UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “Julio de Mesquita Filho” Instituto de Artes – Campus São Paulo CAMILA FELTRE Processo de criação de livros como travessia/formação: encontrando narrativas de si São Paulo 2022 CAMILA FELTRE Processo de criação de livros como travessia/formação: encontrando narrativas de si Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes, com a área de concentração em Arte e Educação, na linha de pesquisa Processos artísticos, experiências educacionais e mediação cultural do Instituo de Artes Universidade Estadual Paulista (Unesp) como requisito parcial para obtenção do título de doutora em Artes, sob a orientação da Profa. Dra. Rejane Galvão Coutinho. São Paulo 2022 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. F328p Feltre, Camila, 1988- Processo de criação de livros como travessia formação: encontrando narrativas de si / Camila Feltre. - São Paulo, 2022. 241 f.: il. color. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rejane Galvão Coutinho Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Livros de artistas. 2. Criação (Literária, artística, etc.). 3. Comunicação escrita. 4. Artesanato. I. Coutinho, Rejane Galvão. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 741.64 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 CAMILA FELTRE Processo de criação de livros como travessia/formação: encontrando narrativas de si Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes, do Instituto de Artes da Unesp, como requisito parcial para obtenção do título de doutora em Artes. Tese aprovada em: 16/12/2022. Banca examinadora: ___________________________ Profa. Dra. Rejane Galvão Coutinho Instituto de Artes/Unesp – Orientadora ___________________________ Profa. Dra. Ângela Castelo Branco Teixeira A Casa Tombada ___________________________ Profa. Dra. Edith Derdyk A Casa Tombada ___________________________ Profa. Dra. Hanna Talita Gonçalves Pereira de Araújo Universidade Federal do Acre ___________________________ Profa. Dra. Priscila Leonel de Medeiros Pereira Universidade de São Paulo Às minhas Maria(s), mãe e filha AGRADECIMENTOS Começo este texto ecoando com as vozes que estão comigo nesta jornada. Ou seja, as minhas palavras nada seriam, este trabalho não existiria se não contasse com o coletivo de pessoas que me acompanham, suas vozes, seus gestos, seus dizeres, seus olhares, suas vidas. Nada poderia dizer sobre um caminhar compartilhado sem referenciar minha mestra Rejane Coutinho, que me ensina sobre ser professora nos imensos e sutis gestos compartilhados nos momentos em que estamos juntas, sobre o que é uma orientação generosa, sua abertura em acolher os meus processos e inquietações e sua postura que tanto me inspira na busca como orientadora das e dos estudantes que tenho a alegria de acompanhar. Agradeço imensamente à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, pelo apoio com uma bolsa nesses quatro anos de doutorado, sem a qual seria muito difícil conciliar a pesquisa com a vida. Esta escrita nada seria sem a voz de Luiza Christov, uma voz “des- umbigada”, de uma escrita-experiência, que me encoraja a escrever em primeira pessoa e a fabular um texto acadêmico. Com quem eu tive a honra da companhia durante o mestrado e na banca de qualificação do doutorado. Esta pesquisa acontece no constante fazer que tenho com a minha grande amiga Cristiane Rogerio, com quem compartilho a experiência de ser professora, de ser coordenadora, de criar diálogos com as e os estudantes, de inventar e reinventar um curso. Que me faz “re-apaixonar” pelos livros toda vez que abre um. Uma grande parceira que a vida me deu na caminhada que escolhi percorrer. Agradeço à Ângela, companhia-presente que me convidou a olhar para a escrita como risco e ver o fazer livro como gesto. E que me abriu horizontes para pensar no meu próprio gesto como educadora, artista e pesquisadora, estando presente na minha banca de qualificação e de defesa da tese. À Priscila Leonel, companheira de pesquisa e frutíferas conversas desde nossa convivência no grupo de estudos do Instituto de Artes da Unesp. Agradeço por compor a minha banca e pela leitura desta tese. À Hanna Araujo, amiga que compartilha o universo dos livros e da pesquisa desde 2012. Tive o privilégio da sua leitura e contribuição na minha banca de doutorado. Às muitas professoras e professores que tive a honra de conviver como estudante. À Edith Derdyk, que, na minha trajetória estudando livros e livros de artista, foi sempre fonte de pesquisa, com quem tive a honra de estar mais próxima nos últimos anos por conta da pós-graduação n’A Casa Tombada e agora posso contar na finalização deste percurso, compondo a banca. À Casa Tombada, como entidade, lugar de morada, onde encontrei quintal para florescer. Uma casa que tem lugar para café com bolo, cuidado, afeto e conversa. Agradeço ao Giuliano Tierno e à Ângela Castelo Branco por inventarem e lutarem, com amor e ética, para o mundo ter um lugar assim, em que a pesquisa e o conhecimento é experiência de mundo. À Letícia Liesenfeld, Flávia Giacomini, Rita Leite e a todos que cuidam para que esse lugar seja sempre casa. Agradeço imensamente a todas e todos os estudantes e participantes dos cursos de pós-graduação, oficinas, encontros e percursos inventados, tendo a consciência de que esta pesquisa é uma construção coletiva daqueles que cruzaram o meu caminho e me ensinaram sobre o que pode ser esse “fazer livro” e “fazer escrita”. Agradeço a disponibilidade à experiência das propostas, por aceitarem o risco, se encontrarem com o não saber e o imprevisível que os convites convocavam. À comunidade d’O livro para a infância e tudo o que aprendi com vocês que viraram parceiras e amigas: Liliana Pardini, Suzana Buccalon, Anna Luiza Guimarães, Mariana Amargós, Lolla Angelucci, Fernanda Ozilak, Gabriela Esteves e tantas outras. À Ananda Luz, esta amiga sabida que a pós me apresentou e que é companheira fundamental nesta pesquisa e na minha vida. Ao Aurélio de Macedo, pela revisão do texto de forma generosa que ampliou ainda mais meu olhar para o trabalho. E à Thaís Dols, pela contribuição na elaboração do resumo em inglês. À Fabiana Lorenzeti, pelas inúmeras conversas durante o processo de pesquisa, sempre gentil e generosa em me acolher, e que ajudou muito no processo de pensar a encadernação deste trabalho. À Babi, Barbara Melo, que me apresentou o rasgo como linguagem artística e me ajudou a olhar para o trabalho em vários momentos. À Marília Carvalho, educadora parceira que esteve presente em diversas situações no fazer livro em coletivo. Aos colegas do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Imagem, História e Memória, Mediação, Arte e Educação (GPIHMAE): Felínio Freitas, Auana Diniz, Camila Lia, Patrícia Marchesoni, Thelma Lobel, Lucas Oliveira, Fabiana Petroni, Rodrigo Lopes, Amanda Midori, Sidiney Peterson, Valéria Alencar, Moa Simplicio, entre tantos outros, e à professora Rita Bredariolli, que em vários momentos da pesquisa mostraram caminhos possíveis. Aos colegas que participaram do Grupo Focal: Maristela Rodrigues, Thales Vasconcelos, Líllian Araújo e Liliana Pardini e professores que cederam a entrevista: Núbia Najar e Alberto Roiphe. À Andrea Rocha e Renata Oliveira, parceiras de tantas vivências com crianças que me fizeram artista-educadora. Às amigas Elizabeth Romani, Diana Tubenchlak e Flora Fiqueiredo. Às amigas de infância que não me deixaram esquecer minha história: Gabriela Furtado e Gisele Witt Said. E à família que sempre esteve comigo, torcendo: tia Mariinha, tia Salete, tia Sandra, tia Celina, Nícia, Ary, Cema, Roberto. Este trabalho nada seria sem os afetos todos que me atravessam desde a infância, ou a partir dela. Tudo que aprendi com os gestos da minha família estão presentes de alguma forma nesta pesquisa. Dos meus avós, os gestos de amor, apoio e a nossa convivência, da minha mãe, Maria José Pulini Feltre, carrego os fazeres que compartilhamos juntas: amassar a argila, fazer a própria massinha de modelar, bater o bolo, sovar o pão. Do meu pai, Tarcísio Feltre, lembro dos gestos de trançar o cabelo com os dedos ainda a estralar. E da minha irmã, Gabriela Feltre, o abraço sempre. Ao Arthur Arruda, meu amor, que compartilha o fazer do nosso dia a dia. Foi quem sempre esteve ali, colocando o dedo para dar o nó nas costuras para este trabalho, em vários sentidos. E que agora compartilha do nosso devir maior: sermos pai e mãe da nossa Maria. Sempre acreditei que qualquer pessoa pode ser um artista em seu ofício, talvez porque a natureza da arte venha menos do “o que” se faz e mais do “como” se faz algo. A lavadeira ensaboando as roupas no tanque, o guarda de trânsito acenando para os carros, a secretária batucando no teclado do computador — todos podem exercer suas atividades com a mesma intensidade que caracteriza o que chamamos de arte, apenas pela maneira de se entregarem a elas. Arnaldo Antunes RESUMO Este trabalho investiga os processos de criação de livros como espaços de formação. O que se aprende fazendo livros? A partir de encontros em contextos culturais e educativos como aulas, oficinas, ateliês, observando e atuando como educadora, convido as e os estudantes e participantes a criarem livros, passando pela experiência de um fazer que envolve as mãos e o corpo todo. Para acompanhar esses processos – do que eu via e vivia –, também passei a propor escritas para que as e os estudantes pudessem narrar suas experiências. Essas me deram a ver o processo de criação de livros sob outras perspectivas, além de perceber a própria escrita como linguagem poética. Assim, este livro-tese é construído no encontro e na costura desse coletivo de vozes – que estudam, fazem livros, escrevem sobre si – em conversa com professoras que foram marcantes na minha trajetória, além de autoras e autores e aqueles que me fizeram companhia nessa pesquisa-travessia. Ao longo do texto, apresento alguns experimentos artísticos em formato de vídeos, livros, ensaios visuais e convido à fruição das cartas escritas pelas estudantes e lidas em voz alta para esta pesquisa. Arrisco nomear o processo de criação como travessia, em que cada uma e cada um percorre um caminho em busca de encontrar a si. Palavras-chave: processo de criação; livros; fazer à mão; formação; coletivo; experiência; travessia. ABSTRACT This paper investigates the processes of bookmaking as spaces of formation. What can be learned by making books? From meetings in cultural and educational contexts such as classes, workshops, ateliers, observing and acting as an educator, I invite students and participants to create books, going through the experience of a making that involves the hands and the whole body. To accompany these processes - of what I saw and lived - I also started to propose writings so that the students could narrate their experiences. These allowed me to see the bookmaking process from other perspectives, besides perceiving writing itself as a poetic language. Thus, this book-thesis is built on the encounter and the sewing of this collective of voices - who study, make books, write about themselves - in conversation with teachers who have been remarkable in my trajectory, in addition to authors and those who kept me company in this research-crossing. Throughout the text, I present some artistic experiments in the form of videos, books, visual essays, and I invite you to enjoy the letters written by the students and read aloud for this research. I venture to name the creation process as a crossing, in which each and every one travels a path in search of finding oneself. Keywords: creation process; books; handmade; formation; collective; experience; crossing. 