ANGELA DOS SANTOS MACHADO A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA CANAVIEIRA E AS IMPLICAÇÕES PARA A SAÚDE DOS TRABALHADORES ASSENTADOS NO PONTAL DO PARANAPANEMA (SP) ORIENTADOR: MARCELO DORNELIS CARVALHAL CO-ORIENTADORA: ANA LÚCIA DE JESUS ALMEIDA PRESIDENTE PRUDENTE 2020 ANGELA DOS SANTOS MACHADO A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA CANAVIEIRA E AS IMPLICAÇÕES PARA A SAÚDE DOS TRABALHADORES ASSENTADOS NO PONTAL DO PARANAPANEMA (SP) PROCESSO FAPESP: 2017/11731-7 (MS FAPESP) Dissertação elaborada junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia – Área de concentração: Produção do Espaço Geográfico – Linha de Pesquisa: Trabalho, saúde ambiental e movimentos socioterritoriais, para a obtenção do título de Mestre em Geografia. Orientador: Dr. Marcelo Dornelis Carvalhal Co-orientadora: Dra. Ana Lúcia de Jesus Almeida PRESIDENTE PRUDENTE 2020 M149r Machado, Angela dos Santos A reestruturação produtiva canavieira e as implicações para a saúde dos trabalhadores assentados no Pontal do Paranapanema (SP) / Angela dos Santos Machado. -- Presidente Prudente, 2020 218 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente Orientador: Marcelo Dornelis Carvalhal Coorientadora: Ana Lúcia de Jesus Almeida 1. Reestruturação Produtiva. 2. Trabalho. 3. Agrohidronegócio Canavieiro. 4. Reforma Agrária. 5. Campesinato. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências e Tecnologia, Presidente Prudente. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Agradecimentos Agradeço a Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de São Paulo (FAPESP) pela bolsa de estudos concedida e pela Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior (BEPE) que tornaram possível a produção dessa pesquisa de mestrado. Sou grata a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, universidade pública, gratuita e de excelente qualidade, que trouxe para uma filha da classe trabalhadora a oportunidade de se formar como mestra em geografia. Agradeço aos meus pais, Edneia dos Santos e Florisvaldo Ferreira Machado, que, apesar de não terem completado os estudos, sempre me mostraram que o melhor caminho era o do conhecimento. Sou grata por todo o carinho, amor e confiança que minha família atribui a mim, inclusive meus irmãos Filipe dos Santos Machado e Guilherme dos Santos Machado. Além de toda a família ampliada (tias e tios, primos e primas, avós e avôs) que fazem parte dos meus alicerces. Sou grata ao Professor Dr. Marcelo Dornelis Carvalhal e a Professora Dra. Ana Lúcia de Jesus Almeida pela confiança e orientação, além do Professor Dr. Luciano Concheiro Bórquez que gentilmente me orientou no estágio realizado no México. Agradecemos a Universidad Autónoma de México e o programa de pós-graduação em Desarrollo Rural, assim como todos os professores e professoras e colegas da Universidade. Um agradecimento espacial aos funcionários da Seção Técnica de Apoio ao Ensino Pesquisa e Extensão, principalmente a Aparecida Tamae Otsuka que tanto nos ajudou com a submissão do projeto à FAPESP, com as prestações de contas, relatórios e tantas outras questões burocráticas essenciais para a realização da pesquisa. Da mesma forma, agradecemos aos funcionários da Seção Técnica de Apoios Acadêmico: Ivonete Gomes de Andrade, Aline da Silva Ribeiro Muniz, Anderson Clayton Pires Diniz, Cinthia Thiemi Onishi, Lincoln Tadeu Hohara por atenderem prontamente às nossas necessidades acadêmicas. Sinto-me agradecida por ter compartilhado momentos especiais em Presidente Prudente com amigos e amigas que foram fundamentais nessa trajetória. Agradeço especialmente ao Guilherme dos Santos Claudino por me mostrar as múltiplas possibilidades da vida acadêmica, pelas longas conversas de orientação e de amizade, por todas as indicações, conselhos e ajuda para além do âmbito da Pós-Graduação, por compartilhar comigo seu precioso conhecimento sobre o Saber Geográfico. Em nosso lar, que também pode ser chamado de república, compartilhamos bons momentos com Jefferson Martins Costa e Fátima Aparecida da Costa. Um agradecimento especial para as queridas amigas: Leodinilde Pinto Caetano, vinda diretamente de Guiné Bissau para tornar meus dias mais felizes em Presidente Prudente; Camila Giorgini, amiga psicóloga; Lidiana Pinho, por compartilhar comigo as alegrias e as angústias da Pós-Graduação. Com vocês tudo se tornou mais leve, muito obrigada por estarem presentes! Agradeço ao Fredi Bento, companheiro de grupo de pesquisa, pelas valiosas orientações que me ajudaram no período de estágio no exterior. Sou grata aos membros da Revista Formação (Online), inclusive ao Professor Dr. Eliseu Spósito, nosso editor gerente, pelos ensinamentos editorais e pela oportunidade de constituir o Conselho Editorial da revista. Gratidão aos amigos da sala da Pós-Graduação com quem compartilhei angústias, cafés, referenciais teóricos e debates: Guilherme Claudino, Lidiana Pinho, Leodinilde Pinto Caetano, Antônio Eusébio de Sousa, Gustavo Henrique Pereira da Silva, Ester Ribeiro, Marcos Campos, Rizia Mendes, Adriano Oliveira, Bruno Lessa, Carlos Eduardo das Neves, Jean da Silva Cruz, Fredi Bento, Fátima Costa, Franciele Valadão, Barbara Hayashida e todos aqueles com quem dividi esse espaço em algum momento. Também não poderia me esquecer dos amigos que estão comigo desde a graduação em Ourinhos: Débora Jurado, Cristiano Alves, Estevão Júnior e Marcos Dutra. Além disso, é imprescindível recordar-me do apoio fundamental de Marcio Lima dos Santos durante minha trajetória de mestrado e da amizade de longa data de Jucilene de Fátima Rodrigues. Sou grata ao Centro de Estudos de Geografia do Trabalho (CEGeT) e ao Centro de Estudos sobre Trabalho, Ambiente e Saúde (CETAS), coordenados pelo Professor Dr. Antônio Thomaz Júnior, por me aceitarem como parte da equipe e por todo o trabalho coletivo que construímos. Meus agradecimentos mais profundos vão para as trabalhadoras e os trabalhadores que nos concederam as entrevistas, abrindo-nos as portas de suas casas, dispostos a conversar sobre assuntos que dizem respeito a suas vidas e atividades laborais. Agradeço ao banco de dados DataCetas pelo acesso as entrevistas que já haviam sido realizadas anteriormente, assim como aos profissionais de saúde e gestores públicos que nos concederam entrevistas. Por fim, sou grata pelas sugestões da banca de qualificação que tanto nos ajudaram a construir essa dissertação, cujos membros foram o Dr. Guilherme Marini Perpétua e a Dra. Maria Joseli Barreto, quem também aceitou estar presente na banca de defesa, juntamente com o Dr. Carlos Alberto Feliciano. Agradeço pela leitura atenta da dissertação e pelas importantes sugestões e críticas. Tudo muito contraditório. Agronegócio é um nome muito bonito e é um nome ideológico para identificar uma prática histórica que é uma prática do latifúndio, da exploração e da monocultura no país. Então só muda o nome, não é mais capitania hereditária, não é mais sesmaria, não é mais latifúndio, agora é agronegócio. Da escravidão indígena e africana às colheitadeiras movidas por satélite, no final das contas permanece a opressão, a violência contra os nossos povos, a expropriação e o extermínio, uma política genocida que definitivamente não recua. (Edson Kayapó) RESUMO O tema central dessa pesquisa de mestrado é a venda da força de trabalho de assentados da reforma agrária ao setor canavieiro, no Pontal do Paranapanema. Esses assentados são agregados nos lotes dos pais, ou seja, são os filhos daqueles que lutaram e conquistaram a terra. Esses sujeitos são, ao mesmo tempo, camponeses e trabalhadores assalariados no agrohidronegócio canavieiro. Discutimos as relações de trabalho no setor e o processo saúde-doença na atual etapa de reestruturação produtiva caracterizada pelas atividades agrícolas mecanizadas, pelas mudanças na organização do trabalho e pelo trabalho precário, terceirizado e pelo desemprego gerado na lógica flexibilizada da acumulação capitalista. Percebemos que os maiores riscos para a saúde e a segurança dos trabalhadores que atuam nas funções mecanizadas são decorrentes do ritmo intenso das atividades laborais, da forte pressão para atingir as metas e a falta de pausas na jornada de trabalho. Esse ritmo frenético causa colisões, tombamentos e incêndios nas máquinas. Além disso, o trabalho noturno e em turnos de revezamento também podem constituir fatores de risco para os trabalhadores já que eleva o estresse, o cansaço e o desgaste do corpo. Assim, apesar da máquina estar fortemente presente nos canaviais e ter gerado um grande desemprego no setor, o trabalho humano ainda é imprescindível no plantio e corte de cana-de-açúcar. Esse trabalho mecanizado, representado como o oposto do corte manual de cana-de-açúcar, na verdade esconde faces perversas de superexploração do trabalho em que se pode evidenciar o prolongamento da jornada laboral, o ritmo intenso do trabalho e os baixos salários, sem o acréscimo de valor na força de trabalho em razão da elevação da qualificação profissional. A superexploração do trabalho e as formas de exploração da renda camponesa não são exclusivas do Brasil, mas foram construídas historicamente pelo modo como os países latino-americanos foram colonizados, inseridos na divisão internacional do trabalho e impactados pelas políticas neoliberais. Assim, analisamos o contexto da exploração e resistência camponesas em múltiplas escalas de análise (Pontal do Paranapanema, Brasil e América Latina) a partir da experiência de estágio de pesquisa no México, trazendo exemplos desse país que podem ser relacionados com nossa área de estudo. O Pontal do Paranapanema tem um complexo histórico de grilagem de terras em que diversas frações do território ainda estão em disputa judicial e mesmo uma parte das terras que já foram julgadas como devolutas ainda não foram redirecionadas para a reforma agrária. A expansão do agrohidronegócio canavieiro tem servido para legitimar a grilagem e limitar a reforma agrária. Além disso, a grande extensão dos canaviais tem causado impactos para toda a população que vive nos municípios canavieiros em razão da pulverização aérea de agroquímicos que contamina as áreas urbanas, rurais e florestais. Palavras-chave: Reestruturação Produtiva. Trabalho. Agrohidronegócio canavieiro. Reforma Agrária. Campesinato. ABSTRACT The central theme of this master’s research is the sale of land reform settlers' work to the sugarcane sector at Pontal do Paranapanema. These settlers are aggregated in the parent's lots, that is, are the children of those who fought and conquered the land. These subjects are, at the same time, peasants and workers in the sugarcane agro-hydro-business. We have discussed working relations in the sector and the health-care process in the current phase of productive restructuring, characterized by mechanized agricultural activities, for changes in work organisation and precarious, outsourced work and the resulting unemployment in the flexible logic of capital accumulation. We understand that the greatest risks to mechanized workers' health and safety are due to the intense pace of work, strong pressure to achieve the goals and the lack of breaks in the working day. This frantic pace causes collisions, engine overturns and fires. In addition to this, night and shift works may also constitute risk factors for workers since it increases stress, fatigue and the wear of the body. Thus, although the machine is strongly present and have generated a great unemployment in the sugarcane fields, human labour is still imperative in the planting and cutting of sugarcane. This mechanized work, portrayed as the opposite of manual sugarcane cutting, in fact hides wicked faces of overexploitation of labour in which can be seen the extension of working hours, the intensified work schedule and the low pay, without the workforce value increase on account of the professional upgrading of skills. The