UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES, COMUNICAÇÃO E DESIGN DEPARTAMENTO DE ARTES E REPRESENTAÇÃO GRÁFICA CAMPUS DE BAURU JOSÉ GABRIEL DOIMO RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS: Cinema e Artes Visuais Bauru 2023 JOSÉ GABRIEL DOIMO RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS: Cinema e Artes Visuais Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Artes Visuais Bacharelado, Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design UNESP/Campus Bauru, como requisito parcial para conclusão da graduação, sob orientação da Profª Drª Joedy Luciana Barros Marins Bamonte. Bauru 2023 D657r Doimo, José Gabriel RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS : Cinema e Artes Visuais / José Gabriel Doimo. -- Bauru, 2023 62 p. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado - Artes Visuais) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru Orientadora: Joedy Luciana Barros Marins Bamonte 1. Artes. 2. Cinema. 3. Arte no cinema. 4. Cinema francês. 5. Mulheres no cinema. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design, Bauru. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. JOSÉ GABRIEL DOIMO RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS: Cinema e Artes Visuais Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Artes Visuais Bacharelado, Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design UNESP/Campus Bauru, como requisito parcial para conclusão da graduação, sob orientação da Profª Drª Joedy Luciana Barros Marins Bamonte. Bauru, fevereiro de 2023. ______________________________ Profª Drª Joedy Luciana Barros Marins Bamonte (Orientadora) Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC/UNESP) ______________________________ Profª Drª Regilene Sarzi Ribeiro Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC/UNESP) ______________________________ Prof Dr José Marcos Romão da Silva Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC/UNESP) AGRADECIMENTOS Agradeço inicialmente aos meus pais, Sérica e Julio, por todo o apoio, amor e confiança, por acreditarem em mim em todos os momentos e investirem nos meus sonhos, sem vocês eu não teria chegado tão longe. Agradeço a todas as minhas amigas e amigos que me acompanharam desde o início dessa jornada e aos que chegaram depois, do Trianon ao Villaggio Di Roma e até aos ateliês, muito obrigado pelo companheirismo. Um agradecimento especial ao Marcel, sujeito da minha arte. Agradeço especialmente a Profª Drª Joedy Luciana Barros Marins Bamonte, minha orientadora, por todos os aprendizados durante esses quatro anos de graduação, obrigado por todos os puxões de orelhas, críticas e ensinamentos, levarei todas as experiências desenvolvidas com você para toda a vida. Agradeço também a banca avaliadora Profª Drª Regilene Sarzi Ribeiro e Prof Dr José Marcos Romão da Silva por estarem presentes em toda a minha graduação, por sempre serem solícitos e por me ensinar tanto. Por fim, agradeço a todos os funcionários técnicos e administrativos da UNESP de Bauru, em especial Adriano Antonio de Andrade, por manterem a universidade pública em funcionamento e cuidarem dela com tanto amor e dedicação. EPÍGRAFE E já da superfície se aproximam, quando ele, receoso de perdê-la, volta os ávidos olhos de paixão para trás: para trás ela se vai; e, os braços estendendo e debatendo, ela quer segurar-se e nada agarra a não ser, infeliz, o vento infrene. OVÍDIO. Metamorfoses (Trad. Márcio Thamos) RESUMO A pesquisa objetiva estudar as relações entre cinema e artes visuais, por meio da análise das obras da cineasta francesa Céline Sciamma, em especial o filme “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, lançado em 2019, no contexto do cinema contemporâneo francês e do conjunto de obras da própria diretora em destaque. Busca-se entender, também, como funciona o olhar da cineasta e as relações existentes entre artes visuais e audiovisual, contemplando a importância da introdução do olhar feminino e sáfico no cinema. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, na qual a direção de arte foi esmiuçada, ao se estudar a fotografia e roteiro, analisando os cortes de câmeras, cenários, sonoplastia, processo de criação artístico e os aspectos visuais do filme, baseando-se na história do cinema francês e nas ideias de Cecilia Almeida Salles, Donis A. Dondis, E. Ann Kaplan e Edgar Morin. Palavras-chave: Cinema; Artes Visuais; Céline Sciamma. ABSTRACT The research aims to study the relationship between cinema and visual arts, through the analysis of the works of the French filmmaker Céline Sciamma, in particular the film "Portrait of a Lady On Fire", released in 2019, in the context of contemporary French cinema and the set featured works by the director herself. It also seeks to understand how the filmmaker's gaze works and the existing relationships between visual arts and audiovisual, contemplating the importance of introducing the female and sapphic gaze in cinema. It is a qualitative research, in which the production design was detailed, when studying the photography and script, analyzing the camera cuts, sets, sound design, artistic creation process and the visual aspects of the film based on the history of French cinema and on the ideas of Cecilia Almeida Salles, Donis A. Dondis, E. Ann Kaplan and Edgar Morin. Keywords: Cinema; Visual Arts; Céline Sciamma. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO …………....……………………………………………………………... 7 2 CAPÍTULO 1 ………..…………………………………………………………………… 9 2 O SURGIMENTO DO CINEMA E CREDITADO A… ………………….…...… 9 2.1 NOMES FEMININOS DA HISTÓRIA DO CINEMA …………………….... 13 2.2 CINEMA DA CONTRAMÃO ……………….……………………………….. 18 3 CAPÍTULO 2 …………………………………………………………………………… 20 3 O CINEMA DE CÉLINE SCIAMMA ………….………………………………. 20 3.1 OBRAS ……………………………...………………………………………… 22 3.1.1 LÍRIOS D’ÁGUA …………..……………………………………….. 26 3.1.2 PAULINE .………………….……………………………………….. 28 3.1.3 TOMBOY ……………….………………………………………….. 29 3.1.4 GAROTAS …………………………………………………………. 32 4 CAPÍTULO 3 ……...……………………………………………………………….…... 35 4 ARTES VISUAIS E AUDIOVISUAL: RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS ……………………………………………………...…………………… 35 4.1 ROTEIRO ……………………………………………………………………... 35 4.2 COMPOSIÇÃO DOS PERSONAGENS……………….…………………… 36 4.3 DIREÇÃO DE ARTE …………………………………..…………………..… 38 4.3.1 A ARTISTA E A PINTURA: METÁFORAS ……………………….……... 39 4.3.2 OS DOIS RETRATOS …………….……………………………….………. 42 4.3.3 A CAPTURA DOS TRAÇOS ………..……………………………….…… 43 4.3.4 A COR E SEUS SIGNIFICADOS ……………………..…………………. 44 4.3.5 ENQUADRAMENTOS E PLANOS ………………………………………. 48 4.3.6 O CENÁRIO ………………………………………………………………… 51 4.3.7 A SONOPLASTIA: SINESTESIA ………………………………………… 55 4.3.8 HÉLÈNE DELMAIRE, A ARTISTA ……………………………………..… 57 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS …………………………………………………………... 59 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ………………………...………………………. 61 7 1 INTRODUÇÃO O cinema francês é um dos mais renomados do mundo, suas produções impactam diretamente em grandes obras internacionais. Com o investimento forte no cinema, a cada ano, novos cineastas franceses ascendem, destacando-se debaixo dos holofotes, sendo um deles Céline Sciamma, nome que tem persistido por cerca de 15 anos construindo seu legado para a história do cinema contemporâneo. Suas motivações e inspirações estão no contexto do presente trabalho, em uma busca por maior compreensão da estética e das escolhas feitas nas produções da cineasta, enfatizando as proximidades entre cinema e artes visuais. O primeiro capítulo apresenta um breve referencial histórico do cinema francês, em função de traçar referências para a obra de Sciamma. Incluindo menções a outros cineastas contemporâneos, o objetivo do conteúdo abordado é destacar o impacto da obra da diretora no cenário atual. Além de apresentar nomes femininos da história do cinema que foram apagados durante os anos, enfatiza-se a relevância de abordar o caminho trilhado pelas mulheres no cinema antes de chegar ao século XXI. A fim de entender o caminho histórico da produção cinematográfica e as escolhas estéticas de Céline Sciamma, no segundo capítulo foi traçada uma breve biografia da cineasta e leituras de seus três primeiros filmes “Lírios D’Água” (2007), “Tomboy” (2011) e “Garotas” (2014), nomeados por ela como a trilogia do amadurecimento. Nela, a diretora explora três histórias de amadurecimento e descoberta que permeiam a infância e a adolescência. O curta-metragem “Pauline” (2010) – desenvolvido por Sciamma para uma campanha anti-homofobia, do governo francês – também é apresentado, trazendo questões relevantes para a filmografia da diretora. O terceiro capítulo é dedicado a “Retrato de Uma Jovem em Chamas” (2019), o motivador da presente pesquisa. No texto, é feita uma leitura da obra traçando sua relação com a pintura e as artes visuais. O capítulo foi organizado em três tópicos principais: roteiro, composição dos personagens e direção de arte. No tópico de direção de arte abro subtópicos a fim de analisar mais detalhadamente as questões: relação entre artista e pintura, o processo de pintura dos retratos, como a artista 8 capta os traços, a paleta de cores, os enquadramentos e planos, o cenário, a sonoplastia e a artista que produziu as pinturas expostas no filme. Busco conectar a obra audiovisual com as artes visuais, mostrando como elas contribuem para a produção cinematográfica e como se deu a construção da relação entre esses dois campos em Retrato de Uma Jovem em Chamas. O foco aqui é maior na pintura, uma vez que, é a expressão artística utilizada pela cineasta Céline Sciamma no desenvolvimento do roteiro da obra. Trago, também, discussões acerca do processo criativo, a participação ativa do sujeito no retrato e o olhar sensível do artista. 9 2 O SURGIMENTO DO CINEMA É CREDITADO A… A história do cinema por muito tempo firmou-se como a história do cinema francês, sendo o berço dessa linguagem que atravessou o mundo, Edgar Morin aponta a capacidade inventora e improvisadora por trás da criação dos maquinários cinematográficos: As grandes invenções vieram do mundo dos passatempos, dos hobbies. Elas jorram não da grande empresa evoluída, mas do laboratório de um iluminado solitário ou da oficina de um improvisador (não preciso acrescentar que a grande empresa absorve rapidamente a invenção). E se generalizarmos, então, ao nível das nações, terá sido talvez seu atraso no plano da concentração e da racionalização industrial que fez da França um país de inventores! (MORIN, 2014, p. 26). O início da história do cinema possui muita notoriedade, sendo parte da cultura pop dessa linguagem, porém, com esse marco, nasce também a história do cultuado cinema francês, que por muito tempo dominou as salas de exibição de todo o mundo. Assim, pelo menos, é certo que, se o cinema é uma invenção internacional, foi numa França artesanal e improvisadora, que o número de achados cinematográficos foi mais alto (129 patentes no ano de 1896, contra 50 na Inglaterra). (MORIN, 2014, p. 26). O surgimento do cinema ocorreu na França, no fim do século XIX, com os primeiros experimentos e produtos feitos pelos irmãos Lumière, solidificados com as produções de continuidade e efeitos especiais de Alice Guy-Blaché e Georges Méliès. A criação do cinematógrafo, máquina de filmar que registrava uma sequência de fotografias em uma película de celulóide e projetava por uma lâmpada atrás da película que por sua vez gira através de uma manivela, marca um momento de contemplação de imagens - um voyeurismo, que se liga à fotogenia, mensagem estética promovida pelas técnicas de fotografia e que fascina o espectador. Suas projeções causaram uma grande onda de interesse não somente pelo surgimento deste maquinário inovador, mas por representar algo cotidiano e comum, segundo Morin: Lumière, ao contrário de Edison, cujos primeiros filmes mostravam cenas do music-hall ou de lutas de boxe, teve a intuição genial de filmar e projetar como espetáculo o que não era espetáculo: a vida prosaica, os transeuntes com seus interesses. (MORIN, 2014 p. 30). 