes e falam inglês. A segunda, chamada “euro américa”, teria sido produto de uma intensa onda migratória ocorrida entre 1800 e 1900. Englobaria indivíduos vindos da Europa, especialmente da Alemanha, Irlanda, Itália e do Leste Europeu. Diferente do grupo anterior, caracterizam-se por serem pobres, católicos e por não falarem inglês. A terceira geração, finalmente, denominada “global américa”, teria surgido, após os anos 1960, em função da reformas das leis imigratórias do país. Em função disso asiáticos, africanos e latino-americanos, além de refugiados de guerra teriam tido o acesso facilitado. Este grupo teria assimilado com facilidade as características do povo americano, embora “devido a facilidade de transporte e comunicação mantem muitos laços com seu local de origem”. Indo mais longe, é possível destacar, ainda, uma última dimensão dentre as componentes seculares relacionadas ao excepcionalismo. Ao publicar The Significance of the Frontier in American History, o historiador Jackson Turner (1893) propôs que a formação da identidade nacional norte-americana poderia ser compreendida a partir da “experiência de fronteira” daquele país. Em termos simples, Turner “vai buscar a sua “comunidade imaginada” no passado americano dos pioneiros, na conquista do território americano de costa a costa e na marcha de leste a oeste” (MELLO e SOUZA, 2008). De acordo com o autor, portanto, a história americana tem sido em grande parte a história da colonização do Grande Oeste. A existência de uma área de terra livre, sua recessão contínua, e o avanço da colonização do oeste americano, explicam o desenvolvimento da América [...]. A peculiaridade das instituições americanas é o fato de que eles foram obrigados a se adaptar às mudanças de um povo em expansão [...] na conquista de uma infinidade [...]. O verdadeiro ponto de vista na história deste país não é a costa do Atlântico, é o Grande Oeste (TURNER, 1893, p. 31, tradução nossa). Segundo Turner, uma vez empreendida esta jornada, a “conquista da fronteira” teria ultrapassado o sentido geográfico mais óbvio a partir de então. Passaria a representar, analogamente, a capacidade de auto-superar desafios por parte dos homens comuns. O desbravamento do “selvagem”, do “inóspito”, do chamado “wilderness”, portanto, teria estimulado este povo a agir, inovar, e enfrentar o desconhecido permanentemente. O “espírito empreendedor e corajoso”, como bem sintetizou Mello e Souza (2008), “representaria [neste 18 sentido] a síntese dos valores que unificam o imaginário norte-americano” - o que, naturalmente, faz com que este povo se sinta diferenciado em relação à outras sociedades que não passaram pela mesma experiência. 2.2.2 Interpretações religiosas Além das leituras apresentadas na seção anterior, há quem considere, ainda, que o excepcionalismo americano encontra-se assentado, sobretudo, em bases religiosas. Autores como Webb (2004), chegam inclusive a sugerir o emprego do termo “providencialismo” para referir-se ao mesmo fenômeno. De acordo com Boorstin (1953), em The Genius of American Politics, portanto, é como se os norte-americanos acreditassem na naturalidade de seu excepcionalismo. Conforme sumariza Fonseca (2007, p. 156), trata-se de uma narrativa construída a partir de mitos protestantes que acompanharam os primeiros colonos puritanos do país: ideias que remetem à “providência divina”, à “cidade na colina”, ao “povo escolhido” e à “missão na natureza selvagem”. Como lembra Morinelli (2008), muitos colonos deixaram a Inglaterra, no início do século XVII, em busca de liberdade religiosa. Ao ser inundado por por calvinistas, batistas e principalmente puritanos, o “Novo Mundo” viu-se tomado pelo “senso messiânico” de que os EUA eram - nas palavras do já mencionado John Winthrop - “um lugar religiosamente especial”, “que iria inspirar e ajudar a liderar a humanidade para longe da maldade”. As colônias da Nova Inglaterra, segundo essa visão puritana, eram vistas como se fossem um laboratório de Deus antes de ele estender todo seu pacto com o restante do mundo. Os flagelos impostos por Deus aos puritanos seriam representados, segundo eles, pelas guerras de redenção travada contra os nativos americanos, os quais, ao serem considerados pagãos, se constituiriam no elemento de alteridade a partir do qual os americanos