UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP TÂNIA DE ASSIS SILVA ECOS DO BUCOLISMO CAMONIANO EM CLÁUDIO MANUEL DA COSTA ARARAQUARA – S.P. 2021 TÂNIA DE ASSIS SILVA ECOS DO BUCOLISMO CAMONIANO EM CLÁUDIO MANUEL DA COSTA Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho, do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestra em Letras. Linha de pesquisa: Teorias e crítica da poesia. Orientador: Prof. Dr. Antônio Donizeti Pires Bolsa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) ARARAQUARA – S.P. 2021 S586e Silva, Tânia de Assis Ecos do bucolismo camoniano em Cláudio Manuel da Costa / Tânia de Assis Silva. -- Araraquara, 2021 237 f. : fotos Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara Orientador: Antônio Donizeti Pires 1. Neoclassicismo luso-brasileiro. 2. Camões. 3. Cláudio Manuel da Costa. 4. Lírica Comparada. 5. Bucolismo. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. TÂNIA DE ASSIS SILVA EEECCCOOOSSS DDDOOO BBBUUUCCCOOOLLLIIISSSMMMOOO CCCAAAMMMOOONNNIIIAAANNNOOO EEEMMM CCCLLLÁÁÁUUUDDDIIIOOO MMMAAANNNUUUEEELLL DDDAAA CCCOOOSSSTTTAAA Dissertação de Mestrado apresentada ao Conselho, do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestra em Letras. Linha de pesquisa: Teorias e crítica da poesia. Orientador: Prof. Dr. Antônio Donizeti Pires Bolsa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) Data da defesa: 31/08/2021 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Antônio Donizeti Pires Departamento de Linguística Literatura e Letras Clássicas – FCL- UNESP/Araraquara-SP Membro Titular: Prof. Dr. Gilson José dos Santos Departamento de Letras e Linguística – UFU/Uberlândia-MG Membro Titular: Prof. Dr. Leonardo Vicente Vivaldo Departamento de Língua Portuguesa – Colégio Pessoa Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara À família e àqueles que sempre acreditaram que poesia e sonhos podem ser reais. AGRADECIMENTOS À família; Antonio Silva (in memoriam), apreciador das artes, especialmente da música clássica, amante dos livros e do saber, leitor assíduo e incentivador de leituras, autodidata, a personificação do esforço, da dedicação e de muitas lutas vencidas. Exemplo que a simplicidade não é sinônimo de aculturação. Pai, suas memórias são um legado e serei eternamente grata! Maria Margarida de Assis Silva, a pequenina gigante na abnegação, na superação, na dedicação aos filhos, nas muitas batalhas e conquistas. Mãe, devo a vida e as realizações a você! Gratidão para sempre! Jaime de Assis Silva, pela torcida, pelo cuidado e carinho com a melhoria da iluminação do ambiente de estudos e, principalmente, pela “Raridade” da força que me deu num dos dias de dificuldade com a escrita. Obrigada, maninho amado! Telma Sánchez, a torcida, o incentivo, o partilhar do choro e do riso, das lutas e das conquistas sempre fizeram parte das expressões dos mais poéticos e paradoxais gestos de amor de irmã. Gratidão sempre e por tudo, maninha! Te amo! Luis Sánchez, o incentivo, as dicas, os conselhos e o exemplo impecável de dedicação, lutas, conquistas e realizações sempre foram motivadores. Obrigada, cunhado preferido! Lanni Yasmin e Antonio Victor Sánchez, pequeninas grandes dádivas divinas que derretem o coração, têm o poder de curar as tensões e angústias com a singeleza de um sorriso e as expressões tão encantadoras de alegria. Meus amados sobrinhos, obrigada por tornarem a vida mais leve, colorida e cheia de esperança! A alguém especial; Renato Capla, por escolher trilhar junto comigo o caminho do saber e, nesta caminhada, segurar sempre a minha mão seja nos momentos de luta, choro e estresse, ou nos de alegrias, conquistas e realizações. Seu amor é motivador, é alento e abrigo. Obrigada por tudo e sempre. Ao orientador; Tom Pires, exemplo de dedicação e excelência em quem o lirismo extravasa em gentileza, na forma de acolhida à aluna, antes, desconhecida da casa. Há a mais bela poesia na nobreza da generosidade em compartilhar fortunas como tempo, conhecimento, bibliografias e preciosas orientações. A despeito da minha incapacidade de retribuição, a gratidão é infinita, Tom! Aos professores; Prof. Dr. Afonso Ligório Cardoso, plantou a semente da ideia que germinou e se tornou em Raízes do bucolismo em Luiz de Camões, Cláudio Manuel e Tomás Gonzaga. Obrigada, Prof. Afonso, porque além de me mostrar o caminho, ainda trilhou comigo os primeiros passos! Prof. Dr. João Batista Toledo Prado, exemplo personificado da expressão poética que transcende em cordialidade, gentileza, dedicação, excelência, além do humor leve e genial. Impossível mensurar a grandeza da contribuição de cada um dos seus gestos, João! Está aquém da minha capacidade de retribuição, porém o sentimento de gratidão estará sempre no plano daquele tempo mítico; o do eterno retorno! Profª. Drª. Fabiane Borsato, o olhar poético apaixonado e reflexivo, a voz que ecoa deslumbrante sapiência e ressoa tantas outras vozes construtoras do saber, as ações acolhedoras das ideias e a generosidade em contribuir, mostraram novos horizontes e caminhos intertextuais. Gratidão sempre, Fabiane! Prof. Dr. Gilson Santos, o amor aos clássicos e a grandiosidade do altruísmo em contribuir com esta pesquisa, são marcas inspiradoras e inesquecíveis. Serei sempre grata pelas riquezas de ideias, sugestões e materiais disponibilizados, além da cordialidade e gentileza de sempre. Muito obrigada! Aos amigos de longa data, de ilimitadas expressões de apoio e incentivo; Adriana Fabiano, pela torcida ao longo da vida estando pertinho ou distante, pelo exemplo de leveza, por valorizar a cultura, a arte, a poesia e, na essência humana, ser a expressão das mais lindas notas musicais. Obrigada por tudo, Dri! Jonathan Gomes e Juliana Rocha, amigos/irmãos/parceiros de perto e de longe. Obrigada por acolherem meus sonhos, vibrarem com as conquistas e me apoiarem nos momentos difíceis! Trio ternura eternamente! Ju e Jhonny, amo vocês! Kátia Lacerda, irmãzinha de Curitiba para a vida inteira. Palavras são insuficientes para expressar o amor e a gratidão por tudo o que você é e já fez por mim! Amo eternamente! Daniel Costa, pelo exemplo de solicitude e por sempre acreditar na “amiga mestre”, independentemente do título. Sua amizade é uma dádiva! Aos colegas que marcaram a trajetória e amizades construídas durante esta jornada; Camila Sabino, há uma admirável poesia na “menina PDF” que compartilha a nuvem de infindo conhecimento, além da generosidade do apoio, da palavra incentivadora e acalentadora nos momentos de incerteza e apreensão. Gratidão sempre! Cristiane Alves, semeando sonhos, brotando ideias, colhendo lágrimas e/ou sorrisos, a poesia foi o alento naqueles momentos, é a saudade nestes e será sempre o nosso elo. Obrigada por tudo, Cris! Jéssica Frutuoso Mello, na narrativa heroica, é a protagonista que desbrava longa estrada com muita garra, determinação, dedicação e encerra cada capítulo com brilhantismo admirável de uma deusa. Jé, obrigada pelas dicas, pela companhia, pelo apoio de perto e de longe! Letícia Coleone Pires, o apoio e encorajamento presenciais foram marcantes, os abraços virtuais fizeram toda a diferença. Gratidão, Lê! Leonardo Vivaldo, a escalada de análise de poesia se tornou menos íngreme com a generosidade das explicações e o traçado da imagem da “palavra Minas que é Montanhosa”, carinhosamente guardados no meu caderno. Serei sempre grata! À Equipe técnica de apoio ao pesquisador da Biblioteca da FCLAr; Elaine, Sandra e Sr. José, gratidão imensa por todos os esclarecimentos de dúvidas e auxílio dos mais diversos. Pela presteza e excelência do atendimento, obrigada! À CAPES; O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Gratidão imensa! “Lembra-te, caminhante, da ternura De seu canto suave, e uma saudade [...]” (COSTA, 1996, p. 60). RESUMO A presente pesquisa pretende avançar e aprofundar o estudo sobre o eco bucólico das obras poéticas camonianas que, supostamente, ressoa na poesia do árcade brasileiro Cláudio Manuel da Costa. O objetivo é demonstrar uma interface entre os poetas Luís Vaz de Camões e Cláudio Manuel da Costa, pela temática do bucolismo. Numa leitura diacrônica, partindo do pressuposto de que ainda que Camões esteja distante no tempo do poeta árcade, é possível aproximá-lo deste pelo viés do ideal de vida para o homem. A referida aspiração se norteia, nestas leituras, pelo texto bíblico e pelos textos literários, referentes ao bucolismo, atando bucolismo greco-latino e bucolismo judaico-cristão, em suas produções poéticas. Isto é possível considerando os aspectos mitológicos que se assemelham, tais como a paz almejada no mito da Idade de Ouro que também é o motivo de anseio pelo advento messiânico, na crença judaico-cristã, devido à promessa de restauração da aura idílica. No que se refere ao bucolismo, a constatação se torna provável por meio da intertextualidade, mais especificamente usando o recurso da alusão, cujo entretecer dos textos permite perceber que em Camões a natureza é o elemento no qual pode refletir suas alegrias e tristezas, saudades e decepções. Assim o encantamento da natureza acontece num processo de reciprocidade em que ela inspira o poeta que lhe retribui com cantos da alma, momento em que o bucolismo aflora. Já em Cláudio Manuel da Costa, o lirismo bucólico nasce do encanto pelos valores da terra natal e do anseio de civilizar a colônia por meio do refinamento literário em que o poeta se volta para os moldes clássicos, cujos traços norteadores representam grande legado no fazer poético do árcade brasileiro. De forma semelhante, esta herança clássica também pode ser percebida em Camões quando se concebe uma relação dialógica entre os textos poéticos. O corpus da pesquisa conta com embasamento teórico de autores como Antonio Candido, Alfredo Bosi, Domício Proença Filho, Ernest R. Curtius, Gilberto Mendonça Teles, Gilbert Highet, Mário Faustino, Sérgio Alcides, Laura de Mello e Souza, Maria do Céu Fraga entre outros autores envolvidos no diálogo referente aos temas representativos do Arcadismo como o bucolismo e a revisitação ao universo da poesia clássica bucólica. A retomada às concepções bucólicas da Antiguidade contempla a aproximação estética entre a poesia árcade e a camoniana, especialmente no tocante aos sonetos selecionados de Cláudio Manuel da Costa e de Luís Vaz de Camões. A seleção dos poemas a serem analisados será feita a partir das obras Poesia completa, de Cláudio Manuel da Costa (in A poesia dos inconfidentes, organizada por Domício Proença Filho), e a Lírica Completa, de Luís de Camões. Palavras – chave: Neoclassicismo luso-brasileiro; Camões; Cláudio Manuel da Costa; Lírica comparada; Bucolismo. ABSTRACT This research intends to advance and deepen the study about the bucolic echo of Camonian’s poetic works, which supposedly, resonates in the poetry of the Brazilian Arcade Cláudio Manuel da Costa. The study aims to demonstrate an interface between the poets Luís Vaz de Camões and Cláudio Manuel da Costa, through the theme of bucolism. In a diachronic reading based on the assumption that even though Camões is distant in the time of the arcade poet it is possible to approach them by the perspective of the man's ideal of life. The readings guided by the biblical text and by the literary texts referring to bucolism tying Greek-Latin bucolism and Jewish-Christian bucolism in their poetic productions. It is possible considering the mythological similar aspects, such as the peace sought in the Golden Age myth, which is also the reason for yearning for the Messianic advent in the Judeo-Christian culture due to the promise of restoring