10 Georges Méliès é considerado um dos maiores precursores da história do cinema, tido como um dos responsáveis pelo desenvolvimento de novas técnicas como a cenografia, produção de figurino, continuidade das cenas e também por proporcionar a experiência de assistir ao cinema às classes mais baixas. Com suas histórias fantásticas e cenários teatrais feitos à mão, o cineasta francês foi um dos maiores precursores do cinema, conquistando o cenário nacional e, principalmente, o internacional. Tendo seu maior sucesso com a obra “Viagem à Lua” (1902), Meliès se posicionou como uma das figuras mais importantes do nascimento do cinema: Viagem à Lua, de alguma maneira, representa a culminância de um ponto nodal, de convergência, para a cultura do cinema, e, de certa forma, da cultura moderna em geral, que o faz impulsionar ao menos três caminhos distintos para os quais o cinema se dirigiria nas décadas seguintes, como se Méliès houvesse antecipado, em um mesmo filme-embrião, vários “lugares” do cinema dentro de um contexto de modernidade. (SILVA, 2015, p. 107). Figura 1: Frame de “Viagem à Lua”, George Méliès (1902). Fonte: Youtube1 Com “Viagem à Lua” (1902), Méliès desenvolve o que viria a ser o moderno, extremamente pautado no industrial e científico, a obra torna-se um produto midiático com força econômica e social, fantasiando as conquistas do progresso técnico e manufatureiro. Portanto, o filme promoveu diversos paralelos com temas 1 Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2022. https://www.youtube.com/watch?v=S5dG3Skdq6U 11 como colonialismo, poder industrial e científico francês e viagem espacial, o que causou grande efervescência no imaginário da comunidade. É nessa obra que vemos o nascer de algumas funções que mais para frente conheceríamos como diretor de arte, figurinista, cenógrafo etc, uma seriação de cargos chamados de “regime de funções”. Méliès, com seus trabalhos, traça uma nova ordem à história do cinema, deixando um legado que culminou nas próximas gerações de cineastas que utilizaram os caminhos desenhados por ele, sendo inspiração e alvo de estudo até à atualidade. O cinema torna-se uma paixão nacional, um símbolo da cultura francesa, que não o vê apenas como um produto econômico, mas também como obra a ser contemplada - exigindo maior qualidade. Porém, com a explosão da Primeira Guerra Mundial, o cinema francês perde investimentos privados e públicos, já que as prioridades em toda a Europa tornam-se outras, fazendo com que a França perca grande parte de sua produção. O cinema passa por sua primeira crise, tentando sobreviver em meio a conflitos que afetaram o mundo de forma geral. A destruição da guerra inevitavelmente influenciou na minimização do cinema, assim como em todas as linguagens artísticas, tendo seus investimentos cortados e colocados em segundo plano. A Primeira Guerra Mundial marcou um grande avanço dos Estados Unidos da América na Europa de forma geral, isso também se refletiu no cinema, criando um comércio competitivo à altura do mercado cinematográfico francês, o que fez com que ele perdesse ainda mais força. A mudança da mentalidade do público se coloca como mais um impasse para o enfraquecimento da sétima arte, o público buscava por algo que conectasse com a realidade, as obras fantasiosas e lúdicas de Méliès deixaram de vislumbrar o público que buscava por realismo. Ao falar de cinema francês, uma das primeiras imagens que vem à nossa cabeça é a de obras da Nouvelle Vague (1959/60), uma das vanguardas consideradas mais importantes da história do cinema. Criada a partir de cineastas e críticos insatisfeitos com os rumos do cinema francês, o movimento trouxe grandes inovações que perpetuam no cinema contemporâneo, sendo uma das maiores influências dos cineastas atuais. Segundo Michel Marie “Eles são ainda, cerca de quarenta anos após 1960, os diretores de referência do cinema contemporâneo.” (MARIE, 2003, p. 168). 12 Claude Chabrol, Eric Rohmer, François Truffaut, Jacques Rivette e Jean-Luc Godard marcaram o cenário do cinema francês por décadas, pontuando um momento histórico de grandes produções de sucesso do cinema francês, exportadas para todo o mundo. Com o fim desse movimento, muitos caminhos foram abertos e os frutos começaram a fluir em um cinema francês conceituado, artístico e próspero. A Nouvelle Vague, já no começo do movimento, foi responsável por encorajar e lançar diversos novos cineastas. Em 1962, o cinema francês estreava as obras de cerca de 162 jovens diretores. Com esse grande fluxo de produção, a “nova onda” despertou o interesse do público e, principalmente, do público internacional. Os traços que definiam o novo movimento não eram muito nítidos no período, apenas algumas palavras como “jovial”, “surpreendente” e “pouco profissional”, um cinema novo com um espírito jovem, produzido em um ritmo rápido e inovador. Os próprios cineastas do movimento não desenharam linhas a serem seguidas, apenas características simples para definir o que era a Nouvelle Vague: O próprio François Truffaut chegou a dizer, de maneira um pouco provocante, em 1962, que o único traço comum aos autores da Nouvelle Vague era a prática do bilhar elétrico, e acrescentou: "Não nos cansávamos de dizer que a Nouvelle Vague não é um movimento, nem um grupo, é uma quantidade, é uma apelação coletiva inventada pela imprensa para agrupar cinquenta novos nomes que emergiram em dois anos em uma profissão em que não se aceitavam mais do que três ou quatro nomes novos todos os anos. (MARIE, 2003, p. 169). Figura 2: Frame de “Acossado”, Jean-Luc Godard (1961). Fonte: Site Papo de Cinema2 2 Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2022. https://www.papodecinema.com.br/filmes/acossado/ 13 De modo geral, a história apresentada neste capítulo representa um breve resumo da complexa história do cinema francês, o que foi pontuado é apenas o que se torna relevante para a pesquisa. Porém, há nomes que foram suprimidos pela história do cinema e que influenciaram diversos cineastas por muitas gerações. Torna-se necessário resgatar esses nomes para uma melhor compreensão da história do cinema e das produções cinematográficas contemporâneas. A fim de chegar a uma conclusão quanto ao cinema francês e a nomes da contemporaneidade, apresento mulheres que deixaram seus legados para a história do cinema. 2.1 NOMES FEMININOS DO CINEMA FRANCÊS Por muito tempo, a história do início do cinema foi protagonizada pelos irmãos Lumière e as produções de Méliès, porém, nesse processo houve o apagamento de uma figura importante para cinematografia: Alice Guy-Blaché. Paralela aos cineastas já citados, traçou técnicas e estéticas que influenciaram o cinema futuro de forma gigantesca. Sendo também uma das precursoras do cinema. Blaché foi responsável pelo desenvolvimento de centenas de filmes, tornando-se pioneira na formalização de estúdios de produção cinematográfico conforme Amanda Lopes Fernandes: tendo em seu currículo mais de 455 créditos como diretora e mais de 1000 filmes produzidos no total. Dentre eles, o primeiro grande blockbuster cristão La Vie Du Christ (BLACHÉ, 1906), com 25 cenários, centenas de figurantes e duração de 34 minutos, sendo o filme mais longo lançado até aquele momento (BLACHÉ, 1906a). (BLACHÉ, 1906 apud FERNANDES, 2019, p. 3). Tendo sua história ignorada, Blaché ganha seu devido reconhecimento após muito tempo, porém, ainda é escassa a citação de seu nome nos livros de história do cinema e nos debates cinematográficos. Pouco se fala da magnitude de seus trabalhos que paralelo ao dos cineastas já citados se mostram com grande potência e inovação, o maior exemplo é quando Blaché produz a obra “A Fada do Repolho” (1896), primeiro filme de ficção, retratando uma tradicional lenda francesa: “Alice acaba por criar, seis meses antes de Georges Meliès, o que viria ser o cinema de ficção e com isso também os cargos de direção, produção e roteirista.” (FERNANDES, 2019, p. 6). Sua genialidade foi tanta que até mesmo a seriação das 14 funções ela desenvolveu em seus trabalhos. Na obra citada, Alice interpreta uma fada que em meio a uma plantação de repolhos, colhe bebês a fim de entregá-los a potenciais pais, representando o mito da origem dos bebês contado às crianças francesas. Nas cenas dessa obra, é possível ver o desenvolvimento do que chamamos de cenografia e figurino. Blaché cria uma ambientação, um cenário fiel e teatral, além de se vestir a caráter, como uma verdadeira fada do repolho. Figura 3: Frame de “A Fada do Repolho”, Alice Guy Blaché (1896). Fonte: Persona Jornalismo Cultural3 É inegável que Alice Guy-Blaché é uma das pioneiras do cinema. Suas produções introduziram novas formas de ver essa tecnologia e aplicar no cinema, sendo um símbolo de inovação e criatividade. Podemos afirmar que o marco de Blaché não anula o trabalho de cineastas que foram importantes para a história do cinema e que se tornaram ícones, como Méliès e Chaplin, mas sim que suas obras devem estar sempre em paralelo com os de cineastas consagrados. Seu legado transcende o século e chega aos dias de hoje com a redescoberta de seu trabalho, sendo uma influência forte para jovens cineastas e principalmente mulheres cineastas, que buscam escancarar a importância do cinema de Blaché para a história. Com a Nouvelle Vague, uma forma diferente da produção francesa foi apresentada, um novo cinema que trouxe muitos nomes de vanguarda que entraram para a história. Nesse contexto, mais uma vez, urge olhar para um nome que foi deixado em segundo plano: Marguerite Duras. A escritora e cineasta francesa é 3 Disponível em: . Acesso: 10 nov. 2022. https://personaunesp.com.br/thelma-e-louise-30-anos/ 15 considerada uma das principais figuras históricas femininas do século XX, responsável por diversos clássicos da literatura e cinema europeu. Nas palavras de E. Ann Kaplan: A influência dos diretores da nouvelle vague, especialmente Godard e Resnais, sobre as cineastas européias é bem conhecida; menos conhecido é que uma cineasta, Marguerite Duras, teve um importante papel naquele movimento (ao mesmo tempo influenciando e sendo influenciada por ele). (KAPLAN, 1995, p. 25). Duras foi responsável pelo roteiro de “Hiroshima Meu Amor” (1959), no qual trabalhou em conjunto com Alain Resnais. Assim, em meados dos anos 1960, deu início aos seus filmes autorais. Outra obra de sua autoria é “Nathalie Granger” (1972), um manifesto crítico à opressão patriarcal, no qual Duras aponta o silêncio como método de resistência feminista. A obra foge do formato tradicional de narrativa, onde a cineasta mistura passado, presente e futuro, rompendo com a norma convencional e misturando a realidade das personagens com suas próprias fantasias. Propondo um novo método de compreender o cinema, Granger faz com que os espectadores possam ter uma experiência semelhante a um quebra-cabeça, assim, como Duras fez em seu livro “O Amante” (1984). Em “Nathalie Granger” (1972), Duras não se preocupa em responder questões básicas, ela apresenta as personagens de forma natural e deixa que o espectador crie suas próprias impressões ao decorrer do filme, sem grandes pretensões - assim, pontuando uma característica importante da Nouvelle Vague. “Nathalie Granger” (1972) se assemelha às obras do cinema mudo, o que é totalmente intencional, uma vez que a Marguerite discorre sobre a política do silêncio como resistência feminina, mostrando o mundo paralelo doméstico criado pelas mulheres, utilizando técnicas como o plano longo e despertando no espectador a sensação de alienação em relação ao tempo: um mundo próprio com o seu próprio espaço e tempo. Muitas questões críticas sociais e políticas em relação à obra podem ser levantadas, mas o fato é que Duras conseguiu criar uma obra que influencia e inspira cineastas até hoje. 16 Figura 4: Frame de “Nathalie Granger”, Marguerite Duras (1972). Fonte: Film at Lincoln Center4 Em suas representações, Alice Guy-Blaché (Pierrette's Escapades, 1900) e Marguerite Duras (Nathalie Granger, 1972), trazem um olhar puramente feminino da relação doméstica e íntima entre mulheres, sem uma contaminação patriarcal. Nas obras citadas, podemos ver mulheres em cena vivendo sua vida, mesmo que de forma banal, mas com grande força de subversão ao cenário cinematográfico da época. Em uma época marcada pelo protagonismo masculino e pela relação de admiração e respeito entre homens, as cineastas entram em cena para marcar a experiência feminina. Ambas foram ícones importantes do cinema, principalmente em contexto francês, desenvolvendo linguagens e técnicas de inovação perpetuadas durante o século XX. Entretanto, isso não impediu que fossem negadas pela história. Na contemporaneidade, há um forte movimento de resgate de nomes da cinematografia mundial que foram apagados pela história. Jovens cineastas e pesquisadores reivindicam a memória de mulheres que impactaram a indústria do cinema e deixaram um legado. Nomes como Germaine Dulac, “La Fête espagnole” (1920), pioneira no cinema mudo; Jacqueline Audrey, “Olivia” (1951), especializada em adaptações literárias; Agnés Varda, “Sans toit ni loi” (1985), vanguardista da Nouvelle Vague, são reerguidos visando conquistar o reconhecimento da potente contribuição feminina na história do cinema. Michel Marie aponta o fenômeno do crescimento de mulheres cineastas no cinema francês em duas décadas após a influência política da Nouvelle Vague: “Em 20 anos, de 1986 a 2006, dezenas de 4 Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2022. https://www.filmlinc.org/films/nathalie-granger/ 17 moças conseguiram ingressar na profissão de diretora. As pioneiras são Claire Simon, Laëtitia Masson, Claire Denis, Noémie Lvovsky.” (MARIE, 2008, p. 61). 2.2 O CINEMA DA CONTRAMÃO Considerando dados dos anos 1980 aos anos 2000, o cinema francês foi um dos maiores contribuidores econômicos cinematográficos, atingindo no início dos anos 1980, metade da participação no mercado do cinema, atingindo seu menor pico em 1986 com 27%, segundo Michel Marie (2008, p. 72). Em 2004 e 2005 essa porcentagem era de 36% a 38%, com uma resistência frágil em comparação ao cinema americano que possuía uma porcentagem de 46% a 47%. Marie pontua que a influência do mercado cinematográfico na Europa interferiu diretamente nas produções francesas, tendo que buscar formas de “reformar” o sistema cinematográfico. A apropriação do multiplex, grandes parques de salas onde projetava-se diversos filmes ao mesmo tempo ou grandes estreias em muitas partes da cidade criado nos Estados Unidos, e o cartão fidelidade fizeram com que o cinema francês mais uma vez resistisse, impulsionando o crescimento econômico da região. A forte campanha de marketing do cinema francês por meio dos multiplex foi tamanha, ditando novos parâmetros de produção e distribuição, que levou o cinema independente à marginalidade. Uma interferência na qualidade das produções acontece com essa reforma no sistema cinematográfico francês, trazendo à superfície obras de gênero que conversassem com os diferentes públicos: ação, comédias e adaptações teatrais que promoveram uma busca maior pelo cinema. Nas palavras de Michel Marie: “O cinema francês está, portanto, fundado sobre a coexistência de um cinema popular baseado em gêneros, principalmente o cômico, e em um cinema de autores com público bem mais restrito.” (MARIE, 2008, p. 59). É possível traçar uma linha que separa o cinema com viés artístico e com o caráter comercial, fruto da massificação do cinema. Edgar Morin apresenta a ideia de que a massificação da cultura vem com o ritmo do desenvolvimento técnico e a divisão da função do trabalho, assim, os multiplex desencadearam uma cultura de filmes que visam o comércio: “A apresentação do filme traduz toda uma série de decomposição das tarefas, não apenas técnicas, mas também num estágio que podemos chamar criador.” (MORIN, 18 1972, p. 8). A semelhança análoga com o sistema industrial tornou as funções dentro de um estúdio cada vez mais restrita, perdendo uma parte das multi funções dos diretores e envolvidos na produção, como era feito na Nouvelle Vague, por exemplo. A indústria entra em um embate entre a originalidade e a padronização, tornando necessário traçar caminhos totalmente inovadores que gerem entusiasmo no público. A fim de despertar o interesse dos consumidores, a indústria comercial do cinema, busca reaproveitar as obras já desenvolvidas, mas acrescentando algo de novo para captar os espectadores pela nostalgia, causando um sincretismo cultural: O funcionamento da indústria cultural deve, pois, superar fundamental contradição que existe entre estruturas padronizadas e certa originalidade do produto entregue ao mercado assumindo a exigência de individualidade e de novidade dos públicos ou, se preferirmos, dos consumidores. (MORIN, 1972, p. 10). Cecilia Almeida Salles aponta que “estudos de processos específicos, porém, podem mostrar como questões relativas ao mercado afetam alguns criadores e suas obras, e, provavelmente, seus processos deixam indícios de adaptações, segundo critérios externos.” (SALLES, 1998, p. 47). Nesse contexto, os cineastas buscavam por se distinguir do padrão, lutando pela originalidade e inovação, gerando movimentos e ideias estéticas que foram exploradas e aplicadas pelos diretores com viés artístico. O Cinema Experimental é um caminho que muitos diretores tomaram para produzir filmes artisticamente, esse movimento nasce em contraste com o cinema de massa que crescia cada vez mais. Nomes como Maya Deren, Stan Brakhage e Jonas Mekas surgem quando falamos de Cinema Experimental como diretores precursores do movimento e com um impacto que perpetuou por muitas gerações. É notório o impacto que essa vanguarda teve nas próximas gerações, servindo de referência até a contemporaneidade para os novos cineastas, principalmente para mulheres que lutaram por notoriedade: “Para muitas mulheres, o cinema experimental representou, portanto, uma libertação das representações ilusionistas, opressivas e artificiais do cinema hollywoodiano.” (KAPLAN, 1995, p. 130). 19 Figura 5: Frame de “Tramas do Entardecer”, Maya Deren (1943). Fonte: Youtube5 Ainda na contemporaneidade, os cineastas buscam romper com o ciclo da massificação do cinema, com toda a dificuldade de produzir obras independentes, eles cavam brechas para romper com o sistema - ainda mais na era do stream, em que os números de reproduções seguidas é de extrema importância para o mercado. Os streamings, plataformas de distribuição em fluxo contínuo de conteúdos de mídias, causam um aceleramento do consumo dessas produções, onde o espectador está sempre na busca por algo novo e inédito. A cineasta francesa Céline Sciamma é uma das diretoras que vai na contramão ao cinema comercial. Com suas obras focadas no artístico e sensível, Sciamma busca conectar o espectador com a produção cinematográfica, o introduzindo na atmosfera e sensibilizando pela estética. Para além disso, Céline Sciamma consegue alcançar o mainstream, conteúdos culturais que alcançam um amplo público a nível global, sem perder sua essência artística, produzindo filmes que são profundos em significados e originais, podendo ser exibidos em qualquer lugar, assim, conquistando o público com sua sensibilidade e sutileza. Com todos os argumentos discutidos neste capítulo e no anterior, entendo ter questões e alegações importantes para começar a compreender e discutir de onde parte o cinema de Céline Sciamma. Proponho apresentar uma breve análise estética dos trabalhos da diretora anteriores à “Retrato de Uma Jovem em Chamas” (2019), a fim de reconhecer quais bases e escolhas artísticas precedem a obra. 5 Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2022. https://www.youtube.com/watch?v=e6khTTvxj-Y 20 3 O CINEMA DE CÉLINE SCIAMMA No subúrbio de Paris, mais especificamente em Cergy-Pontoise, em 1978, nascia Céline Sciamma, cineasta e roteirista que tem se consagrado nos últimos anos. Inspirada desde jovem pela sua avó, que compartilhava de um forte interesse pelo cinema antigo Hollywoodiano, Sciamma decidiu seguir carreira cinematográfica, caminhando para a função de roteirista, em 2004. Já em 2005, escreveu o roteiro de seu primeiro filme “Lírios D’Água” (2007), o qual foi fruto de um trabalho de avaliação de seu curso de cinema na La Fémis6, onde a cineasta estudou por cinco anos. A opção por se tornar roteirista veio de uma ideia equivocada de que a direção era uma função apenas masculina, porém, a diretora assume o lugar de diretora ao produzir seu primeiro filme. “Alguns dias fora do mundo” é como a cineasta descreveu suas obras, em entrevista ao The Guardian (2021): “Também é sempre sobre personagens femininas porque elas podem ser elas mesmas apenas em um lugar privado onde podem compartilhar sua solidão, seus sonhos, suas atitudes, suas ideias.” (SCIAMMA, 2021). Céline Sciamma cria um espaço seguro para suas personagens, onde elas podem se expressar da forma como desejam, sem medo de julgamentos ou repressões. Figura 6: Frame de “Lírios D’Água”, Céline Sciamma (2007). Fonte: Youtube7 7 Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2022. 6 A École nationale supérieure des métiers de l'image et du son, conhecida como La Fémis, é um estabelecimento público de ensino superior francês, ligado ao Ministério da Cultura da França e ao Centre national du cinéma et de l'image animée. https://www.youtube.com/watch?v=s91grErUk9M 21 Os filmes de Céline Sciamma receberam o título de “cinema do olhar”, com longas cenas para apreciar. Atividades cotidianas por uma visão poética, Sciamma apresenta os personagens vivendo sua vida, em seu ritmo, com sua intimidade e o reflexo de seus pensamentos em suas ações. Porém, a diretora é reconhecida também por atribuir um olhar feminino ao cinema, uma visão que não se contamina pela norma patriarcal. O cinema estrutura-se em torno de três olhares explicitamente masculinos: há o olhar da câmera na situação que está sendo filmada (chamada de evento pró-filmico); apesar de ser tecnicamente neutro esse olhar é, como já vimos, essencialmente voyeurístico e via de regra "masculino" no sentido de que normalmente é um homem que está fazendo a filmagem; há o olhar do homem dentro da narrativa, que é estruturado para fazer da mulher objeto de seu olhar; e, finalmente, há o olhar do espectador masculino (que discutimos acima) que imita (ou está necessariamente na mesma posição que) os dois outros olhares. (KAPLAN, 1995, p. 54). Céline Sciamma se posiciona como uma mulher lésbica, trazendo essa narrativa em diversas produções. A cineasta imprime suas vivências e experiências, mesmo que individuais, buscando se conectar com um público que é invisibilizado e que só havia se enxergado por uma visão que não as representavam - um olhar patriarcal. Tornando-se uma figura importante para a representatividade de pessoas queer no cinema e possibilitando uma visão não masculina de mulheres. Direi simplesmente que as dificuldades cercam a crença, ou não, na possibilidade de se representar relações que não foram construídas pela ordem dominante. Até que ponto as lésbicas estão moldadas por sua posição de Outro dentro de um sistema significante que atribuiu um signo especifico (negativo) para "lésbica"? Será que imagens de mulheres identificadas com mulheres e das ligações femininas podem realmente subverter a dominação patriarcal? Será que podemos criar representações de tais relacionamentos que escapem às construções que a ordem dominante fez delas, isto é, de marginais, cooptáveis e circunscritas aos guetos. Ou deveríamos ver as relações lésbicas como algo parecido com a ligação mãe-filho, isto é, como um território não-colonizado pelos homens (pelo menos ao nível não-simbólico) e portanto como outra brecha possível através da qual as mudanças podem começar a acontecer? (KAPLAN, 1995, p. 131). Com aspectos sociais fortes, Sciamma não ignora a arte por trás de um filme, desde a adolescência frequentava lugares como Utopia, um cinema de arte em Paris, onde se conectou mais ainda com o lado artístico por trás dos filmes. A cineasta se atenta aos detalhes, suas personagens são naturais e imperfeitas como 22 na realidade, desde o cabelo desarrumado, pele natural à roupas amarrotadas e simples. A diretora não impõe uma neutralidade ou glamourização no figurino, ela constrói a aparência das personagens da forma natural, assim, criando a ideia de que ela pode ser qualquer pessoa, um alguém normal, não há excentricidade da parte visual dos personagens. 