definiriam sua identidade e sua missão. Ou seja, a ideia de “outro pagão” era fundamental à definição e consolidação do excepcionalismo americano. Assim, a natureza excepcional dos EUA seria definida por suas guerras sagradas, narrativa esta que, de certa forma, permanece sendo a estrutura básica de algumas das versões da história excepcionalista da república americana (HERNANDEZ e ROSA, 2011, p. 106). Além disso, a fé teria sido importante para o fortalecimento do capitalismo (cf. WEBER, 2008) e da vida em comunidade (BELLAH, 1988), além de ter motivado diversos movimentos sociais importantes (como em favor do abolicionismo, durante o século XIX, por 19 exemplo). Neste mesmo sentido, mesmo em momentos quando os EUA eram pouco engajados internacionalmente, missionários norte-americanos eram ativos no exterior “provendo serviços como educação básica, serviços médicos e promovendo os direitos humanos” (MEAD, 2002, p. 141-147, tradução nossa). Ao refletir sobre esta componente, Lipset (1996, p. 64, tradução nossa) cita Bellah (1970, p. 175) para lembrar que “enquanto a Europa é [vista como] o Egito; a América é [tida como] a terra prometida”. Assim, “Deus teria designado estas pessoas para estabelecer um novo tipo de ordem social que deveria jogar luz sobre todas as demais nações”. Nas palavras de Madsen (1998, p. 1-2), os puritanos teriam a função de fundar “a redeemer nation”. Conforme sintetizou Junqueira (2003, p. 166), no século XVII, tais puritanos, chamados “os separatistas”, teriam cruzado o oceano “numa viagem dificílima e a bordo de uma embarcação precária”, sempre colocando-se como um povo eleito. De acordo com os registros da autora, ainda, referiam-se a si próprios como os novos hebreus que atravessavam o Atlântico em direção à Terra Prometida. Eles afirmavam que, tal qual o povo eleito do velho testamento bíblico, libertavam-se da tirania. Com uma diferença: agora se libertavam da tirania inglesa e das amarras da Igreja Anglicana que não lhes permitira exercer a sua fé religiosa como queriam. Segundo a historiadora Elise Marientras, atravessar o Oceano era uma espécie de travessia para um outro tempo, o tempo mítico, no qual o mundo começaria do zero, tendo o protestantismo como centro e o asceticismo moral como objetivo de uma vida virtuosa (JUNQUEIRA, 2003, p. 166). Neste mesmo tocante, como bem resume Mateo (2011, p. 67) a pedra angular desta narrativa sobre a origem puritana da América é a fundação de New Plymouth, onde hoje encontramos o estado de Massachusetts, em 11 de dezembro de 1620. Um grupo de peregrinos calvinistas ingleses, composto de 41 famílias, aportou na América sem pretensões de voltar a terra mãe que os maltratara, pelo contrário: diferentemente dos seus antecessores na América, os 102 colonos dessa missão não atravessaram o Atlântico movidos pelo desejo de enriquecer, encontrar novas oportunidades de vida, satisfazer anseios de aventura ou fugir das dificuldades na Inglaterra. Eles enfrentaram o oceano para criar o reino de Deus na Terra. (SILVA, 2009, p.74) Esta foi a tripulação que esteve a bordo do lendário Mayflower e invocou Deus como testemunha no pacto para criação da nova comunidade em terras americanas. Durante a travessia marítima, os fiéis se comprometeram com uma estruturação sociopolítica baseada em leis “justas e iguais” a partir dos ensinamentos da Igreja e da Bíblia. (SILVA, 2009, p. 75). Não à toa que mesmo autores como Schlesinger (1992, p. 15), por exemplo, que reconhecem a existência dos fatores seculares como base do excepcionalismo, destacam a centralidade de sua dimensão religiosa. Ao tratar do providencialismo como uma “contratradição” que complementa de modo decisivo o “experimentalismo” dos pais 20 fundadores, ele identifica que, para os norte-americanos, “o fato de que Deus tivesse preservado os Estados Unidos por tanto tempo - até que a Reforma purificasse a Igreja, até que a invenção da imprensa divulgasse a Escrita entre o povo - era a indicação segura de que ele vinha reservando a nova terra para alguma demonstração final da sua graça”. Diante destas características é possível compreender também as razões que fizeram da sociedade americana extremamente moralista. Como bem pontuou Lipset (1996, p. 225-226, tradução nossa), “controvérsias políticas e sociais são mais propensos, nos