UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA ―JÚLIO DE MESQUITA FILHO‖ Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP DANIELA RODRIGUES ALVES DE LIMA O MOVIMENTO SLOW FOOD E SEUS IMPACTOS PARA A PRODUÇÃO DO QUEIJO ARTESANAL NA REGIÃO DO ALTO PARANAÍBA – MINAS GERAIS ARARAQUARA – S.P. 2016 DANIELA RODRIGUES ALVES DE LIMA O MOVIMENTO SLOW FOOD E SEUS IMPACTOS PARA A PRODUÇÃO DO QUEIJO ARTESANAL NA REGIÃO DO ALTO PARANAÍBA – MINAS GERAIS Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós em Ciências Sociais, da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Trabalho e movimento social Orientador: Prof. Drº. Ricardo Luiz Sapia de Campos Bolsa: CNPq ARARAQUARA – S.P. 2016 DANIELA RODRIGUES ALVES DE LIMA O MOVIMENTO SLOW FOOD E SEUS IMPACTOS PARA A PRODUÇÃO DO QUEIJO ARTESANAL NA REGIÃO DO ALTO PARANAÍBA – MINAS GERAIS Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós em Ciências Sociais, da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Trabalho e movimento social Orientador: Prof. Dr. Ricardo Luiz Sapia de Campos Bolsa: CNPq Data da defesa/ entrega:____/____/____ MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: ______________________________________________________________________ Presidente e Orientador: Prof. Dr. Ricardo Luiz Sapia de Campos Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ – UNESP/ Araraquara ______________________________________________________________________ Membro titular: Prof. Dr. Rodrigo Constante Martins Universidade Federal de São Carlos – UFSCar ______________________________________________________________________ Membro titular: Prof.ª Dr.ª Renata Medeiros Paoliello Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ – UNESP/ Araraquara Local: Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖ – UNESP Câmpus de Araraquara – SP- Faculdade de Ciências e Letras/ FCLAr Aos meus pais, Ana Maria Rodrigues de Lima e Nicodemos Alves de Lima. AGRADECIMENTOS A realização deste trabalho foi possível devido ao apoio de várias pessoas e instituições. Em diversos momentos pude contar com a contribuição de amigos, profissionais da área, funcionários e familiares nesta jornada. Agradeço à UNESP/FCLAr e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa de mestrado. Através do financiamento, foi possível a realização da pesquisa com os produtores de queijo artesanal em Serra do Salitre/MG. Ao professor Ricardo Sapia de Campos pela orientação e pela ajuda no meu crescimento pessoal neste processo. Aos professores Rodrigo Constante Martins e Renata Medeiros Paoliello pela orientação na banca de qualificação e pela participação na defesa de mestrado, que contribuíram para enriquecer e problematizar a pesquisa. Ao grupo de pesquisa Capitalismo Cognitivo, Ruralidade e Agricultura. Em especial a Andréia Roviero, Licia Fagotti, Rafael Claro Daniel e Jéssica Aline Troiano pelo carinho e por compartilharem diálogos reflexivos, desafios e problemáticas da pesquisa. Aos amigos cientistas sociais e companheiros de mestrado, Elaine Oliveira, Karine Dutra Rocha Viana, Karla Renata Araújo, Lívia Bocalon Pires de Moraes, Pillar Modolo e Nathaly Pereira Oliveira pelo afeto, pelo incentivo e pela contribuição de diversas formas para a realização desta pesquisa. Aos produtores que me acolheram em Serra do Salitre/MG, em especial ao ―seu João‖ e ao ―seu Vando‖ e famílias. Agradeço pelas inúmeras manhãs de aprendizado, acompanhadas do bom café e pão de queijo mineiro. Aos associados do Movimento Slow Food que, em vários momentos, contribuíram para o aprendizado com informações sobre a organização no Brasil. Agradeço em especial aos meus pais, pela paciência, ajuda e apoio nesses dois anos de mestrado. Foram os principais motivadores e que contribuíram de maneira inigualável para a realização desta pesquisa, agradeço todo o amor e ajuda prestada. Agradeço ao meu irmão Caio Rodrigues Alves de Lima pelo apoio, incentivo e conselhos ao longo da pesquisa. Agradeço aos demais familiares e inúmeros amigos, que não caberia nomeá-los neste pouco espaço, pelo apoio e incentivo nesta caminhada. Por fim agradeço ao meu companheiro de vida pelo amor, dedicação e paciência, Alexandre Martins Ribeiro. RESUMO O objetivo deste trabalho é entender os impactos do Slow Food a partir do estudo local com os produtores artesanais de queijo de leite cru em Minas Gerais, Serra do Salitre – Alto Paranaíba. A pesquisa visa a identificar de que forma o Slow Food atua, no sentido de preservar a cultura e a tradição local, qual a sua posição quanto à legislação específica para o queijo de leite cru e como se aplica a sua proposta para a produção de um alimento que seja ―bom, limpo e justo‖. O resultado demonstra o surgimento de novos agentes no Slow Food, que atuam politicamente para a preservação da pequena produção artesanal de queijo de leite cru, preocupados com a segurança alimentar e com a qualidade do produto, estimulando o sabor tradicional da alimentação ao aliar tradição e inovação, valorizando a história e o contexto cultural da variedade alimentar no Brasil, contribuindo, dessa forma, para o debate sobre o novo desenvolvimento rural para a produção dos alimentos. Foi, também, verificada a necessidade de uma melhor articulação e