the idyllic aura. Regarding bucolism, the finding becomes likely through intertextuality and more specifically using the allusion resource that in Camões nature is the element in which can reflect its joys and sadness, longings and disappointments. Thus, the nature's enchantment takes places in a process of reciprocity in which it inspires the poet who reciprocates it with songs of the soul, a moment when bucolism emerges. In Cláudio Manuel da Costa, the bucolic lyricism arises from the charm of the values of the homeland and the desire to civilize the colony through the literary refinement in which the poet turns to classical legacy can perceived in Camões when conceiving a dialogical relationship between the poetic texts. The corpus of the research relies on the theoretical basis of authors such as Antonio Candido, Alfredo Bosi, Domício Proença Filho, Ernest R. Curtius, Gilberto Mendonça Teles, Gilbert Highet, Mário Faustino, Sérgio Alcides, Laura de Mello e Souza, Maria do Céu Fraga among others. The dialogic relationship established in what concerns the theme of bucolism, Arcadism and revisiting the universe of classical bucolic poetry when there is an aesthetic approach to Arcadian and Camonian poetry, especially with regard to the selected sonnets by Cláudio Manuel da Costa and Luís Vaz de Camões. The poem's selection to be analyzed will be based on the Poesia completa, by Cláudio Manuel da Costa (in A poesia dos inconfidentes, organized by Domício Proença Filho), and Lírica Completa, by Luís de Camões. Keywords: Brazilian Portuguese Neoclassicism; Camões; Cláudio Manuel da Costa; Comparative lyric; Bucolism. LISTA DE FIGURAS Figura 1 Et in Arcadia Ego - 1618-1622 – Guercino 58 Figura 2 Et in Arcadia Ego - 1629-1639 - Nicolas Poussin 59 Figura 3 Figura 4 Et in Arcadia Ego - 1637-1638 - Nicolas Poussin In Arcadia - 1880 - Friedrich August Von Kaulbach 61 72 Figura 5 Figura 6 The Hireling Sheperd - 1851 - William Holman Hunt Jacob’s encounter with Rachel - 1518-19 - Raphael 73 89 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 13 CAPÍTULO 1 – NOTÍCIAS BIOBIBLIOGRÁFICAS DE CAMÕES E CLÁUDIO 1.1. Breviário biopoético camoniano 1.2. Sintomia biopoética claudiana CAPÍTULO 2 – CAMÕES E CLÁUDIO: UMA INTERFACE BUCÓLICA 17 18 24 34 2.1 Metodologia comparatista bucólica 2.2 Arcádia e Arcadismo 2.3 Bucolismo 2.3.1 O locus amoenus na alma terna 2.3.2 O locus terribilis entre duras penhas 2.4 (Re)visitação ao mito da Idade de Ouro 37 48 80 92 105 134 CAPÍTULO 3 – MIMETISMO E INTERTEXTUALIDADE 147 3.1 Visões intertextuais 3.2 Mimese bucólica camoniana em Cláudio Manuel da Costa 3.3 O (des)concerto no lirismo claudiano 3.4 Dialogismo imagético; o vale, o monte e o rio em Camões e Cláudio 3.4.1 A pastora Nise em Montano, Camões e em Glauceste, Cláudio 3.4.2 O (res)soar do lirismo camoniano na poesia claudiana CAPÍTULO 4 – UM OLHAR ANALÍTICO PARA A POÉTICA BUCÓLICA CLAUDIANA: PRESENÇA DO ECO CAMONIANO 4.1 Quadro bucólico: amenidade pastoril 150 159 169 182 188 200 207 208 4.2 Presença da melancolia 219 CONSIDERAÇÕES FINAIS 230 REFERÊNCIAS 234 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 237 13 INTRODUÇÃO Brandas ribeiras, quanto estou contente De ver-vos outra vez, se isto é verdade! Quanto me alegra ouvir a suavidade, [...] (COSTA, 1996, p. 53). O interesse pelo tema bucólico nasce na graduação juntamente com o despertar das leituras referentes às poéticas dos árcades brasileiros e resulta no projeto intitulado Raízes do bucolismo em Luis de Camões, Cláudio Manuel e Tomás Gonzaga. As ideias gerais do projeto preliminar são retomadas após cursar, no PPGEL da FCLAr - UNESP, como aluna ouvinte, a disciplina “Literatura Brasileira & Tradição Clássica – LB&TC”, ministrada pelo Prof. Dr. Antônio Donizeti Pires. A proposta, da disciplina “LB&TC”, de estudar autores e obras brasileiros, com base em uma leitura diacrônica e sincrônica da nossa literatura, suscita cogitações sobre a presença de elementos da Antiguidade greco-latina em determinados períodos relacionados aos movimentos literários brasileiros significativos em correlação intertextual com os clássicos e neoclássicos. A partir das reflexões que envolvem as noções básicas de teoria e prática das várias “escolas” de literatura comparada definimos o esboço do nosso objeto de estudo, do qual nos propomos a realizar uma leitura comparativa entre os textos poéticos do quinhentista lusitano e o setecentista brasileiro. A escrita do projeto avança e culmina na pressuposição dos Ecos do bucolismo camoniano em Cláudio Manuel da Costa. Inferimos sobre a possibilidade de que os “ecos” são propagados por meio do viés do bucolismo considerado na visão da poética clássica greco-latina e (re)visitado pelo poeta árcade neoclássico. Após percorrer um campo extenso, dada a amplitude temática, e cheio de possibilidades de trilhas, nas quais nem sempre foi possível adentrar, decidimos por nos deter, com mais calma, no que se refere aos aspectos de provável confluência entre o clássico lusitano, Luiz Vaz de Camões e o árcade mineiro, Cláudio Manuel da Costa, considerando a retomada da tradição greco-latina por ambos os poetas. A deliberação por traçar tal paralelo se dá com base na hipótese de que a proximidade também é possível pelo viés do Classicismo que se repete e é, quase sempre, calcado em vários tipos de ideais. 14 Tendo em vista a pressuposição de que o maneirismo renascentista camoniano é uma “releitura” do Classicismo greco-latino, consideramos que o Arcadismo relê este e aquele, porém com novos elementos como o Iluminismo, por exemplo, no que tange aos ideais de paz e harmonia. Pelas leituras realizadas chegamos à temática presente do Mestrado partindo do pressuposto de que é relevante considerar a possibilidade de perceber que ainda que Camões esteja distante, no tempo, do poeta árcade, Cláudio, é possível que haja aproximação entre ambos pelo viés do ideal de vida para o homem. Pressupomos que tal ideal se norteia por meio da relação textual dialógica, pelo texto bíblico e pelos textos literários referentes ao bucolismo, atando o ideal idílico judaico-cristão e bucolismo greco-latino, em suas produções poéticas, pelos aspectos mitológicos que se assemelham, tais como a paz almejada no mito da Idade de Ouro, que também é o motivo de anseio pelo advento messiânico, na crença judaico-cristã, devido à promessa de restauração da aura idílica, no que se refere ao bucolismo. Com base nestas conjecturas apresentamos, a seguir, um brevíssimo resumo do que consiste esta pesquisa. O Capítulo 1 compreende um recorte em forma de “Notícias biobibliográficas” trazida por Aubrey Fitz Gerald Bell, António José Saraiva e Óscar Lopes, Laura de Mello e Souza, Alfredo Bosi e Antonio Candido, basicamente. A exposição é referente à apresentação dos dois artistas que, embora sejam notadamente reconhecidos pela crítica literária, julgamos ser apropriado situá-los no tempo e no espaço considerando o pressuposto que alguns traços biográficos não se dissociam das produções poéticas de Camões e Cláudio, especialmente no que envolve a temática bucólica. O termo bucolismo será conceituado, no Capítulo 2, com base na designação da expressão referida por Alfredo Bosi quando afirma que “[o bucolismo] foi para todos o ameno artifício que permitiu ao poeta [...] abrir as janelas para um cenário idílico onde pudesse cantar [...] os seus sentimentos de amor”. (BOSI, 1997, p. 64). E sobre Cláudio Manuel da Costa, o crítico o aprecia como aquele em quem “o gosto melhor tem por vigas o motivo bucólico e as cadências do soneto camoniano” (BOSI, 1997, p. 69). Com a intenção de discorrer sobre os aspectos que envolvem o objeto deste estudo nossa teoria se constituirá tendo como fundamento uma revisão bibliográfica sobre as concepções histórico-literárias de Arcádia e a visão do Arcadismo brasileiro cujo movimento 15 tem em Cláudio um dos principais representantes avaliado como um “árcade por excelência” (BOSI, 1997, p. 68). Considerando a proeminência de Cláudio na representação do Arcadismo acreditamos que a conceituação dada ao poeta, por Alfredo Bosi, está em conformidade com a declaração de Antonio Candido quando o qualifica como aquele que incorpora, com profundidade, o movimento estético da Arcádia, num processo de transição entre o Cultismo, como ponto de partida, e a chegada ao neoclassicismo por meio de uma recuperação do Quinhentismo português. (CANDIDO, 2009, 93). É de Antonio Candido também a alegação que o Arcadismo cultivou o gênero bucólico tornando-o em um dos aspectos mais representativos do movimento árcade, conforme assim pondera: “se os gêneros bucólicos propriamente ditos não constituem todo o Arcadismo, constituem sem dúvida uma das suas notas características” (CANDIDO, 2009, 62). Com base nessas afirmações, abordaremos o bucolismo em suas origens, temas, termos e significados considerando as tópicas referentes ao locus amoenus em contraposição ao locus terribilis, à luz de Sérgio Alcides. As concepções sobre os loci são seguidas do topos que envolve a revisitação ao mito da Idade de Ouro, cujas possibilidades de ressignificação da temática, na poética claudiana, pressupomos que entrelaçam-se dialogicamente entre as culturas greco-latina e judaico-cristã por meio da relação intertextual envolvendo a poesia de Cláudio, em quem presumimos que ecoa a poética de Camões que, por sua vez, ressoa a poesia virgiliana. Na corrente dialógica que se estabelece inferimos que os textos tecem relações com o texto bíblico, especialmente o texto do profeta Isaías. A premissa é que o texto bíblico messiânico apresenta traços de semelhança com a “Écloga IV” virgiliana que, por sua vez, trata sobre o anseio de uma felicidade vindoura também idealizada na poesia de Cláudio Manuel da Costa. No Capítulo 3 continuaremos as ponderações sobre a fortuna crítica de Camões e Cláudio Manuel da Costa, com base numa metodologia comparatista esclarecida no capítulo anterior e que é retomada sob o prisma da intertextualidade, principalmente no que tange à temática bucólica Neste capítulo nos propomos a abordar a relação dialógica entre as poéticas claudiana e camoniana, considerando os aspectos de mimese que envolvem as nuances de um bucolismo ambivalente, em Cláudio, e remetem aos traços de intranquilidade bucólica, em Camões, 16 sobretudo quando tais aspectos aludem à ideia do desconcerto camoniano que parece marcar presença no poeta mineiro. Outra perspectiva mimética a ser considerada se refere aos elementos imagéticos bucólicos recorrentes nos poemas de Camões e Cláudio: o vale, o monte e o rio. Tendo sempre em vista o fio condutor fundamentado em concepções que tratam sobre a intertextualidade, embasamos o diálogo que se estabelece entre as personas poéticas de Camões e Cláudio, Montano e Glauceste, respectivamente. Pressupomos que o ponto de encontro referente à delegação pastoril de Camões e Cláudio consiste na relação que se estabelece com a pastora, Nise, nome comum à musa para ambos poetas-pastores e que, no nosso entendimento, alude à pastora de tradição greco-latina, representada pela musa virgiliana. Finalmente, no Capítulo 4, intencionamos estabelecer a definição de um corpus de poemas dos autores em estudo, para uma leitura analítica e interpretativa, a fim de evidenciar a interface bucólica que os une em termos tópicos e temáticos. O elo se dá sobretudo no que se refere aos traços melancólicos percebidos no bucolismo inquieto de Camões, e sobre o qual presumimos que ressoa naquele lirismo ambivalente de Cláudio Manuel da Costa, cuja dualidade denota expressar os anseios da amenidade arcádica concomitantemente com o sentimento de exílio no rude berço mineiro. Dentre os onze primeiros poemas das Obras claudianas, que serão citados preliminarmente, destacaremos o Soneto “X”, cujo texto pressupomos que dialoga com as Éclogas “I”, “III” e “IV”, de Cláudio, além de sugerir a propagação do eco do soneto camoniano “Apartava-se Nise de Montano”. Compreendemos que a ressonância camoniana traz, juntamente com os ecos amenos pastoris, a presença de melancolia notada no soneto “O raio cristalino se estendia”, de Camões, comparativamente ao Soneto “LXIV”, seguido do Soneto “XCIX”1, de Cláudio. Este último referido poema sugere a confirmação dos ecos melancólicos do canto funesto do pastor que pranteia a ausência da sua pastora semelhantemente ao lamento do pastor camoniano. 