EUA, a serem percebidas como questões morais inegociáveis do que como conflitos de interesse material que podem ser comprometidos”. Diferente do que ocorre em outros países igualmente industriais, boa parte das discussões relacionadas à contracepção, aborto e direitos dos homossexuais, por exemplo, estão acentadas em bases religiosas. Neste sentido, também sua política externa está permeada de um sentido de “missão”, de modo que o próprio engajamento dos Estados Unidos em conflitos externos tem sido, desde então, acompanhado de uma retórica que coloca o senso de “dever” a frente de razões materiais mais imediatas (LIPSET, 1996). Tecidas tais considerações descritivas e teóricas sobre o excepcionalismo per se, na próxima seção será debatida a relação que se pode estabelecer, no marco das RI, entre ideias e política externa. Espera-se que, somando as duas dimensões, seja possível ter embasamento para as análises a serem realizadas nos próximos capítulos. 2.3 Ideias e Política Externa: consolidação do marco teórico Refletindo sobre a sociedade americana, Huntington afirmou em The Soldier and the State (1957) que, enquanto tradição dominante, o liberalismo representaria, nos EUA, uma espécie de ideological constant, uma vez que se manifestaria em todo tipo de ação e escolha daquele povo. Ao trazer o debate para o campo das relações internaiconais, por sua vez, este trabalho pretende - analogamente - atribuir tal sentido ao excepcionalismo, aqui entendido como peça central para compreender a formulação da política externa do país. Em face desta proposta, portanto, mais do que conhecer detalhadamente as componentes constitutivas e lógicas do excepcionalismo, é fundamental também esclarecer qual o parâmetro analítico embasará a discussão. Esta é a função deste item. 21 Muito antes de tornar-se uma discussão própria de Relações Internacionais, o embate entre correntes racionalistas e subjetivistas permeou áreas como a Filosofia e as Ciências Sociais, firmando-se como um dos grandes enfrentamentos ideológicos a se assentarem sobre o campo das humanidades. Não à toa é que de René Descartes5 a Herbert Simon6 tanto as motivações individuais quanto o processo de tomada de decisão passaram a compor o hall mais nobre dos estudos ligados ao comportamento social e político em geral. Muito embora a discussão em torno dos fatores ideacionais seja ampla e perpasse diversas searas também da literatura específica, incluindo desde leituras realistas até análises pós-positivistas, em boa parte das vezes verifica-se que a preocupação central dos autores está apenas em reforçar a importância deste tipo de abordagem, escapando-lhes, consequentemente, uma dimensão analítica fundamental para a análise: a causalidade. Trata- se, para além de demonstrar a relevância dos fatores ideacionais, de desenvolver um método de averiguação que apresente instrumentos capazes de dimensionar como, efetivamente, elementos subjetivos são impressos aos planos de ação política. Neste sentido, interessam não apenas as fontes das ideias e as estruturas que as moldam, mas também o fato de funcionarem, muitas vezes, como “variáveis intervenientes entre poder/interesse e resultados políticos” (cf. JESUS, 2009). Considerando, portanto, a necessidade de explorar tal ligação, esta pesquisa apega-se a reflexão proposta por Goldstein e Keohane (1993) em seu clássico Ideas and Foreign Policy. Nesta obra os autores discutem de que modo crenças mantidas por indivíduos ajudam a explicar os resultados políticos do Estado, particularmente aqueles relativos ao desenho de sua política externa. Tal publicação, deste modo, vai além de outras obras na medida em que busca discutir os efeitos das ideias, ou seja, como as ideias importam e não simplesmente se as ideias importam7. 5 Filósofo e pai da doutrina em prol do racionalismo lógico no período da Idade Média. De seu nome deriva a expressão “cartesiano”, para referir-se a processos lineares dotados de objetividade. 6 Criador do conceito de “racionalidade limitada”, o autor recebeu o prêmio Nobel de Economia 1978. Mesmo sem dedicar-se a questões cognitivas, sua proposição teórica visava substituir o paradigma clássico de que o processo decisório deveria ser pautado na racionalidade absoluta, uma vez que esta levaria necessariamente à maximização e otimização dos resultados. De acordo com sua percepção, a racionalidade humana encontrar-se-ia constantemente cerceada por fatores exógenos, como a falta de informações suficientes ou de tempo hábil, o que conduziria, segundo ele, à busca de resultados que fossem simplesmente suficientemente satisfatórios. 