1 As imagens que produzi durante a pesquisa: fotografias a partir de composições, sobreposições e investigações sobre o rasgo não terão legenda ao longo do trabalho para não interromper o fluxo e a sua fruição do texto. São todas de minha autoria e falarei sobre essas composições em “Encontros com a minha escrita-criação”. Todas elas serão numeradas sequencialmente junto com as outras imagens que fazem parte deste trabalho e as informações sobre cada uma estarão em Anexos, no “Índice de imagens”. SUMÁRIO ABERTURAS Carta à Maria José, minha mãe Carta ao mundo – Declaração de amor à pesquisa e ao conhecimento como experiência de mundo Carta às estudantes e participantes dos encontros Carta de Ana Carvalho ÁGUAS QUE CORREM COM A PESQUISA A pesquisadora e seus movimentos nas águas da pesquisa As águas e o rio como metáfora da pesquisa Os encontros de criação como fonte de saberes VESTÍGIOS DA PESQUISA: A PRODUÇÃO DE SENTIDOS Os achados da pesquisa e o que encontrei no caminho As cartas Os relatos Cartas – Escritas trocadas Vozes em choque – Grupo Focal Conversa com professores propositores de criação de livros Caderno de anotações Produção de imagens Grupo de pesquisa sobre processos de criação Carta à Rejane – Companhia nesta pesquisa-travessia Carta à Cris – Uma criação em parceria Carta de Vilma Ribeiro CARTA À(S) MÃO(S) – E o que eu aprendi sobre o fazer, fazendo esta pesquisa Carta de Fernanda Ozilak Entre o pensamento e a ação – Há mesmo distinção? Carta de Gabriela Esteves Ribeiro 14 14 18 26 37 40 40 47 49 57 57 58 62 64 65 68 70 70 73 75 78 91 93 101 103 109 Carta de Isabela Miranda Ancestralidade do gesto: as mãos têm memórias? Carta de Laizane Santos de Oliveira Carta de Lígia Maria Pedaços de si – Os materiais e as materialidades Carta de Tatiana Barreto Que livros são esses que as mãos são convidadas a criar? Carta de Nathalia Freire LIVRO-CASA: o que um livro pode abrigar? Quando as mãos encontram livros criam narrativas de si? Carta à Fabi – Ao que escapa às mãos e o que eu aprendi sobre o fazer feito com o corpo todo Carta de Amma Carta à Ângela – Escovando a palavra “gesto” Carta de Carol Fernandes Carta à Ângela no 2 – Quando o fazer livro é gesto Carta de Carolina Cadavid ENCONTROS COM A MINHA ESCRITA-CRIAÇÃO LIVRO-NUVEM e a criação no caos Paredes que falam Palavras nuvens Palavras paisagens Rasgando a escrita O gesto de fazer vídeos Carta de Cristiana Gomes Carta de Jaqueline Ortiz PROCESSO DE CRIAÇÃO DE LIVROS COMO TRAVESSIA O lugar da criação – A criação como lugar Atravessamentos ao fazer livros INFÂNCIA, CRIAÇÃO E SEUS DEVIRES Carta de Claudia Malaco 112 114 119 121 122 125 130 133 135 138 138 143 144 148 150 162 166 169 173 179 182 184 188 194 195 199 199 205 213 213 Carta de Andreia Quaresma Carta de Ananda Luz Carta à Luiza – Processo de criação e as infâncias Carta à Maria, minha filha – Para não encerrar REFERÊNCIAS ANEXOS Anexo 1 – Pessoas que me fazem companhia na pesquisa Anexo 2 – Cartas para serem lidas com tempo Anexo 3 – Índice de imagens Anexo 4 – Termos de autorização 214 215 218 222 225 235 235 238 239 240 14 ABERTURAS Carta à Maria José, minha mãe Conversar com você, mãe, foi o caminho que encontrei para começar esta tese. Você que foi minha primeira professora, que é mestra da minha vida e que abriu os caminhos para que eu pudesse estar aqui hoje, narrando uma trajetória de vida em torno da arte e da educação. Sinto que o ser professora está presente há muito tempo na minha vida. Guardo lembranças das brincadeiras de infância, da grande lousa que o pai trouxe para que eu e minha irmã brincássemos em casa, dos projetos que a escola proporcionava, permitindo que eu, mesmo criança (desde a 4ª série) lecionasse para alunos de outra escola. Essa experiência marcou para sempre o meu percurso. Com 9 anos eu dava aula de inglês e com 12, de desenho. Lembro da sensação de satisfação e alegria ao voltar para casa e desse estado de me sentir contagiada pelo que as pessoas trocavam naquele espaço de tempo. Vivi uma vida vendo você ser professora, o que me abriu caminhos de forma totalmente intuitiva, misteriosa, mas que hoje eu consigo ver o quanto de sua luta me permitiu estar aqui. Assim, mãe, uma pesquisa em que me fortaleço como professora não poderia começar de forma diferente, sem referendar aquela que é minha mestra, e que, como mãe e mulher, me ensinou muito mais do que você podia perceber no dia a dia de sua vida. Mãe, quando li o livro Cartas para minha avó1, de Djamila Ribeiro2, ele me trouxe muitas lembranças, acordou histórias envolvendo você, a minha avó, e que definiram muito quem eu sou hoje e as relações que tenho com as mulheres da nossa família. O que venho contar aqui é como toda a sua trajetória permitiu que eu escrevesse esta carta hoje a você. Nem preciso dizer que é uma forma de agradecer pela sua luta, pela sua caminhada e pela sua vida. 1 Editora Companhia das Letras, 2020. 2 Djamila Ribeiro é filósofa, feminista negra, escritora e acadêmica brasileira. Em 2016 foi nomeada secretária-adjunta de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo e autora do livro Pequeno manual antirracista. Atualmente é colunista do jornal Folha de S.Paulo. 15 Você foi a única dos seis filhos de Maria e Pedro que conseguiu se formar em uma faculdade e vejo o quanto você tem orgulho disso. Lutou contra um mundo inteiro dizendo pra você seguir outro caminho: casar, cuidar da casa, ter filhos. Talvez você também quisesse isso, mas sempre nas suas histórias você conta com orgulho das escolhas que fez e dos sonhos que carrega. Parece que foi uma certa teimosia para conquistar o seu lugar, ou seus lugares. Uma sina das mulheres da família? Seria vislumbrar um caminho que talvez só existisse dentro de si? Vejo você com aquela força que via na vó Maria, que entre uma dureza e uma profunda delicadeza a faziam ser única: com seu típico movimento de mexer os dedos em círculos, ouvia com atenção e paciência, enquanto ficava ali, sentadinha na mesma cadeira da sala, olhando na janela todo mundo que passava, lendo e interpretando o mundo. Lembro das histórias que você conta de uma infância simples, difícil e alegre. Das frutas e legumes que o seu pai trazia do sítio e que compunham as refeições diárias, das brincadeiras com os irmãos, das vendas de paçoca na rua para ganhar algum dinheiro... Uma infância feliz e dura ao mesmo tempo. Com 10 anos foi destinada a cuidar dos sobrinhos para ajudar uma irmã mais velha. Uma fase que conta com tamanha seriedade que até parece fazer parte de uma outra vida, diferente daquela em que brincava de pular cercas e de fazer cócegas com o irmão. O seu tom muda quando fala dessa época e da responsabilidade para uma criança. E o que mais entristece a sua fala é a falta que a escola fez na sua vida: as ausências constantes, o aprendizado que foi interrompido e a lacuna que causou na vida de uma menina. Vejo que tudo isso foi constituindo você, mãe, uma mulher forte, feita pelas asperezas e alegrias da vida. E não tem como falar de mim, do meu percurso como professora sem evocar quem você é. Sem pensar como você me criou e semeou todo o caminho para que eu pudesse estar aqui hoje, nesse papel de pesquisadora, escritora, artista e professora, que era muito um sonho seu também. Para continuar essa história e costurar ainda mais os laços com os meus fazeres, quero contar o orgulho que eu sinto de toda a sua trajetória. Ainda no que chamamos de colegial, você fez curso técnico em enfermagem no período noturno enquanto trabalhava durante o dia. Depois, entrou no curso de biologia 16 em uma cidade próxima de Barra Bonita, onde morava, com a ajuda de algumas freiras que administravam a faculdade. Você sempre traz o que viveu lá, seja nas histórias das viagens de pesquisa de campo, seja nos nomes científicos que exibe quando vê uma árvore. E depois de um tempo chegou perto de fazer mestrado, e conta que amava o trabalho de pesquisa no laboratório. Mas nunca me esqueço do episódio em que você e sua amiga tinham por refeição um ovo cada uma. E você conta essa história de forma leve, como parte da vida. Demorei para perceber todos os privilégios que eu tinha e que nunca precisei passar por isso. E você amava essa época, não é? Você sempre fala com muito entusiasmo como era bom. E depois como tudo melhorou com a ajuda de uma professora que acolheu vocês e com a oportunidade de uma bolsa de estudos. Cursar mestrado não foi possível por não ter sido aprovada em uma prova de inglês, mas você ressalta que o professor orientador elogiava muito o seu trabalho, e sempre dizia que você ia ser professora. E assim foi: primeiro em São Paulo, onde lecionou no ensino infantil em uma escola particular, e mais tarde, depois de ter eu e minha irmã, já em Barra Bonita, no interior de São Paulo. Este ano você se aposentou. Foram 25 anos na rede pública de ensino, 20 atuando como coordenadora pedagógica e cinco como vice-diretora de uma escola que é referência na região. Vejo que para você é muito mais que um trabalho com entrada às 7 h e saída às 17 h. Foi um projeto de vida, um lugar onde você pôde ser você ou o melhor de você. Onde pode exercer a escuta, conversar, fazer pontes, aconselhar, orientar. Você sempre diz que, como coordenadora, encontrou o seu lugar. Mas esse caminho não foi fácil, não é mãe? Foi muita trilha para hoje você ter esse lugar ou conquistar esse espaço. Lembro que vi você chorar quando não foi acolhida por uma coordenadora. Lembro da sua insistência em poder trabalhar, principalmente no período da noite. O começo foi muito difícil, eu lembro mesmo sendo pequena. Acompanhamos você viajar de cidade em cidade para ter a “cadeira” da sala de aula, vimos as inseguranças no final do ano sem saber aonde iria trabalhar, sentimos o quanto de tempo era dedicado à escola, a falta de apoio, 17 enfim, os malabarismos que as mulheres fazem para poder ter uma vida profissional e se dedicar à família. Quero que você saiba que o seu percurso, mesmo sem total consciência, foi traçando os nossos. Não por palavras, mas por gestos, ações, decisões, mesmo nas incertezas e percalços da vida. Mãe, outra coisa que me pego pensando é que você sempre foi feminista, mesmo sem se nomear assim. Toda essa história é sobre isso. É sobre o lugar que você queria estar, mesmo sem discursos claros, leituras e referências. Você tinha a minha avó como sua força, que por seus meios também rompeu com algumas barreiras que eram impostas para as mulheres que faziam parte da sua sociedade. E você é feminista quando incentiva as meninas a estudarem, quando leva a lição na casa de uma aluna que ficou grávida na tentativa de que não perca o ano, quando elege como líder da turma uma das alunas. Talvez você não tenha consciência do tanto que está fazendo neste mundo. E a gente também não tenha essa consciência, só observo uma coisa aqui e outra ali e já acho muita coisa, mas não deve ser nem metade das histórias que coleciona. Assim eu e minha irmã crescemos, ouvindo quase que diariamente tanto de você quanto do pai: vocês precisam ter uma profissão para não depender de homem nenhum, o estudo é o maior tesouro que alguém pode ter, porque ninguém pode tirar. Minha infância foi marcada por estas frases e gestos, o que estimulou que eu passasse horas na casa da minha avó estudando, no quarto, com o caderno de lição no colo. Parava para o café da tarde, regado a pão, café e muito amor. Cresci entendendo que estudar era algo bom. Que privilégio viver numa casa assim. E é para lá que eu vou, para o sofá da sala ao lado de minha avó, quando eu mais preciso de um tempo e de um silêncio para retomar a confiança. Então, os caminhos para que eu me tornasse professora começaram há muito tempo. Com você, com a avó, as avós, e tantas outras mulheres. Esta carta é pensando sobre o percurso que me levou a estes caminhos. É um obrigada e é uma dedicatória deste