3.1 OBRAS Os filmes, em geral, nascem de uma narrativa, de um roteiro. No caso da obra de Céline Sciamma, essa narrativa está diretamente relacionada à direção de arte. A função do diretor de arte é criar a narrativa visual, ele é o mediador entre a palavra e a imagem, quem dá traços, formas e cores ao que está no papel. Ele é uma figura fantasma, alguém que projeta o espaço cênico, levanta as paredes, preenche de objetos, afina os detalhes e some no momento da ação. Sua função é somente criar a ambientação da cena, tornar os personagens complexos e inseri-los no ambiente de forma coesa: Através de seus instrumentos básicos, como o desenho do espaço, a fabricação do claroescuro, o jogo cromático, as características dos materiais, o objeto, a figura humana e a imagem, trabalha com a oscilação entre a criação de efeitos de presença e efeitos de sentido, tal qual proposto por Gumbrecht. (HAMBURGER, 2014, p. 27). Cenografia, efeitos, figurino, maquiagem e produção de objetos são as configurações básicas da divisão do trabalho dentro da direção de arte, o papel do diretor de arte é: através da convivência criar os efeitos de presença e sentido, despertando a sensibilidade e conexão do espectador com a obra. A diretora de arte Vera Hamburger atribuiu três áreas principais para estruturar a direção de arte: arquitetura, artes visuais e design: Matéria multidisciplinar por excelência, a direção de arte cênica lida por um lado com os repertórios específicos da arquitetura, do design, das artes visuais; de outro, com códigos de linguagem pertencentes à textualidade, seja teatral, audiovisual ou ligada à criação de um discurso expositivo. (HAMBURGER, 2014, p. 27). Um dos detalhes que faz as produções de Céline Sciamma serem visualmente detalhadas é a sua participação assídua em todos os processos de 23 criação de seus filmes, principalmente na direção de arte. Nesse cenário, Céline Sciamma torna-se autônoma, cumprindo uma função para além de diretora, torna-se presente em todos os processos de produção e direção, sendo até sua própria figurinista. Essa presença da cineasta em todos os processos do filme e a conexão entre roteiro e direção de arte criam aspectos estéticos complementares, uma vez que as obras de Sciamma são silenciosas e há uma relação entre a imagem e o som. Destaque para os sons ambientes que são audíveis durante todos os filmes, complementando a cena, tornando-a mais natural, o foco é no roteiro. Em poucos momentos da trama a diretora acrescenta trilha sonora, ela só aparece em momentos específicos e quando é para intensificar uma situação ou emoção. Figura 7: Diretora Céline Sciamma no set de filmagem de “Retrato de Uma Jovem em Chamas” (2019) com as atrizes Noémie Merlant e Adèle Haenel. Fonte: Mulher no Cinema8 A importância da cor nas obras de Céline Sciamma é extrema, ela utiliza desse artifício para criar o temperamento do filme e para definir a personalidade dos personagens. As cores se manifestam de muitas formas, promovendo emoções e definindo a feição da cena. Na Figura 8 (Tomboy, 2011) vemos dois personagens em estado de estranhamento e dúvidas, envoltos a uma atmosfera verde. Já na Figura 9 (Garotas, 2014), a cineasta utiliza do azul neon para representar o estado de espírito das quatro personagens, a excitação e empolgação em que elas se 8 Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2022. https://mulhernocinema.com/especiais/retrato-de-uma-jovem-em-chamas-os-bastidores-do-aclamado-filme-de-celine-sciamma/ https://mulhernocinema.com/especiais/retrato-de-uma-jovem-em-chamas-os-bastidores-do-aclamado-filme-de-celine-sciamma/ 24 encontram, tendo em mente que o azul é uma cor importante para essa obra específica. Figura 8: Frame de ”Tomboy”, Céline Sciamma (2011). Fonte: Filmgrab9 Figura 9: Frame de “Garotas”, Céline Sciamma (2014). Fonte: New York Times10 Um outro aspecto importante da produção de Sciamma são os jogos de câmeras, a diretora brinca com as filmadoras para expressar ideias, contrastes e comparações. Um exemplo disso é em Lírios D’Água (2007), a cena (Figuras 10 e 11) começa com as personagens em igualdade emocional, ambas estão posicionadas no quadro em equilíbrio, mas em um momento (Figura 12) a personagem do lado direito começa um monólogo, se colocando em uma situação vulnerável, assim, a câmera pesa para o seu lado, e conforme ela narra a história a cena se desloca para o lado esquerdo. Quando a imagem pesa totalmente para o lado esquerdo (Figura 13), a personagem da direita pede para que a da esquerda se coloque na mesma situação e fale algo que a deixa vulnerável. 10 Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2022. 9 Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2022. https://www.nytimes.com/2015/01/30/movies/in-girlhood-a-french-adolescent-comes-out-of-her-shell.html https://www.nytimes.com/2015/01/30/movies/in-girlhood-a-french-adolescent-comes-out-of-her-shell.html https://film-grab.com/2020/08/26/tomboy/ 25 Figura 10: Frame de “Lírios D’Água”, Céline Sciamma (2007). Fonte: Youtube11 Figura 11: Frame de “Lírios D’Água”, Céline Sciamma (2007). Fonte: Youtube12 Figura 12: Frame de “Lírios D’Água”, Céline Sciamma (2007). Fonte: Youtube13 Figura 13: Frame de “Lírios D’Água”, Céline Sciamma (2007). Fonte: Youtube14 Em cerca de 10 anos de produção, Sciamma constrói um arsenal de obras com grandes assinaturas estéticas e diversa em conteúdo, seja em cores, temas, cenários e muitos outros detalhes, a diretora deixa sua impressão em cada detalhe das obras que produz, mesmo que diferentes entre si, seus filmes possuem uma essência que pertence somente a ela. Para entender o cinema de Céline Sciamma por completo, é necessário analisar suas obras e pontuar os momentos em que suas assinaturas foram mais delineadas. Lírios D’Água (2007), Tomboy (2011) e Garotas (2014) concentram a evolução estética e artística de Céline Sciamma, permitindo com que percebemos o desenvolvimento do seu olhar sensível. A seguir, serão feitas apresentações objetivas das obras da cineasta, exceto de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, que terá um capítulo à parte, por ser o objeto principal do presente trabalho. 14 Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2022. 13 Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2022. 12 Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2022. 11 Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2022. https://www.youtube.com/watch?v=s91grErUk9M https://www.youtube.com/watch?v=s91grErUk9M https://www.youtube.com/watch?v=s91grErUk9M https://www.youtube.com/watch?v=s91grErUk9M 26 3.1.1 LÍRIOS D’ÁGUA De seu projeto de conclusão de curso, Céline Sciamma produziu o roteiro de seu primeiro filme Lírios D’Água (Naissance des Pieuvres, 2007), a ideia era apresentar o roteiro, mas não construir um filme, já que direção não era sua função almejada. O filme foi gravado no bairro onde Sciamma cresceu, narrando a história de três adolescentes e suas descobertas românticas e sexuais. Marie (Pauline Acquart), protagonista do filme, é uma adolescente tímida e reservada que se fascina pela capitã de nado sincronizado da escola Floriane (Adèle Haenel), as duas constroem uma relação de cooperação, onde uma auxilia a outra nos dilemas da vida adolescente, assim, Marie se apaixona cada vez mais por Floriane, aprendendo a lidar com o sentimento de uma paixão intensa e imatura. Figura 14: Frame de “Lírios D’Água”, Céline Sciamma (2007). Fonte: Tumblr15 A premissa é simples e clichê, diversos dramas adolescentes abordam uma trama parecida, porém, Lírios D’Água vai além, é uma história de amadurecimento e descobertas, com o olhar poético assinado por Sciamma e a intensidade do cinema francês. Já de início, a diretora deixa bem marcado suas assinaturas que viriam se repetir nos seus próximos filmes: o silêncio, o som da ambientação como trilha sonora, o vazio, longas cenas de atividades cotidianas, a cor como marca do personagem, a imensidão do cenário em contraste com o personagem etc. 15 Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2022. https://ozu-teapot.tumblr.com/image/616827906268839936 27 Sciamma escolheu usar seu antigo bairro no subúrbio de Paris, Cergy-Pontoise, como cenário de seu primeiro filme, explorando o universo do nado sincronizado que despertava sua curiosidade desde sua adolescência. O filme possui cenas embaixo da água, acompanhando o grupo de nadadoras sincronizadas, em um ritmo e dança que preenchem o olhar. Sciamma comenta, em entrevista ao site Univers-L, 2007, que o nado sincronizado a interessa por ser um esporte colorido, mas ainda sim de muito esforço físico, além do contraste entre aparência e a linha da superfície, o nado sincronizado é um esporte estritamente femino, mas que produz um discurso sobre feminilidade. Longas cenas de atividades cotidianas, feitas sem pressa, no ritmo dos personagens, nos conectam com as personas em cena. O olhar do espectador acompanha a rotina e ações das personagens chegando a momentos em que podemos até entender seus pensamentos apenas pelas suas atitudes e expressões. Longas caminhadas, banhos, olhares melancólicos e extensos, maquiagens e viagens de trem são só alguns momentos em que o espectador prova a persistência do tempo e da intimidade da vida das personagens. Em entrevista ao site Univers-L, em 2007, Céline Sciamma afirma que Lírios D’Água pode ser até um pouco autobiográfico, a cineasta mistura momentos de sua adolescência com a sua criação, as aflições, desejos e curiosidades de uma adolescente que desperta seus interesses. Figura 15: Frame de “Lírios D’Água”, Céline Sciamma (2007). 28 Fonte: Cinematic Tips16 Lírios D’Água possui a descoberta da sexualidade, porém, essa não é a narrativa principal. A diretora imprime sua identidade como pessoa queer no filme e dá uma importância a isso, porém, a personagem de Marie, não se limita apenas a ser uma mulher sáfica, ela é complexa e possui outros dilemas a serem abordados. O filme torna-se importante por representar a descoberta de uma personagem sáfica de forma sensível e natural, não há uma visão contaminada ou fetichizada, Céline Sciamma registra com o olhar de uma mulher que viveu essa experiência. A obra introduz a cineasta de forma bastante concisa no cenário cinematográfico francês, alcançando boas críticas, premiações e grandes públicos, sendo um ótimo debut para a carreira de Sciamma. Ainda em 2007, o filme foi selecionado para exibição na seção “Un certain regard” no Festival de Cinema de Cannes. Além disso, o filme concorreu ao melhor filme debut nas premiações Louis Delluc, sendo vencedor da categoria, e César. 