7 Outras leituras sobre a relação entre ideias e política externa podem ser encontradas tanto na literatura tradicional de Teoria de Relações Internacionais (MORGENTHAU, 1978; MARX, 2008; WENDT, 1992; ONUF, 1998; LAPID e KRATOCHWIL, 1996; WALKER, 1993; CAMPBELL, 1998 e HANSEN, 2006) quanto no campo de Análise de Política Externa (SNYDER et al, 1961; SPROUT e SPROUT, 1961; HOLSTI, 1962; BRECHER, 1972; JANIS, 1982; CARLSNAES, 1986; HUDSON, 2005; JERVIS, 1976; HERZ,1994; GEORGE, 1979 e AXLROD, 1976) . Tais abordagens variam ontologica e epistemologicamente e trabalham com interpretações bastante variadas em si. Apesar da riqueza explicativa que sugerem, no entanto, não são 22 Tal interpretação faz questão de destacar que, de modo algum, são as ideias, no lugar dos interesses materiais, que movem o mundo, mas - na linha weberiana - que ideias tanto quanto interesses têm importância na explicação das escolhas humanas (GOLDSTEIN e KEOHANE, 1993). Ao citar um paper apresentado por Barry Buzan durante uma conferência anual da International Studies Association, inclusive, Fonseca (2007) faz coro à esta reflexão no que diz respeito à realidade norte-americana, em particular, ao dizer que o excepcionalismo “pode importar tanto quanto os interesses materiais que porventura conduzam o país a essa ou àquela posição”, já que, segundo o autor, ele é relevante não apenas porque a reivindicação norte-americana a uma postura de superpotência repousa em sua posição social e cultural”, mas também porque a forma como o país determina seu comportamento internacional (o uso de persuasão em lugar de força, do soft power em lugar do hard power, etc) é definida não apenas em razão dos interesses em jogo, mas também da maneira como o país percebe a si mesmo, seu lugar no mundo, sua “missão (FONSECA, 2007). Ao posicionarem sua abordagem em meio às demais tradições analíticas, Goldstein e Keohane (1993) constatam que “os racionalistas explicam o comportamento dos decisores com base na ‘antecipação racional’ ou na ‘seleção natural’, [fazendo com que] no extremo, essa leitura veja ideias como simples ganchos [...] sem nenhum papel causal”. Ao discordarem desta leitura, portanto, eles afirmam que, no limite, mesmo que os interesses sejam entendidos como logicamente formulados e anteriores a qualquer crença dos atores, não há como negar o papel das ideias, já que sua definição parte da percepção dos indivíduos visando atingir os seus fins. As ideias, portanto, ajudariam a ordenar o mundo moldando agendas e, porque não, alterando os resultados, uma vez que definiriam os parâmetros para a tomada de decisão (GOLDSTEIN e KEOHANE, 1993). Neste mesmo sentido, Goldstein e Keohane (1993) também fazem questão de diferenciar seu pensamento das abordagens psicológicas e cognitivas. Apesar de reconhecerem a importância deste tipo de leitura, os autores destacam que estão mais preocupados com os efeitos das ideias do que com suas fontes. Este também é o caso da pesquisa que ora se apresenta. Ao debruçarem-se com maior acuidade sobre o que são as “ideias”, portanto, Goldstein e Keohane (1993) distinguem-nas em três categorias. Para os autores, exploradas neste pesquisa, uma vez que a análise aqui empreendida é favorecida pela abordagem de causalidade de Goldstein e Keohane (1993). 23 ideias servem para guiar o comportamento sobre condições de incerteza, para estipular padrões causais ou para proporcionar constrangimentos éticos e motivações morais para a ação. Ideias podem ser amplas ou limitadas; elas podem estipular o que é correto e o que é errado, propor novas visões sociais, ou simplesmente sugerir qual política econômica deverá guiar a nação para um aumento de seu bem-estar (GOLDSTEIN e KEOHANE, 1993, p. 09, tradução nossa). No primeiro dos blocos enquadram as chamadas “visões de mundo” que, segundo eles, estão ligadas ao simbolismo da cultura e afetam a compreensão dos indivíduos sobre questões profundas como cosmologia, ontologia e ética. Consideradas o tipo ideacional que tem impacto mais amplo