trabalho a você, mãe. Com amor 18 Carta ao mundo – Declaração de amor à pesquisa e ao conhecimento como experiência de mundo Nesses quatro anos de doutorado vivi, e vivemos, muita coisa. Foram anos intensos. Passamos tragicamente pelo governo Bolsonaro, vimos nossa sociedade desabar, mortes, descasos, abandonos e genocídios. Ainda mais com a pandemia de Covid-19, que teve início em 2020, deixando marcas profundas em você, mundo. Vivemos uma tragédia coletiva. Como você foi maltratado e malcuidado! Com tudo isso, nossas vidas foram atravessadas pelas consequências da pandemia e, nesse fluxo, a pesquisa se transformou. O plano de ir estudar fora do país – um sonho que eu tinha antes mesmo de ingressar no doutorado – e ter essa vivência de pesquisar em outra universidade, estar em outro território e observar outros contextos de criação e mediação, não aconteceu. Impedidos de circular, ficamos todos em casa. E o que aconteceu nesses quatro anos, de 2019 a 2022? Posso dizer que o primeiro ano foi bem movimentado. Parece que eu vivi – no sentido de circular, fazer, estar junto às pessoas – intensamente, sem imaginar que em 2020 estaria impedida de vivenciar espaços presenciais de troca e, principalmente, as oficinas de criação de livros, que é o coração, a fonte da minha pesquisa. Em 2019, cursei três disciplinas presenciais em São Paulo: duas no Instituto de Artes da Unesp e uma na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Foram: “Seminários de Pesquisa”, com a professora Luiza Christov, “Histórias do Ensino de Arte no Brasil: do modernismo à contemporaneidade”, com a professora Rejane Coutinho, e “Arte da palavra e aprendizagem artística”, com a professora Regina Machado. Nesse mesmo ano eu cheguei ao norte do país, participei de congressos sobre Arte Educação em Manaus (AM) e Rio Branco (AC), neste último 19 realizando a oficina de criação de livros. Propus uma oficina em Itaipava (RJ) e outra em Jacareí (SP), no Instituto Federal. Um pouco antes da pandemia, também fiz uma oficina marcante para o meu percurso, “Diálogos com Bruno Munari: ateliê de criação de livros”, n’A Casa Tombada3 – em São Paulo, no fim do mês de janeiro de 2020. Nem imaginava que iria demorar tanto para vivenciar novamente algo assim. Em 2019, também atuei como professora em três turmas da pós- graduação “O livro para a infância: processos contemporâneos de criação, circulação e mediação”, n’A Casa Tombada, e nos cursos “Docência na Educação Infantil” e “Artes visuais com ênfase em educação”, nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), em São Paulo. Foi intenso acompanhar os processos das estudantes4, receber tantas cartas, responder uma a uma. Foi um ano de muito aprendizado. Em 2020, a pandemia veio para mudar a rota, propor desvios, pausar, transformar nossas vidas, nossas relações e nossos fazeres. A minha atuação em unidades do Serviço Social do Comércio de São Paulo (SESC-SP) e espaços culturais, tanto nas oficinas voltadas ao livro-objeto, artes e literatura quanto nas intervenções artísticas que fazia junto ao coletivo BARCA5, com as minhas parceiras e educadoras Renata Oliveira e Andrea Rocha, pausaram. Sem tempo determinado, as atividades presenciais foram suspensas. Um vazio enorme tomou conta de nossos corpos, sem falar da dor e da saudade dos que estavam longe. Algumas perguntas me acompanharam durante esses primeiros meses de incertezas: Como continuar sem a presença física? Como vivenciar processos de criação sem os corpos lado a lado? Seria possível ainda realizar uma pesquisa que se vale tanto do corpo que cria, da mão que faz livros, do convite da educadora e da materialidade dos livros, na incerteza dos dias? A pesquisa iria continuar? E a minha atuação como educadora, como iria se desenhar nesse 3 Inaugurada em 18 de julho de 2015 pelos artistas e educadores Ângela Castelo Branco e Giuliano Tierno, A CASA TOMBADA – Lugar de Arte, Cultura e Educação – se sustenta na convicção de que a oralidade e a escritura são urgências e necessidades humanas (site acasatombada.com.br). 4 Sempre ao me referir a um grupo ou coletivo vou tratar no feminino, porque a grande maioria das participantes e estudantes eram mulheres, tanto nos encontros de oficinas quanto nas turmas dos cursos de pós-graduação. 5 Coletivo BARCA: Brincadeira e Arte para Crianças e Afins. 20 tempo sem os espaços culturais para receber as propostas que realizava com frequência desde 2016? Ao mesmo tempo que isso acontecia, a pós “O livro para a infância” abria cada vez mais espaço para a minha pesquisa, tornava-se cada vez mais casa e presença na minha vida. Desde a Turma V, a Cris, Cristiane Rogerio, coordenadora da pós, me envolvia em atuações mais próximas aos estudantes, como estar em uma aula para falarmos sobre metodologias de pesquisa, participações cada vez mais presentes nos TCCs6 e trocas mais intensas. Na Turma VI, que começou em fevereiro de 2019, eu estive a seu convite no primeiro dia de aula. Isso significava tanto para mim! Poder vivenciar outros processos que iam além da disciplina “O objeto livro”, que eu ministrava desde a primeira turma, em 2017. E essa era a mesma turma que se transformou nesse percurso de pandemia. Não tinha como pausar, a vida tinha que continuar. Assim, entrei para a coordenação ao seu lado, estaria presente em todos os processos de estudantes, acompanhando as aulas, fazendo as costuras dos encontros, propondo exercícios, orientando os trabalhos, enfim, cuidando e acompanhando uma turma. Aos poucos fui me dando conta desse papel, e quanto mais o tempo passa, mais responsabilidade eu percebo nessa atuação. E, assim, me sinto aprendiz todos os dias. Nesse caminho, A Casa Tombada se reinventou e continuou como lugar de estudos e pesquisas, propiciando a partir de 2020 encontros virtuais. Surgiu A Casa Tombada Nuvem. Eu me envolvi tanto com a imagem da “nuvem” que comecei a experimentar criações em diferentes linguagens. A audiovisual surgiu sorrateira, como forma de poder dizer o que sentia, os conflitos, as dificuldades, o não saber o que fazer. Os processos de criação em espaços virtuais tiveram o seu lugar. Fui encontrando modos de estar com as pessoas, de propor a criação de livros, de convidar as e os estudantes a olharem para os materiais que tinham em casa, a cuidarem do espaço que iriam se envolver. Assim, surgiram outras formas de fazer em coletivo na tentativa de manter a potência da proposta e de tudo o que eu acreditava que era fundamental para a experiência acontecer. A presença acontecia ali. Havia voz, textura, angústias, corpo, temperaturas, frio na barriga, incômodos, descobertas, sensações e “bagunça” nesse espaço da “nuvem”. 6 Trabalho de Conclusão de Curso. 21 Isso tudo para contar como a pesquisa foi caminhando nesse tempo e espaço que eu vivi no doutorado. Assim, como a vida, a pesquisa resistiu e: Eu me vi cada vez mais como professora e nesse lugar para habitar. Eu me vi cada vez mais como artista e nesse lugar para habitar. Eu me vi cada vez mais como pesquisadora e nesse lugar para habitar. Eu me vi cada vez mais professora-artista-pesquisadora entrelaçada nesses lugares que eu desejei e escolhi habitar. Fui entendendo sobre o(s) meu(s) lugar(es) ao longo desses anos e descobri que esta pesquisa é também sobre isso: perceber como nossos fazeres são múltiplos e há muitos “entre-lugares”7 para ocuparmos. Ângela Castelo Branco, professora, poeta e educadora, me disse uma vez em uma conversa, diante do meu incômodo de não saber qual era o meu lugar: “Para que quer habitar um lugar só? É uma definição que queremos para parar e descansar?” Por que é tão difícil ver o quanto de pesquisa compõe um encontro com as estudantes? Assim como perceber a criação presente no modo de ver e fazer pesquisa? O quanto da artista está pensando uma proposta de aula, e quanto da pesquisadora está imbricada ao escrever no papel-vegetal? Fui vendo as minhas aulas sendo alimentadas pelos meus processos de criação, as produções artísticas sendo formas de expor as minhas experiências com as estudantes, a pesquisa acontecendo ali ao mesmo tempo, fluida em todo o meu fazer. Era eu entrelaçada nesses fazeres todos e que permitiam ser quem eu sou, nesse entrecruzamento de desejos, pensamentos e saberes. E por que não deixar aberto para o devir: outras que ainda posso ser, descobrir? Fui percebendo como esses lugares estão imbricados, um alimentando e sendo alimentado pelo outro, como águas de um rio que corre, como pororocas que se formam pelo encontro de diferentes águas formando algo além. Penso o corpo como esse lugar de encontros, de profundidades, de caminhos e bifurcações que se expandem, se cruzam, se encontram, se distanciam. Há um movimento no curso das águas que é natural, é um mover-se constante, respeitando os fluxos, as temperaturas, os ventos. Desejo que meu corpo e meus fazeres, e as veias que correm por eles, sejam rios que encontrem seu(s) lugar(es) para estar nesse mundo. Em você, mundo. 7 Esse é um termo abordado pelo ensaísta, poeta e professor mineiro Silviano Santiago. 22 Entendi, junto a tantas outras companhias, que o desassossego faz parte, a busca é constante, o imprevisível é condição da vida e o não saber também. Ainda me encontro na tentativa de desconstruir algumas limitações que definem internamente essas três: artista, educadora e pesquisadora, para desvincular a educadora que está na aula, a pesquisadora que escreve a tese e a artista que cola e rasga. Percebo forte a educadora que costura essa tese, que entrelaça os caminhos, que une as histórias que me acompanham e constrói essa narrativa que vou compartilhar. Assim, este trabalho é composto por alguns territórios, mas sem fronteiras que os delimitem, compartimentem e separem. A ideia é que tudo esteja interligado, em um vaivém de pensamentos e conceitos. Esses territórios, não lineares nesta tese, são compostos por: – Aberturas, aqui apresento a Carta à Maria José, minha mãe, Carta ao mundo (esta mesmo!), Carta às estudantes, convidando as e os leitores a entrar neste trabalho. – Em Águas que correm com a pesquisa, partilho a imagem do mergulho, do navegar e das águas como metáfora do ato de pesquisar. Busco narrar os deslocamentos possíveis, estando em muitos momentos imersa na pesquisa, como educadora e proponente de experiências artísticas, podendo alcançar profundidades surpreendentes, e em outros momentos tentando realizar pequenos sobrevoos, que possibilitam olhar sob outro ponto de vista para poder contar a experiência. Trago a ideia das oficinas como fonte de saberes, em que o livro vira acontecimento. – Em Cartas à(s) mão(s), faço um elogio àquela que está sempre (ou quase sempre) presente nos fazeres artesanais. Como um reconhecimento ao “feito à mão”, eu rememoro o que aprendi neste tempo com elas, “as mãos” – minhas e das estudantes –, ao narrar os seus processos de criação. O que o encontro entre as mãos e os livros pode propiciar? – No território Encontros com a minha escrita-criação, narro sobre o meu processo de criação, a partir de ensaios artísticos e literários, apresentando alguns livros, imagens e vídeos. Exponho como o meu fazer acontecia durante a pesquisa e as formas inventadas para me 23 aproximar de uma escrita, da minha escrita. Assim, nomeio algumas experiências: LIVRO-NUVEM e a criação no caos, Paredes que falam, Palavras nuvens, Palavras paisagens, Rasgando a escrita e O gesto de fazer vídeos. Este último desencadeando a criação de um canal no Youtube que localiza as produções em audiovisual, incluindo as leituras das cartas pelas estudantes. – Em Processo de criação de livros como travessia, teço reflexões sobre os processos de criação artísticos. Questiono o lugar da criação, refletindo se existe realmente um ambiente e momento específico para o ato criador