overexploitation of work and the forms of peasant income-exploitation are not exclusive of Brazil, but were historically built by the way Latin American countries were colonized, within the international division of labour and impacted by neoliberal policies. Thus, we have analysed the context of peasant exploitation and resistance in multiple scales (Pontal do Paranapanema, Brazil and Latin America) from research internship experience in Mexico, bringing examples from this country that can be related to our study area. Pontal do Paranapanema has a historic land squatting complex in which several fractions of the territory are still in judicial dispute and even a portion of the land already found to be vacant has not yet been diverted to land reform. The expansion of the sugarcane agrohidronegobusiness has served to legitimize the squatting and to limit agrarian reform. In addition to this, the large extension of sugarcane fields has had an impact on the entire population living in the municipalities because of aerial spraying of agrochemicals that poisons urban, rural and forest areas. Keywords: Productive Restructuring. Work. Sugarcane Agrohydron Business. Agrarian Reform. Peasantry. Lista de Siglas CEBs - Comunidades Eclesiais de Base CEGeT - Centro de Estudos de Geografia do Trabalho CETAS - Centro de estudos do Trabalho, Ambiente e Saúde CONAB - Companhia Nacional de Abastecimento CPI - Comissão Parlamentar de inquérito CPT - Comissão Pastoral da Terra CUT - Central Única dos Trabalhadores EPI - Equipamentos de Proteção Individual FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo FHC - Fernando Henrique Cardoso FETAESP - Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de São Paulo F&As – Fusões e Aquisições GEBAM – Grupo Executivo para a Região do baixo Amazonas GETAT – Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IED – Investimento Externo Direto INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária MP – Medida Provisória MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MTE - Ministério do Trabalho e Emprego NERA - Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária ONU – Organização das Nações Unidas PAA - Programa de Aquisição de Alimentos PNAE - Programa Nacional de Alimentação Escolar PND – Plano Nacional de Desenvolvimento PPGG - Programa de Pós-graduação em Geografia PROÁLCOOL - Programa Nacional do Álcool PT – Partido dos Trabalhadores UAM - Universidad Autónoma Metropolina UDR - União Democrática Ruralista UNESP – Universidade Estadual Paulista USP - Universidade de São Paulo LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Fotos do Assentamento Luís de Moraes, Caiuá-SP. ..................................... 32 Figura 2 - Apresentação do Atlas sobre uso de agrotóxicos no Brasil na Câmara Municipal de Sandovalina-SP. .................................................................................... 33 Figura 3 - Entrada do Assentamento Água Sumida cercado pela cana-de-açúcar. ........ 34 Figura 4 - Acampamento do MST localizado em Mirante do Paranapanema-SP. ......... 34 Figura 5 - Mapa da Província de São Paulo (1886) ...................................................... 63 Figura 6 - Bayer: Fusões e Aquisições, 2000-2007. PELAEZ, V. ................................ 89 Figura 7- Formas de pulverizações utilizadas nas lavouras de cana-de-açúcar (1-aérea; 2-tratorizada; 3-manual) ............................................................................................ 103 Figura 8 - Produtos derivados da cana-de-açúcar ....................................................... 110 Figura 9 - O processo de produção e de trabalho na cana-de-açúcar no contexto de mecanização do plantio e colheita de cana-de-açúcar ................................................ 120 Figura 10 - Parte da estrutura de produção e de trabalho na produção de cana-de-açúcar ................................................................................................................................. 123 Figura 11 - Entrega das cestas agroecológicas Raízes do Pontal ................................ 144 Figura 12 - Entrega das cestas agroecológicas Raízes do Pontal ................................ 145 Figura 13 - Entrega das cestas agroecológicas Raízes do Pontal ................................ 145 Figura 14 - Produção de alimentos agroecológicos no Assentamento Rodeio - Presidente Epitácio ................................................................................................... 146 Figura 15 - Produção de alimentos agroecológicos no Assentamento Porto Maria - Rosana ...................................................................................................................... 146 Figura 16 - Empresa mexicana de hortaliças Los Pinos em San Quintín - Baja California ................................................................................................................................. 174 Figura 17 - Produção em estufas em San Quintín - Baja California ........................... 175 Figura 18 - Rua sem pavimentação no Valle de San Quintín -Baja California............ 177 Figura 19 - Comunidade vizinha às estufas da empresa Los Pinos ............................. 177 Figura 20 - Assembleia dos povos Masehual, Tutunakú, Náhuatl e Mestiço na Defesa da Vida e da Mãe Terra ................................................................................................. 182 Figura 21 - Assembleia dos povos Masehual, Tutunakú, Náhuatl e Mestiço na Defesa da Vida e da Mãe Terra ................................................................................................. 182 Figura 22 - Assembleia dos povos Masehual, Tutunakú, Náhuatl e Mestiço na Defesa da Vida e da Mãe Terra ................................................................................................. 183 Figura 23 - Atenção Integral da Saúde da Tosepan Pajti ............................................ 185 Figura 24 - Trabalho da Tosepan Pajti ....................................................................... 186 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Área ocupada (ha) por cultivos agrícolas selecionados no Brasil (2000-2018) ................................................................................................................................... 49 Gráfico 2 - Diferença proporcional entre pequeno, médio e grande estabelecimento no volume da produção de importantes alimentos consumidos no Brasil - 2006 ............... 50 Gráfico 3 - Financiamento Rural - aplicação efetiva de recursos (em R$ milhões) ...... 55 Gráfico 4 - Evolução da produção de açúcar e etanol no Brasil (1980-2019) ............... 62 Gráfico 5 - Número de assentamentos rurais criados no Pontal do Paranapanema (1985- 2013) .......................................................................................................................... 75 Gráfico 6 - Número de famílias assentadas no Pontal do Paranapanema (1985-2013) .. 75 Gráfico 7 - Número de ocupações no Pontal do Paranapanema (1988-2013) ............... 76 Gráfico 8 - Número de famílias em ocupações no Pontal do Paranapanema (1988-2013) ................................................................................................................................... 76 Gráfico 9 - Expansão da área cultivada (ha) com cana-de-açúcar nos municípios do Pontal do Paranapanema (2003-2018) ......................................................................... 94 Gráfico 10 - Recursos destinados ao PAA em milhões de reais (2003-2018) ............. 153 LISTA DE MAPAS Mapa 1 - Distribuição dos assentamentos e do monocultivo de cana-de-açúcar na RA de Presidente Prudente (2016) ......................................................................................... 22 Mapa 2 - Situação jurídica das terras no Pontal do Paranapanema (2016) .................... 79 Mapa 3 - Fluxos de capitais: a internacionalização do capital agroindustrial canavieiro no Brasil ..................................................................................................................... 91 Mapa 4 - Espacialização dos grupos internacionais no Brasil no âmbito do agrohidronegócio canavieiro ....................................................................................... 92 Mapa 5 - Evolução da área cultivada com cana-de-açúcar no Pontal do Paranapanema (2003-2016) ................................................................................................................ 95 Mapa 6 - Valle do San Quintín, estado de Baja Califórnia, México ........................... 169 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Agroindústrias canavieiras instaladas no Pontal do Paranapanema (1974- 1982) .......................................................................................................................... 73 Quadro 2 - Relação de unidades agroindustriais canavieiras no Pontal do Paranapanema ................................................................................................................................... 93 Quadro 3 - Ocupações desenvolvidas na produção mecanizada de cana-de-açúcar .... 118 Quadro 4 - Alteração da CLT que trata das horas in itineri ........................................ 163 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Brasil: Estrutura Fundiária – Número e área dos estabelecimentos em 2017 por classes de área....................................................................................................... 51 Tabela 2 - Número de assentamentos, famílias e área por município - Pontal do Paranapanema (1985-2016) ......................................................................................... 80 SUMÁRIO Apresentação .............................................................................................................. 17 Introdução................................................................................................................... 21 O percurso de construção da dissertação ..................................................................... 28 Trabalhos de campo no Pontal do Paranapanema ........................................................ 31 A produção dos roteiros de entrevistas ........................................................................ 35 A produção das entrevistas .......................................................................................... 37 Organização da dissertação ......................................................................................... 40 CAPÍTULO 1 - DO MODELO PRIMÁRIO EXPORTADOR À LUTA PELA TERRA ...................................................................................................................... 43 1.1 O passado colonial e a colonialidade presente: a espoliação dos territórios e o modelo primário exportador ........................................................................................ 44 1.2 A cana-de-açúcar como herança colonial e a histórica dependência dos recursos do Estado ......................................................................................................................... 52 1.3 Pontal do Paranapanema: um histórico de grilagens de terra .................................. 63 1.4 A reforma agrária e a monocultura de cana-de-açúcar no Pontal do Paranapanema 68 CAPÍTULO 2 - REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E IMPLICAÇÕES NO TRABALHO E NA SAÚDE ..................................................................................... 83 2.1. A reestruturação produtiva do sistema capitalista de produção.............................. 83 2.2. A mundialização do capital e a formação dos oligopólios no agrohidronegócio canavieiro ................................................................................................................... 86 2.3 A reestruturação produtiva no agrohidronegócio canavieiro e os impactos no trabalho e na saúde ...................................................................................................... 