3.1.2 PAULINE “Cinco filmes contra a homofobia” foi um projeto lançado pelo Ministério de Saúde e Esporte francês, em 2010. Céline Sciamma foi uma das cineastas convidadas a participar do projeto, onde produziu seu primeiro curta-metragem: Pauline (2010). O curta narra em oito minutos a história de Pauline (Anaïs Demoustier), uma garota lésbica que nasceu e cresceu em uma cidade pequena no interior da França. A personagem se encontra em uma situação confessional, onde começa contando de forma positiva sobre como foi ser criança em uma comunidade pequena e afetiva, porém, conforme Pauline cresce e se desenvolve, percebe que aquele ambiente não era tão acolhedor quanto pensava. A protagonista expõe suas angústias e desprazeres naquele lugar que não é mais a sua casa, até que ela decide sair de sua cidade e mudar de caminho. O curta se encerra com Pauline explicando que foi dessa forma (saindo de sua cidade natal) que ela chegou ali, naquele ambiente confortável onde ela se sentia aberta a expor suas fragilidades. 16 Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2022. 29 Nos primeiros segundos do curta, a diretora nos mostra detalhes do ambiente, pequenas partes do quarto onde a protagonista está, enquanto ela narra os bons momentos vividos em sua cidade natal, dando ao espectador uma sensação nostálgica e aconchegante. A cena muda quando Pauline começa narrar os momentos tensos que viveu em sua cidade, nesse momento vemos sua imagem deitada na cama enquanto entoa seu monólogo. A cena se estagna nela deitada por seis minutos do filme, até que a figura de uma mulher entra em cena e lhe dá suporte, essa mulher (Adèle Haenel) representa sua namorada e ali elas estão confortáveis. Os créditos sobem e durante é possível ouvir as risadas e sussurros das duas personagens que se encontram em harmonia e aconchego. Pauline, até então, foi a segunda produção em que Céline Sciamma trabalhou dirigindo a atriz Adèle Haenel - o que vai se repetir em Retrato de Uma Jovem em Chamas (2019) - desenvolvendo uma relação de cooperação com a atriz. Mesmo sendo um filme de oito minutos é visível perceber a assinatura da cineasta, seja nos detalhes da cena, quanto no roteiro e na cena centralizada de maior dominância no curta. Sendo uma transição entre Lírios D’Água (2007) e Tomboy (2011), o curta recebeu bastante prestígio e incitou curiosidade do que viria a ser o próximo trabalho da diretora. Figura 16: Frame do curta metragem “Pauline”, Céline Sciamma (2010). Fonte: Kinodvor17 3.1.3 TOMBOY 17 Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2022. https://www.kinodvor.org/en/pauline-eng/ 30 Um dos filmes de mais impacto e propagação de Céline Sciamma, foi Tomboy (2011): “Uma garota finge ser um garoto”, com essa premissa, a diretora cria um de seus maiores sucessos. O filme narra um período da vida Laure (Zoé Héran), uma criança de 10 anos que ao se mudar de bairro com a família, se vê a margem de criar novas relações de amizades com as crianças do lugar, não conformada com seu gênero, Laure se apresenta como Mickaël e adota comportamentos definidos como “masculinos”. Com uma complexidade de emoções, mas que contrastam com o humor suave, o filme torna-se aflitivo, mas confortável. Em um universo infantil, a obra traz as memórias de infância aos espectadores e as aflições de crescer como uma criança queer. Céline Sciamma comenta em entrevista ao site Take One Cinema, 2011, que todos os espectadores podem se identificar com Laure, pois na infância passamos por momentos de fingir ser outra pessoa, seja por apenas uma tarde e de brincadeira, mas que isso não define nossa identidade de gênero, é apenas uma expressão da imaginação infantil. Sciamma comenta que o filme está aberto para que todos possam se conectar com ele e que há muitas camadas para serem digeridas. Figura 17: Frame de “Tomboy”, Céline Sciamma (2011). Fonte: Filmgrab18 18 Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2022. https://film-grab.com/2020/08/26/tomboy/ 31 As críticas ao filme foram de grande positividade, elevando os detalhes, a atuação de Zoé Héran e a naturalidade na atuação das crianças, promovendo ainda mais o prestígio da diretora. O filme foi exibido em escolas francesas como parte de um programa educacional, o que trouxe uma nova perspectiva à diretora. Céline Sciamma, em entrevista ao site Woman and Hollywood, 2011, afirma que não produziu o filme de forma educacional, mas que depois de sua repercussão pode enxergar sua utilidade, além do mais, Sciamma se surpreendeu com o sucesso da obra e como ela se tornou um “filme para assistir com a família”. Figura 18: Frame de “Tomboy”, Céline Sciamma (2011). Fonte: Youtube”19 O fato da obra se tornar um filme familiar é muito positivo para a cineasta por abranger o público e a expansão do filme, mas é interessante também observar que isso possa se dar à dinâmica da família de Laure no filme. A diretora representa a família da protagonista como acolhedores e com uma relação amigável, eles entendem que a filha é tomboy e não possuem problemas em relação a isso, não se importam dela cortar o cabelo curto, usar roupas destinadas aos meninos e até pintam seu quarto de azul, mas eles esperam que essa expressão seja performada somente em casa e esperam uma espécie de segredo dela quando está em público, Sciamma não os vêem como modelos de pais a serem seguidos, mas sim como o retrato de uma família cotidiana. 19 Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2022. https://film-grab.com/2020/08/26/tomboy/ 32 Em Tomboy, a cineasta explora suas assinaturas como diretora, é possível acompanhar o contraste entre personagem, figurino e cenário, tanto pelas cores, quanto pelos contextos, além das cenas dos personagens apenas vivendo sua vida, cenas para contemplar o olhar do espectador. A cineasta utiliza de diversas técnicas que estimulam metáforas e interpretações como na cena (Figura 19 e 20) em que o pai (Mathieu Demy) está balançando Laure em seu colo e a câmera foca no rosto do pai. Ao se balançar para o lado é revelado o rosto de Laure, essa dinâmica perdura por alguns minutos dando a entender a fluidez da figura do pai à figura da filha. Figura 19: Frame de “Tomboy”, Céline Sciamma (2011). Fonte: Youtube20 Figura 20: Frame de “Tomboy”, Céline Sciamma (2011). Fonte: Youtube21 Nesse filme, Céline Sciamma tem a oportunidade de aperfeiçoar sua produção e se posicionar como cineasta. O grande sucesso de Tomboy, garantiu que os olhares dos críticos e espectadores se voltassem a ela, trilhando seu caminho e tornando seu nome prestigiado. Tomboy se conecta com um público marginalizado, um nicho de pessoas que não se identificavam com o que viam nas salas de cinema, e a diretora propõe a esse público se reconhecer e se sentir representado, sem ignorar os espectadores de forma geral. Aqui enxergamos que a cineasta faz cinema para todos, oferecendo ao público uma oportunidade de embarcar em um olhar sensível e sutil. 3.1.4 GAROTAS Garotas (Bande de filles, 2014) é o filme que encerra a trilogia de filmes de coming-of-age, junto a “Lírios D’Água” e “Tomboy”, Garotas é uma obra que fala 21 Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2022. 20 Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2022. https://www.youtube.com/watch?v=Jb-Oys-IcWE https://www.youtube.com/watch?v=Jb-Oys-IcWE 33 sobre amadurecimento. Nesse filme, Céline Sciamma embarca na vida de garotas do subúrbio parisiense, mais especificamente, garotas negras descendentes de imigrantes. O filme foi projetado na seção Directors' Fortnight do Festival de Cinema de Cannes (2014), no Festival Internacional de Cinema de Toronto (2014) e no Festival Sundance de Cinema (2015). Somos apresentados a história de Marieme (Karidja Touré), uma jovem de 16 anos que deixa a escola e se junta a uma gangue de garotas. A protagonista sempre foi alguém que seguia ordens e se guiava pela vontade dos outros, mas ao entrar em contato com esse grupo de garotas, ela começa a colocar seus desejos e impulsos em primeiro lugar. A trama passa pelos dramas da garota lidando com seu amadurecimento, relação com a família, amigas e um interesse romântico proibido. Em entrevista a Vogue, 2015, Sciamma afirma: “Marieme é cheia de contrastes. Você tem que desdobrá-la. Eu tive a ideia de que ela experimentaria identidades como roupas. Como a jornada do herói, tipo, que poder essa roupa me dá?” (SCIAMMA, 2015). Figura 21: Frame de “Garotas”, Céline Sciamma (2014). Fonte: Mídia adquirida pelo autor No seu terceiro filme, Sciamma explora suas possibilidades como diretora, dando vida a suas ideias, trabalhando com maior liberdade artística. É em Garotas que a cineasta criarou cenas com o ambiente oprimindo o personagem, trazendo a imensidão do espaço que consome as pessoas. Em entrevista ao The Guardian, 2015, Sciamma afirma: O espaço público não é criado para o benefício das mulheres, então se torna uma questão de território. As cités são concebidas como bairros auto-fechados com uma forte identidade mas acabam por se tornar ilhas – espaços ligados por passadiços que acabam por criar barreiras. (SCIAMMA, 2015). 34 Utilizando dos espaços para criar sentimentos, a diretora busca novos experimentos e novas formas de representar as emoções e os estados dos personagens. Em Garotas, Céline Sciamma intensifica a paleta de cores do filme, aplicando a cor azul com mais frequência tornando-a marca registrada da personagem e do filme, em diversos frames podemos ver a diversificação de azuis e como cada tonalidade representa um sentimento. O azul neon (Figura 22), é a euforia, o momento em que as personagens estão em um quarto de hotel, usando roupas chiques, se divertindo sem preocupações externas ao quarto. Já o azul (Figura 23) propõe uma rigidez, cena onde Marieme é repreendida pelo irmão opressor. Quando a irmã da protagonista, Bébé (Simina Soumare), entra em seu quarto e vê o vestido azul (Figura 24), temos um momento de inspiração e desejo, o azul aqui é mais claro e iluminado. Enquanto, quando Marieme está acordada a noite espreitando aflita pela janela (Figura 25), temos um azul escuro bem mais intenso. Figura 22: Frame de “Garotas”, Céline Sciamma (2014). Fonte: Mídia adquirida pelo autor Figura 23: Frame de “Garotas”, Céline Sciamma (2014). Fonte: Mídia adquirida pelo autor Figura 24: Frame de “Garotas”, Céline Sciamma (2014). Fonte: Mídia adquirida pelo autor Figura 25: Frame de “Garotas”, Céline Sciamma (2014). Fonte: Mídia adquirida pelo autor Com o sucesso da produção e com suas marcas artísticas definidas, Céline Sciamma se encontra na posição de uma cineasta importante para a história do cinema contemporâneo, seus próximos trabalhos viriam a ser frutos de toda a experimentação que ela desenvolveu em seus três primeiros filmes autorais. Tendo “Lírios D’Água”, “Tomboy” e “Garotas” em seu portfólio, Sciamma marca a potência de seu trabalho e a sua versatilidade como diretora, proporcionando um olhar 35 inovador e sensível ao cinema contemporâneo. Sendo assim, garantindo grandes expectativas aos seus futuros trabalhos e construindo um grupo de espectadores fiéis, prontos para se deleitar em suas obras. 36 4 ARTES VISUAIS E AUDIOVISUAL: RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS Neste capítulo busco apresentar os campos que ligam o filme Retrato de Uma Jovem em Chamas às artes visuais, enfatizando a direção de arte. Dividi o capítulo em nove tópicos que apresentam elementos importantes para a análise, sempre criando o paralelo entre artes visuais e audiovisual. Primeiro comento sobre o roteiro e a escolha da cineasta de produzir uma obra que se passa em outro século. No segundo tópico apresento a formalização das personagens e a sua identidade como artista e sujeito da obra. Já no terceiro tópico exploro a direção de arte e como ela cria a conexão entre artes visuais e obra audiovisual, abrindo subtópicos e esmiuçando detalhes do filme. No tópico quatro apresento o cenário e sua presença na obra, assim como no tópico cinco em que discuto a presença da sonoplastia e sua sinestesia. Os tópicos seis e sete focam, respectivamente, no efeito pictórico da fotografia do filme e as relações entre cenas e obras de artes visuais. Finalizo o capítulo resgatando a metáfora de Orfeu e Eurídice, no tópico oito e expondo o trabalho e contribuição da artista por trás das obras de artes apresentadas em Retrato de Uma Jovem em Chamas. 