e arrisco dizer que toda criação é um percurso, um deslocamento e, portanto, uma travessia, um caminho que se desenha com o próprio caminhar, em que aprendemos fazer, fazendo. – Em Infância, criação e seus devires, destaco como a percepção sobre infância pode estar interligada à criação, entendendo ambos como esse lugar aberto para o “devir”. – Cartas às professoras: são conversas com as minhas mestras, mulheres que cruzaram o meu caminho e que foram fundamentais para este trabalho. Trago questionamentos, perguntas, reflexões e lembranças sobre questões que perpassam a pesquisa, como a docência compartilhada, nosso olhar para a infância, os fazeres que compõem o corpo todo e o fazer livro como gesto. – Cartas das estudantes: são as escritas sobre os processos de criação dos livros, convites para adentrar no processo de cada uma. Compartilho as cartas por meio de imagens, em que podemos nos aproximar das materialidades que as envolvem, como a caligrafia, a escolha das cores e a tipografia, e vídeos, em que as estudantes leem em voz alta as suas cartas, na busca para trazer a presença dessas que são mais que colaboradores, são coautoras fundamentais desta pesquisa. – Produções artísticas: são atravessamentos compostos por produções minhas ou das estudantes que convidam a uma pausa, à fruição de uma imagem ou de um vídeo. É importante deixar explícito que este trabalho, que convida às primeiras leituras, é um olhar através, um olhar para o que aconteceu e o que se foi desenhando na minha trajetória ao longo desses anos. Um espiar pela janela, 24 quando tudo está vibrando lá dentro, um deslocamento para ver melhor. É um olhar com atenção, com a consciência que nada é neutro. Para o filósofo francês Didi Huberman ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olho traz consigo sua névoa, além das informações de que poderia num certo momento julgar-se o detentor. (2010, p. 77) Através desse olhar, cheio de predisposições, névoas, conceitos já preestabelecidos, vou narrar como se deu e está se dando esses fazeres artesanais e saberes sobre o livro que acontecem em espaços coletivos de formação. Com tudo isso, me pergunto: afinal, o que pede uma tese? Esta foi uma das minhas questões durante o processo, que me trouxe muitas reflexões sobre o caminho que daria para esta pesquisa. E assim, outras perguntas: O que um trabalho precisa para ser uma tese? Há uma diversidade de perfis, localidades geográficas dos colaboradores para compor a minha pesquisa? Haveria, como desejado, uma diversidade de dizeres e vozes? Assumindo uma angústia pela responsabilidade que é fazer uma pesquisa, muitas vezes me questionei qual a importância de narrar essa experiência. Uma narrativa que me parece ainda muito frágil. Quando transformei a pergunta O que pede uma tese? para: O que pode uma tese?8, brincando com a similaridade das palavras pede e pode, a nova questão me ofertou possibilidades para inventar. A mudança da pergunta abriu caminhos para pensar, criar e inventar uma tese. Ou como diria Umberto Eco9, poderia descobrir a tese. “A tese tem algo a ver com a invenção. Uma receita às avessas: a descoberta” (FERRARA, 2019 in ECO, p. XV). Voltei-me à pergunta inicial, aquela que levou a querer pesquisar, investigar, me deparar com a incerteza e o não-saber. O que acontece no processo de criação de livros? O que as pessoas aprendem nesse fazer? E o que eu aprendo sobre o meu fazer enquanto professora-artista-pesquisadora 8 “Ao lado do Umberto Eco professor, reponta aqui ou ali o pesquisador que contrasta a tese como objeto com a tese como investigação. Como fazer uma tese cede espaço para saber o que é uma tese.” (FERRARA, Lucrécia in ECO, 2019, p. XIV) 9 Umberto Eco foi escritor, filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo italiano que deixou muitas contribuições sobre o fazer pesquisa. 25 inserida nesses espaços coletivos de formação? Essas perguntas são as que me guiaram e me levaram a chegar a tantas outras que vou revelando a vocês ao longo deste percurso. Assim, este trabalho é uma carta a você, mundo, para dizer o quanto a pesquisa é um direito de todos. Direito de se reconhecer no mundo, de estudar, de descobrir mais sobre si e sobre o seu gesto no mundo. Todos temos direito de narrar a nossa história, ampliar línguas, porque “nosso pensar e nosso dizer ganha língua no viver” (CHRISTOV, 2021, p. 02). Que este texto seja um convite ao conhecimento, como a professora Luiza Christov nos ensina: Minha visão é a de um texto acadêmico como palavra de conexão e fluxo, texto botão: água. Texto água: que se espalha, une e toca diferentes e muitas vidas, como os oceanos. Texto botão: que conecta leitores e autores em sentidos, como abotoando nexos entre histórias saberes. Espalhar e abotoar: movimentos do texto que se pretende conhecimento, reflexão, procura do comum. (2021, p. 12 e 13) Com a esperança de que você, mundo, merece ser bem cuidado. E nós agradecemos. 26 Carta às estudantes e participantes dos encontros A vocês que me inspiram a escrever, que me convidam a pensar sobre suas escritas, que me contagiam para que eu escreva sobre suas histórias e com elas. Uma carta como resposta, retorno, agradecimento para contar o que tenho lido, vivido, aprendido, pensado junto às narrativas todas que vocês me deram, narrativas como palavras-vivas em alto-mar. E começo pensando, olhando a minha mala-baú de cartas e me dando conta de que há cinco anos venho recebendo e colecionando esse tipo de preciosidade. Cartas sobre ditos e não ditos, sobre o que por ora estava escondido, cartas como exposições sem volta. Cartas sobre processos de criação, sobre livros e sobre a vida. Poderia chamar de cartas-escritas de si, cartas-narrativas de uma vida, cartas-escrevivências10? Ou ainda cartas-fendas? Estas que abrem pensamentos e convidam as estudantes a voltarem a si, a descobrirem suas lacunas, ampliarem formas de ver e estar na relação com o livro e seus processos de criação? Pensando nesse trajeto, volto ao primeiro dia de aula da disciplina “O objeto livro” do curso “O livro para a infância”, momento em que eu me inaugurei como professora de um curso de pós-graduação, 26 de abril de 2017. Entre tantos inícios que vivi para estar ali, leio uma carta-convite às estudantes da primeira turma para convocá-las a uma proposta de criação de um objeto bem familiar a todas, o livro. A você, Quero fazer um convite. Um convite à experiência. Experiência. Experiência, segundo Jorge Larrosa, “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca”. Ele diz que a cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Larrosa cita Heidegger, que define: “Fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em ‘fazer’ uma experiência, 10 Termo emprestado da escritora Conceição Evaristo. 27 isso não significa precisamente que nós a façamos acontecer, ‘fazer’ significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto, deixar- nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo”. (LARROSA, 2014, p. 27) Convido para uma experiência de criação de livro, do livro, com ele. Nos permitir experimentar os materiais, caminhar seguindo escolhas e a partir do que mais nos chama atenção, vivendo o processo e o percurso. (Carta-Convite, 2017) Assim me pergunto: Será que minha história com as cartas começa aí, nesse momento? Ou será que essa fascinação começou antes? Com aquela escrita ao artista e designer italiano Bruno Munari11, em 2012, quando ainda não tinha entrado oficialmente para a pesquisa acadêmica, cursava uma disciplina como aluna especial12 e nem imaginava todas as cartas que receberia? A Bruno Munari, Desde que descobri sua produção de livros em uma aula no MAC13 com as professoras Renata e Valquíria14, seus pensamentos estão muito presentes no meu estudo e na minha vida. Vivo investigando formatos de livros, materiais e como isso pode propiciar diferentes experiências e sensações nas pessoas. O que acho mais interessante é quando descobrem o mundo que pode existir dentro de um livro, e que não está somente no seu conteúdo, mas na forma de sua construção. Esse meu encantamento foi gerado por experiências que tive no contato com alguns de seus livros, como os Pré-livros, Na Noite Escura e no jogo Più e Meno. Descobri-o como um lugar de espaço e tempo que permite transmitir uma mensagem própria por meio da sua materialidade. Acho que venho tentando responder também a sua pergunta: “O livro como objeto, independentemente das palavras impressas, pode comunicar alguma coisa, em termos visuais e táteis?” Nessa busca, estou tendo várias experiências interessantes e conhecendo muitas pessoas que também estudam o livro como obra de arte. (Carta ao Bruno Munari, 2012) 11 Bruno Munari (1907-1998) foi um designer, artista e autor de livros para a infância que é referência de estudos para a minha pesquisa. 12 Disciplina com Sumaya Mattar na Escola de Comunicação e Artes da USP, em 2012. 13 Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. 14 Renata Sant’anna e Valquíria Prates, educadoras e pesquisadoras sobre o livro, infância e educação. 28 Talvez, voltando um pouco mais, lembro das cartas que trocava com um menino de outra cidade como parte de um projeto da escola quando estava na 3ª série. Recebia fotos, uma escrita em letra azul, grande e redonda, dentro de um envelope que vinha pelo correio. E as cartas que escrevia para mim na infância? Cartas-diários com desenhos, textos, segredos que não mostrava a ninguém e que geralmente tinham o mesmo destino: eram rasgadas ao final. Talvez tenha sido a leitura de Queria ter ficado mais15, um livro composto por 12 envelopes contendo cartas sobre lugares que marcaram as vidas das autoras, que me instigou a pensar no formato carta. Muitos pensamentos nesse relembrar da minha relação com as cartas, que se torna consciente à medida que vou me dando conta do lugar que ocupam dentro da pesquisa e como parte do meu processo criativo enquanto educadora. Voltando àquele primeiro momento da aula, vocês, queridas estudantes, se lembram que eu as convidava a criarem um livro na tentativa de que fosse um convite à “experiência”? Seria muita pretensão? Se considerarmos que a experiência não pode ser controlada, planejada ou garantir que aconteça, talvez sim. Mas, por viver tantos momentos de criação com as pessoas (em oficinas, encontros, aulas etc.), algo me dizia que nesse momento do fazer muita coisa acontecia e, sim, talvez a experiência pudesse acontecer, havia essa possibilidade. A partir do convite, vocês se ajeitavam, mudavam de lugar, arrumavam um canto em uma outra mesa, se deslocavam fisicamente para viver a proposta. E, nesse movimento, eu comecei a notar que muita coisa acontecia ali. Eram fazeres, olhares, mãos inquietas, escritas descontroladas, concentração, angústia, muita liberdade (essa palavra eu ouvi muito, como incomodou a liberdade demais!), enfim, presenças inteiras, disponíveis para o devir. E de uma semana para outra, vocês me traziam mais histórias: “Rasguei o meu livro”, “Deixei na estante pra ver todos os dias e lembrar dele”, “Aquele não mexi mais, mas fiz mais dois”. Eram histórias que iam acontecendo nesse tempo em que eu não estava presente, cada uma e cada um nas suas casas, nas suas vidas. 15 Queria ter ficado mais, organização de Cecília Arbolave, ilustrações de Eva Uviedo, Editora Lote 42, 2014. 