sobre a vida social, as visões de mundo estariam conectadas à concepção de identidade e envolveriam emoções e vínculos de lealdade (GOLDSTEIN e KEOHANE, 1993). Na segunda categoria de ideias, por sua vez, os autores colocam as chamadas “crenças baseadas em princípios”. Neste caso, estão em pauta elementos normativos que definem critérios capazes de rotular “o certo”, “o errado”, “o justo” e o “injusto”. Geralmente justificados em termos de ideias mais amplas, elas encontram-se entre “visões de mundo” e “conclusões políticas particulares”, traduzindo doutrinas em guias para a ação humana. É importante lembrar que este tipo de ideia pode implicar, eventualmente, em guinadas morais e afastar-se de interesses exclusivamente materiais e de poder, como será notado em relação ao excepcionalismo mais adiante (GOLDSTEIN e KEOHANE, 1993). Na última camada, finalmente, são pontuadas as “crenças causais”, ou seja, ideias que envolvem relações entre causa e efeito e da qual a legitimidade deriva, em geral, de autoridades reconhecidas como a ciência ou religião, por exemplo. Este tipo de crença é responsável por direcionar os indivíduos sobre como atingir os seus objetivos. Nas palavras dos autores, “crenças causais implicam em estratégias para a conquista de objetivos, por si só mensurados em função de “crenças baseadas em princípios” compartilhadas e compreendidas apenas no contexto de visões de mundo mais amplas” (GOLDSTEIN e KEOHANE, 1993). Ao pensar sobre os impactos das ideias na política governamental, por sua vez, os autores sugerem três caminhos causais para explicar como ideias influenciam ações. São eles:  quando funcionam como roteiros que afetam a percepção dos atores sobre seus objetivos e determinam a lógica a ser seguida em contextos de incerteza. Neste sentido, sugerem padrões e oferecem motivações (muitas vezes morais e éticas) 24 para as ações. Como disseram os autores “ideias podem ser amplas ou restritas; podem estipular o que é certo ou errado, prover novas visões sociais ou meramente sugerir qual política econômica conduzirá uma nação ao aumento do seu bem- estar”, o fato é que ao selecionadar uma ideia, o ator desconsidera outras possibilidades de interpretação da realidade, ou, no mínimo, menospreza as demais alternativas (GOLDSTEIN e KEOHANE, 1993).  quando funcionam como pontos focais, ou “colas”, afetando a capacidade de coordenação dos indivíduos para criar soluções eficientes em face de situações estratégicas em que não há um único equilíbrio. Em termos simples, isso que significa que, em face de um amplo leque de resultados viáveis, o papel das ideias é ajudar a selecionar determinadas estratégias que passam a ser depositárias de expectativas específicas (GOLDSTEIN e KEOHANE, 1993).  quando são incorporadas às instituições políticas levando à alterações de agências administrativas, regras, normas e procedimentos de operação existentes, afetando, consequentemente, desenhos organizacionais pré-estabelecidos (GOLDSTEIN e KEOHANE, 1993). Partido destas classificações, portanto, assume-se, neste estudo, que embora sirva-se eventualmente, de ideias causais e produza visões de mundo, o excepcionalismo corresponde, sobretudo, a uma crença baseada em princípios, no caso seculares e religiosos, como discutido ao longo da seção anterior. Ademais, é importante esclarecer que, por limitações de ordem prática, tal pesquisa pretende analisar a implicação desta ideia apenas a partir de seu impacto nos roteiros decisórios, a primeira das três opções apresentadas pelos autores, privando-se de uma discussão mais rigorosa no que tange a sua repercussão na coordenação de pontos focais ou na estruturação de instituições existentes. A Figura 01, abaixo, busca sistematizar a proposição teórica dos autores. 