4.1 ROTEIRO Em 2019, Céline Sciamma decide tomar um caminho diferente de seus trabalhos anteriores: Retrato de Uma Jovem em Chamas apresenta um lado da obra da cineasta totalmente novo, um romance de época, situado no século XVIII. A cineasta embarca em um período diferente, com personagens de uma realidade totalmente divergente dos dias atuais, desafiando sua própria linguagem cinematográfica. O filme apresenta Marianne (Noémie Merlant), uma jovem pintora que é convocada a pintar o retrato de uma mulher sem que ela saiba, para que posteriormente ele seja enviado a seu pretendente. Héloïse (Adèle Haenel), se recusa a se casar e não permite que os pintores completem os retratos dela, a garota guarda uma raiva e frustração intensas por seu destino, pois não deseja se casar com o homem que foi destinado por sua família. Marianne se apresenta a 37 Héloïse como uma dama de companhia, tendo a incumbência de acompanhar a jovem nos passeios diurnos, observando sua fisionomia e expressões e pintando seu retrato em segredo. Com o passar dos dias juntas, cresce entre elas uma relação de amizade e intimidade, se tornando amor. Céline Sciamma escreveu o roteiro do filme, pensando no século XVIII por dois motivos específicos: O primeiro é pelo fato de o século XVIII ser um momento importante na história da arte francesa para as mulheres, Sciamma afirma, em 2019, que segundo suas pesquisas, haviam muitas mulheres pintoras nessa época, que ela mesma desconhecia e que também havia centenas de críticas de arte feministas. Consequente a isso, a cineasta pontua seu desejo por representar a história de uma mulher pintora no século XVIII, não como uma biografia de uma pintora real, mas uma história original que poderia ter acontecido nesse momento da história. Em um Q&A ao TIFF Talks, a diretora delimita o olhar contemporâneo em uma obra que representa uma era passada: “Decidiu-se situar no passado e inventar uma história original, não uma adaptação porque [...] o que deve ser contemporâneo é o filme [...] o que você está olhando é como estamos olhando para as coisas e a história que não foi informada." (SCIAMMA, 2019). 4.2 COMPOSIÇÃO DOS PERSONAGENS Marianne é uma mulher com o mínimo de independência, no contexto histórico que está inserida, século XVIII, sabemos que não haviam grandes possibilidades para as mulheres, mas nesse universo, a pintora subverte a situação. O máximo que sabemos sobre sua história é que seu pai também era pintor, podendo simbolizar, assim, sua afinidade e a origem de seu privilégio de poder ser pintora naquela época. Como já comentado, Céline Sciamma escolheu esse período histórico pelo significativo número de mulheres pintoras francesas, embora desconhecidas e invisibilizadas pela história da arte. Nomes como Élisabeth-Louise Vigée-Le Brun, Adélaïde Labille-Guiard e Anne Vallayer-Coster são algumas das representantes femininas que marcaram a arte francesa no século XVIII. 38 Figura 26: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Caderno Jota22 Noémie Merlant se preparou para o papel muito próxima de Hélène Delmaire, artista responsável pelas pinturas do filme, ela afirma que buscou compreender o olhar do pintor, um olhar bastante particular, além de observar o ritmo e os gestos de uma pintora no processo de criação. Da atuação de Noémie se requeria a linguagem corporal de uma artista, além do olhar e a expressão de alguém que tudo conserva para construir seu processo criativo. A segunda personagem central é Héloïse, Adèle Haenel, atriz por trás da personagem Héloïse, é também parceira romântica de Céline Sciamma, essa relação de trabalho e amorosa que vem desde Lírios D’Água (2007) prevalece até Retrato de Uma Jovem em Chamas (2019). Um dos pontos importantes levantados tanto por Céline Sciamma quanto por Adèle é a abolição da ideia de musa, para elas não existe essa relação, pois a “musa” é também parte da criação da obra, o que existe é muito mais uma cooperação entre artista e objeto a ser captado: “Retrato (de Uma Jovem Em Chamas) é dizer que não existe musa. São apenas colaboradores inspirando uns aos outros.” (SCIAMMA, 2021). A atriz afirma que sua preparação para o papel foi muito mais filosófica do que dramática, ela buscou entender o que é o “sujeito” de inspiração, como se portar nesse contexto e como se dá a colaboração com a artista. Haenel tentou compreender no que se dá o olhar do artista, como ele funciona e como é esse processo de criação. Assim, como Noémie Merlant, Adèle só teve contato direto 22 Disponivel em: . Acesso em: 25 nov. 2022. https://julianavarella.wordpress.com/2021/01/10/retrato-de-uma-jovem-em-chamas/ 39 com as outras atrizes, incluindo a própria Noémie, no set de filmagem. Ambas atrizes buscaram desenvolver uma linguagem e conexão, o que fluiu bem e sem muitos esforços. Figura 27: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: O Globo23 Héloïse existem em duas formas, como sujeito e como amante, sua primeira hora em cena é totalmente focada na personagem como motivadora da obra de arte, sua imagem como o sujeito do retrato, mas ao longo do filme seu espectro humano surge com florescimento da paixão e intimidade entre as protagonistas. Mas nos últimos minutos da obra, o surgimento da imagem de Héloïse como um fantasma, toda em branco como uma noiva, representa o assombro da memória, expõe a última imagem que Marienne possui de Héloïse, a última figura de uma história de amor. 4.3 DIREÇÃO DE ARTE Neste tópico apresento as relações entre a obra “Retrato de Uma Jovem em Chamas” e a linguagem artística da pintura, porém, aqui o foco maior é na direção de arte, abordando questões importantes para o desenvolvimento da obra. A partir deste tópico há uma maior análise da relação entre artes visuais e cinema, como motivadora do presente estudo. 23 Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2022. https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/noticia/2022/05/adele-haenel-anuncia-aposentadoria-do-cinema-aos-33-anos-uma-industria-reacionaria-racista-e-patriarcal.ghtml https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/noticia/2022/05/adele-haenel-anuncia-aposentadoria-do-cinema-aos-33-anos-uma-industria-reacionaria-racista-e-patriarcal.ghtml 40 4.3.1 A ARTISTA E A PINTURA: METÁFORAS No início do filme somos apresentados ao ateliê de Marianne, vemos a artista posando como modelo vivo para um grupo de garotas estudantes que são mentoradas por ela. Não é mostrado muitos detalhes do ambiente, mas é possível ver pinturas espalhadas e bustos de esculturas. Faz parte da imersão do filme retratar o ateliê da artista, já que esse ambiente é de extrema importância para qualquer pintor. Ter seu lugar de produção, um ambiente confortável, onde as ideias tomam forma e o processo de criação é concretizado. Figura 28: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Filmgrab24 Figura 29: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: BFI25 Por tanto, quando Marianne chega no castelo da família de Héloïse, ao se acomodar no quarto, a artista logo busca transformá-lo em um ateliê. Ter esse ambiente íntimo torna-se ainda mais necessário, uma vez que a artista possui uma missão: produzir um retrato que deve ser feito em segredo, trazendo muitos percalços para ela. A pintora tem a tarefa de pintar Héloïse, sem poder usar a jovem de referência no momento da produção, além de ter que pintar sem a luz natural do dia, lidando com a luz artificial. Para a artista é indispensável ter o seu refúgio, onde ela materializa suas ideias, produz esboços e estudos e reflete todo o seu processo de criação. Dos diversos elementos que categorizam Marianne como uma pintora, destaco aqui o zelo por seus artefatos. Em uma das cenas iniciais, vemos a artista 25 Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2022. 24 Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2022. https://www2.bfi.org.uk/news-opinion/sight-sound-magazine/interviews/portrait-lady-fire-celine-sciamma-female-sex-art-solidarity https://www2.bfi.org.uk/news-opinion/sight-sound-magazine/interviews/portrait-lady-fire-celine-sciamma-female-sex-art-solidarity 41 se jogar no mar aberto para salvar suas telas que caíram do barco. Essa atitude de colocar sua vida em risco por materiais artísticos demonstra paixão pelo ofício. Assim como a necessidade de ter seu espaço de criatividade e adaptá-lo conforme seu processo de criação desperta também e aproxima a personagem das vivências de uma artista. Figura 30: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Screenmusings26 Figura 31: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Filmgrab27 O filme refere a produção de um retrato, porém, o processo de criação é o ponto central da obra cinematográfica, estando presente em todo o filme. Assim, o processo de criação de Marianne torna-se mais importante do que o retrato em si, uma vez que acompanhar a criação da artista já é fruto artístico, e propõe uma perspectiva íntima da criação e de seu raciocínio criativo. 27 Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2022. 26 Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2022. https://screenmusings.org/movie/blu-ray/Portrait-of-a-Lady-on-Fire/pages/Portrait-of-a-Lady-on-Fire-014.htm https://screenmusings.org/movie/blu-ray/Portrait-of-a-Lady-on-Fire/pages/Portrait-of-a-Lady-on-Fire-014.htm 42 Figura 32: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Youtube28 Figura 33: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Youtube29 É permitido ao espectador adentrar na intimidade da produção de uma artista, podendo acompanhar de perto todo o processo de criação de Marianne. Conhecemos mais de seu projeto artístico, fazendo parte das tomadas de decisões e das experimentações dela, assim, chegamos ao trabalho final com outra percepção. A consciência de um espectador que vê a elaboração do projeto artístico de quem o produz atribui um valor diferente e pessoal ao trabalho final, assim como Cecilia Almeida Salles cita: Ao acompanhar um processo específico, comparando rascunhos, esboços ou qualquer outra forma de concretização das testagens que o artista vai fazendo ao longo do percurso, os reflexos das tomadas de decisão e as dúvidas nos permitem compreender alguns desses princípios direcionadores que [...] carregam consigo seu meio de expressão. A partir do que o artista quer e daquilo que ele rejeita, conhecemos um pouco mais de seu projeto (SALLES, 1998, p. 41). Pontua-se que a obra de Céline Sciamma pode tratar do processo de criação como metáfora da relação entre as personagens. Visto que, o primeiro retrato não há reconhecimento e conexão, pela narrativa de criação da pintura em segredo, não há participação no processo criativo, já no segundo retrato há sinergia entre as duas mulheres, uma relação de autora e sujeito. 29 Disponível em: . Acesso em: 24 nov. 2022. 