aproximação do SLow Food Brasil com os produtores, com o intuito de estabelecer um diálogo mais amplo quanto à legislação para o queijo artesanal. Palavras - chave: Slow Food; queijo artesanal de leite cru; Serra do Salitre. ABSTRACT The goal of this research is to understand the impact of the slow food , through the local study of artisan raw milk cheese producers in Minas Gerais, Serra do Salitre – Alto Paranaíba. The research aims to identify in which form the movement acts in the sense of preserving the culture and the local tradition, what's its position on the specific legislation for raw milk cheese and how its proposal is aplied in order to have a food production that is ―good, clean and fair‖. The result shows the appearance of new agents in the Slow Food, that act politically for the preservation of the small artisan raw milk cheese production. These new agents are mainly concerned about the food safety and the product quality: they stimulate the traditional flavor of the food by combining tradition and innovation, valuing the history and the cultural context of food variety in Brazil, contributing, in this way, for the debate about the new rural development of food production. It was also verified the need of better articulation and approach of the movement to the producers, with the aim to establish a broader dialogue about the legislation for artisan cheese. Key words: Slow Food; artisan raw milk cheese, Serra do Salitre. LISTA DE FOTOS Foto 1 Coberta com azulejos e cercado de madeira 96 Foto 2 A ligação entre a coberta e a queijaria 96 Foto 3 A ligação entre a coberta e a queijaria 96 Foto 4 O quarto de queijo ou queijaria 97 Foto 5 Prensagem manual do queijo 99 Foto 6 Processo da salga do queijo 99 Foto 7 Sala de maturação do queijo 100 LISTA DE MAPAS Mapa 1 Microrregiões da produção de queijo artesanal em Minas Gerais 86 Mapa 2 Microrregião caracterizada como Alto Paranaíba 91 Mapa 3 Localização do município de Serra do Salitre 93 LISTA DE QUADROS Quadro 1 Qual o incentivo para permanecer no Slow Food? 71 Quadro 2 Quantidade de queijo por produtor 109 Quadro 3 Qual a sua opinião sobre o Slow Food Brasil apoiar os produtores não regulamentados? 133 LISTA DE FIGURAS Figura 1 Metodologia e entrevistas 20 Figura 2 Processo de fabricação do queijo Minas Artesanal de Serra do Salitre 101 Figura 3 Comercialização do queijo de Serra do Salitre 115 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CARPEC Cooperativa Agropecuária Carmo do Paranaíba CEPAL Comissão Econômica para a América Latina COOALPA Cooperativa Agropecuária dos produtores de derivados de leite do Alto Paranaíba COOPA Cooperativa Agropecuária de Patrocínio COOXUPÉ Cooperativa Regional de Cafeicultores em Guaxupé EMATER-MG Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais FAEMG Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Minas Gerais FAO Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura GT Grupo de trabalho IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IMA Instituto Mineiro de Agropecuária INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familar SEBRAE Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SICOOB Sistema de Cooperativas de Crédito do Brasil SESC Serviço Social do Comércio UFMG Universidade Federal de Minas Gerais SIF Serviço de Inspeção Federal MAPA Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ................................................................................................................... 14 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 16 1.1 Metodologia e entrevistas .......................................................................................... 18 1.2 Metodologia da pesquisa ........................................................................................... 20 2 O MOVIMENTO SLOW FOOD ...................................................................................... 25 2.1 O contexto das transformações alimentares para a emergência do Slow food ........... 25 2.1.1 A emergência de uma nova política para o contexto da modernidade alimentar31 2.1.2 O retrato dos novos movimentos sociais ............................................................ 36 2.2 A história do Slow Food ............................................................................................ 41 2.2.1 A filosofia do ―bom‖ para o Slow Food ............................................................. 44 2.2.2 A dimensão do ―limpo‖ para o Slow Food ......................................................... 46 2.2.3 O ―justo‖ para o Slow Food ................................................................................ 47 3 O NOVO DESENVOLVIMENTO RURAL BRASILEIRO: O PERFIL DOS PRODUTORES DE QUEIJO ARTESAL EM SERRA DO SALITRE................................... 49 3.1 O debate para uma nova ruralidade no Brasil ............................................................ 49 3.2 Quem são os produtores? ........................................................................................... 55 3.3 Entre o rural e o urbano: novas perspectivas ............................................................. 61 3.4 A extensão das propriedades em Serra do Salitre e seus impactos na produção ....... 