98 CAPÍTULO 3 - CAMPESINATO, TRABALHO E PROCESSO SAÚDE- DOENÇA................................................................................................................. 138 3.1. O campesinato no Pontal do Paranapanema: assalariamento, formas de subordinação da renda camponesa e resistências ....................................................... 139 3.2. As formas de exploração do campesinato e a superexploração do trabalho ......... 154 3.3 A superexploração do trabalho no setor canavieiro.................................................161 3.4. Tecendo relações entre Brasil e México acerca da superexploração do trabalho camponês .................................................................................................................. 170 3.5. Tosepan Titataniske (Unidos Venceremos): organização camponesa e indígena para uma vida plena de sentido e de saúde ........................................................................ 180 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 193 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 197 ANEXO I ................................................................................................................. 212 ANEXO II ............................................................................................................... 216 ANEXO III .............................................................................................................. 217 17 Apresentação Nosso primeiro contato com a área de estudo, o Pontal do Paranapanema, foi em 2012, no trabalho de campo da disciplina de “Geografia Rural”, ministrada pelo professor Dr. Marcelo Dornelis Carvalhal, durante a graduação em Geografia, cursada na Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Ourinhos. Nas aulas discutíamos a questão agrária brasileira e tomávamos consciência da concentração fundiária, da luta pela terra, da violência no campo, do campesinato e da produção agropecuária do país. O trabalho de campo nos proporcionou a oportunidade de conhecer o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e desconstruir concepções equivocadas veiculadas pela mídia. Conhecemos o acampamento Dorcelina Folador, na beira da rodovia, em que famílias inteiras (homens, mulheres, crianças e idosos) viviam sem as mínimas condições de conforto e bem-estar. Na época, percebi o quanto era necessário ter convicção e força para lutar pela terra no Brasil. Apesar das condições difíceis, as famílias acampadas compartilharam conosco sua comida e suas ideias em um diálogo que nos sensibilizou para a questão agrária. Além do acampamento, conhecemos o assentamento Guarani (nome oficial), mas denominado pelos moradores como assentamento Dom Tomás Balduíno, em Sandovalina, onde conhecemos o Sistema Agroflorestal com produção de café associada a outros cultivos como milho, feijão, mandioca e árvores frutíferas e nativas1. O trabalho de campo trouxe-nos muitas inquietações, enquanto percorríamos a estrada no ônibus da universidade chamava-nos a atenção a monocultura canavieira, a paisagem monótona, a falta de árvores e de gente, praticamente só havia cana-de-açúcar. Por outro lado, nos assentamentos observamos um projeto muito interessante, com produção diversificada, familiar e sustentável. Percebíamos então a oposição entre o agronegócio e o campesinato. Além disso, conversamos com pessoas como o Sr. Roberto que nos contou sobre sua história, como e por quê se engajou na luta do MST, com relatos de vida emocionantes e uma simplicidade que mostrava que quem entra nessa luta quer apenas um pedaço de terra para produzir e viver. Também estava conosco o Valmir e o Gerson, ambos 1 Foi produzido um vídeo desse trabalho de campo que pode ser consultado. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=J8CUIQvWHjo. Acesso 30 ago. 2019. 18 militantes do movimento e geógrafos, que nos deram um panorama muito interessante sobre o contexto agrário no Pontal do Paranapanema e a atuação do MST. No final da graduação iniciei meus primeiros passos na pesquisa em Geografia Agrária, sob a orientação do prof. Marcelo Dornelis Carvalhal, defendendo, em 2015, o Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Campesinato e agronegócio: a resistência dos pequenos produtores rurais frente à expansão canavieira em Paraguaçu Paulista/SP”. Após a conclusão da graduação, decidi continuar no campo da pesquisa submetendo-me ao processo seletivo do mestrado na UNESP, campus de Presidente Prudente, pois sabia que havia uma tradição de estudos agrários na geografia prudentina e que poderia continuar sob a orientação do prof. Marcelo. Ao ser aprovada no processo seletivo, comecei a fazer parte do Centro de Estudos de Geografia do Trabalho (CEGeT) e do Centro de Estudos do Trabalho, Ambiente e Saúde (CETAS) que já vinha desenvolvendo pesquisas sobre a expansão da cana-de-açúcar no Pontal do Paranapanema, por meio do projeto temático FAPESP “Mapeamento e análise do território do agrohidronegócio canavieiro no Pontal do Paranapanema - São Paulo - Brasil: relações de trabalho, conflitos e formas de uso da terra e da água e a saúde ambiental”2. Após dialogar com colegas do grupo de pesquisa, com o orientador e com coordenador do projeto temático, o prof. Dr. Antônio Thomaz Júnior, decidimos o tema da pesquisa de mestrado. Até o momento não haviam trabalhos que discutissem a questão das assentadas e dos assentados agregados3 que vendem sua força de trabalho ao capital canavieiro no Pontal do Paranapanema. Os estudos até então realizados ou focavam nas trabalhadoras e nos trabalhadores canavieiros ou nas assentadas e nos assentados, mas não nesse sujeito que vive a duplicidade de ser, ao mesmo tempo, camponês/camponesa e assalariado/assalariada nos domínios do agrohidronegócio4 canavieiro. Ao mesmo tempo que a pesquisa visa discutir tal condição, mediante as relações entre a reforma agrária e o agrohidronegócio, no Pontal do Paranapanema, também é nosso foco compreender as relações de trabalho e o processo saúde-doença implicado na dinâmica do trabalho. A partir dessa perspectiva, surgiu a ideia de vincular a Profa. Dra. 2 Processo: 2012-23959-9. 3 As assentadas e os assentados agregados são aqueles que vivem nos lotes dos pais, geralmente buscam conquistar um lote para si e para a família que constituíram. 4 A definição de “agrohidronegócio” pode ser consultada à frente, na parte introdutória nessa dissertação. 19 Ana Lúcia de Jesus Almeida à pesquisa como co-orientadora por ela ser da área da saúde e participante da equipe de pesquisadores do CETAS. O objetivo central da pesquisa é compreender como o trabalho agrícola na produção de cana-de-açúcar pode trazer implicações à saúde dos trabalhadores, assentados no Pontal do Paranapanema, tendo em vista as “novas” formas de intensificação do trabalho em decorrência da reestruturação produtiva e as diferentes formas de trabalho precário, temporário, terceirizado e até mesmo o desemprego gerados pela atual lógica flexibilizada de acumulação capitalista. Assim, buscamos investigar de que modo a atividade canavieira, no atual momento de transição tecnológica ou passagem do corte manual para o mecanizado, pode afetar a saúde das pessoas que atuam operando máquinas colheitadeiras, tratores, caminhões, dentre outras atividades inseridas na dinâmica de trabalho do agrohidronegócio canavieiro, no Pontal do Paranapanema. Concordamos com Barreto (2018) que as máquinas e as inovações tecnológicas invizibilizam as reais condições de trabalho, pois dissociam a produção de cana-de-açúcar do trabalho degradante. O trabalho que era representado pelo cortador de cana, revestido de fuligem, agora é ressignificado pela imagem do operador de máquinas colhedoras equipadas com ar-condicionado. Portanto, buscamos desmistificar essa imagem e entender o cotidiano de trabalho associado à tecnificação no agrohidronegócio canavieiro. Além disso, nossos objetivos específicos visam responder as seguintes questões: por que as famílias assentadas necessitam buscar renda fora do lote? Por que escolhem vender sua força de trabalho justamente ao capital canavieiro? Por que não conseguem viver da produção nos assentamentos? Como esse trabalho fora do lote pode afetar a dinâmica dos assentamentos? Quais as condições de trabalho enfrentadas no setor canavieiro? Como esse trabalho pode afetar a saúde das trabalhadoras e dos trabalhadores? Qual a percepção desses sujeitos no que se refere ao trabalho para o capital e o trabalho no lote? Como são afetados pela expansão da monocultura de cana-de açúcar? A pesquisa tem como recorte temporal o período entre 2005 e 2018, pois foi a partir de meados dos anos 2000 que se efetivou mais profundamente a reestruturação produtiva canavieira no Pontal do Paranapanema em razão da valorização do etanol e do surgimento dos automóveis flex fuel que atraíram capitais internacionais e levaram à expansão da atividade canavieira. O recorte temporal se estende até 2018, pois foi o ano em que finalizamos nossa pesquisa empírica. 20 Com relação ao recorte espacial da pesquisa, enfatizamos que nossa área de estudos é o Pontal do Paranapanema, no sudoeste do estado de São Paulo. Localidade que apresenta mais de uma centena de assentamentos da reforma agrária e uma grande extensão de terras destinadas à cana-de-açúcar. Em razão de sua grande extensão, elegemos três municípios para trabalhar com entrevistas - Sandovalina, Mirante do Paranapanema e Teodoro Sampaio. O critério de escolha desses municípios foi o avanço da mecanização no processo produtivo de cana-de-açúcar. Apesar da centralidade desses municípios, também estivemos em assentamentos de outros municípios do Pontal do Paranapanema, tais como Caiuá, Presidente Epitácio e Marabá Paulista, em atividades de disciplinas da pós-graduação e atividades de pesquisa coletiva referentes ao Projeto Temático e ao Coletivo CETAS de Pesquisadores. Nesse ponto, vale ressaltar que esta dissertação é fruto de um trabalho coletivo realizado por dezenas de pesquisadores no âmbito do Projeto Temático/FAPESP já citado, por isso revisamos pesquisas com marcos temporais diferentes que visam construir um entendimento acerca do avanço do agrohidronegócio canavieiro no Pontal do Paranapanema e seus impactos ambientais e sociais. Essas pesquisas, assim como esta dissertação, são construções coletivas realizadas pela equipe CETAS de pesquisadores. A seguir, na introdução, realizamos uma apresentação sobre a problemática da expansão da cana-de-açúcar, no Pontal do Paranapanema, e as implicações para os assentamentos da reforma agrária. Na sequência, tratamos do percurso de construção da dissertação com enfoque na abordagem teórico-metodológica da pesquisa qualitativa em que as entrevistas foram escolhidas como fonte de informação da presente investigação. 