1 Optamos por seguir, fidedignamente, os títulos dos poemas trazidos por cada edição usada, nesta pesquisa. Na organização de Maria de Lourdes Saraiva, em Luís de Camões; Lírica Completa (1994), os poemas são intitulados usando-se o primeiro verso. Já os poemas de Cláudio Manuel da Costa, em A Poesia dos Inconfidentes (1996), recebem como título o número correspondente à sequência organizada por Domício Proença Filho. 17 CAPÍTULO 1 NOTÍCIAS BIOBIBLIOGRÁFICAS DE CAMÕES E CLÁUDIO Quem deixa o trato pastoril, amado, Pela ingrata, civil correspondência, Ou desconhece o rosto da violência, Ou do retiro a paz não tem provado. (COSTA, 1996, p. 57). Com a intenção de avançar e aprofundar o estudo sobre os ecos propagados das raízes bucólicas em obras poéticas, esta pesquisa tem como objetivo demonstrar, pela temática do bucolismo, uma interface entre os poetas Luís Vaz de Camões (1524?-1580) e Cláudio Manuel da Costa (1729-1789). Ao estabelecer o ponto de partida que deve nortear as posteriores considerações que envolvem o possível elo bucólico em Luís Vaz de Camões e Cláudio Manuel da Costa, consideramos pertinente fazer uma breve apresentação dos dois artistas com o objetivo de situá-los temporalmente, bem como delinear uma concisa contextualização de suas obras, uma vez que não é possível percorrer toda a fortuna crítica de ambos. A apresentação proposta se dá a despeito da consciência de que o objeto desta pesquisa envolve dois poetas conhecidos sendo que o primeiro, Camões, o clássico quinhentista lusitano, de reconhecimento universal pela crítica literária, será considerado num plano aparentemente secundário apenas no sentido de ser o eco, do qual consideramos o pressuposto da voz que ressoa na poética do neoclássico setecentista brasileiro. E o segundo a ser apresentado, respeitando a ordem cronológica, Cláudio, é considerado precursor do movimento do Arcadismo no Brasil, afirmação esta, sobre o poeta, que será retomada e aprofundada no decorrer do segundo capítulo deste trabalho. Por ora, consideremos a brevidade das notas sobre aqueles aspectos biográficos que julgamos inter-relacionar vida e obra de Camões (tal como ocorre em Cláudio), apesar de ter consciência que estudo de poesia não é estudo da vida do poeta. Entretanto, evocando a apresentação que Peter Green (OVÍDIO, 2011, p. 11) faz, no “Prefácio” de Ovídio: Amores & Arte de amar, e destaca que o “autorretrato do poeta tanto propõe enigmas quanto os decifra”, ousamos imitar o estudioso ao julgar relevante estabelecer um encontro entre vida e arte para, quem sabe, ampliar a compreensão sobre a persona criativa dos dois poetas em comparação. 18 1.1 Breviário biopoético camoniano O dia que eu nasci moura e pereça não o queira jamais o tempo dar; não torne mais ao mundo e, se tornar, eclipse nesse passo o Sol padeça. (CAMÕES, 1994, p. 180). No estudo em que trata sobre a vida do poeta lusitano, Luiz de Camões, Aubrey Fitz Gerald Bell confirma a incerteza que é comum para a maioria dos biógrafos e historiadores sobre o ano de nascimento do poeta, apesar de os críticos concordarem que Camões teria nascido em 1524, o escritor e tradutor britânico afirma que devemos considerar “um honesto ponto de interrogação nesta data [...] as fontes de vida de Camões dignas de confiança não são muitas”. (BELL, 1936, p. XVII). A despeito de a crítica declarar que Camões seria nascido de família nobre devido à ascendência do poeta remontar a pessoas ilustres como Vasco da Gama, como sendo ancestral do pai, Simão Vaz de Camões, e devido, também, ao fato de a mãe, Ana de Macedo, ter pertencido a uma conhecida família de Santarém, o escritor britânico inicialmente não dá certeza quanto ao local de nascimento ser Lisboa ou Coimbra, além de afirmar que o poeta teve uma infância difícil devido à pobreza: Sabemos que a família de Camões estava ligada a Coimbra e apesar de no último quarto de século Lisboa tivesse atraído uma grande imigração das províncias, é permitido deduzir dos factos combinados da conhecida pobreza de Camões e permanência em Coimbra e erudição clássica, que ele nasceu ali e não foi de Lisboa para lá simplesmente para estudar na famosa universidade, que se fixara finalmente em Coimbra em 1537. (BELL, 1936, p. 4). O autor afirma ainda que o pouco que se sabe sobre os primeiros anos do poeta não são dados baseados em documentos, mas em informações das quais os críticos deduzem dos seus versos como é o caso da canção “Vinde cá, meu tão certo secretário”, em que Bell afirma que o poeta alemão, Wilhelm Storck, respeitosamente tratado por si como Dr. Storck, conclui que a mãe de Camões teria morrido ao dar à luz ao poeta (BELL, 1936, p. 6): Quando vim da materna sepultura De novo ao mundo, logo me fizeram Estrelas infelices obrigado; com ter livre alvedrio, mo não deram, (CAMÕES, 1981, p. 62, v. 41-44). 19 Ao prosseguir com as considerações, o escritor e tradutor britânico faz, porém, uma ressalva quanto à interpretação da expressão “materna sepultura” afirmando que embora seja certo que ao longo do poema Camões recorda sua vida passada, escreve também como poeta e namorado. E na manifestação do verso “Quando vim da materna sepultura”, na qual Bell lembra que o emprego metafórico, que é bem condizente com o estilo camoniano, não pode valer contra documentos que provam que a mãe sobreviveu porque, segundo nota do escritor, Teófilo Braga “supõe que Camões não se refere a sua mãe, mas à mãe-pátria já em crise, uma interpretação mais forçada do que a de Storck”. (BELL, 1936, p. 93). No entanto, é fato, de acordo com o escritor, que: Se qualquer outro significado definitivo pode extrair-se da passagem [Estrelas infelices obrigado] deve ser que a infância foi infeliz [...] Poder-se- ia explicar a sua infeliz infância pela pobreza, a precoce morte do pai, o segundo casamento da mãe mais plausivelmente de que pela morte desta e pela presença duma ama desumana. (BELL, 1936, p. 7). Complementando a compreensão expressa por Bell e em concordância com Storck, António José Saraiva e Óscar Lopes, na obra História da Literatura Portuguesa, afirmam que na referida canção “Vinde cá, meu tão certo secretário” Camões assume um caráter de “balanço autobiográfico em busca de um sentido para a vida”. (SARAIVA; LOPES, 1973, p. 336). A despeito da infelicidade e pobreza da infância do poeta, Saraiva e Lopes afirmam que se reconhece na obra de Camões “uma educação escolar que pode ser considerada esmerada” (SARAIVA; LOPES, 1973, p. 329). Entretanto, devido às razões que os críticos denominam como ignoradas, sabe-se que o poeta foi mantido à margem dos círculos letrados, especialmente do espaço que orbitava ao redor de Sá de Miranda. E talvez seja por esta circunstância que, na condição de fidalgo, pobre e desprotegido, o poeta foi obrigado a preferir a carreira das armas à das letras. (SARAIVA; LOPES, 1973, p. 329). É com a idade de 21 anos, em 1545 (BELL, 1936, p. 12), que Camões parte para Lisboa e a partir daí os biógrafos e críticos relatam, com base nas cartas do poeta, uma trajetória marcada pelo desterro de Coimbra, por boemia, brigas, prisões, aventuras, desterro de Lisboa, viagens a países da África e da Ásia, naufrágios e aventuras. (BELL, 1936, p. XIII- XIV). 20 Os críticos retratam Camões como irrequieto, rebelde, tendo uma vida desassossegada e aventurosa que o desclassificava perante os desembargadores letrados. (SARAIVA; LOPES, 1973, p. 329). No entanto, os atributos negativos ficam diminuídos diante da genialidade que demonstra mesmo em situações e contextos adversos. As viagens em missão de combate nos países da África e da Ásia, por exemplo, são também consideradas como pertinentes a um período de muita produção poética sendo que algumas de suas obras estão relacionadas a acontecimentos trágicos da vida do poeta. Um grande exemplo de produção em meio às adversidades é a sua epopeia, os Lusíadas, salva durante um naufrágio em que Camões sofre uma perda irreparável na qual Dinamene, ou a Nise dos sonetos, sua companheira chinesa, morre nesse referido naufrágio e inspira o poeta a escrever uma série de poemas como “Alma minha gentil, que te partiste”, “Ah, minha Dinamene assi assi deixaste”, “Apartava-se Nise de Montano”, “Aquela triste e leda madrugada”, “Cara minha inimiga, em cuja mão”, “O raio cristalino se estendia” dentre outros sonetos que Aubrey F. G. Bell (1936, p. XIX) e Maria de Lourdes Saraiva (CAMÕES, 1994, p. 148) atestam a autoria camoniana. Ao discorrer sobre algumas características gerais da poesia de Camões, António José Saraiva e Óscar Lopes evocam as palavras qualificativas de August Wilhelm Schlegel quando declaram que “Camões, por si só vale uma literatura inteira” devido ao aspecto multifacetado da obra camoniana que abrange diversas correntes artísticas e ideológicas do século XVI em Portugal (incluindo as impressões do Renascimento europeu) ao mesmo tempo em que o poeta elabora sua obra sobre sua experiência pessoal múltipla, quando nenhum outro escritor de sua época tenha realizado a arte de dar “forma lapidar e definitiva a um conjunto de ideias, valores e tópicos característicos da sua época.” (SARAIVA; LOPES, 1973, p. 331). Qualificações estas que os críticos atribuem ao Maneirismo renascentista camoniano e acrescentam que: Camões soube realizar a síntese entre a tradição literária portuguesa (ou mesmo peninsular) e as inovações introduzidas pelos italianizantes: Foi o melhor poeta português de escola petrarquista, e, ao mesmo tempo, o mais acabado artífice da escola do Cancioneiro Geral, na redondilha e no mote glosado. Foi o poeta que, finalmente levou a cabo a epopeia, desiderato do Renascimento português, com os tópicos que António Ferreira e outros apenas conseguiram tratar fragmentariamente. Dentre os principais gêneros clássicos, só não cultivou a tragédia. Viajante, letrado, humanista, trovador à maneira tradicional, fidalgo esfomeado, numa mão a pena e noutra a espada, salvando a nado num naufrágio, manuscrito, a grande obra da sua vida, Camões assumiu e meditou a experiência de toda uma civilização cujas 21 contradições viveu na carne e procurou superar pela criação artística. (SARAIVA; LOPES, 1973, p. 332). Após breves caracterizações gerais da obra de Camões, relacionadas aos aspectos biográficos do poeta, consideraremos algumas noções pertinentes à lírica camoniana que julgamos relevantes a este estudo por pressupormos a presença de traços reminiscentes no lirismo do poeta árcade brasileiro, Cláudio Manuel da Costa, cuja poética é nosso objeto de pesquisa. Quando pondera sobre a lírica camoniana, Bell afirma que é como poeta lírico que Camões permanece grande porque nas variações deste gênero (redondilhas, canções, oitavas, sextinas, éclogas, odes, elegias e sonetos) adentramos em um “país encantado” uma vez que elas possuem um ritmo muito