28 Disponível em: . Acesso em: 24 nov. 2022. https://www.youtube.com/watch?v=EwFE6FMY1tQ&t=68s 43 4.3.2 OS DOIS RETRATOS Com a finalização do primeiro retrato, Marianne comunica Héloïse sobre sua real função: a de pintar sua imagem, mas quando a jovem vê sua figura, ela não se reconhece. Essa situação gera um desconforto em ambas, já que Héloïse não fizera parte do processo de criação do retrato e por se frustrar pela forma como a artista a enxergava, já Marianne se incomodava com as críticas cravadas pela jovem. As duas em conjunto decidem destruir o retrato, uma vez que ele não representava a conexão e intimidade que elas estavam construindo. Héloïse, então, se oferece para posar para a pintora, estando as duas em posição de igualdade e colaboração. É nesse momento que a paixão entre elas se intensifica e é quando Héloïse finalmente se reconhece no retrato que é pintado por Marianne, já que ela foi parte fundamental para a produção, atuando como sujeito. O primeiro retrato não representa a jovem por não ter sua participação no processo criativo, mas no segundo, sua colaboração é fundamental para a conclusão. Figura 34: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Filmgrab30 Por mais que o primeiro retrato, para a artista, estivessem em ótimas condições estéticas e técnicas, não possuía um valor artístico tão forte, já que o processo de produção do mesmo não tinha a participação da modelo. Gerando um 30 Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2022. 44 desconforto na artista, ainda mais quando Héloïse diz não se enxergar na pintura. Já o segundo retrato, torna-se satisfatório pela colaboração entre as duas mulheres e pelo processo de criação em cooperação entre elas. Nas palavras de Cecilia Almeida Salles: É importante ressaltar que a mera constatação da influência do contexto não nos leva ao processo propriamente dito. O que se busca é como esse tempo e espaço, em que o artista está imerso, passam a pertencer à obra. Como a realidade externa penetra o mundo que a obra apresenta. (SALLES, 1998, p. 38). 4.3.3 A CAPTURA DOS TRAÇOS Para o artista, o ato de observar é um dos mais importantes, saber captar os detalhes, traços e linhas é o que constrói estruturas na produção da arte. Donis A. Dondis observa que: A lente vê como vê o olho, em todos os detalhes e com o apoio absoluto de todos os meios visuais. Tudo isso é outro modo de dizer que os meios visuais têm presença extraordinária em nosso ambiente natural. Não existe reprodução tão perfeita de nosso ambiente visual na gênese das idéias visuais, nos projetos e nos croquis. O que domina a pré-visualização é esse elemento simples, sóbrio e extremamente expressivo que é a linha. (DONDIS, 1997, p. 52). Marienne age como artista, em seu desafio de pintar Héloïse ela deve saber analisar os detalhes da jovem, perceber como a cor se distribui na expressão, como se dão seus traços e como a luz reflete em sua face. A pintora enfrenta o impasse de registrar essas linhas e formas em sua mente para colocar em desenhos nos momentos de criação, portanto, o exercício da observação deve ser eficaz e direto. Há cenas em que Marianne observa os detalhes da jovem e os narra em sua mente, como uma forma de decorar o que ela vê. A artista deve estar sempre atenta, a fim de captar cada mínimo detalhe e micro expressões, para compor uma obra que tenha feição. A pintora observa e narra os detalhes com sensibilidade e sutileza, obtendo a expressividade que ela deseja colocar no retrato, porém, lutando com as expressões incertas e rígidas da modelo. 45 Figura 35: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Filmgrab31 4.3.4 A COR E SEUS SIGNIFICADOS Um dos detalhes que pode intensificar a poética de uma obra audiovisual é a cor, ter uma paleta de cores definida é uma forma de transmitir uma mensagem por todo filme. Nas palavras de Donis A. Dondis: “a cor está, de fato, impregnada de informação, e é uma das mais penetrantes experiências visuais que temos todos em comum. Constitui, portanto, uma fonte de valor inestimável para os comunicadores visuais.” (DONDIS, 1997, p. 64), entendemos que a cor é uma das formas mais intensas de sensibilizar o espectador. Em Retrato de Uma Jovem em Chamas é perceptível um filtro que se destaca, dentro do castelo é sépia, com cenas escuras, à luz de velas, que podem remeter também a uma chama existente na relação entre as personagens. O filme perde esse filtro nas cenas externas e ganham cores e iluminação, assim como na pintura, como nos momentos na praia e quando as personagens estão juntas, em cenas íntimas. As matizes são naturais, revezando entre uma saturação mais forte ou mais fraca. As cores trazem conforto por ser um filme com aspectos mais quentes, mesmo em cenas com cores frias, existem elementos que trazem o calor. 31 Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2022. 46 A obra apresenta tonalidades que se destacam e possuem significados, citarei aqui a importância das cores verde e vermelho, cujo possuem uma forte carga de significância para o filme. É notório a inspiração da diretora em artistas Pré-Rafaelitas e principalmente no artista Edward John Poynter. Tanto esse movimento quanto o artista trabalham com esses tons em suas pinturas, as duas cores são bastante presentes nas obras. O verde escuro está na natureza, pelo movimento se dedicar às pinturas externas e o vermelho nas roupas, peles e cabelos. Uma das referências que se torna nítida no filme é a história de Orfeu e Eurídice, parte da mitologia grega. Orfeu, filho de Apolo, se apaixona por Eurídice, eles se casam e em pouco tempo Eurídice falece envenenada por um cobra, Orfeu vai até o submundo para resgatar a alma da esposa e faz um acordo com Hades que deixa Orfeu levá-la mas com a condição de que ele não deve olhar para Eurídice até que eles saiam do submundo. Ele se mantém firme, mas quando estão prestes a sair da caverna, Orfeu se vira e olha para a amada, assim, ela é brutalmente levada para o submundo por toda a eternidade. Podemos traçar um paralelo entre Retrato de Uma Jovem Em Chamas e a obra de 1862 de Edward John Poynter, “Orfeu e Eurídice”, onde o pintor representa o casal nas cores verde e vermelho no momento em que estão saindo do submundo. As duas cores também são utilizadas por Céline Sciamma para representar as duas personagens principais, a escolha dessas duas cores mostra a relação de complementaridade, harmonia e conexão entre as personagens, pela escolha de cores complementares. 47 Figura 36: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Frame do filme “Retrato de Uma Jovem em Chamas”32 Figura 37: Edward John Poynter; Orfeu e Eurídice; 1862. Fonte: Wikimedia Commons33 33 Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2022. 32 Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2022. 48 A relação entre Marianne e Héloïse pode ser comparada com o conto de Orfeu e Eurídice: Tanto Marianne quanto Orfeu são artista que produzem por um sujeito, quando Eurídice falece, Orfeu, músico e poeta, deixa de produzir e entra em um tristeza profunda, mas o que interliga as duas história é o olhar. Olhar de um artista para um sujeito, a criação através do amor são características compartilhadas por Orfeu e Marianne, mas a relação vai além, ambos perdem seu amor no momento em que se voltam e olham para trás. Figura 38: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Watch Out34 Na figura 38 vemos Marianne na frente de uma pintura que representa o mito de Orfeu e Eurídice, na imagem ela usa uma roupa azul, como a que Orfeu utiliza na pintura. A última cena de Marianne e Héloïse se dá com a partida da pintora, nesse momento (Figuras 39 e 40) Héloïse está vestida de noiva em branco. A pintura do mito foi desenvolvida por Marianne podendo representar o momento da separação das duas, mais uma vez a cor é de extrema importância pois revela aspectos da narrativa que compara a relação das duas com o mito grego. 34 Disponível em: . Acesso em: 28 nov. 2022. http://watchout.iitr.ac.in/2020/07/fire 49 Figura 39: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Youtube35 Figura 40: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Youtube36 4.3.5 ENQUADRAMENTOS E PLANOS Os enquadramentos enfatizam os detalhes, a obra possui muitas cenas em que a câmera vai do plano médio ao detalhe, por se tratar de um filme que narra as vivências de uma artista esses planos tornam-se importantes para apresentar o processo de criação e os detalhes das obras produzidas por Marianne. Figura 41: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Youtube37 Figura 42: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Criterion Collection38 Nos ambientes externos a diretora opta por focar nos planos gerais, colocando em cena todos os elementos naturais que cercam a natureza do lugar. Nesses enquadramentos vemos as personagens em contraste com a imensidade da paisagem, como parte de um todo maior. Como afirma Donis A. Dondis: “A medida é 38 Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2022. 37 Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2022. 36 Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2022. 35 Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2022. https://twitter.com/Criterion/status/1276478575445671936 50 parte integrante da escala, mas sua importância não é crucial. Mais importante é a justaposição, o que se encontra ao lado do objeto visual, em que cenário ele se insere; esses são os fatores mais importantes.” (DONDIS, 1997, p. 73), o enquadramento geral possibilita melhor captação desse artifício. Figura 43: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Filmgrab39 Retrato de Uma Jovem em Chamas investe nos planos, tornando o filme metalinguístico, uma grande pintura em movimento por duas horas. Desde a escolha do cenário, a paleta de cores, a iluminação, todos os detalhes estão em sincronia com o enquadramento, se completando e gerando um conforto visual. São inúmeros os frames que sozinhos tornam-se imagens a serem contempladas: as ondas quebradas do mar que se assemelham a pinceladas, o contraste das sombras dos rochedos, o movimento dos campos através do vento e a criação das próprias pinturas do filme. 39 Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2022. 51 Figura 44: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Filmgrab40 Figura 45: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: BFI41 41 Disponível em: . Acesso em: 28 nov. 2022. 40 Disponível em: . Acesso em: 28 nov. 2022. 52 Figura 46: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Filmgrab42 4.3.6 O CENÁRIO A casa de Héloïse é um antigo castelo francês em La Chapelle-Gauthier, na região francesa de Sena e Marne, um castelo do século XVIII que não passou por restauração, criando impasses em relação a iluminação na hora da filmagem, mas que serviu como fundo perfeito para os momentos íntimos entre as personagens, com suas imperfeições, paredes descascadas e marcas do tempo. O ambiente é hostil quando deve ser, mas acolhedor nos momentos de aconchego, tudo se altera conforme o humor e as emoções das personagens. Céline Sciamma utiliza da iluminação externa para compor o ambiente, usando da luz natural para captar os frames do filme, podemos ver que o cenário se torna claro quando Héloïse posa para ser pintada. A ausência de iluminação é tomada pela presença da mesma, a claridade da área externa parece invadir o ateliê. A escolha desse castelo como uma das locações principais dá força para o olhar artístico da obra, indo contra o caminho do mainstream que representa os castelos franceses como ambientes totalmente perfeitos, sem rachaduras ou objetos desgastados. Essa escolha aproxima a obra do real, se conecta com a percepção do espectador que tem a noção das imperfeições e intempéries da vida cotidiana. 42 Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2022. 