25 Figura 1 – O modelo analítico de Goldstein e Keohane e o desenho da pesquisa Fonte: Elaborado pela autora. É verdade que uma série de desafios metodológicos são impostos quando o assunto é aplicar a leitura de Goldstein e Keohane (1993), a começar pelo fato de que os autores não descrevem os instrumentos pelos quais os fatores ideacionais podem ser percebidos e elencados. Ao terem proposto mais uma teoria do que uma metodologia propriamente dita, fica a critério de seus intérpretes lançar mão de ferramentas, como ou análises bibliográficas ou documentais, por exemplo, para denunciar sua presença. Neste mesmo sentido, como criticou Wendt (1999), os autores tão pouco exploram suas fontes e processos de constituição. Apesar dos reconhecidos limites e críticas, no entanto, ao adotar como guia analítico as proposições supramencionadas, no entanto, este trabalho entende como vantagens desta abordagem, em primeiro lugar, o fato de que ela parece aceitar, com típica roupagem liberal, a ideia de que o comportamento da máquina do Estado pode ser entendido a partir do estudo rigorso de suas engrenagens domésticas. Neste sentido, o Estado não é visto como uma unidade política que simplesmente “paira no ar”, mas como uma entidade que define suas preferências de acordo com aqueles que o compõe. 26 Em seguida, destaca-se também o fato de que tal vertente permite que ideias e fatores materiais dialoguem entre si e sejam vistos como fatores que constituem mutuamente o interesse nacional. Diferente das interpretações que advogam em favor de uma ou outra como forças motrizes exclusivas da ação humana, Goldstein e Keohane (1993) propõem uma espécie de resgate sociológico que as associa definitivamente. Finalmente, como a apresentação da obra já sugeriu, a proposta destes autores trabalha com as relações causais que unem ideias e ações, método condizente com a estratégia perseguida pela pesquisa ora empreendida e fundamental para apoiar a hipótese então proposta. 27 3. EXCEPCIONALISMO E ENGAJAMENTO: A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA ENTRE 1917 E 1920 Todos os homens consideram os limites do seu campo de visão como os limites do mundo. (Arthur Schopenhauer) Uma vez reconhecidas as origens da crença no excepcionalismo, suas fontes e a possibilidade, do ponto de vista teórico, de utilizá-la como elemento de compreensão da política externa dos EUA, este capítulo pretende, por sua vez, investigar de que maneira tal ideia manifestou-se durante o governo Woodrow Wilson, quando, nas palavras de Kissinger (1994), o país teria sido inserido na chamada “arena da política mundial”. Wilson assumiu a presidência em 1913, quando tinha 57 anos de idade e, durante seu governo, inaugurou-se no país - particularmente após 1917 - uma nova doutrina de política externa que ficaria conhecida por seu caráter “liberal internacionalista” (cf. NASSER, 2010). É verdade que a literatura especializada costuma reconhecer Theodore Roosevelt como o primeiro dos “arquitetos da política externa” a incentivar a abertura do país a assuntos estrangeiros, bem como seu comprometimento internacional (cf. NASSER, 2010). Tido como o mais jovem presidente dos EUA, o republicano destacou-se, entre 1901 e 1909, em função da política que mais tarde seria batizada com seu próprio sobrenome, o chamado Corolário Roosevelt - um postulado que, associado a princípios da Doutrina Monroe e à diplomacia do “Big Stick” - oficializava a pré-disposição dos norte-americanos em intervir nos assuntos de outros países, particularmente da América Latina, a fim de “assegurar a ordem” e fazer cumprir quaisquer obrigações econômicas que pudessem ter assumido8. Apesar da demonstração de ambição hemisférica e do indiscutível significado histórico representado por esta administração, no entanto, há um relativo consenso entre os estudiosos no sentido de admitir que apenas a partir de 1917, já sob o marco da Primeira 8 Em seu discurso do State of the Union dirigido ao Congresso norte-americano em 06 de dezembro de 1904, Roosevelt (1904) disse: “Any country whose people conduct themselves well can count upon our hearty friendship. If a nation shows that it knows how to act with reasonable efficiency and decency in social and political matters, if it keeps order and pays its obligations, it need fear no interference from the United States. Chronic wrongdoing, or an impotence which results in a general loosening of the ties of civilized society, may in America, as elsewhere, ultimately require intervention by some civilized nation, and in the Western Hemisphere the adherence of the United States to the Monroe Doctrine may force the United States, however reluctantly, in flagrant cases of such wrongdoing or impotence, to the exercise of an international police power”. 