particular e encantador. (BELL, 1936, 83). No que se refere a alguns aspectos formais da lírica camoniana julgamos relevante mencionar breves esclarecimentos de Saraiva e Lopes referentes a alguns gêneros, especialmente no que se refere às éclogas e sonetos dos quais faremos menção ao longo do trabalho. Sobre as composições líricas camonianas, tratando das redondilhas de modo geral, os críticos declaram que: [...] Camões cultivou igualmente a escola tradicional em redondilha maior e menor (vilancetes, cantigas e outras composições obrigadas a mote, quintilhas etc.) e os gêneros em hendecassílabo. Num e noutro metro escreveu em português e castelhano. Por aí ele constitui uma ponte entre certa tradição peninsular representada pelo Cancioneiro Geral e os seiscentistas. Camões atingiu uma maestria do verso que deixa muito para trás os seus antecessores em redondilha ou em decassílabo. A arte com que narra uma curta história (como em Sete anos de pastor Jacob servia), ou registra o discurso interior (como na Canção Vinde cá ou nas redondilhas Sôbolos rios), ou desenvolve musicalmente, quase sem discurso, um tema tradicional (voltas ao mote Saudade minha), ou explana temas abstractos (Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades), só tem comparação, pela diversidade do registro, pelo poder de síntese, pela adequação exacta a um sentir que se está pensando ou a um pensar que se está sentindo, pela fluência [...] A variedade do ritmo camoniano evidencia-se nas canções e nas odes, graças à liberdade que estas formas concedem, de um para outro poema, na combinação estrófica entre decassílabos e hexassílabos, com predomínio destes últimos nas odes, por isso ritmicamente mais leves. Note- se que algumas éclogas não passam de canções ou odes dialogalmente cruzadas ou justapostas, sob uma convenção pastoril ou piscatória. (SARAIVA; LOPES, 1973, p. 332-333, grifo em itálico dos autores e negrito nosso). Ao longo do texto deste estudo traremos o excerto dos sonetos, “Sete anos de pastor Jacó servia” e “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, acompanhados de maiores 22 comentários referentes à retomada de temas pertinentes à tradição por Camões, de cujo eco julgamos ressoar no nosso árcade, Cláudio. No entanto, por ora, consideramos relevante continuar as ponderações dos críticos quando discorrem sobre as redondilhas camonianas: No seu conjunto, a estética da redondilha camoniana talvez se possa comparar à das fases finais do estilo gótico, como a flamejante ou a manuelina, pela desenvoltura formalista mais oficial do que individualizada dos seus moldes, pelo carácter prefixado e impessoal dos trocadilhos, das imagens (já reduzidas a símbolos usuais), pelo seu jogo consumado de ambiguidades que só a entoação viva desfaz. Nesta arte de poetar como quem está fazendo glosas, Camões lança, por assim dizer, uma ponte que, em arco sobre seu próprio estilo clássico renascentista (muito mais abstractamente discursivo e geometricamente racional), parece unir o gótico de Quatrocentos ao barroco de Seiscentos, ambos mais presos à magia do verbo. (SARAIVA; LOPES, 1973, p. 332-333). Em se tratando das éclogas, os críticos afirmam que é neste gênero que Camões reconhece explicitamente o seu débito a Virgílio e a Sannazzaro (SARAIVA; LOPES, 1973, p. 335), porém o fato de se sentir devedor de grandes nomes da poesia clássica não torna menor o brilho das composições camonianas, pois a exemplo da écloga “Que grande variedade vão fazendo”, em que o próprio poeta considerou a melhor de todas que escreveu, podemos perceber que a rima em nada prejudica a beleza, ao contrário, os pensamentos expressam sentimento e verdadeira sinceridade, de cujas virtudes Bell afirma que é essa mesma “sinceridade e naturalidade, combinada com um vigoroso pensamento, aliado a uma constante melancolia e expressada em pura música dum verso admiravelmente transparente, que fazem da poesia camoniana qualquer coisa de novo e individual.” (BELL, 1936, p. 85). Consideramos que a inovação e a autenticidade das éclogas também são marcantes nos sonetos dos quais ressaltamos a relevância das ponderações de Saraiva e Lopes quando tratam da forma e estrutura, da rara variedade, dos aspectos que envolvem a elaboração do discurso atrelado à brevidade ao mesmo tempo em que expressa grande concentração emocional e por esta razão foram preferidos por diferentes poetas, de épocas distintas e dentre estes destacamos Cláudio Manuel da Costa. Os críticos assim qualificam os sonetos de Camões: No soneto atinge o poeta uma admirável e rara variedade. Deve advertir-se que, pela sua brevidade e pela estrutura, o soneto se presta a exercícios de engenho, como o vilancete e outras formas tradicionais; embora, por outro lado, a sua disposição em duas quadras e dois tercetos favoreça um discurso em tese e antítese, seguidas de conclusão e desfecho sentencioso; e por outro, ainda, essa mesma brevidade seja apropriada a uma grande concentração emocional [...] Camões usa largamente esta disponibilidade, variando imensamente o seu modo fraseológico, numa gama que, por 23 exemplo, se estende desde a aparente narrativa unilinear de Sete anos de pastor Jacob servia, até a plangência magoada dos tercetos de Alma minha gentil, à reflexão profundamente pré-hegeliana de Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades e ao remate subtilmente intrigante de Busque Amor novas artes, novo engenho. (SARAIVA; LOPES, 1973, p. 337, grifo dos autores). No diálogo que propomos estabelecer entre Camões e Cláudio Manuel da Costa considerando o lirismo expresso nos excertos selecionados das éclogas de ambos que abordaremos, em alguns momentos no decorrer dos capítulos centrais desta dissertação, e, especialmente dos sonetos escolhidos para nos determos numa leitura analítica, no quarto capítulo, partimos da premissa de que há a presença de traços característicos semelhantes (respeitando também as peculiaridades distintivas) a exemplo da reminiscência clássica greco- latina, a naturalidade, a expressão melancólica mesclada com traços biográficos entre outros aspectos qualificativos que envolvem a experiência pessoal dos dois poetas. Com base nessas pressuposições é que, equiparadamente à apresentação feita a Camões, introduzimos, brevemente, Cláudio. 24 1.2 Sintomia biopoética claudiana Destes penhascos fez a natureza O berço em que nasci: (COSTA, 1996, p. 95). O mineiro, Cláudio Manuel da Costa, filho de pai português, João Gonçalves da Costa, e mãe paulista, Teresa Ribeiro de Alvarenga, nasceu no dia 5 de junho de 1729, no distrito da Vargem, também conhecida como Vargem de Itacolomi, situada nas redondezas de Mariana, em Minas Gerais. Ao contextualizar a época do nascimento do poeta, Laura de Mello e Souza, no estudo que integra a coleção literária sobre perfis brasileiros, apresenta Cláudio Manuel da Costa e declara que naquele tempo os diamantes atraíam grande quantidade de pessoas para onde atualmente situam-se Diamantina, O Serros entre outras cidades mineiras caracterizadas, pela historiadora, como lugarejos que ainda conservam parte da atmosfera do século XVIII. (SOUZA, 2011, p. 17). De acordo com a estudiosa, a exploração de diamantes havia sido mantida em “segredo”2 durante muitos anos, pois relata-se que desde 1714, época em que as pedras haviam sido encontradas, as autoridades e outros privilegiados exploravam em benefício próprio, porém é no ano de nascimento de Cláudio Manuel da Costa que o fato se torna público por meio de um ofício do rei D. João V, no qual havia uma séria advertência ao governador afirmando que “até no Reino circulavam as pedras trazidas de Minas em navios vindos do Brasil.” (SOUZA, 2011, p. 18). Considerando a afirmação da historiadora sobre o fato de que os habitantes de Minas tinham vindo de lugares, quase sempre muito longe, pressupomos que foram os boatos referentes às atividades da mineração que fizeram o pai de Cláudio se dispor à maior das viagens possíveis, na época. João Gonçalves da Costa deixou o Reino, em São Mamede das Talhadas, onde vivia da atividade de arar a terra com seus bois, para arriscar a vida minerando ouro, nos primeiros anos da atividade de mineração (por volta de 1715), na capitania de 2 “Segredo”, entre aspas, apenas no sentido de que os soberanos da corte portuguesa não haviam sido comunicados pelo governador de Minas Gerais, pois em 1721, época em que D. Lourenço de Almeida chega a Vila Rica, já corriam boatos da atividade mineradora exploratória e até amostras dos diamantes, conforme relata a historiadora que também afirma que D. Lourenço de Almeida foi “dos que mais se aproveitaram dos novos descobertos.” (SOUZA, 2011, p. 18). 25 Minas, que correspondia a uma região enorme e mal conhecida dos portugueses e que foi desmembrada de São Paulo em 1720. Por esta ocasião, na terra nova que tinha sido aberta à colonização portuguesa havia cerca de trinta anos, considerava-se que o “ser mineiro” era uma designação profissional antes de ser denominação regional ou identitária. (SOUZA, 2011, p. 18). No caso de Cláudio nos arriscamos a qualificá-lo como aquele que possui herança duplamente mineira: por ser o sucessor quando, posteriormente, irá administrar as atividades mineradoras da família e, concomitantemente, por ser também filho da terra da qual lhe concede sua naturalidade. Quanto à genealogia do poeta, a historiadora destaca uma dualidade na vida de Cláudio porque se, por um lado, o paterno, sua origem era humilde e obscura, por outro lado, o fato de a mãe ser oriunda de famílias paulistas, daria motivo para o poeta reivindicar, quando adulto, foros de nobreza local. (SOUZA, 2011, p. 19). Mas voltando à infância e primeira formação do poeta, a historiadora começa a ponderar sobre a escolha que os pais fizeram pelo nome de Cláudio3, pouco comum na época tanto em Minas quanto em Portugal, de origem romana e que remontava à cultura latina da qual a presença é observada no universo intelectual de Cláudio. A estudiosa atribui a escolha do nome do poeta e o de seus irmãos a indicativos de traços de refinamento num meio inculto: Como pouco se sabe dos pais de Cláudio Manuel, as escolhas que fizeram para nomear os filhos são indícios de alguma sofisticação ou requinte num meio rude, onde tudo começava e estava por fazer. João Gonçalves da Costa e Teresa Ribeiro de Alvarenga parecem ter sido mais do que meros aventureiros atraídos pelo ouro e pelo enriquecimento fácil, denotando certa instrução, talvez certa cultura. Antes da reforma da universidade, e antes que se generalizasse entre os habitantes das Minas o hábito de mandar os filhos estudarem no Reino, o casal se esforçou, sabe-se lá como, para que cinco dos meninos cursassem Coimbra. Uma raridade na época. (SOUZA, 2011, p. 22). A historiadora relata que o poeta teria nascido numa família de simplicidade, no que se refere à vida material, pois afirma que os pais não eram ricos, uma vez que a soma de seus bens não ultrapassaria sete contos de réis. Considerado o fator econômico, Laura de Mello e Souza acredita que o casal poupava tudo o que podia tendo em vista a educação da prole e o propósito de garantir-lhes melhor 3 Neste primeiro momento fazemos menção sobre o nome de Cláudio apenas como identificação civil. As implicações literárias que envolvem o nome do poeta serão abordadas no Capítulo 3. 