21 Introdução No Pontal do Paranapanema, extremo sudoeste do estado de São Paulo, existem mais de uma centena de assentamentos da reforma agrária conquistados pela luta dos movimentos socioterritoriais (FERNANDES, 2005a), além de uma terra indígena (TI) denominada TI Vanuíre, localizado no município de Arco-Íris, próximo à Tupã. O Pontal do Paranapanema é uma área marcada pela violência contra os povos originárias que foram assassinados e expulsos de seus territórios, como em todo o Brasil, e por um complicado histórico de grilagem de terras (LEITE, 1998; FELICIANO, 2009). A cana-de-açúcar tem sido uma estratégia de ocupação de terras públicas com o intuito de justificar a grilagem (THOMAZ JÚNIOR, 2017a). O plantio da monocultura que teve início nos anos 1970, intensificou-se em meados dos anos 2000. Nesse contexto, tanto os assentamentos quanto a terra indígena estão praticamente “cercados” pela monocultura da cana-de-açúcar5. Uma das maiores preocupações decorrentes desse fato é que a pulverização aérea de agrotóxicos nos canaviais tem atingido tudo a sua volta (assentamentos, terra indígena, áreas rurais e urbanas, unidades de conservação, rios, água subterrânea, animais) por meio do fenômeno da deriva dos agrotóxicos (PIGNATI, 2007). No mapa 1 podemos observar a espacialização da cana-de-açúcar na Região Administrativa (RA) de Presidente Prudente que engloba o Pontal do Paranapanema. Também podemos visualizar a localização dos assentamentos e da maior reserva de Mata Atlântica do Oeste Paulista, cercados pela monocultura canavieira. As pesquisas realizadas pelo CETAS apontam inúmeras consequências da expansão da cana-de-açúcar, no Pontal do Paranapanema. Romagnoli (2018) evidencia que os municípios de e Mirante do Paranapanema apresentam inconformidades com relação ao risco de contaminação de animais e plantas aquáticas por agrotóxicos. A Hexazinona e o Tebuthiuron foram encontrados em uma quantidade que representa um risco agudo à vida aquática. Além disso, com relação ao risco de contaminação da água subterrânea ressalta que toda a região do Pontal do Paranapanema pode ser considerada naturalmente vulnerável por estar sobre o aquífero Bauru que tem recarga direta. 5 Esse “cercamento” é percebido pelas famílias assentadas entrevistadas pela equipe CETAS e nessa pesquisa. Também tivemos a oportunidade de constatar a mesma percepção por parte de uma representante dos kaingang da aldeia Vanuíre em uma conversa informal. 22 Fonte: DataCETAS (2019). Mapa 1 - Distribuição dos assentamentos e do monocultivo de cana-de-açúcar na RA de Presidente Prudente (2016) 23 De acordo com Moroz-Caccia Gouveia, Gouveia e Pimenta (2017), grande parte do Pontal do Paranapanema encontra-se com alto grau de fragilidade ambiental com relação aos processos erosivos sendo que esse problema atinge principalmente as áreas de pastagens (um processo erosivo a cada 2,87 km2), as áreas com cultivo de cana-de- açúcar (um processo erosivo a cada 3,91 km2), as áreas urbanas (um processo erosivo a cada 4,87 Km2) e as áreas de culturas temporárias (um processo erosivo a cada 5,02 Km2). Vale mencionar que a erosão remove as camadas férteis dos solos reduzindo a capacidade produtiva da terra e, consequentemente, diminuindo as áreas adequadas à agricultura, fato que, por sua vez, leva ao aumento da apropriação de novas áreas agricultáveis e à utilização de agroquímicos para a correção do solo. Sem contar que grande parte do solo perdido é transportado para rios e corpos d’água causando assoreamento e levando a diversos problemas ambientais (FERREIRA, 2012; PRUSKI, 2006). Araújo et al. (2017) analisam a apropriação da rede hidrográfica do Pontal do Paranapanema com relação à monocultura de cana-de-açúcar. Novamente destaca-se o município de Sandovalina com 88% de sua rede de drenagem envolvida com a atividade canavieira, sendo que a área total do município é de 455 km2 e a cana-de-açúcar ocupa 329 km2. Por isso, vale a pena ressaltar o “hidro” do “agro” para evidenciar que mais do que a apropriação da terra, a água é uma questão estratégica para o agrohidronegócio. O agrohidronegócio pode ser entendido como um conjunto de empreendimentos cuja atividade vital está relacionada à apropriação das melhores terras (férteis, planas e com infraestrutura de transportes) e de sua disponibilidade hídrica (águas superficiais e subterrâneas). Alguns exemplos de tais empreendimentos são o agronegócio, a mineração, a especulação de terras, a aquicultura, a produção de hidroeletricidade etc. (MENDONÇA; MESQUITA, 2007; THOMAZ JÚNIOR, 2010; BARRETO, 2018; PERPERTUA, 2017). Gonçalves (2019), realizou análise das características físicas e químicas dos sedimentos em leitos e depósitos aluviais nas áreas de monocultura canavieira, no Pontal do Paranapanema, em que se pode constatar a presença de metais pesados, sobretudo o chumbo, em quantidade muito superior ao que é regulamentado pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (CETESB), decorrente da intensa utilização de agroquímicos nas atividades agrícolas. Além de todas as consequências ambientais da dominação da monocultura canavieira no território do Pontal do Paranapanema, também existem evidencias de que 24 a população vem sofrendo os efeitos da contaminação por agrotóxico. Em entrevista realizada com a secretária de saúde do município de Sandovalina6, foi relatado que houve elevação dos casos de câncer e de doenças respiratórias e que esse aumento coincide com a expansão da cana-de-açúcar desde 2005. Além disso, a secretária confirmou que o município de Sandovalina, com menos de quatro mil habitantes, é o segundo do estado com mais casos de má formação congênita, como destacado também em meios de divulgação eletrônicos (CASTILHO, 2018). No entanto, a secretária fez questão de ressaltar que não se pode confirmar o nexo causal dos adoecimentos com a expansão canavieira. Essa é uma questão muito preocupante que envolve a inversão do ônus da prova, ou seja, ao invés dos setores produtivos que utilizam agroquímicos terem que comprovar que não há risco para a saúde humana e ambiental, são os cientistas que devem comprovar a associação dos adoecimentos com o uso dessas substâncias. Apesar de diversos autores apontarem essa relação (PIGNATI, 2007; BOMBARDI, 2011; 2017; RIGOTTO, 2012, 2014; PIGNATI; OLIVEIRA; SILVA, 2014), existe uma dificuldade de comprovar, por exemplo, que o câncer foi causado pelos agroquímicos porque existem diversas outras variáveis que podem estar relacionadas ao adoecimento como a própria genética ou pré- disposição. Com relação aos problemas enfrentados pela população do campo, as entrevistas realizadas por nós e pela equipe CETAS com os assentados do Pontal do Paranapanema mencionam graves doenças nos animais de criação, como câncer em vacas, além da percepção da redução de abelhas e até de peixes nos rios. Os entrevistados também mencionam que após a pulverização aérea as plantas começam a amarelar ocasionando a perda de alimentos, tais como abóbora, quiabo, maxixe, melancia, mamão, feijão de vara (vagem), hortaliças etc. Assim, a contaminação da natureza tem representado um grave problema de saúde pública e ameaça a reprodução social das famílias que perdem sua produção ou testemunham sua danificação e contaminação. Além disso, é comum relatos de problemas alérgicos que podem estar relacionados aos agrotóxicos. Um dos casos mais emblemáticos, no Pontal do Paranapanema, é a mortandade do bicho-da-seda após a expansão canavieira. Os criadores de bicho-da-seda são pequenos produtores e assentados que recebem as lagartas da empresa BRATAC Seda para o beneficiamento de casulos que ficam acomodados em barracões, em uma espécie 6 Entrevista realizada em 5 de setembro de 2018 na Secretaria de Saúde de Sandovalina. 25 de “cama” feita com folhas de amoreira, único alimento das lagartas. Com a contaminação das amoreiras pela deriva dos agrotóxicos lançados na cana-de-açúcar, os bichos deixam de se alimentar de suas folhas e morrem em até quatro dias. Os produtores relatam que a morte de bicho-da-seda coincide com a pulverização aérea de agrotóxicos (JUNQUEIRA, 2016). Vale mencionar que a questão dos agrotóxicos não atinge somente o Pontal do Paranapanema, mas é um problema socioambiental grave no Brasil. De acordo com o Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (SISAGUA) até 27 diferentes agrotóxicos foram encontrados na água que abastece 1 em cada 4 cidades no Brasil (ARANHA; ROCHA, 2019). Ressalta-se que Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) vem lançando dossiês sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde desde o ano de 2012. Apesar da gravidade do problema e dos estudos que apontam os riscos, atualmente vem ocorrendo retrocessos com relação a liberação e a regulamentação dos agrotóxicos no Brasil. O número de agrotóxicos liberados em 2019 foi o maior dos últimos dez anos. Desde 2016, a liberação de novos agrotóxicos vem ocorrendo de forma acelerada. No ano mencionado, foram liberados 277 agrotóxicos, já em 2019, esse número subiu para 439. Vale destacar que 34% desses venenos contêm substâncias proibidas em países da União Europeia. O Projeto de Lei (PL) 6.299/2002, conhecido como “PL do Veneno”, aprovado em Comissão Especial da Câmara dos Deputados, será votado em plenário e prevê que a análise e autorização de uso de agrotóxicos importados ocorra de forma mais rápida (SOBRINHO, 2019). Também houve uma nova classificação de agrotóxicos adotada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Antes dessa mudança 800 (34,7%) agrotóxicos eram considerados “extremamente tóxicos”, com a atual classificação apenas 43 (2%) estão nessa categoria (SUDRÉ, 2019). No Pontal do Paranapanema, a pulverização aérea de agrotóxicos causa sérios problemas de saúde pública e dificulta a produção de alimentos da população camponesa e, consequentemente, sua própria reprodução social. No entanto, os pequenos produtores também enfrentam outros desafios no que se refere às políticas públicas de desenvolvimento rural. Os programas de comercialização institucional que foram um grande estímulo para a produção nos assentamentos sofrem, cada vez mais, com os cortes de recursos do governo federal. O mercado institucional significa a compra de alimentos da agricultura 26 camponesa para atender as demandas de escolas, hospitais, presídios etc. Um desses programas é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003, pelo governo Lula. Esse programa tem como objetivo articular a compra de produtos de pequenos produtores para suprir as necessidades alimentares da população em situação de vulnerabilidade social (GRISA; SCHNEIDER, 2015). De acordo com Reis (2015), o PAA é fruto de uma demanda dos movimentos sociais do campo e sua organização articula os governos federal, estaduais e municipais e as organizações da sociedade civil (cooperativas, associações, organizações não governamentais e movimentos sociais). Vale mencionar o potencial emancipador do programa, pois libera os produtores dos agentes de comercialização - os chamados atravessadores - contribui para a organização de cooperativas e associações, proporciona maior envolvimento de mulheres e jovens, possibilita uma produção mais diversificada e agroecológica e, consequentemente, leva alimentos sadios para pessoas em situação de insegurança alimentar (REIS, 2015). Apesar de todos os benefícios proporcionados pelo PAA, infelizmente o cenário atual é de retrocessos com relação as políticas públicas destinadas para a agricultura camponesa. De acordo com Leal (2017), 1.277 famílias assentadas no Pontal do Paranapanema participaram do PAA em 2013. Esse número representou cerca de 30% das participações no estado de São Paulo. No entanto, em 2015 houve uma queda abrupta com apenas 669 participações no programa, número que representa uma diminuição de mais de 50%. A descontinuidade desse programa é um fator extremamente preocupante visto que muitas famílias camponesas dependem desse programa para a venda de seus produtos (LEAL, 2017). Desde 2013, os recursos destinados ao PAA estão sendo reduzidos. Em 2012, foram destinados 586,6 milhões de reais para a agricultura camponesa por meio desse programa. Mas, em 2013, esse valor caiu para 224,5 milhões de reais, chegando a 2018, com apenas 63,3 milhões de reais (COMPANHIA NACIONAL DE ABASTECIMENTO, 2019). Outra evidencia do descaso do governo com a agricultura camponesa e com o problema da fome no país foi a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), criado no governo Lula, juntamente com o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA) como parte do Programa Fome Zero (GRISA; SCHNEIDER, 2015). Infelizmente, toda essa estrutura 27 que possibilitou a saída do Brasil do mapa da fome, da Organização das Nações Unidas (ONU), está sendo desmontada (OLIVEIRA, 2019). Portanto, percebemos que as famílias camponesas encontram diversos obstáculos para manter-se no campo e produzir alimentos. No Pontal