28 Guerra Mundial, que os EUA consolidaram efetivamente o caráter internacionalista de sua política externa. Neste sentido, ao decidir em favor da entrada do país no conflito, o governo de Woodrow Wilson teria sido responsável por inaugurar um novo paradigma da política externa americana: o chamado “idealismo wilsoniano”, como ficou conhecida sua doutrina, que contrapunha-se ao pragmatismo anteriormente empregado por Theodore Roosevelt (NASSER, 2010; KISSINGER, 1994). No poder, Wilson privilegiou a agenda global dos EUA em detrimento de seus assuntos domésticos e, conforme apontou McDougall (1997, p. 126, tradução nossa), “pôde exercer poder e pregar princípios muito mais fora do que dentro do país”, além de, nas palavras de LaFeber (1994), ter investido em condutas de natureza ativista e intervencionista, valorizando o tom moralista em boa parte de seus discursos. Por compartilhar desta percepção, não à toa, esta pesquisa refere-se a este período como aquele que demarca o início do “engajamento” norte-americano nos assuntos internacionais. Logo nos primeiros dias de governo, a “diplomacia missionária” na Ásia9 reverteu a “diplomacia do dólar”10 praticada anteriormente por William Taft e a chamada Declaration of Policy in Regard to Latin America, de março de 1913, denotou o recrudescimento do imperialismo progressista na região, especialmente no relacionamento com o México - com quem a administração de Wilson manteve um contato permanentemente instável - e no tratamento de países como Haiti e Nicarágua, que foram imediatamente nomeados protetorados militares dos EUA. Isso para não mencionar, no plano sistêmico, a estratégia para lidar com o conflito que assolava sobretudo o continente europeu e ansiava pelo envolvimento definitivo dos EUA, cuja participação contou com a política de neutralidade entre 1914 e 1917 com base no bordão “paz sem vitória” (cf. MCDOUGALL, 1997). Ao longo dos quase dez anos em que esteve a frente do governo americano, Woodrow Wilson conduziu uma política externa marcada pela força dos valores liberais e carregada de um sentimento missionário ancorado sobre a crença no excepcionalismo da América. Não à toa, o presidente chegou a incentivar a criação de uma ordem internacional baseada na democracia, na segurança coletiva e na autodeterminação dos povos - princípios domésticos tradicionalmente defendidos pela sociedade americana. 9 Conforme registrou McDougall (1997), o governo de Wilson declarava, neste sentido, sua intenção de “ajudar a China de uma maneira melhor”. 10 Cunhado originalmente pelo presidente Taft, no início do século XX, o termo “diplomacia do dólar” remete à estratégia dos EUA para promover os interesses norte-americanos na América Latina e Ásia por meio de empréstimos concedidos e do aprofundamento dos laços de dependência econômica entre os países. 29 Nas próximas seções, portanto, pretende-se debater - à luz das componentes clássicas do excepcionalismo - dois momentos centrais da política externa do governo Woodrow Wilson: a decisão de participar da Primeira Guerra Mundial e a proposta de reordenamento do mundo pós-conflito, com a negociação do Tratado de Versalhes. 3.1 1917: uma guerra pela democracia Encerrando o período conhecido como “Belle Epóque”, que estendia-se desde fins do século XIX na Europa, o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, possível herdeiro do Império Austro-Húngaro, deflagrou, em 1914, o estopim para o conflito que entraria para a história sob o estigma de Primeira Guerra Mundial. Contrapondo, de um lado, a chamada Tríplice Aliança - formada por Alemanha, Império Austro-Húngaro e Itália - e, de outro, a Tríplica Entende - composta por Rússia, França e Inglaterra -, o enfrentamento das potências europeias, que envolvia disputas imperialistas e alianças militares, representou o esgotamento definitivo do princípio de “Paz Armada” que havia vigorado no continente desde o Congresso de Viena, em 1815. Assim, ao mesmo tempo em que notava-se a ascensão paulatina de regimes autoritários na Europa e a intensificação da corrida armamentista entre os países, entrava em crise, naquele momento, o paradigma que havia visto no balanço de poder uma estratégia eficiente para inviabilizar conflitos. Do outro lado do Atlântico, por sua vez, os EUA procuraram, enquanto fosse possível, não participar diretamente do confronto. Enquanto os europeus protagonizavam a guerra