26 posição social, conquanto essas aspirações não condizem muito com os hábitos da época e do lugar. (SOUZA, 2011, p. 40). Diante destas incongruências, a historiadora supõe que, ou se sabe muito pouco sobre os sonhos e expectativas dos primeiros habitantes de Minas, que talvez tenham sido até mais permeáveis aos apelos da cultura do que se imagina, ou os pais de Cláudio constituíam uma exceção naquele meio rústico e inculto considerando as evidências que Teresa Ribeiro de Alvarenga e João Gonçalves da Costa prezavam o conhecimento, já que vários estudiosos afirmam que o poeta aprendeu a ler e a escrever no ambiente doméstico, pois teria sido alfabetizado pela própria mãe. (SOUZA, 2011, p. 41). E só posteriormente recebeu educação mais formal de seu tio, o trinitário Francisco Vieira de Jesus Maria, qualificado como um homem culto e de eloquência que impressionava o menino Cláudio, especialmente no que se referia a imagens religiosas, tornando-se responsável, de certa forma, por fazer com que o poeta chegasse a cogitar a escolha pela atividade monástica. A educação doméstica, na infância do poeta, se deu ao fato de que somente em 1770, quando Cláudio já era adulto, é que o sistema público de primeiras letras teria sido criado pelo futuro marquês de Pombal. (SOUZA, 2011, p. 40). Enquanto ainda era criança Cláudio teve contato com as primeiras impressões barrocas devido às festividades do Corpo de Deus, já que a partir do final da década de 1720 a região já contava com muitas capelas e boas igrejas nas quais a música integrava o cotidiano, além de constituir o principal item nas despesas das Câmaras Municipais gastas nos eventos festivos eucarísticos. Laura de Mello e Souza destaca duas festas barrocas que sintetizaram a mistura do aspecto religioso com o profano, o que era considerado um aspecto bastante familiar nas Minas do século XVIII quando “as autoridades eclesiásticas vindas do Rio de Janeiro registraram muita ‘profanidade e indecência’ que impregnava as músicas cantadas nas festividades de igreja, ‘tanto na letra como na solfa’”. (SOUZA, 2011, p. 31; aspas da autora). A primeira das duas grandes festas barrocas aconteceu em 1733 e a historiadora pressupõe que Cláudio Manuel da Costa deve ter presenciado o evento: O menino Cláudio deve ter assistido à primeira festa, a do Triunfo Eucarístico, quando, em fins de maio, o Santíssimo Sacramento foi pomposamente transportado da igreja do Rosário dos Pretos para a recém- terminada Matriz de Nossa Senhora do Pilar, magnífica na sua talha dourada. Deve ter se extasiado com os arcos triunfais, as colchas adamascadas que pendiam das janelas, o cortejo de mouros e cristãos, o arcanjo São Miguel 27 todo imponente ‘ornado de um capacete de prata com vistosíssimo penacho de plumas’, os vários santos em seus andores estofados de novo em seda de cores várias e galões de ouro, os carros alegóricos com diferentes figuras, a simbolizar os planetas, as estrelas, a Lua, o Sol, os pontos cardeais, sem falar nas cavalhadas que se correram, nas touradas, nas comédias representadas num tablado junto à Igreja do Pilar. (SOUZA, 2011, p. 32, aspas da autora). Já a segunda festa, a do Áureo Trono Episcopal, que aconteceu em Mariana no final de novembro de 1748 e se estendeu até dezembro desse mesmo ano, a estudiosa afirma que Cláudio não assistiu porque, por essa ocasião, o poeta já estudava no colégio jesuíta do Rio de Janeiro e estava prestes a viajar para Portugal a fim de estudar em Coimbra. Mesmo tendo, provavelmente, perdido a visão do desfile dos versos escritos, levados pelos participantes, ou colados nos carros mecânicos, e nem ter podido ouvir a recitação que se fez junto às janelas do palácio episcopal e que também invadiu a academia de circunstância organizada nos salões de D. Frei Manuel da Cruz, a estudiosa afirma que o poeta recebeu a influência dessa tradição que marcou profundamente a cultura mineira do período do Setecentos: Presente ou distante, Cláudio Manuel recebeu a influência da especialíssima tradição visual que marcou tão fundo a cultura mineira do Setecentos, impregnada de exagero e brilho, pródiga em arroubos verbais, presa à palavra escrita que, naquelas ocasiões, se ostentava em cartazes e emblemas. Um mundo que Afonso4 Ávila, notável estudioso do período, qualificou de residualmente barroco e predominantemente lúdico. (SOUZA, 2011, p. 32- 33). Mais adiante, quando traçarmos conexão com o Soneto “II”, retomaremos a ideia referente a esse “residual barroco”, notadamente visual, lúdico e espetacular e que encontra ressonâncias nas Obras, especialmente no prefácio5, documento importante do pensamento estético de Cláudio e de todo o Arcadismo brasileiro. Entretanto, julgamos fundamental demorar um pouco mais sobre os momentos iniciais, referentes à criação do poeta, pois acreditamos que as marcas barrocas, que compuseram a trajetória de vida de Cláudio, tecem íntimas relações com a formação da visão estética do poeta. 4 Na transcrição da citação mantivemos a forma que a autora escreve o nome do estudioso do Barroco, porém verificamos que nas obras do próprio autor seu nome é grafado como Affonso Ávila. 5 Denominado como “Prólogo” e sobre o qual nos debruçaremos mais detidamente em algumas expressões, no Capítulo 2. 28 A primeira infância de Cláudio Manuel da Costa é marcada por forte contraste entre a aproximação das manifestações culturais expressas na música, na poesia e nos eventos festivos confrontando com a sujeira, a feiura e a rudeza que faziam parte do contexto mineiro do século XVIII. Além desse contraste, os aspectos que envolviam a miscigenação não eram bem vistos aos olhos das autoridades e da nobreza da época, fator este que coadunava com a visão controversa que o poeta carregaria de sua terra de origem: Convivendo com a música, as festas, as missas, a poesia, havia os porcos e outros animais que fuçavam pelas ruas, devorando mais de um bebê enjeitado, exposto na porta de alguma casa pela mãe aflita, que assim esperava despertar a comiseração dos moradores. Século afora, a perambulação dos porcos nos arraiais e vilas da mineração desafiou os esforços ordenadores dos homens da Câmara e das autoridades da lei e do governo. Havia também festas e música de outro tipo, mais ásperas, os calundus e batuques praticados em casebres pelos escravos e negros livres, numerosíssimos. Alternavam-se e se complementavam, configurando o mundo da ordem e da desordem, ou daquilo que as elites e o governo consideravam como tal. Havia muito índio, alguns com fama de antropófagos, como os que se espalhavam a leste da terra natal de Cláudio, nos campos e matos situados entre o rio das Velhas e o Doce. Índios bravos como esses sem dúvida povoaram o universo mental do menino, apavorando-o nos pesadelos e talvez sendo subjugados por ele, de mentirinha, nas brincadeiras infantis. Já os mansos, de carne e osso, é quase certo que andassem pelo quintal de sua casa, catando lenha, carregando água, buscando no pastinho o cavalo para montaria. (SOUZA, 2011, p. 33). Fazendo parte desta visão conflituosa da infância, o poeta também carregava as impressões de uma sociedade escravocrata e da qual o sustento de sua própria família dependia do trabalho dos cativos. Laura de Mello e Souza assim retrata a relação da família de Cláudio inserida no contexto de escravidão da sociedade mineira do Setecentos: A escravidão foi talvez o elemento mais importante da sociedade surgida nas Minas: a sociedade conflituosa, tensa, complexa, e mestiça desde o nascedouro. A cada década, o contingente de negros cativos aumentava, e os brancos iam se sentindo mais e mais reféns da multidão de ‘etíopes bárbaros’, como os qualificavam vários documentos de então. Sem eles, não era possível realizar os trabalhos de minerar e extrair pedras. Com eles, o perigo dos levantes ia num crescendo irreversível e avassalador. Em 1742, os escravos de Minas somavam 186868, enquanto os homens livres – brancos ou não – andava por volta de 80 mil. [...] O padrão de posse de escravos em Minas não era alto, a média ficando entre os quatro ou cinco por proprietário. João Gonçalves da Costa discrepava desse perfil mais comum: quando morreu, no início da década de 1750, seu plantel compreendia 31 cativos, dos quais pouco mais da quarta parte era doente, uns com papo, outros lesos, alguns aleijados depois de anos de trabalho extenuante. Pela idade considerável de vários, parece que comprou o maior número quando se 29 estabeleceu na Vargem: com o nascimento dos filhos e os gastos advindos de sua educação, não sobrava muito para repor a escravaria, que representava a maior parte da riqueza familiar [...] (SOUZA, 2011, p. 34, aspas da autora). Esse retrato do contexto social tão variado, no que se refere ao ponto de vista étnico e cultural, é de extrema relevância, pois conforme pondera a historiadora, foi muito marcante na memória de Cláudio Manuel da Costa porque, mesmo quando já adolescente no Rio de Janeiro e, posteriormente, adulto e estudante em Coimbra, essas memórias o acompanharam: Mas quando adolescente ou quase, deixou Minas para estudar no Rio de Janeiro, ia impregnado das tensões próprias a uma sociedade escravista e desigual, ao mesmo tempo acanhada e opulenta; dos contrastes típicos de uma região longínqua, perdida nos confins do Império, mas ao mesmo tempo cada vez mais central nas preocupações dos administradores que viviam na Corte, e dia a dia mais importante para as finanças do rei. (SOUZA, 2011, p. 46). Os sentimentos, os costumes e as impressões da visão social conflituosa que Cláudio levou da infância para o Rio de Janeiro e Coimbra, persistiriam até o fim da sua vida, conforme Laura de Mello e Souza que nomeia de “dolorosa divisão entre dois mundos [...] irreconciliáveis: o mundo dos sertões e o mundo mais polido das vilas e cidades; o mundo acanhado das colônias ultramarinas e o mundo mais culto dos centros urbanos do Reino.” (SOUZA, 2011, p. 35). A historiadora acrescenta ainda que: Se a cultura ótica do barroco residual e a violência do escravismo lhe formaram a sensibilidade mais funda, o contrabando, os pasquins sediciosos, a discussão acerba sobre a tributação do ouro ou ainda sobre o modo de se explorar diamantes marcaram a cultura do mundo no qual Cláudio cresceu, constituindo, por certo, o alvo de muitas das preocupações de sua vida adulta. (SOUZA, 2011, p. 45). E o poeta deixa transparecer algumas dessas preocupações resultantes das marcas da infância e que, muitas vezes, compõem o retrato da dualidade envolvendo tensão e elementos da terra de origem, o que nos leva a cogitar impressões que julgamos perceptíveis na sua poética, como no caso do Soneto “II”: 30 Leia a posteridade, ó pátrio Rio6, Em meus versos teu nome celebrado, Porque vejas uma hora despertado O sono vil do esquecimento frio: Não vês nas tuas margens o sombrio, Fresco assento de um álamo copado; Não vês Ninfa cantar, pastar o gado, Na tarde clara do calmoso estio. Turvo, banhando as pálidas areias, Nas porções do riquíssimo tesouro O vasto campo da ambição recreias. Que de seus raios o Planeta louro, Enriquecendo o influxo em tuas veias Quanto em chamas fecunda, brota em ouro. (COSTA, 1996, p. 51). No Soneto “II”, pressupomos ser possível perceber a complementação de expressões que remetem à memória sociocultural e à memória da paisagem afetiva do poeta. Ao ler os versos dos dois tercetos, que evocam elementos da atividade mineradora, os termos “riquíssimo tesouro” (v.10), “ambição” (v.11), “enriquecendo” (v.13) e “brota em ouro” (v. 14) nossa percepção se volta para o contexto histórico no qual estava inserida a família de Cláudio, envolvidos no exercício da mineração de ouro. Especialmente quando usa a expressão “Planeta louro” (v. 12), o poeta exterioriza os resquícios das impressões barrocas da infância – e que coaduna, também, com a natureza das concepções pertinentes ao estilo do Barroco – ao aludir “a identificação dos raios do sol ao brilho do ouro e a influência de um sobre o outro, numa espécie de abastecimento recíproco”, conforme as notas esclarecedoras de Melânia Silva Aguiar quando acrescenta que esses vestígios barrocos estão presentes em várias passagens das Obras, de Cláudio Manuel da Costa. (COSTA, 1996. p. 1053). Já os primeiros versos dos dois quartetos evocam imagens da paisagem mineira que são constantes na poesia de Cláudio, a exemplo do “pátrio Rio”, o Ribeirão do Carmo, que em alguns poemas também vêm acompanhados da imagem de pedras e montanhas, figuras das quais temos o seguinte esclarecimento por Laura de Mello e Souza: 6 De acordo com as notas de Melânia Silva Aguiar, o pátrio Rio faz “alusão ao Ribeirão do Carmo, a que o Poeta se refere em inúmeras passagens de sua obra e que vale como símbolo do dilaceramento estético-afetivo a que está sujeito: a pobreza da paisagem natal / os laços que o prendem a ela.” (COSTA, 1996, p. 1053). 