67 3.5 A faixa etária dos produtores e o envelhecimento no espaço rural............................ 72 3.6 A escolarização e os desafios para campo ................................................................. 75 3.7 A utilização da Internet no espaço rural .................................................................... 80 4 CARACTERIZAÇÃO DA REGIÃO DO ALTO PARANAÍBA EM MINAS GERAIS E A PRODUÇÃO DE QUEIJO ARTESANAL NO MUNICÍPIO DE SERRA DO SALITRE . 85 4.1 A produção de queijo artesanal no estado de Minas Gerais ...................................... 85 4.2 A produção de queijo artesanal da Região do Alto Paranaíba (Serra do Salitre ou Cerrado) ................................................................................................................................ 90 4.3 A produção de queijo artesanal no município de Serra do Salitre ............................. 93 4.4 O sistema produtivo do queijo artesanal em Serra do Salitre .................................... 95 4.5 A organização produtiva dos queijos artesanais ...................................................... 102 4.5.1 Os tipos de queijos produzidos ......................................................................... 106 4.5.2 A comercialização e o valor das vendas do queijo artesanal ............................ 108 4.5.3 A comercialização realizada pelo cooperativismo ........................................... 117 4.6 A legislação para o queijo artesanal de leite cru ...................................................... 123 5 O SLOW FOOD NO BRASIL ........................................................................................ 135 5.1 A história do Slow Food no Brasil ........................................................................... 135 5.2 O Slow Food no município de Serra do Salitre ...................................................... 143 5.3 O convivium Serra do Salitre ................................................................................... 143 5.4 A indicação do queijo artesanal de Serra do Salitre para a Arca do Gosto ............. 145 5.5 As percepções dos produtores sobre o Slow Food Brasil ........................................ 146 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 153 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 157 Apêndice A — Questionários ................................................................................................. 164 Questionário aplicado aos produtores inseridos no Movimento Slow Food. ......................... 165 Questionário aplicado aos produtores não inseridos no Movimento Slow Food. .................. 172 14 APRESENTAÇÃO A pesquisa realizada buscou compreender os impactos do Slow Food para a produção de queijo artesanal, no município de Serra do Salitre, em Minas Gerais. Os resultados obtidos serão apresentados neste trabalho, organizados em cinco seções principais. Na primeira seção, ―Introdução‖, apresento um breve histórico do surgimento do Slow Food, a sua atuação em diversos países, bem como, a campanha para a preservação dos queijos artesanais no Brasil. Em seguida, faço a discussão do percurso metodológico, expondo as principais correntes teórico-metodológicas que influenciaram a realização desta pesquisa. Na segunda seção, intitulada ―O Movimento Slow Food‖, discuto o contexto das transformações alimentares para o surgimento do Slow Food. O Slow Food representa uma nova forma de atuação política, através do questionamento de seus associados e consumidores, definindo, dessa forma, novas características para os movimentos sociais na atualidade. Após a apresentação deste contexto, exponho o histórico do Slow Food na Europa, seus principais conceitos e significados para o alimento bom, limpo e justo. Na terceira seção, ―O novo desenvolvimento rural brasileiro: o perfil dos produtores de queijo artesanal em Serra do Salitre‖, faço uma discussão sobre a emergência de um novo cenário para o meio rural brasileiro, identificando e qualificando os agentes entrevistados, a partir das seguintes variáveis: sexo; escolarização; idade; dimensão da propriedade rural; se faz uso da Internet; se a renda familiar advém, unicamente, da produção de sua propriedade. O objetivo desta seção consiste em compreender a produção familiar e as suas dificuldades de organização e produção diante da tradição da agricultura de commodities no país, refletindo sobre a necessidade de traçar um novo desenvolvimento local, para o contexto brasileiro, e de que forma o Slow Food contribui para este novo desenvolvimento na produção alimentar. Na quarta seção, intitulada ―Caracterização da Região do Alto Paranaíba em Minas Gerais e a produção de queijo artesanal no município de Serra do Salitre‖, traço o perfil histórico da região, enfatizando a sua trajetória, cultura e tradição local para a produção de queijo artesanal de leite cru. Apresento, nesta seção, as etapas da fabricação do queijo, enfatizando o modo artesanal de sua produção, onde os queijos são comercializados, suas variedades e o seu valor no mercado. Ressalto, ainda, algumas produções diferenciadas, em específico, de dois produtores do Slow Food que aliam o ―tradicional‖ ao ―moderno‖ na 15 fabricação, promovendo a variedade de sabores ao paladar