mais devastadora de que já se havia tido notícia, a realidade na América era particularmente outra. A intensa imigração do início do século havia levado à formação de grandes centros urbanos, ao mesmo tempo em que denotava-se o surgimento de movimentos socialistas, sindicais e feministas; questões novas e urgentes a serem administradas no país (KARNAL et al, 2007). Além disso, difundiam-se, na sociedade americana, práticas que mais tarde caracterizariam o conceito de “darwinismo social”11, que trata da crença de que a competição entre grupos de uma mesma sociedade conduziria tal sociedade naturalmente ao progresso, na medida em que os grupos mais fortes suplantariam os grupos considerados inferiores (KARNAL et at, 2007). 11 Para mais informações sobre esta temática, recomenda-se a leitura de HOFSTADTER, 1992. 30 A estabilidade política e a prosperidade econômica, que fariam dos EUA a maior potência mundial ainda no final da mesma década - quando consolidaria-se o poder de Wall Street - inclusive, alimentavam o sentimento nacionalista daquele povo e, sem surpresa, a administração Wilson somava esforços no sentido de enaltecer as liberdades individuais de seus cidadãos dentro e, principalmente, fora do país. Inúmeras ameaças e interesses de ordem material haviam clamado pelo engajamento dos EUA no decorrer dos primeiros três anos do conflito. Em 24 de março de 1916, por exemplo, um submarino alemão havia afundado uma embarcação francesa e ferido uma série de cidadãos norte-americanos. O episódio teve grande repercussão e fez com que até mesmo membros do gabinete como Robert Lansing, então Secretário de Estado dos EUA, e Edward Mandell House, diplomata, político e conselheiro presidencial, declarassem-se favoráveis à severas restrições contra os países do Eixo (cf. LAFEBER, 1994). No entanto, embora eventos desta natureza tenham feito com que a pressão interna crescesse sobre o governo democrata, e particularmente sobre o presidente Wilson12, eles não foram suficientes para que os EUA intervissem; ao contrário disso, a administração seguiu propagando o discurso de que a paz apenas poderia ser alcançada por meio da neutralidade americana. A observação atenta do processo que levou os EUA à guerra, na verdade, revela o desconforto contínuo de Woodrow Wilson em aceitar a participação dos americanos no combate. Entre 1914 e 1917, o que a literatura revela é a imagem de um presidente que insiste na conduta da neutralidade e que tenta liderar o que chamou de “paz sem vitória”, mesmo quando foi pressionado politicamente no plano doméstico ou ridicularizado mundo afora13 (LAFEBER, 1994). Reeleito anos antes sob o bordão “he kept us out of war”, até fevereiro de 1917 Wilson ainda mantinha a mesma postura, chegando a dizer a seu gabinete que “provavelmente a verdadeira justiça apenas seria feita se o conflito terminasse com um empate” (cf. LAFEBER, 1994). Como bem lembrou McDougall (1997, p. 132, tradução nossa), nem mesmo o prejuízo causado ao comércio americano pareceu suficiente para conduzir os EUA à guerra. A decisão 12 É importante lembrar que, no plano legislativo, a resistência de Wilson refletia a tentativa de administrar o racha existente entre um forte grupo anti-guerra encabeçado por progressistas como os senadores republicanos Robert La Follette e William Borah, e os críticos mais severos ao governo, Theodore Roosevelt e Henry Cabot Lodge, que pediam guerra desde 1915. 13 Os registros de LaFeber (1994) apontam que Wilson chegou a ser considerado “um pedante tentando mediar a guerra e manter a neutralidade”, neste período. Neste sentido, por exemplo, o britânico George Otto Trevelyan, chegou a dizer que era uma piada pedir, depois de três anos de conflito, que os dois lados abaixassem suas armas e simplesmente aceitassem aos princípios americanos; Anatole France, autor francês, por sua vez, afirmou que “paz sem vitória” era o mesmo que “pão sem fermento” ou “camelo sem corcunda”. 31 de enfrentar os campos de batalha teria envolvido, sobretudo, uma componente ideológica relacionada à maneira como os EUA percebiam seu papel no mundo. Neste sentido, a entrada dos americanos na Primeira Guerra só tornou-se realidade efetiva quando percebeu-se que princípios tipicamente defendidos pelo país, especialmente relacionados à tradição liberal, poderiam ser