31 Rios, pedras, montanhas foram figuras constantes na poesia que começou a compor, ainda mocinho, segundo ele mesmo registrou, no colégio dos jesuítas no Rio de Janeiro. Não porque fossem apenas figuras obrigatórias da poesia arcádica, como disse boa parte da crítica, mas porque compunham a paisagem afetiva do poeta – que nasceu no sopé do Itacolomi – e constituíam os elementos físicos dos quais se extraía ouro. (SOUZA, 2011, p 45). Por volta de 1744 ou 1745, época em que Cláudio devia ter em torno de catorze ou quinze anos, dados esses baseados no único documento autobiográfico produzido pelo poeta em 1759, conforme afirma a historiadora, é que o adolescente realiza sua primeira viagem quando parte de Minas para estudar no Colégio dos Jesuítas, no Rio de Janeiro. (SOUZA, 2011, p. 47). Laura de Mello e Souza afirma que o poeta deve ter se extasiado com a paisagem do Rio, mas as belezas das praias da cidade maravilhosa não deixaram marcas tão profundas a ponto de ficar algum vestígio nos poemas que Cláudio começou a escrever logo depois e o tornaram conhecido como o poeta das montanhas, dos penhascos, dos rios e pequenos cursos d´água, porém nunca do mar e sua imensidão, o que o qualifica como aquele que é “mais afeito aos espaços exíguos e delimitados que aos horizontes a perder de vista. E água, para ele, seria sempre a aguazinha mais comedida da Arcádia, a dos rios e regatos.” (SOUZA, 2011, p. 49, grifo nosso). São essas imagens, das quais damos destaque, que seguem Cláudio desde sua saída da terra natal, escoltam sua estada no colégio situado no Morro do Castelo, embarcam com o poeta para Lisboa em 1749, ingressam com o poeta na Universidade de Coimbra em 1º de outubro de 1749 e o acompanham pela vida afora mesmo quando a visão se complementa e se amplia com a profundidade das marcas do Tejo e do Mondego que coadunam no poeta fazendo de Cláudio um “português da América”, conforme a designação de Laura de Mello e Souza que acrescenta que o poeta passou a viver profundos conflitos de identidade cultural e política diante da constatação da rudeza e pequenez dos vilarejos de seu berço mineiro. (SOUZA, 2011, p. 53). Porém mesmo diante do dilaceramento resultado dos conflitos, o poeta supostamente permanece representante dessa dupla identidade que Antonio Candido prefere rotular como coexistência do “bairrista mineiro” com o “afetado coimbrão” quando afirma que na tentativa de disfarçar as marcas de origem, Cláudio procura acentuar os traços aprendidos na cidade. (CANDIDO, 2009, p. 88). Esse aspecto biográfico posteriormente irá embasar vários críticos a julgarem o poeta como aquele que teve a vida marcada pela ambivalência e controvérsia. 32 Na universidade Cláudio foi avaliado como um estudante sério, de temperamento geralmente prudente e comedido sendo que as dedicatórias companheiras de seus poemas publicados em Coimbra deixam transparecer um espírito conservador, avesso a novidades e enquadrado nos moldes da vida universitária e na rotina reinante nos cursos de Cânones. Publica O Culto Métrico em 1749, obra que homenageia dona Clara Teresa Teodora do Nascimento, abadessa do Mosteiro Seráfico de Figueiró, porém descrita como sendo uma religiosa obscura, pela historiadora. (SOUZA, 2011, p. 61). Em 1751 o poeta tem impresso O Munúsculo métrico, em que louva a recondução do reitor da universidade, D. Francisco da Anunciação, com o qual a estudiosa afirma que o poeta tem relações pessoais, fator este que Cláudio não traz à tona quanto explicita apenas sua louvação, na dedicatória, devida à admiração pelo empenho na reforma e atenção dedicadas à biblioteca, entretanto a historiadora afirma que, por preferir permanecer na penumbra, o poeta não assinou a homenagem, registrando apenas como “aquele ‘romance hendecassílabo’ consagrado ao reitor por ‘um aluno da Academia Conimbricense’”. (SOUZA, 2011, p. 65-66, aspas da autora). O ano de 1753 é bastante marcante na vida de Cláudio devido a três acontecimentos de grande relevância; - Publicação do Epicédio em que o poeta o consagra à memória de Frei Gaspar da Encarnação como um “‘desafogo da mágoa’ do mesmo D. Francisco da Anunciação, sobrinho do morto.” (SOUZA, 2011, p. 66, aspas da autora). A estudiosa tacha o poema, comparando similarmente aos anteriores, como sendo de cunho barroco, pesado e monótono em que mal deixava entrever o talento que os versos subsequentes revelariam. O poema aludiria, em suas margens, a citações de autores antigos como Virgílio e Ovídio, além de doutores e Santos da Igreja Católica, bem como, também, de várias passagens da Bíblia. (SOUZA, 2011, p. 66). - Graduação em Cânones na data de 19 de abril deste mesmo ano. - Após a morte do pai e sendo pressionado pela mãe para que ajudasse a cuidar dos irmãos mais novos e do sustento da família, Cláudio volta para casa por volta da metade do ano de 1753. (SOUZA, 2011, p. 67). É descontente e contrariando sua própria vontade que o poeta desembarca no Rio de Janeiro, em fins de 1753 e de lá segue para Vila Rica, onde posteriormente se estabelece como advogado, porém antes deixa expresso, no Soneto “LXXVI”, seu dilaceramento devido à tristeza por deixar a civilização: 33 Enfim te hei de deixar, doce corrente Do claro, do suavíssimo Mondego, Hei de deixar-te enfim, e um novo pego Formará de meu pranto a cópia ardente. De ti me apartarei; mas bem que ausente, Desta lira serás eterno emprego, E quanto influxo hoje a dever-te chego, Pagará de meu peito a voz cadente. [...] (COSTA, 1996, p. 85). O Soneto “LXXVI” será retomado no Capítulo 2, comparativamente ao soneto camoniano “Doces águas e claras do Mondego”, pois à luz das ponderações de Sérgio Alcides entendemos que ressoa, no poeta brasileiro, as reminiscências do tema da despedida versejado pelo poeta lusitano quando, anteriormente, também alude às doces lembranças do Mondego ao se sentir estranho e exilado em outra terra. Quando Cláudio expressa a tensão causada pelo regresso que se configura mais como um exílio na própria terra, conforme assim se referem vários críticos à volta do poeta, presumimos que além de ressoar o descontentamento camoniano, alude, também, ao tema do desterro ovidiano, cujo aspecto abordaremos no segundo capítulo quando discorreremos sobre a tópica do Locus terribilis. Após abreviado levantamento biográfico e resumida menção das obras de Camões e de Cláudio, tencionamos estabelecer uma confluência entre os dois referidos poetas, com base numa leitura diacrônica, ao considerar a afirmação de Alfredo Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira, quando evoca o fato de que se nos voltarmos para a história da poesia bucólica, verificaremos que ela tem vingado sempre desde os clássicos, a exemplo de Virgílio, perpassando até os poetas do Renascimento, como Camões, chegando até o neoclássico, Cláudio Manuel da Costa. (BOSI, 1997, p. 64-65). E é no poeta árcade que supomos ser em quem o lirismo aflora em poemas bucólicos, quer seja cantando o amor à sua musa ou versejando sobre os valores da terra natal e exaltando o “trato pastoril amado” em detrimento das angústias urbanas, conforme expressam os versos da primeira estrofe do Soneto “XIV”, de Cláudio Manuel da Costa, trazidos na epígrafe de abertura deste primeiro capítulo. 34 CAPÍTULO 2 CAMÕES E CLÁUDIO: UMA INTERFACE BUCÓLICA COR. Já que estamos, Montano, neste monte, Sem outra companhia, enquanto o gado, Buscando as doces águas dessa fonte, Vem concorrendo dum, e doutro lado, Aqui deste salgueiro, Sentados junto à sombra, eu te requeiro, Torna-me a repetir aquela história, Que toda esta minha alma encheu de glória. (COSTA, 1996, p. 129). O diálogo que envolve o canto dos pastores, na “Écloga I” de Cláudio Manuel da Costa, do qual transcrevemos uma das falas do pastor Corebo, na epígrafe, cujo poema trazemos um excerto como recorte do longo texto, já nos sugere a ideia de uma suposta reminiscência da poética camoniana e da poesia clássica greco-latina; a começar pela adoção do nome pastoril da persona poética claudiana semelhante ao pseudônimo do pastor camoniano, Montano7: Os Maiorias do Tejo Montano, Corebo, Lise e Laura Eu canto os dous Pastores Que o Tejo cristalino Na bela margem viu: canto o divino Assunto dos amores, Que de inveja, e de agrado O céu, a terra, o mar tem namorado. Também das Ninfas belas, Que Amor viu abrasadas, Os números entôo: se entre aquelas Cadências delicadas, Rude o som de meu canto Se faz digno, Senhor, de obséquio tanto. Tu do semblante augusto, Tu da frente serena, Infante generoso, invicto, e justo, Enquanto soa a avena, Teu magnânimo alento Comunica a meu débil, rouco acento. E Tu, que os teus altares, 7 Trataremos sobre o nome pastoril de Camões no Capítulo 3. 35 Princesa soberana, Dilatas na extensão de ambos os mares; Que Tétis, mais que humana, Em melhor hemisfério, Te adotas do Brasil o grande Império; [...] Dum lado e doutro lado Se estende uma campina, Em que traz a pascer o manso gado Tanto a formosa Eulina, A filha de Silvano, Como o destro Corebo, o fiel Montano. Em uma tarde, quando Os músicos Pastores Ao som da acorde flauta recitando Estavam seus amores, Nas vozes, que afinavam, Deste modo a cantar se preparavam: COR. Já que estamos Montano, neste monte, Sem outra companhia, enquanto o gado, Buscando as doces águas dessa fonte, Vem concorrendo dum, e doutro lado, Aqui deste salgueiro, Sentados junto à sombra, eu te requeiro, Torna-me a repetir aquela história, Que toda esta minha alma encheu de glória. [...] (COSTA, 1996, p. 128-129, grifo nosso). Ao realizarmos a leitura do poema, além do primeiro aspecto observado, chama-nos a atenção outros fatores como a qualificação, que antecede à primeira estrofe, quando o poeta árcade atribui aos pastores da écloga a denominação de “Os Maiorais do Tejo”. Esta é uma forma de reverência aos Príncipes D. Pedro e D. Maria, Princesa do Brasil, considerados pastores de hierarquia elevada, uma vez que o adjetivo maiorais está relacionado à figura de chefe ou pastores a quem outros pastores estavam subordinados, conforme notas de Melânia Silva Aguiar, que também afirma que o poema teria sido ofertado para as núpcias do casal real. (COSTA, 1996, p. 129; 1059). Partimos da premissa de que a consideração desses fatores mencionados torna possível estabelecer certo paralelismo, em Cláudio Manuel da Costa, com as “Cadências delicadas” (v. 10) análogas ao modo que Camões e os poetas da Antiguidade reverenciavam as autoridades, as musas, os deuses e os seres considerados superiores. No entanto, o olhar atento do leitor pode perceber que a reverência claudiana se estende para além da louvação às