53 Diferente das obras das grandes massas, a diretora Céline Sciamma não se preocupa em tornar o filme excessivamente plástico, não é de sua intenção modelar o ambiente, ela trabalha com a realidade do ambiente. Figura 47: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Filmgrab43 A locação externa do filme foi gravada na península francesa em Quiberon (costa sul da Bretanha). Com as praias, rochedos e penhascos a diretora capta a paisagem como elemento pictórico. Longas cenas de interações, contemplações e reflexões se encontram com o ambiente que geram conforto e parecem estar em sincronia com as emoções das personagens. A natureza da ilha é representada como um ser vivo, com consciência própria e que se conecta com a história, o cenário se assemelha com pinturas Pré-Rafaelitas e Romantistas, estando em sintonia com a cena. Utilizando dos planos abertos, Sciamma aproveita o espaço natural para compor e criar uma narrativa entre espaço e personagens. 43 Disponível em: . Acesso em: 26 nov. 2022. 54 Figura 48: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Filmgrab44 O filme gira em torno de pinturas e olhares artísticos, por isso, não é difícil traçar paralelos entre seus frames e grandes obras da história da arte, os cenários escolhidos pela diretora proporcionam essa experiência. Um dessas comparações é com o artista romântico alemão Casper Friedrich, em sua obra “Caminhante Sobre o Mar de Névoa” (1818), a estética romantista é presente em vários frames do filme. O ser humano esmagado pela imensidão da natureza, a dramaticidade das cenas e a força das emoções, são alguns aspectos que ligam o filme ao movimento romantista. 44 Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2022. 55 Figura 49: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Filmgrab45 Figura 50: Caspar David Friedrich; Caminhante Sobre o Mar de Névoa; 1818. Fonte: Arte e blog46 46 Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2022. 45 Disponível em: . Acesso em: 29 nov. 2022. 56 Como já comentado, Sciamma, em suas obras, cria espaços seguros onde os personagens podem se expressar livremente e o espectador possa se identificar. Em Retrato de Uma Jovem em Chamas, não é diferente, o perímetro da ilha em que as personagens estão, serve como um espaço seguro, um refúgio onde elas podem viver distantes das normas patriarcais sem julgamentos ou restrições. A ilha é um isolamento que permite com que elas possam nutrir a paixão uma pela outra, onde elas têm certa liberdade e segurança. Porém, essa ideia é uma ideia temporária, já que a presença da mãe de Héloïse interfere diretamente nesse estado espacial. 4.3.7 A SONOPLASTIA: SINESTESIA Em duas horas de filme, apenas os sons do ambiente e das atividades compõem as cenas, Sciamma inclui apenas duas músicas na trilha sonora para despertar emoções e proporcionar aos espectadores uma experiência parecida com a das personagens. O primeiro momento sonoro é quando Héloïse conta a Marienne que nunca ouviu a uma orquestra, logo, Marienne vai até um piano cravo e toca um trecho de Verão, parte de As Quatro Estações, de Antonio Vivaldi, essa cena é um ponto de muita conexão entre as personagens. Marianne explica a Héloïse o significado de cada parte da música, enquanto ela a observa atenta. Nesse momento (Figura 52) é possível notar a lareira queimando atrás de Marianne, podendo representar a intensidade dos sentimentos que florescem nela. Figura 51: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Youtube47 Figura 52: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Youtube48 48 Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2022. 47 Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2022. https://www.youtube.com/watch?v=En3SOFEnHkM https://www.youtube.com/watch?v=En3SOFEnHkM 57 A música volta se a repetir na cena final do filme, quando, anos depois, Héloïse está assistindo a um concerto em milão, sem perceber a presença de Marianne no teatro, a música volta a tocar com a orquestra enquanto Héloïse lida com a memória e os sentimentos em relação a Marianne. A música é uma das poucas memórias concretas que elas carregam uma da outra, uma laço que as ligam, é nostálgico e melancólico, como elas se fazem presentes uma à outra, é como se Héloïse sentisse a presença de Marianne. Figura 53: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Filmegrab49 O segundo momento musical é quando há um encontro de mulheres na ilha, uma cena em que elas se reúnem em volta de uma fogueira para compartilhar experiências, cantar, dançar e terem um contato. Um grupo de mulheres começam a ecoar sons, bater palmas em ritmo e, em coro, cantar as palavras “fugere non possum” (“não posso fugir” em latim). Sciamma se inspira na frase do filósofo Friedrich Nietzche que diz: “Quanto mais nos elevamos, menores parecemos aos olhos daqueles que não sabem voar.” para criar a composição da música. Sua ideia era retomar a superstição de bruxas: um grupo de mulheres sábias, com ideias, com técnicas de medicina natural, tendo um momento em conjunto, trocando experiências e desenvolvendo novas. 49 Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2022. 58 Figura 54: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Youtube50 Sciamma propõe conectar o espectador aos personagens através do silêncio que permeia todo o filme, os sons audíveis são sons corriqueiros, muitas vezes da lareira estralando, das ondas do mar, do vento soprando ou dos passos dos personagens. Isso vem de encontro com o ritmo do filme, lento e progressivo, as situações vão crescendo. Céline Sciamma busca nos oferecer a frustração de Héloïse que nunca havia escutado uma orquestra e tem que se contentar com a pequena demonstração de Marienne, mas na cena final, quando a música aparece com toda sua força, o espectador é arrebatado em um êxtase, que desperta os sentimentos de Héloïse. 4.3.8 HÉLÈNE DELMAIRE, A ARTISTA As obras do filme realmente foram pintadas por uma artista, Hélène Delmaire é uma pintora francesa que descreve sua poética como “a força através da fragilidade”. Delmaire utiliza de signos considerados femininos, como flores e cores pastéis, para criar intensidade e força, ela explora a relação do ser humano com a natureza, utilizando dos símbolos naturais. Hélène afirma que ela não pinta as pessoas como indivíduos, mas como símbolos da humanidade - um mero elemento de um todo maior. 50 Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2022. https://www.youtube.com/watch?v=SBwe1qFSnDY 59 A pintora trabalhou diretamente no filme, estando presente nos sets de filmagem e pintando em tempo real. Seu processo criativo está todo registrado no filme, desde os esboços aos trabalhos finais, Delmaire dá formas às ideias de Céline Sciamma. Hélène também trabalhou em conjunto com Noémie Merlant na concepção das características da personagem de Marienne. A artista consegue criar uma estética que se assemelha aos retratos do século XVIII, mas com um quê de originalidade e contemporaneidade, não fugindo da estética do século, mas criando uma mutualidade entre esses dois períodos. Figura 55: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Criterion Collection51 Figura 56: Frame de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma (2019). Fonte: Criterion Collection52 52 Disponível em: . Acesso em: 24 nov. 2022. 51 Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2022. https://www.youtube.com/watch?v=EwFE6FMY1tQ&t=68s https://twitter.com/Criterion/status/1276478575445671936 60 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Analisando a obra de Céline Sciamma é possível observar aspectos importantes em relação ao cinema francês e a sua relação com as artes visuais. Primeiramente, a evolução do cinema francês feminino, que já era muito forte nas últimas décadas, mas que vem em uma crescente. Em entrevista ao TIFF Talks, 2019, Sciamma afirma que as novas cineastas francesas estão quebrando as barreiras patriarcais e alcançando novos lugares, que seus filmes estão crescendo em escala mundial, saindo da bolha do país, mas que isso também é uma característica do cinema de forma geral, não especificamente francês. Com isso, podemos observar a introdução de um olhar femino proposto por Céline Sciamma, junto da diretora de fotografia francesa Claire Mathon criam uma obra que parte da visão da mulher, sem a contaminação do patriarcado. Não há sexualização, idealização ou fetichismo na produção de Retrato de Uma Jovem em Chamas, sendo um ponto importante, uma vez que parte das produções audiovisuais sáficas possuem uma intensa fetichização partindo de produções idealizadas e executadas por homens. Assim, a cineasta entrega um material que torna-se parte da representatividade de uma comunidade, tratando da obra com o aspecto do olhar, ela faz com que o filme olhe de volta para o espectador. Retrato de Uma Jovem em Chamas é um filme de olhar, uma artista que olha para seu sujeito e ele o olha de volta, o olhar é uma relação, uma troca entre dois seres, mas essa relação permeia o amor, trazendo a visão sensível, mas intensa da paixão. A metáfora da trama de Orfeu e Eurídice, estende a potência do olhar, uma vez que aqui, o olhar representa a perda, a decisão do amor, mas que gera os infortúnios e a perda do ser amado. Orfeu olha para Eurídice, como poeta, assim como Marienne olha para Heloise como artista, ambos tomam as decisões como artistas e criadores motivados pelo amor. Céline Sciamma torna-se referência no cinema queer, trazendo um olhar real, sútil e honesto, a cineasta aplica suas vivências e perspectivas, fazendo com que suas obras se conectem com um público específico. Porém, a diretora executa seus trabalhos de forma artística e sensível, criando conexão e identificação. A cineasta produz uma obra universal e que toca os espectadores com sensibilidade e intensidade, Retrato de Uma Jovem em Chamas leva novos olhares ao cinema contemporâneo. 61 Sciamma em suas produções apresenta um arsenal de referências que vão das artes visuais, literatura ao próprio cinema, seus filmes são obras para serem analisadas minuciosamente, pois a cada revisita é possível observar novos detalhes que compõem a produção. A diretora é um exemplo da importância de ter conhecimento artístico e poético, uma bagagem de imagens e referências que contribuem para a produção de obras mais coesas e potentes. Há muitos paralelos a serem feitos, as artes visuais são intrínsecas à imagem e ao cinema. Ter um bom conhecimento das artes permite que o cineasta tenha repertório suficiente para criar imagens que sejam coerentes e que de alguma forma se conectem com o espectador. Da composição da direção de arte, dos olhares da direção de fotografia ao sentido metafórico da cena, tudo encontra um sentido mais coeso nas artes, facilitando o processo de execução das ideias. Por fim, é possível entender que Céline Sciamma é uma cineasta que tem cada vez mais crescido e se superando, seus trabalhos vem em uma crescente de artisticidade e conceito, mantendo o equilíbrio ideal entre uma obra “cult” e mainstream. Sciamma tem marcado a história do cinema contemporâneo e é um dos nomes promissores para as próximas décadas. A diretora ao longo dos seus anos de carreira já tem influenciado um montante de novos cineastas e artistas que a tem como uma das ou como a principal referência, além de já ter despertado e inspirado outros projetos contemporâneos. Seu legado está sendo construído e se consolidando a cada novo projeto. 62 6 REFERÊNCIAS AUMONT, Jacques. A estética do filme. Campinas, SP: Papiros Editora, 1995. BAPTISTA, Mauro; MASCARELLO, Fernando (orgs.). Cinema mundial contemporâneo. Papirus Editora, 2008. DONDIS, Donis A.; CAMARGO, Jefferson Luiz. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins fontes, 1997. FERNANDES, Amanda Lopes; MAGNO, Maria Ignês Carlos. O Silêncio na História do Cinema em face de Alice Guy Blaché. In: Intercom-42º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Belém. 2019. GAROTAS. Direção de Céline Sciamma. França: Hold Up Films; Lilies Films; Arte France Cinéma, 2014. Streaming (113min). HAMBURGER, Vera Império. 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