do Paranapanema, além da dificuldade para acessar e manter as políticas públicas, cada vez mais escassas, as famílias camponesas são afetadas pelos agrotóxicos que além de representar perda para a produção, causam problemas na saúde de difícil mensuração. Em meio a tanta dificuldade, as camponesas e os camponeses se veem obrigados a buscar renda em atividades externas à parcela rural para sobreviver. O foco de nossa pesquisa é compreender justamente a inserção das assentadas e dos assentados no processo produtivo de cana-de-açúcar no Pontal do Paranapanema entendendo essa situação como uma alternativa de reprodução camponesa. Vale esclarecer que as pessoas assentadas que trabalham fora do lote constituem uma segunda geração de assentadas e de assentados, ou seja, são filhas e filhos daqueles que lutaram pela terra e que não possuem responsabilidade direta pelos lotes. Constituem o que se denomina como “agregados” que vivem no lote dos pais e, por isso, não há nenhum impedimento legal em adquirir vínculos empregatícios. Aparentemente, existe uma contradição em ser assentada/assentado e vender a força de trabalho para o agrohidronegócio canavieiro que tem causado tanta degradação na natureza e na saúde. Tal incoerência decorre da expectativa que assentamentos da reforma agrária sejam produtivos, que a força de trabalho utilizada seja familiar e que produzam alimentos saudáveis. Mas, que apoio essas famílias recebem para realizar esse tipo de produção? Como isso é possível em meio a tantos obstáculos enfrentados no cotidiano dessas famílias? Desse modo, entendemos a venda da força de trabalho para o agrohidronegócio canavieiro como alternativa de reprodução social das famílias assentadas. Uma alternativa que pode afetar a relação das camponesas e dos camponeses com o assentamento e com a terra. Além disso, questionamos sobre as condições de trabalho vivenciadas pelas trabalhadoras e pelos trabalhadores que se empregam no setor canavieiro. Na atual etapa de reestruturação produtiva em que o plantio e o corte de cana-de- açúcar encontram-se quase totalmente mecanizado, quais as funções exercidas pelas trabalhadoras e pelos trabalhadores do setor? Como a organização do trabalho pode trazer 28 implicações para a saúde da pessoa que trabalha? E como a realização desse trabalho tem afetado a dinâmica dos assentamentos? Para responder esses questionamentos nossa abordagem teórico-metodológica consistiu na análise de entrevistas produzidas com assentadas e com assentados que trabalham no setor canavieiro. Nosso percurso teórico-metodológico será apresentado a seguir. O percurso de construção da dissertação Uma pesquisa que vise compreender experiências de vida, discursos e subjetividades de sujeitos sociais encontra muitos desafios, principalmente, quando o pesquisador não é da área da sociologia ou da antropologia que já possuem uma tradição nesse tipo de pesquisa. Na Geografia, cada vez mais percebemos que para compreender o espaço precisamos ir além da pura materialidade e discutir também as relações produtoras desse espaço, dos territórios e dos lugares. Por isso, realizamos uma discussão sobre as pesquisas que tem como objeto central os sujeitos sociais, mirando, notadamente, para as dificuldades e as tensões desse tipo de pesquisa, bem como o desafio para a pesquisadora e para o pesquisador de analisar a realidade do outro. Vale ressaltar que nos inspiramos nas epistemologias feministas que se fundamentam na ideia de “conhecimento situado”, ou seja, é de fundamental importância considerar a posição da pessoa que produz o conhecimento e os caminhos que ela percorreu no desenvolvimento da pesquisa para compreender seus resultados (SILVA et.al, 2017). Enquanto uma pesquisadora que nunca vivenciou a vida no campo, em assentamentos rurais ou o trabalho em usinas de cana-de-açúcar, mas que sempre viveu na cidade do interior de São Paulo com o rural sempre próximo, mas nunca como parte dele, reconhecemos nossas limitações e o desafio para compreender a complexidade da temática proposta. Visamos compreender a realidade vivenciada por esses sujeitos ouvindo-os, interpretando suas falas e teorizando sobre a realidade por eles relatadas por meio da abordagem teórico-metodológica da pesquisa qualitativa, mais especificamente por meio das entrevistas. Vale ressaltar que não falamos em “aplicação” de entrevistas nem em “extração” de informações, mas sim “produção” de entrevistas e de informações para deixar claro 29 que a realidade não é algo pronto e acabado que simplesmente “capturamos”, nós produzimos as informações com as quais trabalhamos7. É preciso evidenciar que não estaremos diante de aspectos subjetivos apenas da pesquisadora, mas também dos sujeitos pesquisados em que seus relatos são repletos de inexatidões, emoções e visões de mundo. “Ao contrário do que se pensa, é exatamente o conjunto dessas alterações que interessa” (MEIHY, 2002, p.47). A história contada é sempre uma “versão sobre os fatos e não os fatos em si”, é uma “construção comprometida” (MEIHY, 2002, p.50). Por isso, a pesquisa qualitativa não busca a verdade em si, mas sim as experiências vividas pelos sujeitos. De acordo com Becker (1999), um dos desafios a ser enfrentado na pesquisa qualitativa é o pesquisador conseguir se inserir nas comunidades, grupos, movimentos ou organizações que serão estudadas. Nem sempre é tarefa fácil conseguir a permissão para a realização da pesquisa, relacionar-se com as pessoas, entrevistar, entregar questionários etc. Dependendo do que se quer estudar a pesquisa pode ser vista como uma ameaça, por isso a dificuldade de acessar empresas, moradores de condomínios fechados, patrões. Portanto, existe uma relação de poder entre investigador(a) e investigado(a). De acordo com Colognese e Mélo (1998) as entrevistas não são necessariamente um diálogo, mas uma interação verbal desigual tendo em vista as diferenças entre o contexto social e o universo linguístico de ambos que podem gerar interpretações equivocadas. É o entrevistador(a) quem escolhe os temas que serão abordados pelo entrevistado(a), este(a) pode ser levado a dar respostas dentro do esperado na tentativa de agradar o pesquisador(a) ou, ao contrário, pode apresentar comportamento defensivo (recusa em responder, momentos de silêncio, desvios de assunto, dentre outros). Assim sendo, não existe neutralidade nem nas perguntas nem nas respostas, ambas são decorrentes de intencionalidades. As perguntas do roteiro servem para forçar (mesmo que de forma oculta) o entrevistado a fornecer determinadas informações. Obrigar o outro a falar e, muitas vezes falar sobre aquilo que o outro jamais havia se colocado como questão a pensar, é exercer um grande poder de arbítrio. Arbítrio disfarçado na idéia – falsa – de conexão de comunicação (COLOGNESE; MÉLO, 1998, p.151). 7 Esse posicionamento adotado pelo Prof. Dr. Nécio Turra Neto em sala de aula nos pareceu bastante coerente e passamos a utilizar essa ideia. 30 A relação de caráter desigual entre o investigador e o investigado não terminam no final da entrevista, pois o pesquisador ou pesquisadora realizará um esforço de interpretação dos significados das falas do sujeito. A entrevista será transcrita, analisada e interpretada. Nesse momento, é essencial manter o contexto da produção das falas, posicionar o autor do enunciado e o seu receptor, assim como evidenciar os diferentes contextos em que estão inseridos (SILVA, 2016). Também devemos ter cautela para não ir a campo com ideias prontas pelo fato de já se conhecer alguns aspectos do que será estudado. Isso pode ocorrer quando o pesquisador vai a campo “blindado” pelas suas referências bibliográficas apenas procurando aplicá-las mecanicamente, mas também pode acontecer quando já se tem um conhecimento empírico prévio sobre o objeto de pesquisa. É o que Ribeiro (1999) denomina de terra firme ou terreno conhecido, o maior inimigo do conhecimento. Portanto, acreditamos ser necessário promover o estranhamento, problematizando o que já é conhecido, desnaturalizando o que parece ser normal. Ribeiro (1999), sugere que devemos trabalhar nossos temas de pesquisa com maior abertura, atentos ao que eles têm a nos dizer ao invés de buscarmos respostas prontas. Um pesquisador deve expor-se a seu objeto mais do que o faz. Parece- me que, com frequência, os pesquisadores se vacinam contra seu objeto; que, este uma vez escolhido, eles se portam como europeus do começo do século (XX, é claro) que partiam para a África – ou norte-americanos para o Brasil – carregados de remédios, água mineral e desinfetantes. Mas o que é desinfetar um tema? O que significa escolher um objeto de desejo e, depois disso, anestesiá-lo, esterilizá-lo? (RIBEIRO, 1999, p.191-192). Desinfetar-se do objeto de pesquisa seria o mesmo que não se expor a ele, ir a campo com ideias prontas e não se permitir a descoberta do novo. Assim, o autor nos mostra que podemos ser mais livres para lidar com a pesquisa científica, talvez possamos construir uma “relação mais solta, e por isso mais rica”, com os nossos temas de pesquisa. “Mas o mais tentador, o melhor mesmo, é expor-se ao que o objeto ou o corpus traga de novo, de inesperado” (RIBEIRO, 1999, p.192). Portanto, com o objetivo de realizar a pesquisa empírica de maneira livre e aberta para o inesperado, realizamos nossos trabalhos de campo e entrevistas levando em consideração todos os aspectos mencionados nessa seção. 31 Trabalhos de campo no Pontal do Paranapanema Os trabalhos de campo nos assentamentos da região do Pontal do Paranapanema tiveram início no primeiro semestre de 2017, no dia 09 do mês de junho, quando visitamos o Assentamento Luís de Moraes, localizado em Caiuá-SP, e o Assentamento Lagoinha, localizado em Presidente Epitácio-SP. Essa oportunidade surgiu na disciplina “Tópicos Especiais: políticas públicas e desenvolvimento rural” com o intuito de compreender a importância das políticas públicas para os assentamentos rurais e as dificuldades encontradas pelos produtores em acessá-las e mantê-las. Nessa visita aos assentamentos, conhecemos uma instalação denominada packing house - local destinado à embalagem de frutas, legumes e hortaliças produzidas no assentamento como forma de agregar valor a produção e com objetivo de ofertar essas mercadorias para escolas e outras instituições (FIGURA 01). A packing house foi construída com o subsídio do Programa Microbacias do Estado de São Paulo e os assentados também participavam de outras políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Conversado com as assentadas e os assentados que participavam dessas políticas públicas compreendemos sua importância e as dificuldades que vivenciavam com a diminuição dos recursos destinados às políticas públicas rurais. 