brasileiro. Outra questão importante desta seção é refletir sobre o processo da legislação para o queijo artesanal, ou seja, de que forma a intervenção governamental vem contribuindo para a preservação e a legislação atinge diretamente os produtores. A importância deste debate compreende a posição do Slow Food Brasil quanto à legislação para o queijo artesanal, que considera as exigências legais demasiadas, prejudicando o sabor e a tradição dos queijos artesanais. Embora os produtores também vejam excessos na legislação e que ela deva sofrer modificações, ao mesmo tempo, respeitam-na como ―a guardiã dos queijos artesanais‖ e essencial para que a produção do alimento aconteça de maneira segura. Diante disso, não apoiam a decisão do Slow Food Brasil em defender os produtores que não são regulamentados. Na quinta seção, com o título ―O Slow Food no Brasil‖, faço uma exposição do histórico do Slow Food no Brasil, bem como as dificuldades de sua organização. Detalho o seu histórico no município de Serra do Salitre/MG, suas principais características e projetos, bem como a percepção dos produtores em relação à sua importância para a garantia da qualidade dos alimentos e para o queijo artesanal. Nas ―Considerações finais‖, o objetivo é resgatar os principais pontos trabalhados acerca do Slow Food. Aponto, nas considerações finais, a sua influência sobre a preservação da cultura do queijo artesanal, bem como a necessidade de uma melhor articulação e aproximação com os produtores para um diálogo sobre a legislação do queijo de leite cru. Identifico, também, nos agentes produtores, o seu empenho para a divulgação da tradição do queijo artesanal, preocupados com a questão da segurança alimentar e com os modos de produção que não agridam o meio ambiente, valorizando a produtividade familiar e contribuindo para novos paladares, a partir da diversificação de seus produtos. Dessa forma, o Slow Food contribui para a discussão de novos princípios para o desenvolvimento rural, levando em consideração as características locais, regionais, culturais e da sustentabilidade na produção dos alimentos. 16 1 INTRODUÇÃO A evolução no sistema produtivo alimentar pode ser entendida como um processo advindo da padronização industrial e da mecanização no campo. Como consequência dessas mudanças, há o consumo de alimentos com corantes, agrotóxicos, conservantes, dentre outras características de alimentos processados, gerando diversas patologias e transtornos para a saúde. Diante dessas transformações e como alternativa à padronização do gosto, o Slow Food, atuante no contexto internacional, propõe-se a resgatar a alimentação prazerosa ao incentivar a gastronomia consciente, colocando em pauta a adoção de técnicas de cultivo tradicionais, sustentáveis e que promovam a valorização econômica das culturas locais. O Slow Food surge, em 1986, como uma associação ―enogastronômica (de vinhos e alimentação)‖ pela ação de Carlo Petrini, morador na cidade de Bra, norte da Itália. Em sua fase de criação, o objetivo do Slow Food era defender o prazer pela gastronomia, por meio da desaceleração do ritmo de vida. Passados alguns anos, o Slow Food amplia-se e inclui em sua pauta a defesa pela qualidade de vida e a preservação do planeta. Atualmente, o Slow Food conta com mais de 85.000 mil membros e mais de mil convivium em 132 países, como França, Austrália, Alemanha, Itália, Japão, Holanda, Suíça, Reino Unido e os EUA. Convivium é uma palavra latina que significa festim, entretenimento, banquete. A palavra é utilizada pelo Slow Food para nomear os grupos locais. Segundo o Manual Slow Food (2008, p. 10), o convivium é definido por grupos autônomos locais, que se organizam em seminários, reuniões, palestras e degustações, com o objetivo de partilhar e discutir sobre a alimentação, culinária e a produção local dos alimentos. Para o Slow Food, a agricultura deve proporcionar o desenvolvimento regional, incluindo as regiões mais pobres, de forma sustentável. Segundo o Manual Slow Food (2008, p. 3), a transformação para a agricultura sustentável deve-se originar a partir de novas constituições de mercados, estabelecidas pela relação direta entre produtor e consumidor. Como consequência dessa ação, o consumo de alimentos constitui-se num ato agrário. Para o Slow Food, alimentar-se é um ato agrário, as escolhas do consumidor contribuem para a coprodução ao exigir que o alimento seja bom, limpo e justo. Toda produção deve ser boa, limpa e justa. Limpa no sentido de não prejudicar o meio em que vivemos e sem prejuízos à saúde humana; justa significa que todo o processo, da produção até o seu consumo, deve obedecer a uma justiça social para os envolvidos. O alimento deve ser bom, sendo capaz de saciar e estimular nossos sentidos, ser saboroso e 17 apetitoso. Portanto, o consumo do alimento constitui-se num ato político, no qual o consumidor se torna um elemento participativo nas transformações do mercado, exigindo que a produção alimentícia contribua para a preservação do meio ambiente e que não perca suas características essenciais, o sabor e o aspecto cultural. O Slow Food defende não apenas um estilo de vida, mas é também constituído como um grupo que busca organizar propostas e assinaturas em manifestos