29 Minhas perguntas foram ganhando força: como dar conta dessas histórias? Como poder estar perto do processo de criação, desse caminho que vocês iam trilhando de acordo com escolhas e caminhos únicos? Assim, o pedido da escrita de uma carta surgiu para que pudessem narrar o que viam, sentiam e descobriam durante o seu processo de criação dos livros. Para nomear angústias, sentimentos, acontecimentos do processo, uma forma de trazer à consciência o que acontecia e aprendiam sobre o fazer livro. E, sim, nessa escrita, outras descobertas podiam acontecer, algo que não era sabido de antemão. A carta percebida também como uma linguagem de criação. Uma carta para dividir o espanto que é se chocar com o próprio processo criativo. Vale destacar que o fato de estar inserida em um curso de pós-graduação foi fundamental para que a proposta virasse realidade. Como os encontros aconteciam semanalmente, era viável a troca das cartas – tanto para a entrega quanto para os meus retornos –, podia manter contato com vocês, estudantes, além de ser uma forma de “finalização de percurso”, tendo o seu lugar dentro da trajetória do coletivo. Assim, elas foram chegando. Recebi muitas, ao todo 215 (até o momento – novembro de 2022). Vindas de longe, pelo correio, algumas frágeis, outras mais resistentes, grandes, em envelopes que mal cabiam na minha pasta. Enroladas, com fitas ou como um presente a alguém querido. Cartas em Word, PDF, mas cheias de textura. Recebi uma carta acompanhada de uma voz que lê a própria escrita. Algumas vinham com cheiro de perfume ou essência. Outras impressas ou escritas à mão em papéis artesanais, que convidam a tocar com cuidado. Recebi confidências, cartas de amor, descobri amores antigos e cheguei perto das relações familiares. Me deparei com muitos relatos de como os filhos estiveram presentes nesse processo de fazer o livro: diálogos, sugestões, ideias, uma criação conjunta. Chegaram relatos de experiências de infância, na presença de mães e avós, gestos que iam se revelando no fazer. Recebi histórias sobre como a casa virou ateliê, principalmente a partir de 2020, em que estávamos todas confinadas: toalhas sobre a mesa, papéis no chão do quarto e o quintal como inspiração para a criação. Recebi em mãos detalhes de uma porção de vidas. No decorrer do trabalho, pensando sobre como a materialidade das cartas podem estar presentes na tese e, concomitante com a criação do canal do 30 Youtube, surgiu a ideia de que elas pudessem ser lidas por vocês, trazendo suas vozes, sotaques, entonações, emoções vindas de quem viveu essas escritas- experiências. Espalhadas ao longo do trabalho, convido para uma experiência sensorial com as cartas, trazendo mais presente quem me acompanhou neste percurso. Assim, cada carta será acompanhada por um link e QRCODE que irá reproduzir um vídeo que compõe a leitura em voz alta da carta e a imagem no seu original. Quero explicitar que as escritas das cartas podem conter erros de português, ortografia, concordâncias, palavras sem terminar, frases soltas, enfim, e isso faz parte desse corpo-carta. Ao apresentá-las na tese, optamos – no plural, pois foi uma decisão conjunta – por não corrigi-las ou reescrevê-las, para manter o frescor, a caligrafia, o tremor, as rasuras e os possíveis erros que o momento convocou as estudantes a escrever. Priorizamos uma escrita viva, movente, que acontece muitas vezes como transbordamento de pensamentos e sensações. Foi um recorte difícil, são muitas cartas que podiam ser enviadas às leitoras e leitores desta tese. E cada uma apresenta muitas possibilidades de costura, que podiam estar em diferentes momentos do texto, conectar com outras cartas, dialogar com vários assuntos. Assim, assumo uma escolha que foi se dando no percurso, talvez um pouco intuitivamente. Algumas delas se tornaram companheiras, ou seja, lembrava delas por uma frase, uma situação vivida, algo que tenha me impactado. Outra opção para compor o texto foi escolher cartas mais curtas, para não criar uma pausa mais larga e afetar o ritmo de leitura. Como restou vontade de compartilhar outras, criei nos Anexos uma exposição de vídeos – Cartas para serem lidas com tempo, para quem se sentir convidada e convidado a conhecer e ouvir outras histórias. A partir de um pedido de cartas que fossem escritas sobre o processo de criação de um livro, acabei encontrando muito mais. Muito mais do que até posso dimensionar. Por isso, quero deixar explícito, queridas estudantes, que o que narro aqui, as cartas que escolhi expor e as narrativas que estabeleci a partir delas, é um olhar, acredito que um caminho entre tantos outros que vocês me ofertaram. Percebendo a infinitude, a imensidão de “achados”, descobertas, dizeres, quero explicitar que nem tudo foi investigado, esmiuçado e revelado, devido a profundidade desse material. Vejo cada escrita como um mar inteiro 31 para mergulhar, oceanos para serem navegados por uma vida. Por isso, ainda há muito a ver, ler, descobrir, aprender e adentrar. Este trabalho é um mergulho que o doutorado me permitiu fazer e que já me possibilitou imersões profundas. Sou grata a todas, todas vocês que se permitiram viver a experiência de criar livros fazendo parte desses coletivos em que tive a oportunidade de estar. Vocês me ensinaram algo que não é palpável, que a escrita às vezes pode não dar conta de narrar. Mas saibam que vocês fazem parte desta pesquisa, e foram fundamentais para o meu percurso. E por esse envolvimento com as cartas, neste per-curso em que me encontro em curso sempre, lendo e escrevendo no gerúndio16, me vejo escrevendo em formato de carta também. Acho que foi o caminho que encontrei: lendo as cartas de vocês me senti convidada a escrever para alguém ou algo17. Porque a carta tem essa particularidade do destinatário, um destino, já pressupõe que alguém irá entrar em contato com essas palavras. E a escrita assim se dá, já na conversa com vocês, responsáveis por esta pesquisa acontecer, e vocês, que me leem agora. 16 Como a obra Caminhando, da artista Lygia Clark, também no gerúndio. Falo mais sobre essa proposta no texto Processo de criação de livros como travessia. 17 Enquanto escrevia para a qualificação, vivi um acontecimento que foi fundante para os caminhos que tomou esta pesquisa. Em uma aula da professora Ângela Castelo Branco, na Turma VII da pós “O livro para a infância”, ela provocou a turma a pensar quem poderiam ser os destinatários dessas cartas. Vale contextualizar que as estudantes já tinham experimentado a proposta da criação dos livros e escrito as cartas sobre seus processos. Ângela foi convidada pela coordenação para uma aula sobre escrita de si, educação e literatura e essa aula-atravessamento me provocou tanto que comecei a pensar como eu poderia escrever cartas para alguém ou algo, de maneira que pudesse criar em torno dessa escrita. Nesse pensar a escrita como uma criação, algo que já vinha amadurecendo, a proposta de inventar destinatários me pareceu instigante. Assim, comecei a imaginar como eu poderia viver o processo que convidava as estudantes a participar e me vi desafiada a escrever uma “Carta-Escrita de si” (que falarei mais adiante), que carrega tantas escritas, histórias das pessoas. A “Carta às estudantes” e “Carta(s) à(s) mão(s)” foram as primeiras que surgiram. 32 2. O que vibra lá dentro? Fotografia tirada durante proposta de criação de livros na Turma II da pós “O livro para a infância”, n’A Casa Tombada, em Perdizes, São Paulo, 2018. Fotografia de Camila Feltre. Arquivo pessoal 3. Lígia, Fabi, Suzana, Caroline, Camila, Mônica, Tati durante proposta de criação de livros. Enquanto chovia lá fora, um mundo compartilhado na mesa de madeira. Fotografia tirada durante aula na Turma VI da pós “O livro para a infância” n’A Casa Tombada, em São Paulo, 2019. Fotografia de Camila Feltre. Arquivo pessoal 33 4. Dia 26 de abril de 2017. Primeiro dia da disciplina “O objeto livro” na pós “O livro para a infância”, Turmas I e III. Eram tantos corpos a se movimentarem que precisamos ocupar o espaço externo d’A Casa Tombada. Fotografia de Camila Feltre. Arquivo pessoal 5. Fotografia tirada durante oficina “Diálogos com Bruno Munari: ateliê de criação de livros”, janeiro de 2020, n’A Casa Tombada, em São Paulo. Fotografia de Camila Feltre. Arquivo pessoal 34 6. Momento em que as professoras participavam da proposta de criação de livros durante oficina “Mediação de leitura do livro”, na Fundação AH em Brasilância, Mato Grosso do Sul, em julho de 2019. Fotografia de Camila Feltre. Arquivo pessoal 7. Livros e leituras na parte externa do Instituto Federal de Jacareí. Oficina “Materialidade do livro para a infância”, em outubro de 2019. Fotografia de Camila Feltre. Arquivo pessoal 35 8. Na área externa na Universidade Federal do Acre (UFAC), compartilhamento dos livros produzidos durante oficina em setembro de 2019. Fotografia de Hanna Araújo. Acervo pessoal 9. É possível propor oficinas de criação de livros no formato virtual? Aula na Turma VIII da pós “O livro para a infância”, dia 14 de maio de 2022. Fotografia de Camila Feltre. Acervo pessoal 36 10 Entre Indica lugar ou espaço intermediário Demarca um intervalo de tempo Assinala o que está no meio de múltiplas coisas ou pessoas Nem uma coisa nem outra; meio-termo Expressa reciprocidade; relação Demonstra uma preferência; alternativa Em companhia de Guardado com; que se mantém com Etimologia (origem da palavra entre). A palavra entre deriva do latim "inter", que significa a meio de.18 18 Dicionário online de português. 37 Carta de Ana Carvalho 38 39 11. Carta de Ana Carvalho, estudante da Turma VII da pós-graduação “O livro para a infância”. Leiria, Portugal, julho de 2021. Leitura gravada em agosto de 2022. https://youtu.be/o5I0b5TIpZY https://youtu.be/o5I0b5TIpZY 40 ÁGUAS QUE CORREM COM A PESQUISA Imersa na pesquisa de doutorado, me vi com frequência pensando sobre o ato de pesquisar. Como se dá esse processo? Quais as sensações que me passam enquanto pesquisadora? Quais imagens posso trazer para mostrar um pouco desse meu processo de pensamento? Ainda no primeiro semestre de 2019, alguns exercícios e pensamentos provocados pelas disciplinas “Seminário da Pesquisa”, ministrada pela professora Luiza Christov no Instituto de Artes da Unesp e “A Arte da Palavra e Aprendizagem Artística”, com a professora Regina Machado na Escola de Comunicações e Artes da USP, me levaram a criar diálogos entre a imagem das águas e do rio com a ação de pesquisar. Assim, começo a me ver enquanto pesquisadora que está imersa nessa relação com as águas: mergulha, nada, se afasta... Movimentos que vivo no percurso e que me apontam sempre como seguir no curso da pesquisa que flui. Para dialogar com esses pensamentos, trago algumas referências de livros, poesias e imagens que me transportam para esse universo. A pesquisadora e seus movimentos nas águas da pesquisa Uma trilha de verde, um rumor de água Um rio que brotava da terra, escondido debaixo do asfalto Anita Prades ...nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio João Guimarães Rosa O menino caiu dentro do rio, ‘tibum’, ficou todo molhado de peixe... A água dava rasinha de meu pé Manoel de Barros Iniciar uma pesquisa é como entrar em um rio. Rio que vai e vem, águas que correm. Vislumbro um lugar. Não sei se ele existe de fato ou é só miragem. Enquanto estou imersa, imagino uma terra firme, talvez bonita, cheia de árvores, plantas, frutas, pessoas, um lugar seguro e alcançado com muito esforço. 