autoridades reais, por ocasião da celebração nupcial do casal 36 principesco, já que a écloga remete à poesia bucólica greco-latina, fonte da qual também bebeu a poesia lírica camoniana. Sendo assim, percebe-se, da mesma forma, reverência do poeta brasileiro à poesia clássica tanto quinhentista, quanto à da Antiguidade. Na já referida “Écloga I”, após as sextilhas iniciais, seguidas de longo canto que intercala a conversa dos pastores, o poema também alterna a forma trazendo, quase ao final do texto, um soneto que evoca o estilo decassílabo camoniano, forma esta adotada pelo poeta árcade em seus sonetos. E já que introduzimos o capítulo com um breve comentário sobre a écloga claudiana que, consequentemente, aborda a temática pastoril juntamente com elementos bucólicos, tema caro ao Arcadismo brasileiro cujo movimento Cláudio Manuel da Costa é representante, a ordem lógica nos aponta que a abordagem da temática deve se pautar num recorte em que a leitura diacrônica siga os próximos passos que devem percorrer o traçado de uma rota na qual o ponto inicial é a concepção e entendimento da Arcádia e percorra um logo caminho até chegar na compreensão do nosso Arcadismo. Ao seguir esta rota nos deteremos, porém, apenas nos pontos principais que envolvem os conceitos de Arcádia como a abordagem pertinente à visão greco-latina, as noções gerais sobre a Arcádia de Roma bem como sobre a Arcádia Lusitana e, por último, o anseio do poeta árcade brasileiro de estabelecer uma Arcádia na América Portuguesa. Sem nos desviarmos deste caminho consideramos, no entanto, recalcular a rota e enquanto repensamos para realinhar cada passo da trajetória, seguimos com um trecho incluso, de esclarecimento sobre a ideia que envolve a compreensão do termo comparação, e que objetiva iniciar as reflexões sobre as questões referentes às similaridades e dissemelhanças entre o poeta quinhentista, Camões, e o setecentista, Cláudio Manuel da Costa. Apresentaremos essa breve visão acerca das concepções que envolvem o termo comparação, relacionado à literatura, como uma forma de metodologia que tem a finalidade de nortear este estudo considerando o pressuposto de uma aproximação entre as poéticas camoniana e claudiana, tendo sempre em vista o fio condutor do bucolismo e as tópicas que o envolvem. 37 2.1 Metodologia comparatista bucólica Convosco um eco ao mundo dar desejo Maior que o bom Camões; ele cantando (COSTA, 1996, p. 337). Consideremos a premissa de que quando tratamos da temática do bucolismo, recorrente na poesia de Cláudio Manuel da Costa, uma invitação aos clássicos se torna implícita no momento em que evocamos desde os poetas quinhentistas dos quais o destaque aqui é para Camões e sua “influência”, emprestando o termo de Gilberto Mendonça Teles (1979) usado em seu consagrado estudo intitulado Camões e a poesia brasileira. O crítico pondera sobre a corrente mimética presente nas obras dos poetas brasileiros que vêm desde os clássicos greco-latinos como Virgílio e Ovídio, por exemplo. Ainda, segundo o autor, “se o objetivo é mostrar essa permanência de traços da obra de Camões como agentes catalisadores das obras de nossos poetas, não há como fugir à ‘metodologia comparatista’” (TELES, 1979, p. 7, aspas do autor). Metodologia esta adotada, neste trabalho, pelo viés do tema bucolismo considerando as ideias que envolvem as tópicas8 do locus amoenus, do locus terribilis e do mito da Idade de Ouro. Com base no “eco” camoniano, do qual partimos do pressuposto que ressoa tanto explicitamente na poética de Cláudio Manuel da Costa, como expressam os versos do soneto “VII” (trazidos na epígrafe que acompanha o subtítulo deste capítulo), quanto implicitamente, quer seja, na expressão dos sentimentos de angústia existencial que se assemelham, na vazão do lirismo bucólico com semelhanças e distinções nos dois poetas, ou na estilística da poética claudiana que remete à poética camoniana, julgamos que o termo “metodologia comparatista” torna-se imprescindível. Além do caráter essencial da abordagem comparatista, consideramos que a metodologia alude, também, às ponderações de Antonio Candido em seu artigo “Literatura Comparada” no qual o crítico chama a atenção para o inegável fato de que estudar literatura brasileira é estudar literatura comparada, uma vez que a alusão a autores estrangeiros tem sido 8Neste início de capítulo nos deteremos nas concepções que envolvem a ideia de comparação das poéticas, de uma maneira geral. As qualificações referentes à compreensão das tópicas serão abordadas quando introduzirmos o subtítulo que trata sobre a primeira das tópicas: a do locus amoenus. 38 um dos critérios adotados para avaliar e caracterizar os escritores desde, praticamente, as origens da nossa crítica até quase os nossos dias. (CANDIDO, 1993, p. 211). O crítico ressalta ainda que: O poeta dos períodos clássicos geralmente incorporava diretamente ao texto as evocações ou citações de autores nos quais desejava se amparar, fundindo-as com o seu próprio discurso, porque naquele tempo a imitação era timbre de glória, não havia o sentimento exacerbado de originalidade e as pessoas cultas tinham sempre em mente um certo estoque de alusões eruditas, que se podiam ajeitar como engastes. (CANDIDO, 1993, p. 212). No entanto, o crítico, no mesmo artigo, afirma que a incorporação de outros textos resultando na fusão com os próprios textos dos poetas clássicos e neoclássicos era apenas “uma espécie de comparatismo não intencional, elementar e ingênito [...] essa tendência dos críticos correspondia ao comportamento dos escritores, sempre inclinados a apoiar-se nos textos das literaturas matrizes” (CANDIDO, 1993, p. 212). A prática de apropriação de outros textos, a que o crítico se refere como tendência, é denominada como uma “vocação comparatista espontânea e informal, como algo coextensivo à própria atividade crítica no Brasil” (CANDIDO, 1993, p. 212). E a contextualização desse exercício relacionado a “vocação comparatista” se deve ao fato que “Literatura comparada propriamente dita, só quando o século XX já estava chegando à metade, apesar de ter havido manifestações anteriores” (CANDIDO, 1993, p. 212). É pensando no movimento comparatista a partir do vigésimo século que, ao considerar a fusão de vários textos com o dos autores como literatura comparada, o crítico denomina como “uso um pouco novidadeiro da designação, por parte de quem pensava sem fundamento estar praticando a matéria” (CANDIDO, 1993, p. 213). Porém, ficam apenas no plano das impressões todas as ideias levantadas, já que o próprio crítico afirma que não conhece bem o desenvolvimento desses estudos. Ao pensar nas, já referidas, declarações do professor Antonio Candido, consideramos pertinente mencionar as elucidações de Tânia Franco Carvalhal em seu estudo publicado na obra Literatura Comparada. A referida investigação traz uma abordagem sobre o contexto histórico que envolve o termo e a diferença entre crítica e comparativismo quando a autora menciona Guyard que “insiste na distinção entre crítica e comparativismo, prejudicando a compreensão de ambas as atividades, pois se à primeira destina o paralelismo, à segunda cabe apenas o levantamento de dados sobre o que um autor leu de outro” (CARVALHAL, 2006, p. 26). 39 Ao retomar as considerações feitas por Antonio Candido (1993, p. 213) a estudiosa traz maiores esclarecimentos, em seu artigo “Literatura comparada e literaturas estrangeiras no Brasil”, afirmando que, posteriormente, o crítico se refere aos estudos de Literatura comparada como sendo a forma na qual a "organização associativa dos especialistas era sinal de maturidade e com certeza ajudaria a Literatura Comparada brasileira a entrar na era do funcionamento sistemático" (CARVALHAL, 1996, p. 1). A autora considera que o crítico estaria aludindo ao início da institucionalização acadêmica referente aos estudos comparatistas no Brasil e por isso afirma: Certamente estaria a lembrar de trabalhos pioneiros em literatura comparada que foram desenvolvidos no âmbito universitário sob forma de teses acadêmicas e não mais como resultado de um comparatismo ‘espontâneo e difuso’ que, segundo ele, teria caracterizado os estudos críticos brasileiros, dotados em geral de ‘ânimo comparatista’. Ânimo concretizado na referência constante a modelos externos, tomados inclusive como critério de valor, como se sabe, pois os estudos de literatura nacional (como aliás a própria produção literária brasileira) caracterizavam-se por manifestar através da constante referência ao estrangeiro, ainda no dizer de Candido, ‘uma espécie de comparatismo não intencional, elementar e ingênito’. Entre os trabalhos oriundos da experiência com literaturas estrangeiras estão aqueles que o próprio crítico menciona no mesmo texto: o de Keera Stevens, sobre viajantes ingleses em Portugal, o de Carla de Queiroz em Literatura Italiana sobre Metastásio e os árcades brasileiros. (CARVALHAL, 1996, p. 1, aspas da autora). A estudiosa confirma a declaração de Antonio Candido sobre o surgimento somente no século XX, como organização, da Literatura Comparada e reitera a afirmação do crítico de que teria sido a “época em que comparar estruturas ou fenômenos análogos, com a finalidade de extrair leis gerais, foi dominante nas ciências naturais” (CANDIDO, 1993, p. 212). Há, porém, uma ressalva da autora lembrando que a ideia da comparação não pertence apenas à época mencionada pelo crítico, pois “o adjetivo ‘comparado’, derivado do latim comparativus, já era empregado na Idade Média”. (CARVALHAL, 2006, p. 8, aspas da autora). Logo nas primeiras páginas de seu estudo a crítica chama a atenção para o fato de que “a comparação, mesmo nos estudos comparados, é um meio, não um fim”. (CARVALHAL, 2006, p. 7). E é por isso que ao tratar das atividades comparatistas como um “meio”, metodológico, a estudiosa discorre sobre a contextualização histórica relacionada à sistematização teórica envolvendo a visão de vários autores pertinentes a movimentos literários que são denominados “escolas”, dentre as quais serão referidas aqui apenas algumas; 40 A “escola” francesa que prima as relações entre autores e obras e tem como destaque autores como Paul Van Tieghem. A “escola” alemã pautada na tradição legada por Goethe, com a consagração do termo Weltliteratur e que tem a preocupação em considerar “as questões de temas, motivos, topos, mitos e personagens que circulam na literatura (oral ou escrita, ou de uma para a outra) de vários séculos e/ou de vários países, ou seja, a Stoffgeschichte”, conforme elucidativas considerações feitas por Antônio Donizeti Pires (2018, p. 3-4) no texto inédito “A literatura comparada em perspectiva”, extraído de sua tese doutoral. A “escola” soviética que também é conhecida como “escola” marxista sendo representada por autores que herdaram a tradição formalista como Victor Zhirmunsky. E a “escola” americana na qual se destaca como representante o estudioso e crítico tcheco residente nos EUA, René Wellek, e que tem como enfoque a análise do texto em sua “imanência e em suas relações sincrônicas com outros textos”, em oposição à concepção francesa. (PIRES, 2018, p. 2). De acordo com a autora Tânia Franco Carvalhal, os estudos de Van Tieghem passaram a ser considerados como “bíblia” não apenas na França, mas em outros países também sendo que, no Brasil, Tasso da Silveira é autor do livro Literatura Comparada, considerado o manual brasileiro de estudos comparativistas que tem adesão integral à obra de Van Tieghem. Entretanto a estudiosa chama a atenção para o seguinte fato: a visão obliterada que se tem da literatura comparada como um estudo restrito a exaustivos levantamentos, verdadeiros exercícios de erudição que, muitas vezes, impressionam mais pelo esforço da pesquisa do que pela agilidade das interpretações resultantes, decorre, em geral, das propostas que conhecemos através de manuais que sobrecarregam o aparato da investigação sem suscitar as atitudes críticas. (CARVALHAL, 2006, p. 25). Visão esta que remonta aos autores franceses, especialmente Van Tieghem que fazia distinção entre literatura comparada e literatura geral afirmando que a esta corresponde uma visão mais sintética, podendo abarcar o estudo de várias literaturas, enquanto que àquela corresponde a uma visão mais analítica e responsável por estudos binários por se fundamentarem no “binômio fontes e influências”, conforme denominação aderida por Antônio Donizeti Pires, em seu artigo sobre literatura comparada, já citado anteriormente, no qual faz uma alerta para as ressalvas que envolvem o referido binômio, este que tendo sido “bastante combatido no século XX, preocupa-se em demasia com as fortunas críticas de um dado escritor em um dado país, e com as relações bilaterais e de dependência”. (PIRES, 2018, p. 1). 