internacionais. Em 2001, o Slow Food conseguiu 20 mil assinaturas no Manifesto em Defesa dos Queijos de Leite Cru. Os queijos de leite cru são fabricados artesanalmente, à moda tradicional, isto é, são elaborados a partir de leite recém-ordenhado e não pasteurizado. Este manifesto foi feito devido às leis consideradas excessivas para a higiene que é originada com a produção industrial, prejudicando a fabricação dos queijos artesanais com leite cru. A produção do queijo em pequenas escalas, caracterizada pela fabricação familiar, não faz uso da pasteurização, já que esta forma de produção mata as bactérias e descaracteriza o sabor do queijo. No Brasil, o Slow Food participou do I Encontro e I Simpósio Nacional de Queijos Artesanais, realizado na cidade de Fortaleza, em 2011. No evento foi consolidado o GT Queijos Artesanais do Slow Food Brasil, o grupo tem como objetivo realizar ações de divulgação para salvaguardar os queijos de leite cru brasileiros. Além disso, o grupo também busca colocar em pauta os problemas relacionados à legislação sanitária nacional para a manutenção de alimentos artesanais, bem como a sobrevivência dos produtores artesanais de alimentos. Membros de diferentes formações compõem o GT Queijos Artesanais do Slow Food Brasil, como líderes de convivium, chefs de cozinha e pesquisadores sobre o queijo artesanal. O grupo também identificou parceiros importantes como a Ong SerTãoBras, que há muitos anos defende os queijos artesanais em Minas Gerais. No I Encontro e I Simpósio Nacional de Queijos Artesanais, além da consolidação do GT Queijos Artesanais do Slow Food Brasil, foi discutida a importância da preservação da produção de queijos de leite cru, com a presença de 42 pessoas, dentre elas, produtores de queijo de sete diferentes localidades do país — Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Serra da Canastra, Serra do Salitre e Serra da Mantiqueira e Pará —, pois o queijo de leite cru representa a tradição histórica e cultural passada de geração a geração. Leis federais e exigências da norma sanitária impedem a produção e comercialização legal do queijo de leite cru, contribuindo para o mercado ―informal‖ da produção. 18 Portanto, nas discussões deste Encontro, uma das questões apontadas foi a necessidade da criação de uma legislação nacional que atendesse à demanda da produção artesanal e tradicional dos queijos no Brasil. Assim, o Slow Food Brasil participou, deste Encontro Nacional, por meio de um grupo de trabalho, contribuindo para a inserção do Brasil na campanha pela defesa dos queijos artesanais, preocupando-se em preservar a tradição alimentar e a produção do saber fazer artesanal dos queijos de leite cru. 1.1 Metodologia e entrevistas Para compreender a efetividade do Slow Food no Brasil e a sua importância para a produção dos queijos artesanais, escolhi a região produtora de queijo localizada em Serra do Salitre, Região do Alto Paranaíba, em Minas Gerais. Com o objetivo de entender a influência e os impactos do Slow Food para a produção de queijo no município de Serra do Salitre, patrimônio cultural e imaterial no Brasil, realizei onze entrevistas com pequenos produtores artesanais de queijo de leite cru e de produção de leite da cooperativa local de Serra do Salitre, a COOALPA 1 , no período de julho a outubro de 2014. Destes onze entrevistados, nove são produtores de queijo artesanal, dois são produtores de leite. A razão pela qual foram entrevistados, neste período, o número de onze produtores, é que a cooperativa atualmente conta com esta faixa de associados, que participam de reuniões e que são atuantes nas decisões da cooperativa, incluindo tanto produtores associados ao Slow Food Brasil, como também aqueles que não estão inseridos. Inicialmente, deveriam ser entrevistadas vinte famílias produtoras do queijo artesanal, que moravam na região de Serra da Canastra, Serro e em Serra do Salitre, segundo dados fornecidos pelo Slow Food Brasil. Entretanto, ao buscar informações com o GT Queijos Artesanais do Slow Food Brasil e, também, com o líder do Slow Food em Serra do Salitre a respeito das famílias produtoras associadas, fui informada que esta realidade havia mudado, uma vez que a inserção dos produtores no Slow Food é um fato dinâmico, que não corresponde aos números divulgados no website do Slow Food Brasil. 1 A COOALPA (Cooperativa Agropecuária dos produtores de derivados de leite do Alto Paranaíba), sediada no município de Serra do Salitre, foi criada em 2000, com o objetivo de organizar os produtores de queijo de leite cru para resgatar a produção tradicional do Queijo Minas Artesanal, preservando o sabor, a tradição e valorizando a cultura do saber fazer do queijo local. A cooperativa é, também, formada por famílias associadas ao Slow Food. 19 Assim, o caminho percorrido para definir o município de Serra do Salitre como local da pesquisa, bem como as entrevistas com os onze produtores, deveu-se à busca de uma rede de informações e cruzamento de dados que direcionavam ao mesmo produtor, líder do Slow Food, em Serra do Salitre, identificado na pesquisa com o nome fictício de Joaquim. Os canais utilizados foram: a consulta de dados no website do Slow Food Brasil, que contém informações sobre o trabalho com o