32 Fotos: Angela dos Santos Machado (2017). O segundo trabalho de campo foi realizado no dia 08 de fevereiro de 2018 no município de Sandovalina-SP, como parte das atividades desenvolvidas no âmbito do Projeto Temático (Processo: 2012-23959-9). Nesse dia, visitamos assentamentos com o intuito de nos aproximarmos das problemáticas vivenciadas no Pontal do Pontal do Paranapanema, tais como a subordinação de famílias assentadas a uma empresa privada de comércio de pepinos e outros vegetais que impõe uso intensivo de agrotóxicos, forte controle do processo produtivo e expropriação da renda camponesa8. Além disso, conversamos também com assentados atingidos pela pulverização aérea de agrotóxicos na cana-de-açúcar que relataram perda de produção como, por exemplo, a morte de bichos-da-seda, bem como problemas de saúde que podem estar 8 Para mais informações consultar: NEGRÃO; SANTOS; SOARES, 2017. Produção de horlatiças Packing house Frente da packing houseEquipamentos no interior da packing house Figura 1 - Fotos do Assentamento Luís de Moraes, Caiuá-SP. 33 relacionados à imposição do contato com o veneno (casos de câncer, alergias e problemas respiratórios). Também estivemos presentes na apresentação do Atlas sobre o uso de Agrotóxicos no Brasil (BOMBARDI, 2017) pela Dra. Larissa Bombardi, professora da Universidade de São Paulo (USP) e colaboradora do Projeto Temático já mencionado. A apresentação aconteceu na Câmara Municipal de Sandovalina-SP onde estavam presentes os moradores da cidade, dos assentamentos, participantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), políticos, além dos representantes da universidade (FIGURA 02). Nosso terceiro trabalho de campo na região teve como foco realizar as entrevistas com os assentados trabalhadores do setor canavieiro e com profissionais de saúde da unidade de saúde localizada no assentamento. As entrevistas foram realizadas no Assentamento Água Sumida (FIGURA 03), localizado em Teodoro Sampaio-SP, entre os dias 17 a 20 de abril de 2018. Nesse momento, produzimos entrevistas cujos roteiros haviam sido elaborados anteriormente e que versavam sobre o trabalho no setor canavieiro, o impacto da cana-de-açúcar para os assentamentos, as condições de vida nos lotes e aspectos relacionados com a saúde da população. Foto: Angela dos Santos Machado (2017). Figura 2 - Apresentação do Atlas sobre uso de agrotóxicos no Brasil na Câmara Municipal de Sandovalina-SP. 34 Foto: Angela dos Santos Machado (2018). O trabalho de campo seguinte foi realizado no dia 02 de maio de 2018 nos municípios de Marabá Paulista-SP e Mirante do Paranapanema-SP com o objetivo de visitar áreas de ocupações de terra no Pontal do Paranapanema (FIGURA 04) e o assentamento Governador André Franco Montoro, instalado em 2017. Foto: Angela dos Santos Machado (2018). Figura 3 - Entrada do Assentamento Água Sumida cercado pela cana-de-açúcar. Figura 4 - Acampamento do MST localizado em Mirante do Paranapanema-SP. 35 Por fim, no dia 05 de setembro de 2018, realizamos entrevistas na Secretaria de Saúde de Sandovalina com duas gestoras (a secretária de saúde e uma administradora), uma ex-secretária com mais de 20 anos de experiência em cargos de gestão e coordenação, uma enfermeira que atende a população do campo e dois médicos. As questões que nortearam as entrevistas foram em torno dos impactos da expansão canavieira na saúde da população, do campo e da cidade, no município. A produção dos roteiros de entrevistas Antes da elaboração do roteiro de entrevista é preciso ter clareza sobre as questões que pretendemos que sejam respondidas. Como proposto por Silva et. al (2017), desdobramos nossa questão central em subquestões dela decorrentes: 1) Pergunta central: Como as formas de trabalho produzidas pelo setor canavieiro, em decorrência de sua reestruturação produtiva, podem trazer implicações para a saúde das trabalhadoras e dos trabalhadores assentadas e assentados que trabalham no setor, na região do Pontal do Paranapanema? 2) Subquestões estruturadoras: a) Como a reestruturação produtiva no setor canavieiro transformou as relações de trabalho? b) Quais as implicações para a saúde dos trabalhadores derivadas das relações de trabalho? c) Qual é a percepção dos assentados assalariados sobre as implicações do trabalho para a saúde? 3) Conceitos centrais que a questão exige: reestruturação produtiva, trabalho, saúde, assentamentos da reforma agrária. 4) Recorte do grupo capaz de produzir as informações necessárias para construir a resposta à questão estabelecida: pessoas assentadas trabalhadoras do setor canavieiro e profissionais de saúde. Depois da questão central ser estabelecida e o recorte do grupo discursivo delimitado, é necessário pensar no modo de obter as informações requeridas. Assim, precisamos pensar no tipo de entrevista mais adequada para obtermos as informações que respondam as questões de nossa pesquisa. 36 De acordo com Colognese e Mélo (1998), quanto à padronização, as entrevistas podem ser classificadas da seguinte forma: 1) Entrevista não-diretiva (não-estruturada): a estruturação da entrevista é mínima, o entrevistador apenas introduz um tema a ser desenvolvido pelo entrevistado e o deixa falar, sem interromper ou questionar. Apenas interrompe em casos de extrema necessidade e para evitar o fim precoce da entrevista. Isto é, existe o mínimo de interferência. 2) Entrevista semi-diretiva (semi-estruturada): as perguntas são formuladas previamente e o entrevistador tem uma participação ativa devendo observar um roteiro com questões ordenadas. Nessa modalidade, o entrevistador também pode realizar questões que não estejam previstas no roteiro para elucidar eventuais dúvidas que surgirem ou recompor o contexto da fala. 3) Entrevista padronizada (estruturada): o roteiro previamente definido deve ser seguido com rigor, a liberdade do entrevistador é praticamente nula. Sua rigidez permite a comparação entre as respostas e sua quantificação com maior facilidade. Para nossa pesquisa consideramos que uma entrevista padronizada não seria interessante, pois gostaríamos de ouvir as pessoas, mesmo que suas falas tomassem rumos diferentes do que havíamos sugerido no roteiro. Por outro lado, as entrevistas não- estruturadas poderiam deixar lacunas que não seriam respondidas em razão de não se poder interromper ou incluir questões que surgissem durante a entrevista. Portanto, decidimos produzir entrevistas semi-estruturadas. O roteiro de entrevista pode ser específico (com perguntas abertas, fechadas ou semi-abertas) ou contextual (não apresenta perguntas, apenas tópicos orientadores). Por não termos muita experiência com entrevistas decidimos elaborar um roteiro específico com perguntas abertas que dariam a liberdade de resposta para o entrevistado e facilitaria nosso trabalho como entrevistadora, pois se o entrevistado não respondesse determinada questão pularíamos para a próxima, se fossem apenas tópicos orientadores o tópico todo ficaria sem resposta. Tomadas essas decisões produzimos um roteiro para entrevista semi-diretiva (semi-estruturada), com perguntas abertas, organizada por eixos temáticos de acordo com os nossos objetivos de pesquisa para ser aplicada de forma oral e individualmente com os(as) entrevistados(as) (ANEXO I). 37 Além do roteiro de entrevista com os(as) assentados(as) trabalhadores(as) da cana-de-açúcar, produzimos também um roteiro para os profissionais de saúde da unidade de saúde do assentamento (ANEXO II). A produção das entrevistas Após a elaboração do roteiro das entrevistas a próxima etapa foi decidir por onde começar os trabalhos de campo e a produção das entrevistas. Primeiramente, selecionados algumas entrevistas do banco de dados do Centro de estudos do Trabalho, Ambiente e Saúde (CETAS) que foram realizadas entre os anos de 2015 e 2016. Selecionamos as entrevistas que se enquadravam no grupo de interesse de nossa pesquisa: assentados e assentadas que trabalhavam ou já trabalharam no setor canavieiro. Além disso, trabalhamos com três municípios: Sandovalina, Teodoro Sampaio e Mirante do Paranapanema, municípios com avançada mecanização do processo produtivo da cana- de-açúcar. Encontramos 19 entrevistas com esse perfil realizadas em Teodoro Sampaio (18 no Assentamento Água Sumida e 1 no Assentamento Santa Terezinha), 11 entrevistas em Sandovalina (todas realizadas no Assentamento Bom Pastor) e 1 entrevista realizada em Mirante do Paranapanema (Assentamento São Bento). Por encontrar um material extenso, com muitas horas de áudio de entrevistas, acreditamos que não era necessário realizar um número grande de novas entrevistas. Então, decidimos tentar encontrar alguns desses sujeitos que já haviam sido entrevistados pela equipe DataCETAS para realizar novas entrevistas e atualizar algumas informações. As entrevistas tinham os nomes dos entrevistados, o nome do assentamento e o número do lote, algumas tinham número de telefone, mas por já se passarem três anos os números já não estavam funcionando. Assim, separamos essas entrevistas por assentamentos e decidimos ir no que oferecia mais opções de possíveis entrevistados: o Assentamento Água Sumida, em Teodoro Sampaio-SP. Assim, entre os dias 17 a 20 de abril de 2018 realizamos o trabalho de campo nesse assentamento. Logo no início percebemos que a tarefa não seria muito fácil, estávamos de moto e as estradas dentro do assentamento eram muito arenosas. Além disso, o Água Sumida é composto por mais de cem lotes e havia uma dificuldade de compreensão acerca de sua organização, isto é, sua distribuição numérica. 38 Outra dificuldade foi encontrar os trabalhadores do setor canavieiro em suas casas, pois eles chegam a ficar cerca de 12 horas fora do lote, sendo aproximadamente 8 horas de trabalho e 4 horas de trajeto até o local de trabalho e do trabalho para a casa. Grande parte dos trabalhadores vão de moto até o distrito de Planalto do Sul onde tomam o transporte da usina que os levam até o local de trabalho. A distância e o tempo de transporte variam em função do local para onde serão deslocados para trabalhar no plantio ou na colheita. Eles trabalham em turnos - turno A: 7h00 às 15h00; turno B: 15h às 23h00; turno C: 23h00 às 7h00. Assim, quem trabalha no turno A sai de casa por volta das 5h e retorna por volta das 17h, quem trabalha no turno B sai às 13h e retorna 1h da manhã, os que trabalham no turno C saem às 21h e retornam aproximadamente às 9h. Eles ainda realizam atividades no lote, principalmente a ordenha de gado leiteiro. Portanto, é difícil esses trabalhadores estarem com tempo disponível para participar das entrevistas, pois ou estão trabalhando fora ou estão descansando ou estão realizando alguma atividade no lote. Muitos, pararam o que estavam fazendo para nos atender, outros aceitaram conversar conosco mesmo após exaustivas 12 horas de trabalho e trajeto. Assim, percorríamos os assentamentos em busca desses trabalhadores e, muitas vezes, não os encontrávamos. Mas, conversávamos com as esposas que nos forneciam o número de telefone deles, os melhores dias e horários para retornarmos. Desse modo, conseguimos entrevistar um motorista, um tratorista, cinco operadores de máquina colhedora, uma ex-cortadora de cana, um ex-cortador de cana, uma técnica de enfermagem da unidade de saúde, totalizando 10 entrevistas. Também tentamos realizar uma entrevista com o médico do assentamento ou com a enfermeira, mas ambos não tiveram disponibilidade para nos atender. Uma das dificuldades encontradas para fazermos as entrevistas foi nos depararmos com a desconfiança dos trabalhadores, percebíamos que eles ficavam com receio de falar sobre o trabalho na usina e sempre deixavam bem claro que eles não eram os responsáveis pelo lote e que, portanto, não estavam fazendo nada ilegal. Nos apresentávamos como estudantes da universidade que participam de um projeto de pesquisa sobre os impactos da cana-de-açúcar na região e explicávamos nosso interesse em saber sobre o trabalho realizado por eles na usina e no lote. Era evidente o receio que eles tinham, e com razão, de fornecer informações pessoais a pessoas desconhecidas. 