41 Contudo, ao retomar o uso do termo “metodologia comparativa”, não pretendemos nos deter, especificamente, às definições teóricas pertinentes aos estudos sistemáticos binaristas, resultantes da concepção francesa, que nortearam o início da Literatura Comparada no Brasil. Ao fazer uso da atividade envolvendo a prática comparatista esclarecemos que, apesar de, posteriormente e ao longo do texto, citar a declaração de João Ribeiro, na “Introdução” das Obras, quando afirma que “há certa diminuição de brilho e da perfeição da forma” (RIBEIRO in PROENÇA FILHO, 1996, p. 25) na poética de Cláudio em comparação com o texto poético clássico, nosso intuito não está relacionado à ideia de atribuição de juízo de valor resultante da comparação entre uma literatura em detrimento de outra, mas, sim, de identificar a fusão das muitas vozes literárias (a intertextualidade como será melhor conceituada no Capítulo 3) que contribuem para um olhar mais amplo sobre determinados aspectos que envolvem a temática. Conforme pondera René Wellek, em seu artigo “A crise da literatura comparada”, é necessário um “reexame” dos objetivos e métodos no que se refere aos estudos literários comparativistas, pois há falhas nos pronunciamentos dos antigos mestres como Van Tieghem e Guyard, uma vez que os estudos atribuídos a eles não foram capazes de estabelecer um objeto de estudo distinto e uma metodologia específica. (WELLEK, 1994, p. 108). Ainda discorrendo sobre a necessidade de refletir e reexaminar os conceitos teóricos que envolvem os estudos de literatura comparada, o crítico comparatista ressalta a importância da reflexão sobre a amplitude e profundidade que deve ter a questão das “influências” nas obras de arte, ao considerar o pressuposto de que “obras de arte, no entanto, não são simples somatórios de fontes e influências; são conjuntos em que matéria-prima vinda de outro lugar deixa de ser matéria inerte e passa a ser assimilada numa nova estrutura”. (WELLEK, 1994, p. 111). Concepções estas retomadas por A. D. Pires, ao considerar que: o estudo imanentista do objeto literário pode evidenciar a natural e contínua reescritura dos textos, numa demonstração cabal de que o trabalho de transformação e assimilação de textos-fonte não é jamais uma soma conflitante de influências, ou incompreensíveis dívidas de um autor para com outro, mas um diálogo crítico com toda a tradição literária e cultural da humanidade. (PIRES, 2018, p. 8, grifo do autor). As elucidações do crítico Wellek, no que concerne à reflexão sobre a metodologia comparatista, considerando a relação dialógica dos textos, são reiteradas nas considerações de 42 A. D. Pires quando alude aos “aspectos metodológicos” denominados, pelo crítico, como sendo “definitivamente plurais, no âmbito comparatista –, a partir das avançadas ideias concebidas por Julia Kristeva, Laurent Jenny e outros (na esteira de Bakhtin), em que se dá relevo ao dialogismo, à polissemia do texto” (PIRES, 2018, p. 7-8). Conceitos estes que julgamos contribuírem para o estabelecimento de um diálogo com as concepções da escola alemã ao conjecturar que a questão do tema ou das tópicas, que envolvem a temática geral do bucolismo, abrange especificidades como o topos do locus amoenus, o tópos do locus terribilis e o do mito da Idade de Ouro, presentes na poética neoclássica de Cláudio Manuel da Costa, aliados à releitura da poética camoniana que, por sua vez, também remonta à poética clássica greco-latina da mesma forma que outros tópoi já foram estudados na literatura brasileira, conforme pondera A. D. Pires: A chamada escola germânica de literatura comparada, como visto, preocupa- se com a questão dos temas, motivos e tópicos literários que migram de uma literatura a outra, da literatura oral para a escrita ou desta, considerada culta, para a literatura popular. Entre nós, o pioneiro Augusto Meyer, em Textos críticos, além de estudos sobre Rimbaud e Camões, pesquisou alguns topos migratórios como A vida como sonho ou Ubi sunt – Onde?, que revelam a evanescência da vida humana. Meyer, além disso, investigou alguns motivos arcaicos – oriundos da literatura culta – que aparecem na poesia popular. Outros exemplos de estudos seriam o topos horaciano do carpe diem e seu uso sistemático por poetas clássicos, barrocos ou neoclássicos (chegando aos contemporâneos), assim como o motivo do retrato da amada, que remonta a Petrarca e foi sistematicamente usado por Camões, Góngora, Gregório de Matos, Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga. (PIRES, 2018, p. 9, grifo do autor). É com base nestas reflexões sobre temas migratórios que trazemos como exemplo (seguido de breve comentário) o soneto “VII” do Parnaso Obsequioso e Obras Poéticas, de Cláudio Manuel da Costa: Ninfas do pátrio Rio, eu tenho pejo Que ingrato me acuseis vós outras, quando Virdes que em meu auxílio ando invocando As Ninfas do Mondego, ou as do Tejo. Convosco um eco ao mundo dar desejo Maior que o bom Camões; ele, cantando O valor com que os mares vai cortando, Ao Gama lhe ganhou nome sobejo. Mas vós quereis saber qual outra estuda Alta empresa o meu Canto? Oh, quantas vezes Ela é digna de vós, da vossa ajuda! 43 Dai-me vosso favor; que entre os arneses De Marte, eu louvarei com pena aguda A glória dos Noronhas, e Menezes. (COSTA, 1996, p. 337-338). Consideremos que no poema encomiástico o poeta árcade, ao que parece, deixa transparecer mais do que apenas reminiscência camoniana, pois o “eco” (v.5) deste é explícito e invocado pelo próprio poeta mineiro ao rememorar o “Canto” (v.10) do poeta lusitano, para que num tom bucólico por invocar as “Ninfas do pátrio Rio” (v.4) ao mesmo tempo que usa também um tom de louvação aos Noronhas e Menezes. Ao se apropriar das cadências camonianas do soneto decassílabo, que alterna versos sáficos e heroicos, de rimas intercaladas, o poeta invoca as glórias do progresso lusitano às terras do pátrio Ribeirão do Carmo e o compara com o valor dos mares e o “nome sobejo” que Gama ganha com o Canto do poeta lusitano para que, deste modo, o poeta árcade não mais tenha “pejo” das “Ninfas do pátrio Rio” ao invocar, em seu auxílio, as “Ninfas do Mondego e do Tejo” (COSTA, 1996, p. 337). Pressupomos que o poeta árcade não transforma apenas a arte poética assimilando, à estrutura camoniana, os valores de sua terra numa estrutura inovadora, mas almeja que a rusticidade da própria pátria seja transformada e assimile nova estrutura cultural quando “invoca as Musas do País para cantar o nome dos Ilmos. Chefes dos Noronhas e Menezes”, conforme atestam as palavras dedicatórias, expressas anteriormente ao primeiro verso, do referido soneto “VII”. A leitura que acabamos de fazer, do soneto claudiano, no qual é perceptível o tom de louvação a que o poeta mineiro evoca da poética camoniana, nos remete à reflexão das declarações do erudito filólogo alemão, Ernest R. Curtius, nas palavras iniciais do Capítulo X “Paisagem Ideal”, da obra Literatura Europeia e Idade Média Latina, quando julga o fato de que “os esquemas da tópica laudatória serviram de veículo e revestimento aos ideias de classe e de vida no fim da Antiguidade, na Idade Média, na Renascença e no século XVII. A retórica elaborou a imagem ideal e determinou, por milênios, a paisagem ideal da poesia.” (CURTIUS, 2013, p. 239). Na poética de Cláudio Manuel da Costa, especialmente nas Obras, presumimos que além de serem recorrentes as imagens da paisagem natural de sua própria terra, é possível perceber que ecoa uma corrente dialógica que se funde com as imagens da poética camoniana e virgiliana, conforme atestam as palavras do próprio poeta no “Prólogo ao Leitor” quando afirma que: 44 Bem creio que te não faltará que censurar nas minhas Obras, principalmente nas Pastoris onde, preocupado da comua opinião, te não há de agradar a elegância de que são ornadas. Sem te apartares deste mesmo volume, encontrarás alguns lugares que te darão a conhecer como talvez me não é estranho o estilo simples, e que sei avaliar as melhores passagens de Teócrito, Virgílio, Sanazaro9 e dos nossos Miranda, Bernardes, Lobo, Camões, etc. (COSTA, 1996, p. 47, grifo nosso). O elemento rio, presente no soneto “VII”, assim como o vale e os campos que são recorrentes na poética claudiana por meio de paráfrases, marcam presença, além dos sonetos, nas éclogas, conforme as notas de Melânia Silva Aguiar. A estudiosa compara as éclogas ao “Epicédio 2”, “que é muito belo”, de acordo com o atributo manifestado pela crítica ao complementar a expressão qualificativa com outros esclarecimentos, e aponta que o poema é quase todo parafraseado no ritmo, na forma e na substância, de Petrarca e Camões. (COSTA, 1996, p. 1050). Presumimos que estas apropriações levam o leitor a refletir sobre a relação dialógica que resulta na fusão do texto poético claudiano com outros textos clássicos, de outros poetas pertencentes a diferentes épocas e diferentes movimentos literários e que vão além da esfera da simples imitação, além de transformar e ressignificar os textos, tornando-os assim neoclássicos, o seu próprio texto, conforme é possível perceber na leitura comparativa de alguns versos das “Écloga I” e “Écloga II” e, também, do “Epicédio2”: Duas rolas cantando Naquela sorveria Docemente se estavam namorando: Uma, e outra ligeira, Com suave reclamo, De folha em folha vão, de ramo em ramo (COSTA, 1996, p. 131). Versos estes que dialogam com os versos 57 e 58 da “Bucólica I” de Virgílio, num trecho do canto do pastor Melibeu, conforme notas de Melânia Silva Aguiar. (COSTA, 1996, p. 1050). Nec tomem interea rauce, tua cura, palumbres Nec genere aeria cessabit turtur ab ulmo. Jamais hão de calar o gemido no olmeiro 9 Aqui também mantivemos a grafia usada pelo autor. 45 As roucas pombas, teus amores, nem as rolas.10 (VIRGÍLIO, 2005, p. 17; v. 57-58). Os campos neste dia Se cobrem de verdura: Pasta o gado contente a relva fria, E na verde espessura Novo contentamento Desterra toda a sombra do tormento. (COSTA, 1996, p. 140). Nesta sextilha, que compõe a quarta estrofe da “Écloga II”, é possível perceber o diálogo estabelecido entre a poética claudiana com o soneto camoniano “Mudam-se os tempos, mudam se as vontades”, especialmente no que se refere aos versos do primeiro terceto do soneto, transcrito a seguir: [...] O tempo cobre o chão de verde manto que já coberto foi de neve fria, e enfim converte em choro o doce canto. (CAMÕES, 1994, p. 289). Já na o