queijo artesanal; o contato com os líderes de outras comunidades de alimentos, como Belo Horizonte e Rio de Janeiro; e o contato direto com GT Queijo Artesanal. Pude, também, contar com as informações de um funcionário da EMATER- MG, que me ajudou a compreender a produção do queijo artesanal no estado de Minas Gerais e me aprofundar, especificamente, na história dos produtores no município de Serra do Salitre. Dessa forma, a justificativa para a escolha do município de Serra do Salitre deve-se ao seu caráter de filiação ao Slow Food Brasil. O município de Serra do Salitre é descrito tanto pelo GT Queijos Artesanais quanto no site da Slow Food Brasil como um dos convivium. A pesquisa, assim, caracteriza-se pelo estudo de caso de uma pequena parcela de produtores associados à cooperativa COOALPA, que tem um histórico de relações com o Slow Food. A figura 1 a seguir resume a metodologia empregada e o cruzamento de informações utilizadas para contatar os produtores de Serra do Salitre: 20 1.2 Metodologia da pesquisa A pesquisa tem uma abordagem qualitativa, porém, não descarta a análise de dados quantitativos, com o apoio na estatística básica. O questionário tem vinte e seis perguntas ―abertas‖, a fim de definir o histórico dos produtores e a relação deles com o queijo artesanal. Para entender a dinâmica da produção do queijo e a sua comercialização foram realizadas perguntas referentes a mercado e ao modo de produção, bem como sobre a importância de estarem inseridos na cooperativa. O questionário, também, tem como foco principal questões sobre o Slow Food, buscando compreender o histórico dos produtores com o Slow Food Brasil, procurando entender qual a contribuição do Slow Food Brasil para a produção alimentar, principalmente para o queijo artesanal. Os onze produtores entrevistados são identificados ao longo do texto por nomes fictícios. Os nomes dos produtores inseridos no Slow Food Brasil, representantes do convivium de Serra do Salitre, são identificados pelos nomes Joaquim, Pedro e Antônio, os demais produtores de queijo artesanal, são identificados pelos nomes: Carlos, Miguel, Felipe, Lucas, Bruno, Bernardo. Os dois produtores que somente trabalham com a produção de leite são identificados pelos nomes Joel e Vitor. GT Queijo artesanal do Slow Food Brasil Demais produtores da cooperativa COOALPA Site do Slow Food Brasil Líder do Slow Food na Serra do Salitre Líder da comunidade do alimento em Belo Horizonte Contato com membro do SLow Food do Rio de Janeiro Funcionário da EMATER - MG FIGURA 1: METODOLOGIA E ENTREVISTAS 21 Para compreender o surgimento do Slow Food como um Movimento que contesta as formas padronizadas de alimentação, utilizo autores como Poulain (2006), Fischler (2011), Hernández (2005) e Carneiro (2003), que analisam a contemporaneidade alimentar a partir de uma ―crise‖, que se origina com o escândalo da doença da ―vaca louca‖, que assolou a Europa e depois o restante dos países pelo mundo, nas décadas de 1980 e 1990, gerando reflexões sobre as formas de produção dos alimentos, principalmente de origem animal (POULAIN, 2006). Após este acontecimento, a preocupação com as transformações na alimentação passaram a ser o centro do grande debate na mídia, e pelo público em geral. Com a industrialização do alimento, ele passa a adquirir características transnacionais. Os mercados agroalimentares operam em âmbito internacional, distribuindo carnes, peixes congelados, conservas enlatadas, queijos, coca-cola, ketchup, hambúrguer e pizza. O alimento, também, está deslocado das suas características geográficas. Além disso, são ofertados alimentos considerados exóticos para as culturas de outros países, quando nas prateleiras encontram variedades como shoyo, guacamole, tacos etc. Entretanto, neste reverso da industrialização e mundialização alimentar, os produtos, também, são padronizados e se homogeneízam. As regulamentações sobre a higiene e as ―políticas de qualidade‖ colocadas em prática pelo setor industrial procuram garantir a estabilidade das características sensoriais e microbiológicas dos produtos ao longo da sua vida. A caça ao microorganismo está aberta. Frequentemente, o gosto passa pela análise de ―perdas e ganhos‖ destes progressos agroindustriais. Os frutos e os legumes são selecionados, algumas variedades colocadas à disposição pela pesquisa agronômica se impõem pelo seu rendimento e pela sua aptidão para a conservação. E lamenta-se o desaparecimento de várias dezenas de variedades de maçã ou de pêras. (POULAIN, 2006, p. 30-31). Diante disso, o objetivo dos autores é entender quais os impactos da ―mundialização‖, e ―MCDonalização‖ dos modelos alimentares, de que maneira se dá a reinvenção das cozinhas regionais, quais os efeitos de se consumir alimentos industrializados, como os hábitos alimentares transformam o cotidiano e quais são os seus riscos. Uma das consequências apontadas pelos autores sobre a padronização dos alimentos é a ―desestruturação das refeições‖. Devido à grande ansiedade sobre como e o que devemos nos alimentar, são geradas doenças, tais como obesidade, anorexia, bulimia, câncer, dentre outras (POULAIN, 2006). Assim, para explicar as transformações no quadro alimentar, e a preocupação do comensal ou do ―comedor