41 Ele existe? Como será o caminho até ele? Eu não sei. Ninguém sabe. Cada um percorre um rio. O seu rio. No rio, encontro momentos que nado a favor da correnteza, tudo flui. Eu me deixo levar; sinto o vento bater no rosto, o corpo é levado. Vejo a margem passando num ritmo em que ainda é possível observar suas flores, alguns bichos que pousam, umas casinhas no caminho, o aceno de mão de uma senhora que cuida do bar e diz: vai ter peixe hoje. O correr é tranquilo. Posso observar a paisagem afora. E o rio adentro. As cores da água se iluminam pelo sol e ofuscam a minha vista. A pesquisa, como o correr do rio, acontece em alguns momentos sem a pretensão de algo maior, vou me movimentando, vivendo o que o ambiente oferece e o que encontro pelo caminho. E nesse caminho do “rio-rio-rio, o rio-pondo perpétuo” (ROSA, 2005, p. 81) minhas perguntas que acompanham a pesquisa tomam forma. Perguntas que me movem, perguntas-companheiras que me rondam e apontam caminhos. Responder a todas? Por enquanto, me aproximo delas sem pretensão. As primeiras perguntas que surgem: – O que pode surgir nos encontros de criação de livros, e a partir deles? – Como o que se cria nesses encontros pode afetar e modificar os percursos – meu e das pessoas? – Quais narrativas vão compor a história que eu vou contar? Nesse percurso, chega o momento em que o vento muda de direção, as águas também. É preciso força no braço para nadar contra a correnteza. Às vezes é preciso ir no sentido mais difícil, que demanda mais trabalho. Se eu deixar, as águas me levam para onde não quero chegar. E que lugar é esse, que estou tentando desviar? Talvez onde encontre certezas. Como me manter sempre no lugar de pesquisadora que elabora perguntas e não encontra verdades? É preciso força, concentração para sair do lugar e não me dispersar com o que está ao meu redor. Eu só quero olhar a paisagem e sentir que estou prosseguindo. Será que vou mesmo sair do lugar? Penso que é preciso uma atenção ao que posso não estar vendo, ao que ainda não percebi e é preciso estar atenta. Nesse momento, as reflexões vêm fortes, constantes, tanto quanto a força que preciso para me movimentar. 42 – Como narrar a mim sem “umbigar-me”?19 – Quais vozes conversam comigo? Há uma diversidade de falas? – Como narrar a minha experiência de pesquisa pode contribuir? Com o quê? Ou com quem? – Por que falar da materialidade do livro, do livro impresso, na era do mundo digital? Nesse navegar, momentos imprevisíveis surgem me fazendo imergir até as profundezas do rio. O que acontece quando chegamos ao fundo? O que de misterioso encontramos? Submersão. Mergulho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 Expressão usada pela professora Luiza Christov, referindo-se a uma pesquisa que se volta a si sem dialogar com o outro. 43 E lá no fundo, outras perguntas surgem. Aquelas que são o cerne da pesquisa, e que depois de muito nadar, de ter vivido angústias e o mergulho, posso encontrá-las. São as minhas perguntas principais, que me movem nesse trajeto. – O que acontece durante o processo de criação de livros? O que se aprende fazendo livros? – O que aprendemos com as mãos no processo de criação de livros? – Como essas escolhas para a criação – de materiais, formatos, tamanhos, cores, técnicas, tendo o livro como linguagem artística – acontecem? – O que eu posso compreender sobre meu processo criativo – como professora, artista e pesquisadora – em contato com os processos criativos das estudantes e participantes? – O que as suas escritas, por meio das cartas e relatos, trazem de conhecimento sobre processos de criação? – O que é dedicar um momento ao fazer? E ao fazer coletivo? O que isto significa nos dias de hoje? – Como as aulas e os encontros são espaços férteis para as criações? 44 12 Nas profundezas, O tempo é outro, o ritmo, a respiração, o pulso, a vida lá embaixo. Deixei-me viver a beleza do que é estar imersa. Molhei-me. Ser levada por um redemoinho até as profundezas das águas é como mergulhar na pesquisa, conhecer as belezas que aparecem, se deliciar, degustar, desfrutar de cada prazer que ela também lhe traz. Depois, é preciso voltar. Passou muito tempo. Como nadar até a superfície? Seria como um retorno à realidade? Como ir ao encontro das ideias terrenas? Como voltar da experiência do que se viveu no fundo das águas e narrar? Como transformar o que vivi submersa nas águas em palavras e imagens que possam ser compartilhadas? É preciso voltar à superfície, não 45 como antes, estou encharcada, não sou a mesma. E o que me faz querer voltar e não ficar eternamente no fundo do rio? Penso no princípio que me fez entrar nas águas: a pesquisa e a ética da pesquisa. A importância de contar o que há nas profundezas, o que eu vivi e estou vivendo. Será que minha experiência pode trazer algo de significativo para alguém? Deve. É preciso contar detalhes do que eu vi, as belezas, as descobertas, as surpresas, as frustações, o que aprendi nesse percurso. Tudo isso hei de contar. Contar para que alguém leia, conheça essa história e quem sabe queira também mergulhar. Ou possa achar que não é o melhor caminho. Mas é preciso narrar, “transformar a experiência em palavras” (CHRISTOV, 2012, p. 112). O exercício de narrar a experiência é um movimento de olhar para o que vivi, refletir, analisar e confrontar com os atos. Podemos chamar esses momentos que nos deslocamos para ver sob outra perspectiva como sobrevoos20, sair do mergulho para um olhar deslocado, não menos presente. Assim, a narrativa é tecida nesse movimento de mergulhos e sobrevoos que o doutorado me convoca a fazer. Narrar a tese como narrar-me, uma escrita de si21, em que não há separação entre objeto e pesquisadora. A escrita de si é como um “desafio que nos convida a transformarmo-nos em meio à própria escrita” (MACHADO, 2004, p. 148)22. Desafiador, não? Estaremos, então, nesse processo de narrar, experienciando a escrita e sendo assim transformados por ela? Ao definir a experiência a ser narrada, o sujeito, de alguma forma, se vê tocado pelo que passou, mas ao passar pela experiência de si, ou seja, a experiência de narrar-se, de analisar- se, refletir-se, desconstruir-se, ele se vê transformado e aberto a novas experiências. (CHRISTOV, 2012, p. 126) 20 Durante orientação com Rejane Coutinho, ela me apresentou essa imagem do sobrevoo, que passou a acompanhar os meus pensamentos sobre a pesquisa. 21 Escrita de si, referência ao termo que Michel Foucault traz no livro O que é um autor?, um escrever narratividade de si mesmo: “(...) ao exercício do pensamento sobre si mesmo que reactiva o que ele sabe, se faz presente um princípio, uma regra ou um exemplo, reflecte sobre eles, os assimila, e se prepara assim para enfrentar o real” (FOUCAULT, 1992, p.147). 22 Leda Machado, professora da Universidade do Espírito Santo. 46 E nessas divagações sobre a pesquisa e a escrita, me pergunto: como será a composição desse narrar-se? Como será o processo de escrita em que estarei presente em primeira pessoa? Jorge Larrosa23 traz a imagem de uma escrita aberta, uma escrita- convite, como um pensamento que está sempre a refletir-se, como “modo experimental do pensamento, o modo experimental de uma escrita que ainda pretende ser uma escrita pensante, pensativa, que ainda se produz como escrita que dá o pensar...” (LARROSA, 2004, p. 32). É pensar na primeira pessoa, não como tema, “mas como ponto de vista, como olhar, como posição discursiva, como posição pensante” (LARROSA, 2004, p. 36). Podemos pensar nesta operação ensaio, em que “pensamento, escrita e vida ensaiam, se fazem ensaio” (LARROSA, 2004, p. 32). Sem bússolas, caminhos predefinidos, o percurso acontece no ato de escrever. Buscamos uma escrita de um texto que seja “guardador e transmissor de experiências” (CHRISTOV, 2021, p. 11), que traga a vida viva do que essa pesquisadora viveu e está vivendo. Escrever é ainda estar no rio, é nadar, é modificar o próprio rio com nossos gestos, é encontrar ondas nas palavras e deixar-nos levar por elas até lugares desconhecidos. A escrita não está segura. Há sempre um risco. Assim, penso que narrar a experiência é dar sentido ao que vivemos, podendo nomear, contar, criar um lugar, um território onde possamos conversar, dialogar. Ao fim de tudo, o que desejo? Pisar em terra firme, caminhar, sentir o chão seguro sob os meus pés? Será? Deixar o rio? Que engano o meu! Não é mais possível. O rio sou eu. 23 Nesse processo de pensamento, Jorge Larrosa, filósofo e professor espanhol, traz muitas contribuições no seu artigo “A operação ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida”, publicado pela revista Educação & Realidade, 2004. 47 Convite à leitura do livro/ fruição do vídeo O rio sou eu 13. Livro em folha A2 de papel-cartão na cor preta com carimbos das partes do corpo em tinta guache azul e branca. Produzido em janeiro de 2022. https://youtu.be/d-BQkxvRLDY As águas e o rio como metáfora da pesquisa (...) Você viu o rio, olhou para as águas. O que elas lhe ensinam? A paciência e a perseverança. Paciência de seguir o próprio caminho de forma constante, sem nunca apressar seu curso; perseverança para ultrapassar todos os obstáculos que surgirem no caminho. Ele sabe aonde quer chegar e sabe que vai chegar, não importa o que tenha de fazer para isso. Ele sabe que o destino dele é unir-se ao grande rio Tapajós, dono de todos os rios. Temos de ser como o rio, meu neto. Temos de ter paciência e coragem. Caminhar lentamente, mas sem parar. Temos de acreditar que somos parte deste rio e que nossa vida vai se juntar a ele quando já tivermos partido desta vida. Temos de acreditar que somos apenas um fio na grande teia da vida, mas um fio importante, sem o qual a teia desmorona. Quando você estiver com esses pensamentos outra vez, venha para cá ouvir o rio. Daniel Munduruku Na imagem criada das Águas que correm com a pesquisa, trago outras palavras para compor esse pensamento: liquidez, fluxo, correr, curso. Elas representam a ideia de uma fluidez, de um movimento corrente, contínuo e transitório, que associo ao ato de pesquisar. Essa relação da pesquisa com o percurso, travessia, que contém algo de transitório e movente, já tinha aparecido fortemente durante o mestrado, quando criei um mapa com caminhos inventados, percursos e palavras que surgiram durante a pesquisa, tendo como referência e inspiração a linha da estrada terrestre que liga Barra Bonita (minha cidade natal) a São Paulo (local https://youtu.be/d-BQkxvRLDY 48 onde habito atualmente). Um trajeto que fazia frequentemente e durante muito tempo, marcando em mim o ato de percorrer e habitar fisicamente e simbolicamente esses dois territórios. Isso me convidou a pensar também sobre o que está nesse entre, neste percurso da minha pesquisa. Para a pesquisa atual adentrei nos caminhos das águas, trazendo à tona a minha relação com o rio, que sempre foi muito presente na infância24. Mudando para São Paulo, quase esqueci que o mesmo rio que passa lá (em Barra Bonita), sai daqui. O mesmo rio, mas tão diferente em muitos sentidos, principalmente na relação que temos com ele. Foi também a partir dessa inquietação que se fortaleceu o desejo de trazer a metáfora de entrar no rio com o ato de fazer pesquisa. E com isso, mais descobertas25. Pensar o rio, suas composições, afluentes, nascentes e como esses caminhos se cruzam foi me dando subsídios para pensar no próprio curso da minha vida. E nesses estudos, principalmente do livro Da foz à nascente: o recado do rio, de Nancy Mangabeira, me deparei com a sensação de uma busca em direção à nascente26. Nancy, professora da Universidade Federal da Bahia, se envolve na comunidade dos ribeirinhos do rio São Francisco e participa da peregrinação, trazendo questões sobre a desertificação do mundo, a busca do saber, a experiência de estar em coletivo e como se dá a convivência com o outro. Com o intuito de tentar entender mais sobre os movimentos do rio, seu livro contribuiu com reflexões profundas sobre a vida e o curso que estamos traçando aqui e agora. A busca pela nascente foi algo que também me tocou profundamente. O desejo de retorno ao mais íntimo, mais verdadeiro e essencial do ser humano, é algo que me inquieta muito nos 24 Em Barra Bonita, no interior paulista, o rio Tietê passa por toda a cidade e a imagem do rio que encontra o céu faz parte do meu imaginário mais antigo, muito presente nas lembranças de minha infância. Ainda hoje, quando visito a minha cidade, me surpreendo com a beleza desse encontro. 