39 Iniciávamos com as apresentações, a explicação sobre a pesquisa, a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (ANEXO III), sua assinatura e o pedido de permissão para gravar a entrevista. Alguns dos trabalhadores foram se sentindo mais à vontade no decorrer da entrevista, outros se portaram com desconfiança em praticamente todas as perguntas. Percebemos que aqueles trabalhadores que já haviam se desligado do emprego ficavam mais à vontade para falar e nos forneciam mais informações sobre o trabalho. Já aqueles que estavam empregados, geralmente, respondiam de forma curta com respostas do tipo “é bom, não tenho nada a reclamar”. Como já destacamos anteriormente, a entrevista é um jogo de relações de poder em que nós pesquisadores não somos os detentores do conhecimento, quem detém as informações que precisamos são os entrevistados. A cada pergunta que realizamos está por trás nossos interesses. Impomos o assunto que será tratado. Existe um estranhamento entre as partes que se revela também na linguagem, nas formas de expressões de pessoas que vivem realidades distintas. Além da desconfiança também pesou o cansaço daqueles que tinham chegado a pouco tempo do trabalho ou daqueles que acordaram mais cedo, perdendo uma hora de sono, para nos atender. Também a preocupação com o tempo daqueles que tinham que terminar a entrevista e cumprir suas obrigações no lote antes de ir para o trabalho na usina. É importante realizar essas considerações, pois o contexto em que as entrevistas são realizadas é um fator relevante para a compreensão de seu conteúdo. Na unidade de saúde sentimos a falta de vontade das pessoas em participarem da entrevista, cada pessoa com quem conversávamos nos passava para outra até que a técnica de enfermagem nos atendeu. Ela não permitiu que gravássemos a entrevista e, apesar de ter nos recebido com toda a educação, percebemos que estava receosa e até mesmo preocupada se saberia ou não responder as perguntas. De modo geral, foi uma aproximação tensa e cansativa porque precisamos andar muito pelo assentamento em razão dos diferentes horários marcados com cada entrevistado e, muitas vezes, não dava para organizar a ordem das entrevistas pela proximidade entre os lotes, fazendo-nos ir e vir várias vezes pelas estradas do assentamento. Todavia, conseguimos atingir nossos objetivos, fomos abertos para ouvir nossos entrevistados, expondo-nos aos nossos sujeitos pesquisados e nos permitindo a descoberta do novo. 40 Organização da dissertação Para a apreensão da temática proposta, no capítulo 1, intitulado “Do modelo primário exportador à luta pela terra” buscamos compreender o movimento histórico que transformou o Brasil em um país exportador de commodities, com alta concentração fundiária, e marcado pela violência no campo, ressaltando suas raízes coloniais e a colonialidade presente na atualidade. Também evidenciamos o papel do Estado para implantação e manutenção do modelo hegemônico agropecuário, sobretudo, na estruturação e reestruturação do setor canavieiro. Após essa análise mais geral, a nível nacional, adentramos em nossa área de estudo, o Pontal do Paranapanema, destacando seu histórico de grilagens de terra, a chegada da cana-de-açúcar, a luta pela terra, a conquista da reforma agrária e a expansão da monocultura canavieira. No capítulo 2, “Reestruturação produtiva e implicações no trabalho e na saúde”, iniciamos a discussão sobre a temática da reestruturação do setor canavieiro evidenciando os processos de concentração e centralização de capitais, a estrangeirização do setor e a formação dos oligopólios, apontando que o capital internacional, assim como os históricos subsídios do Estado, cumpriram um papel de fundamental importância na transformação do seu sistema produtivo impactando a organização do trabalho e, consequentemente, a saúde e a segurança das trabalhadoras e dos trabalhadores. No capítulo 3, “Campesinato, trabalho e processo saúde-doença”, discutimos o conceito de campesinato visando compreender as razões pelas quais os camponeses e as camponesas buscam trabalho fora do lote e mais especificamente no setor canavieiro. Evidenciamos as formas de exploração e subordinação das famílias camponesas que as levam a buscar trabalho fora da parcela rural para garantir a continuidade de sua reprodução social. Dentre essas formas de exploração, encontra-se a superexploração do trabalho, decorrente da forma como os países latino-americanos estão inseridos na divisão internacional do trabalho. A partir da ideia de superexploração do trabalho, buscamos compreender nossa temática de estudo em diferentes escalas de análise partindo do Pontal do Paranapanema e chegando na América Latina, com base no estágio de pesquisa no México em que tivemos a oportunidade de conhecer o campo mexicano e notar algumas similitudes nos processos que ocorrem em ambos os países. Vale ressaltar que no último capítulo também abordamos as formas de resistência do campesinato perpassando pela produção agroecológica e pelas formas alternativas de 41 escoamento da produção camponesa com o exemplo das cestas agroecológicas Raízes do Pontal e a Cooperativa Tosepan Titataniske, organização indígena e camponesa mexicana. Buscamos relacionar tal cooperativa com o MST com o objetivo de evidenciar a importância da luta e da organização coletiva para a construção de alternativas ao modelo hegemônico imposto aos camponeses e às camponesas. Enfatizamos as concepções de saúde da cooperativa e do MST relacionando-as com a percepção dos sujeitos de nossas pesquisas, os assentados assalariados no setor canavieiro, concluindo que a falta de participação em organizações coletivas dificulta a compreensão do sistema de opressões que nos cercam e nos distancia da luta por uma sociedade mais justa que implica, necessariamente, a reforma agrária e a valorização da produção camponesa de alimentos saudáveis cujos valores promovem maior equilíbrio entre as relações sociais e a natureza. 42 CAPÍTULO 1 DO MODELO PRIMÁRIO EXPORTADOR À LUTA PELA TERRA 43 CAPÍTULO 1 DO MODELO PRIMÁRIO EXPORTADOR À LUTA PELA TERRA No primeiro capítulo, nosso objetivo é evidenciar que o modelo hegemônico do agronegócio brasileiro é fruto de um processo histórico que abarca a América Latina e está fundamentado em bases coloniais: no racismo estrutural, na superexploração9 do trabalho e da natureza, na espoliação dos territórios, na violência contra os povos indígenas, do campo e das florestas. Essas características apontam uma colonialidade10 ainda presente que se reverbera em um o modelo primário-exportador que ganha ainda mais força na contemporaneidade, com uma pauta exportadora que avança cada vez mais na produção de commodities e na concentração fundiária. Apesar de buscar transparecer ares de modernidade, o agronegócio brasileiro tem suas raízes na colonização e traz como heranças o latifúndio, o trabalho escravo contemporâneo e, um dos seus principais cultivos, a monocultura de cana-de-açúcar. A cana-de-açúcar, como herança colonial, sempre foi e é dependente de recursos públicos. Como veremos nesse capítulo, os primeiros engenhos receberam investimento do Império e, no início da República, o subsídio público foi fundamental para o surgimento das primeiras usinas. Ou seja, os velhos membros das antigas oligarquias, os ex-senhores de engenho, passaram a ser os novos usineiros, graças ao financiamento dos estados produtores de açúcar. Diversas ações do Estado alavancaram a economia açucareira e incentivaram a transferência do seu centro hegemônico do Nordeste para o Centro-Sul, sobretudo para o estado de São Paulo. Além do açúcar, o álcool passou a ser valorizado e considerado como produto de interesse nacional, contando com elevadas somas de dinheiro público, principalmente do Programa Nacional do Álcool (PROÁLCOOL). 9 Conceito discutido no terceiro capítulo dessa dissertação, com base em Marini (2011), Martins (2011) e Perpetua (2017). 10 De acordo com a perspectiva decolonial, a colonialidade ainda existe nos países que foram colonizados e se traduz nas formas de exploração da natureza, da força de trabalho e no racismo, formando um padrão de poder mundial (colonialidade do poder), subalternizando múltiplas epistemes em nome conhecimento eurocêntrico (colonialidade do saber) e afetando a subjetividade dos indivíduos (colonialidade do ser) (MIGNOLO, 2003, 2010; LANDER, 2005; QUIJANO, 2005; PORTO-GONÇALVES 2002, 2005; CRUZ, 2017). 44 A partir desse programa, iniciou-se a plantação de cana-de-açúcar, no Pontal do Paranapanema, na década de 1970. Em um território que já estava em disputa em razão de seu histórico de grilagens de terra e já era apontado pelos gestores públicos como uma região problemática, a cana-de-açúcar passa a ser considerada uma política de desenvolvimento regional, juntamente com a criação de usinas hidrelétricas. No entanto, o que os gestores públicos não sabiam é que os trabalhadores trazidos para atuar nessas frentes de emprego, se juntariam com famílias desalojadas pelas barragens e com militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e passariam a lutar pela reforma agrária no Pontal do Paranapanema. Assim, na década de 1990, o Pontal do Paranapanema viveu seu auge de ocupações de terra e de criação de assentamentos. Uma luta que tornou possível hoje a existência de mais de uma centena de assentamentos e mais de seis mil famílias assentadas. No entanto, a cana-de-açúcar ainda está presente e se expandiu em meados dos anos 2000, a partir do surgimento dos automóveis Flex Fuel que foi outra benesse do Estado aos capitalistas do setor canavieiro. A monocultura da cana-de-açúcar tem servido para justificar a grilagem de terras, a partir da premissa que são terras produtivas, e limitar a continuidade da Reforma Agrária no Pontal do Paranapanema. 1.1 O passado colonial e a colonialidade presente: a espoliação dos territórios e o modelo primário exportador De acordo com Cueva (1983), a colonização da América Latina deve ser relacionada ao processo de acumulação primitiva em escala mundial que provocou uma acumulação sem precedentes nos países colonizadores e um processo inverso nas respectivas colônias. Ou seja, se o período colonial representou para a Europa uma acumulação primitiva, para as colônias exploradas foi justamente o contrário, uma “desacumulação primitiva” (SEMO, 2012, p.324). Sobre essa contradição argumenta Frantz Fanon, no livro “Os condenados da terra”: Essa opulência européia é literalmente escandalosa porque foi edificada sobre o dorso de escravos, nutriu-se do sangue de escravos, procede em linha reta do solo e do subsolo dêste mundo subdesenvolvido. O bem- estar e o progresso da Europa foram construídos com o suor e o cadáver dos negros, árabes, índios e amarelos. Convém que não esqueçamos disto (FANON, 1968, p.76-7). 45 Galeano (1989), inicia seu livro “As veias abertas da América Latina” destacando essa questão. Segundo o autor, alguns países especializaram-se em ganhar enquanto outros especializaram-se em perder, apontando que este seria o caso dos países da América Latina, por isso é chamada a região das veias abertas. É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até os nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens [e mulheres] e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos (GALEANO, 1989, p.14). Atualmente, não podemos mais falar em “descobrimento” dos países latino- americanos sem realizar uma crítica a tal termo. Mais vale utilizar a expressão “encobrimento” como destaca Dussel (1993, p.50), referindo-se às culturas e aos saberes que foram cobertos, europeizados e colonizados. É o que Santos e Menezes (2010) denominam como epistemicídio - supressão de conhecimentos de diferentes culturas frente a um conhecimento que se pretende universal. Para o pensamento decolonial,11 apesar do fim da administração das metrópoles europeias sobre as colônias, não findou a colonialidade que se manifesta de três modos: a colonialidade do poder, a colonialidade do ser e a colonialidade do saber. A primeira tem suas bases na matriz racista colonial que classifica os seres humanos a partir da categoria mental “raça” com a finalidade de justificar as formas mais cruéis de exploração do trabalho, como a escravidão e a servidão, e as regiões do planeta que podem ter seus recursos extraídos (QUIJANO, 2005). A colonialidade do ser e a colonialidade do saber referem-se ao controle da subjetividade e do conhecimento. A colonialidade atual pode ser relacionada com a forma em que os países latino- americanos integram o mercado mundial, exportando produtos primários cujos baixos custos são decorrentes da degradação da natureza e do trabalho, como será observado nessa pesquisa, a partir das relações de trabalho no setor canavieiro, no Pontal do Paranapanema. 