moderno‖ com os hábitos alimentares, utilizo os conceitos de 22 cacofonia alimentar e gastro-anomia (POULAIN, 2006; FISCHLER; 2011), que ajudam a esclarecer as preocupações sociais em torno da alimentação e a refletir sobre o modelo de produção alimentar. Nesse contexto, surgem movimentos como o Slow Food, que buscam alternativas e modelos diferenciados de produção, refletindo sobre a necessidade de mudanças que vão desde o processo de fabricação do alimento até a construção do paladar. Para a compreensão do Slow Food no contexto de transformações políticas da modernidade, em que o agente reflete sobre as consequências da padronização alimentar, sugerindo novos modelos de produção e adotando o consumo consciente e ecológico, utilizo Habermas (2012), e Beck (1997), Giddens (1991). Para Habermas (2012), a sociedade moderna é explicada através de dois modelos inter-relacionais: o Mundo da Vida e o Sistema. O Mundo da Vida representa o espaço da linguagem, da comunicação, da cultura, e refere-se aos aspectos simbólicos e subjetivos dos indivíduos. O Sistema, por sua vez, representa a razão instrumental, a lógica mercadológica e a reprodução material. Segundo o autor, no desenvolvimento do capitalismo, houve a colonização do Mundo da Vida pelo Sistema, instrumentalizando as relações sociais. Com o conceito de razão comunicativa, Habermas (2012) define que a ação comunicativa no cotidiano, realizado pelo diálogo e discursos dos agentes, é argumentada as vivências, normas, e realidades sociais, que colocam em questão verdades e valores vigentes em uma sociedade, pretendendo, assim, resgatar o Mundo da Vida. Neste sentindo, o autor vê possibilidade de abrir um espaço dialógico entre os indivíduos para resolver conflitos. Através da linguagem, os agentes poderiam propor novos rumos para a modernidade, resgatando princípios éticos e políticos. Os conceitos de Habermas (2012) são importantes para refletir sobre a produção alimentar que foi colonizada pelo Sistema. Através do agir comunicativo, movimentos, como o Slow Food, estabelecem diálogos, com a proposta de refletir sobre a produção alimentar e da necessidade de sua transformação com a adoção de novos modelos de produção. O diálogo indica a possibilidade de estabelecer uma nova política mais justa para o campo da alimentação, levando em consideração a tradição, cultura e modos de vida dos indivíduos. Para refletir sobre o desenvolvimento do capitalismo e as suas transformações, Beck (1997), e Giddens (1991) propõem o conceito de modernização reflexiva. Tal modernização reflete os processos de individualização na sociedade, onde a tradição é constantemente questionada. Entretanto, os autores consideram que esta modernidade é reflexiva, podendo 23 promover novas modernidades, diferente da sociedade industrial. Esta modernidade reflexiva é caracterizada por uma nova política em que os agentes, a partir do cotidiano ou da ―não política‖, interferem nas decisões da política tradicional. Para Beck (1997), a sociedade industrial, que era sinônimo de progresso, evolução e bem estar, gerou catástrofes e crises ambientais tais que suas ameaças tornam-se problemáticas, colocando a modernidade em risco. A Sociedade de risco, entretanto, é reflexiva, podendo refletir sobre as suas próprias consequências e ameaças. Diante disso, surgem novas formas de atuação política em sua reflexividade. Através da Subpolítica, as ações dos indivíduos, em seu cotidiano, permite a construção de uma nova política em que as decisões públicas, na política tradicional, são resultados dos questionamentos do indivíduo na esfera privada. Os conceitos desses autores auxiliam na compreensão do surgimento de uma nova política na modernidade que é originada na esfera privada e no cotidiano dos agentes nos quais os indivíduos são capazes de construir uma nova sociedade a partir da reflexividade das consequências geradas na industrialização. Nesse sentido, consumidores e associados do Slow Food possibilitam a transformação no campo alimentar ao refletir sobre as consequências da sociedade industrial para a alimentação, buscando alternativas de produção e cooperando com a política tradicional para estabelecer novos projetos e metas para a alimentação, que incluem a proteção ao meio ambiente, assim como formas sustentáveis e limpas de produção. Nesse contexto da constituição de uma nova política, utilizo autores como Melucci (1989) e Gohn (2014) para discutir sobre os papéis dos novos movimentos sociais. Segundo os autores, movimentos como o Slow Food passam a adquirir novas características. Para além de reivindicar, esses movimentos auxiliam, junto às políticas tradicionais, a definição de novas metas e projetos no campo da alimentação. Os exemplos desta atuação do Slow Food em estabelecer parcerias com comunidades e políticas locais serão expostos ao longo das seções. Outra abordagem teórica utilizada para compreender o Slow Food refere-se às propostas de um novo desenvolvimento rural. Um conjunto de autores, como Abramovay (2007), Carneiro (1998), Silva (1999), Veiga (2006), dentre outros, analisa a emergência de novas ruralidades em território brasileiro. A partir de 1990, o espaço rural caracteriza-se por novas atividades que não se restringem à