25 Ao pesquisar o rio, fui descobrindo muito sobre mim e sobre a comunidade que formamos. A leitura do livro Da foz à nascente: o recado do rio, de Nancy Mangabeira Unger, que foi indicação da Isabela Vilela, uma estudante da pós “O livro para a infância”, foi como um divisor de águas para os pensamentos sobre a humanidade que está envolvida com os saberes do rio. O livro foi publicado primeiramente em 2003 e republicado em 2020, em um período em que se fez urgente essa leitura, dada a situação de fragilidade e crise que estávamos e ainda estamos enfrentando devido à pandemia de Covid-19. 26 Tecnicamente entende-se por nascente o afloramento do lençol freático, que vai dar origem a uma fonte de água de acúmulo (represa) ou cursos de água. Também são conhecidas como minas d’água, fio d’água, olho d’água, são áreas onde ocorre o afloramento das águas subterrâneas e que dão início à formação de pequenos riachos que, por sua vez, darão origem aos rios. Disponível em: https://www.campanhacerrado.org.br/noticias/291-afinal-o-que-sao-as-nascentes. Acesso em: 27 ago. 2022. https://www.campanhacerrado.org.br/noticias/291-afinal-o-que-sao-as-nascentes 49 últimos tempos. A relação com a minha cidade natal, distante física e emocionalmente, me traz saudosas lembranças e, ao mesmo tempo, sensações de não fazer mais parte, de desterramento, desenraizamento, uma falta de identificação. Será que, ao ler esse livro, ou mesmo ao fazer esta pesquisa, minha busca está em direção a um retorno? Encontrar um sentido para voltar, retornar, resgatar, no sentido de reviver? Será que estou em busca das minhas origens? Será mesmo essa a minha viagem? A minha travessia? Ou será a busca de todos nós? Não tenho as respostas, me encontro na travessia, no atravessamento profundo da experiência de pesquisar e me mover. Esses pensamentos e descobertas me fortalecem, me indicam direções, possibilidades de trajetos, cursos e desvios. Pensando nesse lugar potente, onde inicia-se o curso das águas, brota vida, uma água limpa, que contém uma força motriz que a impulsiona, me veio a imagem dos encontros, aulas, oficinas, como a nascente desta pesquisa. Os encontros de criação como fonte de saberes Perceber esses encontros como nascente, fontes de saberes, foi revelador para minha compreensão enquanto educadora. As experiências de criança, que já mencionei, quando dava aula a outras crianças, e a satisfação e encantamento por estar com outras pessoas, me habita até hoje. Quando mudei para São Paulo e cursei graduação em Artes Visuais, esses encontros se tornaram possíveis com minha atuação como educadora em instituições culturais. No Centro Cultural São Paulo, em 2009, aprendi, entre tantas coisas, que uma visita (o que hoje entendo como qualquer encontro em contexto educativo, como oficina e aula) podia ser uma obra de arte27. Entender o encontro com as pessoas como o objetivo em si, como uma criação artística, e não se voltar ao objeto da arte como fim, me impactou e nunca mais esqueci disso. Até hoje procuro propiciar encontros com as pessoas de todas as idades, lugares e contextos que sejam como obras de arte, que sejam experiências artísticas. 27 Fala do artista e educador Guilherme Teixeira, na época diretor do setor educativo do Centro Cultural São Paulo. A experiência no Centro Cultural foi muito importante para as escolhas que tomaria nos caminhos da arte educação. 50 Na Casa das Rosas atuei como educadora de 2010 a 2013, e além de realizar visitas para grupos escolares, espontâneos (aqueles que chegavam sem agendamento prévio) e elaborar a programação do público infantil, pude propor e realizar oficinas para as famílias, que faziam parte da programação “Domingo em família”. Essa atividade em específico me proporcionou uma experiência de estar com as pessoas e os livros de forma experimental, laboratorial. A Casa das Rosas, como espaço de poesia e literatura, organiza exposições e a programação de cursos e atividades como saraus, shows, eventos, com esse enfoque. Foi lá que minha paixão e pesquisa em torno do livro para a infância começou. Assim, como educadora, eu podia, a cada oficina para famílias, visita a grupos escolares e outras atividades, criar formas e estratégias de convidar as pessoas para as experiências artísticas que intuía. As oficinas e o convite a fazer livros viraram a minha pesquisa: experimentava leituras com as famílias, procurava cursos para me informar mais sobre literatura infantil, criava livros junto com os participantes e, assim, ia experimentando esse ser educadora e criadora de livros. As oficinas que começaram na Casa das Rosas, migraram para outros lugares da cidade de São Paulo, se constituindo a minha pesquisa de mestrado: “Experiências com livros que exploram a sua materialidade: mediações e leituras possíveis”28. Neste trabalho trago discussões sobre mediação de leitura e encontros propiciados pelas oficinas, incluindo o momento que proponho a criação de livros. Assim, desde 2010 na Casa das Rosas, eu convido as pessoas a criarem livros durante encontros em contextos educativos e culturais. Isso porque fazia parte da minha proposta como educadora esse momento de fazer. Afinal, como estabelecer um vínculo entre as pessoas e os livros (um dos meus objetivos) se não pudesse propiciar esse lugar da experimentação, da criação, em que as e os participantes pudessem ser criadores e autores da própria história? Com o tempo fui expandindo os contextos: podia estar com crianças e famílias em unidades do SESC-SP ou instituições culturais, com um grupo da terceira idade, com professores e pesquisadores em congressos ou eventos 28 Realizada no Instituto de Artes da UNESP, sob orientação da professora Rejane Galvão Coutinho e finalizada em 2015. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/132012. Acesso em: 20 set. 2022. http://hdl.handle.net/11449/132012 51 acadêmicos e com turmas de pós-graduação em cursos voltados para literatura e artes visuais. Assim, para a pesquisa do doutorado, faço um recorte de 2019 em diante, tendo a consciência de que todos os encontros foram importantes para a minha trajetória, mesmo que não apareçam mencionados diretamente. Percebo que os encontros – oficinas, aulas, ateliês – foram acontecendo a partir de um roteiro imprevisível e itinerante. Esse caráter de itinerância sempre esteve presente no meu percurso, a começar pelo meu deslocamento físico – Barra Bonita a São Paulo –, e na pesquisa não foi diferente. Desde o mestrado busco por encontros que me desloquem fisicamente, mas que também possibilitem o deslocamento de pensamentos e de encontros com o desconhecido. No projeto do doutorado, tinha a intenção desde o início de uma diversidade e heterogeneidade de corpos, territórios, perfis de pessoas e profissões que tivessem diferentes interesses voltados aos livros. A pergunta “O que acontece no processo de criação de livros?” poderia se ampliar se eu tivesse em diferentes contextos e com heterogeneidade de lugares e pessoas. Porém, apesar dessa intenção, o percurso não seguiu um roteiro predeterminado. Os encontros foram propiciados por alguns caminhos que já faziam parte da minha vida profissional e outros por oportunidades que foram surgindo ao longo do processo de pesquisa. Estes encontros, em geral, foram propiciados por: – Encontros na instituição cultural do SESC, com ofertas de propostas de cursos e oficinas para um público específico, como crianças e famílias, interessados em geral e terceira idade, – Aulas em cursos de pós-graduação nas instituições educacionais: A Casa Tombada, pela FACONNECT (Faculdade de Conchas) e FMU, – Oficinas esporádicas em seminários, congressos, formação para professores ou em uma programação de algum evento cultural. Por esses caminhos, trago os encontros como potência para o devir, ou seja, como a fonte, onde tudo brota. Como as nascentes, que são formadas por águas subterrâneas, que em um dado momento jorram suas águas para a superfície do solo e renovam o seu ciclo, percebo as oficinas como espaço tempo de acontecimentos. É nesses momentos, em que estamos em coletivo nos 52 espaços de formação, com parceiras e parceiros, que vemos nosso fazer ganhar sentido, histórias aflorarem, mãos começarem a criar. Como o escritor Daniel Munduruku diz: Histórias moram dentro da gente, lá no fundo do coração. Elas ficam quietinhas num canto. Parecem um pouco com areia no fundo do rio: estão lá, bem tranquilas, e só deixam sua tranquilidade quando alguém as revolve. Aí elas se mostram. (MUNDURUKU, 2005, p. 07) Por isso, vejo as oficinas, aulas, ou como possamos nomear esses encontros em que estamos em coletivos, como devires, em que há vida, momentos que podem aflorar essas histórias que estão muitas vezes encobertas, dentro de nós. Às vezes, são as histórias guardadas na gaveta, outras vezes em lugares mais profundos e difíceis de alcançar. Há vida nesse nascer e neste momento não estamos sós. Há companhias, que compartilham suas angústias, descobertas e fazeres. E nesses encontros de águas, de pessoas e suas mãos, movimentos acontecem. Choques, redemoinhos, ou as chamadas pororocas29, que mudam radicalmente os nossos caminhos. A minha viagem por essas águas se deu por um conjunto de acontecimentos, sem poder prevê-los de antemão. Vale dizer que a partir de 2019, quando ingressei no doutorado, o interesse por vivenciar esses encontros estava mais consciente, por isso fiquei atenta às oportunidades que surgiam. Aconteceu, por exemplo, com a oficina no Seminário de Arte e Educação em Rio Branco, no Acre, em que enviei a proposta de oficina com a intenção de fazer parte da pesquisa. De toda forma, não podia prever como seriam os participantes e o desenrolar da oficina. Entendi que essa imprevisibilidade fazia parte do caráter, da natureza dos encontros. As oficinas no Instituto Federal, em Jacareí (SP), e na Imersão Adélia, em Itaipava (RJ), aconteceram a convite de duas colegas que conheciam o meu trabalho e pensaram na oficina como parte de uma programação maior. 29 O termo pororoca é derivado do Tupi que designa “estrondo”, corresponde a um fenômeno natural em que acontece o encontro das águas de um rio com o oceano. O fenômeno se torna mais evidente nas mudanças de fase da lua, especialmente na lua cheia e nova. O processo ocorre quando os níveis das águas oceânicas se elevam e essas invadem a foz do rio, o confronto dessas águas promove o surgimento de grandes ondas que podem atingir até 10 metros de largura e 5 de altura, podendo chegar a uma velocidade que oscila entre 30 e 35 quilômetros por hora. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/pororoca.htm. Acesso em: 10 set. 2020. https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/pororoca.htm 53 Nesse mapa itinerante, vou traçando o caminho de acordo com o meu caminhar, vou desenhando meu deslocamento no encontro com as pessoas e seus fazeres. É importante destacar que, para os encontros acontecerem, sempre tive o acolhimento, a mediação de uma pessoa, no caso sempre mulheres, que possibilitaram, abriram caminhos para que eu pudesse estar e realizar o meu trabalho. Foram importantes apoios e companhias na construção desse mapa, feito assim, a muitas mãos. Uma rede que se formou e que possibilitou o desenrolar desta pesquisa. Agradeço a cada uma. Relato aqui os lugares onde fiz cada parada nesse cursar, e algumas características peculiares de cada encontro. – A Casa Tombada – São Paulo/ Na Nuvem30 A Casa Tombada – São Paulo, de tijolos aparentes, janelas grandes e assoalho de madeira, foi lugar marcante na minha trajetória. Foi onde eu me vi professora, principalmente nas aulas da pós-graduação “O livro para a infância”. O curso, que teve início em 2016 e conta com nove turmas até o momento, foi idealizado pela professora e jornalista Cristiane Rogerio, que divide grande parte das experiências vividas e relatadas nesta pesquisa31. Fui convidada, em 2017, para ministrar a disciplina “O objeto livro”, que compunha cinco ou seis encontros semanais dentro da proposta de um curso de dois anos. Com o tempo, a dinâmica da disciplina e do curso foi se alterando; em 2019 eu entrei para a coordenação da pós e as propostas de criação de livros se transformaram, principalmente no formato virtual, com a Turma VII, a primeira turma 100% online. As pessoas que procuram o curso, em sua grande maioria mulheres, são de diversas áreas de atuação: muitas da área de educação como professoras, mediadoras de leitura, educadoras de instituições culturais ou educativas; bibliotecárias; profissionais ligadas à produção do livro como editoras, ilustradoras, escritoras e designers; mães que estavam dispostas a aprender 30 A Casa Tombada estava localizada até 2020 no bairro Perdizes, na cidade de São Paulo. Com a pandemia, os espaços de expandiram e A Casa Nuvem nasceu, possibilitando encontros na nuvem, virtuais. Hoje, existe uma sede em Bragança Paulista, interior de São Paulo. 