11 Como alguns dos principais autores desse grupo podemos destacar Edgardo Lander (sociólogo venezuelano), Arthuro Escobar (antropólogo colombiano), Walter Mignolo (semiótico argentino), Enrique Dussel (filósofo argentino), Aníbal Quijano (sociólogo peruano). São integrantes do grupo duas mulheres: Catherine Walsh (linguista estadunidense) e Zulma Palermo (semiótica argentina). 46 Além disso, podemos destacar que o conhecimento e o modo de vida de camponeses e indígenas, por exemplo, muitas vezes acabam sendo vistos como atrasados ou carentes de desenvolvimento. Por outro lado, agronegócio utiliza discursos que o coloca como sinônimo de sucesso e geração de riqueza, como o único setor capaz de superar a pobreza e levar o país ao desenvolvimento. Nesse discurso não há alternativas além do agronegócio. Este segmento ainda busca desqualificar os camponeses e os movimentos socioterritoriais, principalmente o MST. É o princípio da valorização de si e desqualificação do outro (BRUNO, 2010). O pensamento decolonial traz importantes críticas para compreensão da realidade latino-americana, mas ainda é um desafio entender a complexidade das múltiplas formas de opressão (raça e gênero, por exemplo) que permeiam a sociedade e atravessam todas as problemáticas discutidas nessa pesquisa. Assim, apesar de ressaltar a importância dos estudos decoloniais, não será nosso objetivo aprofundar essa discussão, pois elevaria sobremaneira os níveis de complexidade da pesquisa. No entanto, também não poderíamos deixar de citar o nosso histórico colonial como fez Galeano (1989) descrevendo a chegada dos espanhóis e portugueses, o genocídio sofrido pelos povos indígenas massacrados pela violência, pela superexploração do trabalho e pelas doenças trazidas pelos europeus. Além da cobiça por metais preciosos em Potosí (Bolívia), Guanajuato e Zacatecas (México) e, mais tarde, em Ouro Preto (Brasil). Lugares que, de acordo com o autor, tiveram seus períodos de auge e depois foram marcados pela situação de pobreza. A obra de Galeano (1989), ainda demonstra sua atualidade: Não se salvam, atualmente, nem mesmo os índios que vivem isolados no fundo das selvas. No começo deste século, sobreviviam ainda 230 tribos no Brasil; desde então desapareceram 90, aniquilados por obra e graça das armas de fogo e micróbios. Violência e doenças, pontas de lança da civilização: o contato com o homem branco continua sendo, para os indígenas, o contato com a morte. As disposições legais que desde 1537 protegem os índios do Brasil voltaram-se contra eles. De acordo com o texto de todas as constituições brasileiras, são “os primitivos e naturais senhores” das terras que ocupam. Ocorre que quanto mais ricas são estas terras virgens mais grave é a ameaça que pende sobre suas vidas; a generosidade da natureza os condena à espoliação e ao crime [...] Sabe-se que os indígenas foram metralhados dos helicópteros e teco-tecos, que se lhes inoculou o vírus da varíola, que se lançou dinamite sobre suas aldeias e se lhes presenteou açúcar misturado com estricnina e sal com arsênico (GALEANO, 1989, p.60). 47 A barbárie da colonialidade continua após mais de quinhentos anos da chegada dos portugueses ao Brasil. O relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) (2017) sobre a violência contra os povos indígenas evidencia casos de suicídio, assassinatos, mortalidade na infância, tentativas de assassinato, ameaças de morte, lesões corporais dolosas, racismo, discriminação étnico cultural e violência sexual. Demonstra também a omissão e a morosidade na regularização de terras, os conflitos pelo território, as invasões, exploração ilegal dos bens da natureza como o roubo de madeira e de minérios, a caça e a pesca ilegais, e danos ao meio ambiente como incêndios e contaminação por agrotóxicos. Outro documento importante elaborado pelo CIMI é o Congresso Anti-Indígena que realizou um levantamento sobre mais de 50 principais parlamentares que atuam no senado e na câmara federal, sob a influência de poderosos setores econômicos, sobretudo do agronegócio, para aprovar projetos que ameaçam os direitos indígenas. Esse levantamento contabilizou 33 proposições anti-indígenas tramitando no congresso, até o ano 2017, que buscam retroceder direitos adquiridos na Constituição Federal de 1988, alterar o processo de demarcação de Terras Indígenas (TI), transferir para o congresso nacional a competência de aprovar e gerir as demarcações, autorizar arrendamento e exploração dos bens naturais em TI, impedir a desapropriação para demarcações e estabelecer indenização para quem invadiu TI após 2013 (CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO, 2018). Assim como os territórios indígenas, as terras camponesas estão na mira do avanço do agrohidronegócio. A disputa é construída no cotidiano dos movimentos socioterritoriais, no enfrentamento diário contra poderosos proprietários de terras e empresários ligados ao agronegócio, à mineração, à especulação de terra, à produção de hidroeletricidade etc. Nesse enfrentamento, a violência no campo é crescente (assassinatos, ameaças, agressões, prisões). Se o ano de 2016 – marcado pelo golpe que tirou Dilma da presidência da República – havia sido o mais violento dos dez anos precedentes, com 1.079 conflitos, infelizmente o ano de 2018 registrou 1.489 conflitos, a maioria – 1.124 – por terra. Quase um milhão de pessoas estiveram envolvidas nesses conflitos, sendo a Amazônia o foco principal. Também são alarmantes o crescimento dos conflitos por água, principalmente causados por mineradoras, e os conflitos trabalhistas, sobretudo as ocorrências de trabalho escravo (CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DOM TOMÁS BALDUINO - CEDOC, 2019). 48 Os conflitos por terra e território evidenciam a continuidade do mecanismo de acumulação primitiva/originária. De acordo com Loureiro (2019) a ideia de acumulação primitiva tem origem em Marx, mas foi Rosa Luxemburgo quem percebeu o caráter estrutural dessa forma de acumulação que não se restringe a um período, mas é uma característica intrínseca do capitalismo. Assim, Luxemburgo deu visibilidade aos países considerados periféricos mostrando que a acumulação primitiva do capital não acabou com o fim da colonização, mas ainda hoje é um elemento imprescindível para o desenvolvimento capitalista mundial. A posição de Luxemburgo também se diferencia da de Lenin para quem o imperialismo era um estágio do capitalismo e não uma de suas principais características (LOUREIRO, 2019). Harvey (2004) utiliza o conceito de acumulação por espoliação em substituição ao de acumulação primitiva ou originária justamente para evidenciar que é um fenômeno atual no sistema capitalista de produção. Desse modo, a desterritorialização de indígenas e de camponeses/camponesas, as formas degradantes de trabalho, a intensa exploração/destruição da natureza, dentre outros fatores, revelam a violência inerente ao capitalismo. Ressalta-se ainda que os mecanismos de acumulação por espoliação são recriados pelo capital com novas formas de privatização dos bens da humanidade como, por exemplo, as patentes de material genético e de sementes, a biopirataria, a mercantilização da saúde, da educação, da previdência etc. (LOUREIRO, 2019). Vale mencionar o agravamento da situação nas últimas décadas em razão da intensificação da exportação de bens primários em grande escala. Svampa (2012) evidencia que passamos do Consenso de Washington, fundamentado na valorização financeira, para o Consenso das Commodities que tem levado ao processo de reprimarização da pauta exportadora das economias latino-americanas, à crescente perda da soberania alimentar e ao aprofundamento da dinâmica de acumulação por espoliação. A aplicação do termo “consenso” tem o intuito de invocar a consolidação de um sistema de dominação que conseguiu entrelaçar ideologia neoliberal e neodesenvolvimentismo progressista. De acordo com Perpetua (2017), houve um extraordinário crescimento da exportação das principais commodities agropecuárias brasileiras nos anos 2000. A soja, o açúcar e o álcool, o papel e a celulose, e a carne de frango e de boi, sobretudo, elevaram sua participação em 263,5% entre anos 2000 e 2015. Esses números estão relacionados a um amplo movimento de reprimarização da pauta exportadora nacional, ou seja, um aumento dos produtos básicos em detrimento dos manufaturados. Em 2000, os bens 49 manufaturados representavam 59% das exportações e os produtos básicos 22,8%. No ano de 2015, essas porcentagens mudaram para 38,1% e 46,6%, respectivamente (PERPETUA, 2017). Entre os anos 2010 e 2018, houve uma expansão territorial das principais monoculturas – soja, milho e cana-de-açúcar – com um avanço de mais de 27,6 milhões de hectares, ou seja, um aumento de mais de 62% nas áreas ocupadas por esses cultivos, tanto em velhas áreas de expansão agrícola na região Centro-Sul, como também em novas frentes abertas pelo agronegócio (GRÁFICO 01) (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2019a). Tal expansão foi acompanhada, em contrapartida, pela diminuição da área destinada a produção dos principais alimentos consumidos pelos brasileiros, pois o arroz, o feijão e a mandioca perderam quase 4 milhões de hectares entre 2010 e 2018 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2019b). Gráfico 1 - Área ocupada (ha) por cultivos agrícolas selecionados no Brasil (2000-2018) Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2019a). Org.: Angela dos Santos Machado (2020). Esses números significam o avanço do agrohidronegócio e a retração da produção camponesa. Fator extremamente preocupante tendo em vista que são as camponesas e os camponeses que produzem os alimentos básicos da dieta brasileira, conforme evidenciam 0 5000000 10000000 15000000 20000000 25000000 30000000 35000000 40000000 2 0 0 0 2 0 0 2 2 0 0 4 2 0 0 6 2 0 0 8 2 0 1 0 2 0 1 2 2 0 1 4 2 0 1 6 2 0 1 8 Cana-de-açúcar Milho (em grão) Soja (em grão) 50 Mitidiero Júnior, Barbosa e Sá (2017) com base no Censo Agropecuário de 2006 (GRÁFICO 02). Fonte: Mitidiero Júnior; Barbosa e Sá (2017). Nesse gráfico podemos visualizar que são os pequenos produtores quem mais produzem alface, batata doce, abobrinha, cebola, maracujá, mandioca, cenoura, aves, banana, feijão-preto e de cor, goiaba, suínos, café (robusta, conilon, e arábica), tomate (estaqueado e rasteiro), uva, leite de vaca, ovos de galinha, manga, milho, mamão, maça, batata-inglesa, trigo, laranja, arroz em casca e bovinos. A produção dos grandes Gráfico 2 - Diferença proporcional entre pequeno, médio e grande estabelecimento no volume da produção de importantes alimentos consumidos no Brasil - 2006 51 estabelecimentos ganha destaque, sobretudo, com a cana-de-açúcar, a soja em grãos e os bovinos. Vale ressaltar que a questão agrária no Brasil pode ser caraterizada pela ampla concentração fundiária. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2019c) 1% dos estabelecimentos rurais – as grandes propriedades (acima de mil hectares) - ocupam mais de 47% da área total agricultável do país. Ou seja, 51.203 imóveis rurais usufruem de 167.227.510 hectares de terra. Enquanto isso, quase 95% dos estabelecimentos rurais – as pequenas propriedades (até 200 hectares) – têm que dividir 28,8% das terras. Isto é, 4.743.123 imóveis rurais ocupam 101.185.249 hectares de terras (TABELA 01). Tabela 1 - Brasil: Estrutura Fundiária – Número e área dos estabelecimentos em 2017 por classes de área Classes de área (ha) Estabelecimentos % Área (ha) % Pequeno (0 a 200 ha) 4.743.123 94,9% 101.185.249 28,8% Médio (200 a 1000 ha) 201.961 4,0% 82.877.056 23,6% Grande (acima de 1000 há) 51.203 1,0% 167.227.510 47,6% Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2019c). Org.: Angela dos Santos Machado (2020). Portanto, enfatizamos que o modelo hegemônico que está posto é baseado nessa matriz colonizadora cujos fundamentos se encontram na espoliação dos territórios, na concentração fundiária, na produção de commodities em detrimento de alimentos, na violência contra os povos indígenas, do campo e das florestas. O aç