31 Junto a Cristiane Rogerio, o curso de pós “O livro para a infância” foi idealizado com Giuliano Tierno, um dos fundadores d’A Casa e coordenador do curso “Narração artística: caminhos para contar histórias em contexto urbano”. 54 mais sobre o assunto motivadas pela maternidade, enfim, estudantes que formam um grupo bem heterogêneo. N’A Casa Tombada também realizei encontros esporádicos, como a oficina “Diálogos com Bruno Munari: ateliê de criação de livros”, para interessados nas pesquisas em torno da materialidade do livro e de estudos sobre o artista. Esta oficina fazia parte da programação de férias de janeiro de 2020. – Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) – São Paulo No mesmo ano em que comecei na pós d’A Casa Tombada, em 2017, também fui convidada para dar aula na pós-graduação lato sensu, no curso “Docência na Educação Infantil”, com a disciplina “As artes e literatura no contexto infantil”. As estudantes, em sua maioria, já atuavam como professoras da educação infantil e os encontros buscavam ofertar olhares sobre a literatura infantil e as artes visuais, em diálogo com as práticas que já realizavam. No ano seguinte, a disciplina foi ofertada para o curso “Artes visuais com ênfase em educação”, reunindo pessoas de outras áreas de formação, como publicidade, marketing, artes visuais, moda, e que buscavam se formar para trabalhar com o público infantil. – Fundação AH – Fazenda Córrego Azul – Brasilândia (MS) A convite de Julia Archangelo Guimarães, diretora da Fundação AH, uma instituição educacional que atende filhos dos funcionários de uma fazenda em Brasilândia, fui convidada para fazer um trabalho de formação para os cinco educadores da fundação e para professores das escolas dos municípios do entorno. A proposta “Mediação de leitura do livro” aconteceu em julho de 2019 e abrangeu pesquisas e práticas para discussão sobre leituras de livros ilustrados. Em um dos dias, realizamos a proposta de criação de livros em pequenos grupos. – Universidade Federal do Acre (UFAC) – Rio Branco (AC) Participando do 3o Seminário de Arte e Educação, realizei a oficina “Histórias em livro: oficina de criação”, como parte da programação. Tive o intermédio dos pesquisadores e professores Hanna Araújo e Leonel Carneiro, 55 que organizaram o seminário. O encontro, que aconteceu em setembro de 2019, reuniu na maioria graduandos dos cursos da UFAC, como psicologia, artes cênicas e pedagogia. – Colégio SESI – Rio Branco (AC) Por conta da minha ida a Rio Branco para o Seminário na UFAC, Hanna Araújo fez a interlocução previamente com Regiana Araújo, coordenadora do SESI, que articulou uma oficina de formação para as professoras do colégio. A oficina “Convites ao livro: ler e criar” reuniu cerca de 25 professoras e aconteceu em setembro de 2019. – Instituto Federal de Jacareí – Jacareí (SP) No Instituto Federal de Jacareí, Maristela Rodrigues, professora do Instituto, intermediou minha atuação no Seminário da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT) e Semana dos Cursos com a oficina “Materialidade do livro para a infância”, em outubro de 2019. Os participantes da oficina eram os estudantes do campus e algumas professoras que se interessaram em participar da proposta. – Imersão Adélia – Itaipava (RJ) O coletivo Adélia, formado por três pesquisadoras do livro para a infância: Anna Luiza Guimarães, Rosa Walcacer e Padmini, me convidou para propor uma oficina no Imersão Adélia, como nomeiam “uma experiência de imersão na natureza e nos livros para a infância”. Com a proposta de oficina “O livro como objeto: inventando narrativas de si”, pude vivenciar um final de semana em um casarão antigo em Itaipava, com quintal e muito verde, junto de mais 11 mulheres que tinham diferentes atuações e relações com o livro para a infância. Essa oficina aconteceu em dezembro de 2019. Essas são algumas passagens que me fortaleceram como educadora, experimentando propostas, registrando, escrevendo, vivendo, coletando experiências e histórias. Por isso, registro esses encontros como marcantes para essa trajetória de fazer livros, em que tive a intenção maior de produzir vestígios para a pesquisa, coletar relatos, fazer fotografias e registrar em cadernos. Mas quero deixar 56 explícito que toda a experiência que tive junto às pessoas em torno do fazer livros foi fundamental para esta pesquisa e está presente de alguma forma. Apresento a seguir esses vestígios, e o que pude coletar no caminho. 14 57 VESTÍGIOS DA PESQUISA: A PRODUÇÃO DE SENTIDOS Os achados da pesquisa e o que encontrei no caminho Crio a metodologia com o caminhar, ou navegar, da pesquisa. Me identifico com a ideia inventiva da pesquisa cartográfica32, que se baseia no pensamento de que não separa sujeito e objeto, conta com os imprevistos e desvios deste percurso e lida com as subjetividades características de uma pesquisa em Arte Educação. Movida pela pergunta “Como encontrar um método de investigação que esteja em sintonia com o caráter processual da investigação?” (KASTRUP, 2015, p. 9), me inspiro em algumas de suas pistas, como “Cartografar é acompanhar processos”, tendo essa ideia de que há sempre um movimento em curso e você, como pesquisadora ou pesquisador, embarca neste mover-se. Trago aqui um jeito de pesquisar que acompanha os fluxos dessas águas que correm. É como se, jogados ao mar, fossemos escolhendo o caminho de acordo com a paisagem que se apresenta a nós ou às necessidades desse percurso. Por isso, vou inventando encontros, jeitos de produzir e guardar os achados, de acordo com as questões que surgem, com a minha escuta e posso dizer que até com os acontecimentos que se dão no mundo e que interferem nos rumos da pesquisa. Como aconteceu com a pandemia de Covid-19 e o isolamento social, que lançou novos desafios, inquietações, necessidades, e assim um mudar de curso, um desvio ao que estava previamente desenhado. Nessa produção de sentidos, houve um olhar de pesquisadora navegadora cartógrafa que se preocupa com os rastros desta pesquisa, produzindo vestígios durante o caminhar33. Vestígio como “rastro, pegada, pista” (CUNHA, 2010, p. 32 O método da cartografia foi sistematizado por vários pesquisadores nas áreas da saúde, educação, cognição, clínica que trabalham com processos de produção de subjetividades. Têm como conceitos a cartografia apresentada por Gilles Deleuze e Félix Guattari, que trazem o princípio do rizoma. O livro Pistas do método da cartografia, que foi o material que acessei para esta pesquisa, é resultado de um processo de estudos entre 2005 e 2007 de professores e pesquisadores do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense e do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro que se reuniam em seminários de pesquisa cujo objetivo era a elaboração das pistas do método da cartografia. 33 “Na maioria das vezes a escrita ‘científica’ deixa poucos rastros das inúmeras implicações que a teceu” (MACHADO, 2004, p. 147). Com essa afirmação, Leila Machado convida a pensar sobre a responsabilidade da pesquisa acadêmica, de narrar o que me sucedeu, de explicar os caminhos, os percursos, as dificuldades. Um compromisso ético com a pesquisa e com os leitores deste trabalho. Imbricada nesse pensamento, conto também com as palavras de Luiza Christov: “O 58 675). Um olhar para o percurso e notar o que me sucedeu, afetou, e o que poderia trazer para perto neste narrar. O que eu encontrava enquanto caminhava? O que ia coletando nesse trajeto? O que me chamava mais a atenção? O que escolhia guardar? Como encontrei formas de materializar esses acontecimentos? Como fui deixando marcas que pudessem ser olhadas depois, que guardassem memórias do que vivi? Quais palavras ficaram em mim? Relato aqui como essa produção foi acontecendo, como alguns fazeres foram surgindo por necessidade, e como algumas ações foram movidas pelo desejo de escuta do processo, tendo consciência de que alguns passos foram dados de forma intuitiva. Vale ressaltar que nem tudo o que produzi ou “guardei” serão investigados com a potência que poderiam ter. Olhando hoje, vejo como algumas ações foram importantes para o processo, mesmo que não apareçam tão explicitamente no trabalho, como as trocas do Grupo Focal, as conversas com alguns professores e as cartas trocadas com uma estudante. A seguir, relato sobre o processo de produção desses vestígios. As cartas Para começar, trago as cartas que coleto desde 2017 como principal vestígio desta pesquisa. São escritas das e dos estudantes e participantes de aulas e oficinas em que as convido a fazerem livros e depois escreverem sobre esse processo. As cartas foram fundamentais para o nascimento desta pesquisa, se revelando como material potente para ser investigado, além de alimentarem as minhas inquietações e estudos sobre os processos de criação de livros. A proposta de pedir que escrevessem em formato de cartas surgiu quando comecei a dar aula em cursos de pós-graduação: “O livro para a infância”, n’A Casa Tombada, e “Docência na Educação Infantil”, na FMU. Em ambas eu trazia um olhar para o livro como objeto e para a sua materialidade, pesquisa realizada texto acadêmico é comprometido com a explicitação dos caminhos percorridos em uma experiência de conhecimento. Todos os textos permitem que se elabore reflexão e conhecimentos, mas o gênero acadêmico exercita esforço de explicitação para mostrar aos leitores como é possível uma investigação e para exibir uma escrita que convide ao conhecimento, para exibir uma escrita que favoreça a busca pela palavra comum, palavra profeto, palavra de criar juntos, de criar coletivamente os territórios de ocupação comum” (CHRISTOV, 2021, p. 12). 59 durante o mestrado. No desafio de transformar a pesquisa em aulas, roteiro e “avaliação”, fui inventando propostas que dialogassem com o conteúdo e a prática de fazer livros foi fundamental para isso. Nesse movimento, pensei que as cartas poderiam compor a minha disciplina como exercício final, como encerramento dos encontros, sendo uma forma de convidar as estudantes a escreverem sobre os percursos. Se o que interessava não era o resultado do livro produzido e sim o processo34, pensei que uma escrita seria fundamental para as reflexões de cada estudante. Uma escrita despretensiosa, em que pudessem narrar a si nesse processo de criação do livro. A linguagem da carta sempre me atraiu pela forma, pelo tom de conversa, de diálogo com um destinatário. As cartas hoje nos remetem à lembrança de algo distante, que é quase raro: escrever com o próprio punho, colocar num envelope, ir ao correio, esperar o tempo de chegar, enfim, uma dinâmica que ficou muito distante dos nossos dias e das formas de nos comunicarmos,