agropecuária. As novas funções agrícolas e não agrícolas oferecem novas oportunidade de trabalho e renda para as famílias. Nesse contexto, o 24 agronegócio e a produção familiar convivem com novas atividades ligadas ao lazer, turismo e prestação de serviços, em que o rural é caracterizado cada vez mais por atividades pluriativas (CARNEIRO, 1998). Assim, a distância entre urbano e o rural torna-se cada vez mais reduzida. Isto posto, o conceito de alimento bom, limpo e justo, proposto pelo Slow Food, representa a emergência dessa nova ruralidade, não apenas no território brasileiro, mas para o contexto globalizado da alimentação. Através desses conceitos, o rural e o urbano desenvolvem-se de forma interdependente, buscando valorizar as comunidades e famílias produtoras de alimento e discutindo novas formas de produção que não agridam o meio ambiente ou prejudiquem a saúde das pessoas, pela adoção de uma economia justa para todos os envolvidos, desde a sua produção até o consumo final. Dessa forma, os impactos do Slow Food para a produção do queijo artesanal em Serra do Salitre, compreendem um contexto de transformações para o rural no Brasil que abarcam discussões sobre territorialidade, cultura, tradição e meio-ambiente. O Slow Food Brasil chama a atenção para a necessidade de planejamento deste rural, com políticas públicas para o desenvolvimento local, bem como para a ampliação da discussão sobre novas formas de regulamentação que valorizem a produção do queijo artesanal. 25 2 O MOVIMENTO SLOW FOOD 2.1 O contexto das transformações alimentares para a emergência do Slow food Para falar sobre o Slow Food, é importante situá-lo no contexto da evolução da produção alimentar. O histórico da alimentação acompanhou etapas da industrialização, responsável por acelerar o processo de sua distribuição, atingindo níveis do comércio internacional. Nesse sentido, o sistema agrolimentar adquire característica globalizada, ―voltada para as regras do comércio de commodities, a dominação das corporações multinacionais, a expansão do setor supermercadista, a desregulamentação e globalização dos mercados agroalimentares e a valorização de qualidades específicas e de origem‖ (PORTILHO; CASTAÑEDA; CASTRO, 2011, p. 100). Essa expansão da produção alimentar globalizada, que até então era produzida artesanalmente, em pequenas escalas (OLIVEIRA, 2014), passa a ser objeto de grande discussão a partir de casos polêmicos de contaminação noticiados pela mídia. Vários autores que discutem sobre as transformações na produção de alimentos, como Portilho, Castañeda e Castro (2011), Carneiro (2003), Hernández (2005), Fischler (1995) e Poulain (2006), salientam sobre a desconfiança do comensal diante de casos apontados como, por exemplo, ―a doença da vaca louca‖. Como caso paradigmático para a politização da alimentação, tem sido apontado o escândalo da doença ―encefalopatia bovina espongiforme‖ (Bovine Spongiform Encephalopathy – BSE), popularmente designada como ―doença da vaca louca‖, ocorrido na Inglaterra em 1996 devido à reciclagem, sem controle, de carne, ossos, sangue e vísceras usados na fabricação de ração animal. Tal escândalo provocou reações em cadeia em todo o mundo e fez emergir uma forte consciência do risco abalando a confiança pública nas instituições políticas e científicas e desencadeando um amplo debate sobre as consequências da produção de ―comida barata‖ na esfera pública inglesa. Com a eclosão de outros escândalos alimentares — como a febre aftosa, a salmonela e a ―gripe suína‖ — e o advento dos organismos geneticamente modificados, a partir da década de 90, a alimentação deixou de ser uma questão debatida apenas nos círculos restritos que definiam as políticas de segurança alimentar e nutricional para ganhar a grande mídia, o debate público e a esfera das decisões cotidianas de uma nova ―agenda da mesa da cozinha‖, em especial no contexto europeu (PORTILHO; CASTAÑEDA; CASTRO, 2011, p. 100). 26 Carneiro (2003) não somente reforça episódios como a ―doença da vaca louca‖ nesse processo histórico da industrialização dos alimentos, como também salienta de que maneira essas transformações na produção alimentar gerou ―contaminação ambiental com embalagens e garrafas plásticas, uso de aditivos químicos, padronização dos gostos alimentares, controle de oligopólio dos mercados, relações comerciais desvantajosas para os países periféricos‖ (CARNEIRO, 2003, p. 103). Juntamente à ―padronização do gosto‖, Carneiro (2003) ressalta doenças como anorexia, bulimia e obesidade. 2 Outras mudanças na alimentação que são destacadas pelo autor estão relacionadas às práticas de dietas e regimes que demonstram obsessivamente a preocupação com a imagem corporal, muitas vezes influenciada por um ―estilo de vida saudável‖, mas que, também, refletem a preocupação étnica com relação aos animais e ao meio ambiente. As transformações das práticas alimentares são analisadas por Poulain (2006) e Fischler (2011) como reflexo de uma situação de desordem na sociedade, caracterizada pelo conceito de gastro-anomia. Este jogo de palavras remete aos escritos de Durkheim para uma sociedade anômica, em sua obra O suicídio. O conceito é utilizado pelos autores para demonstrar que o indivíduo tem maior autonomia ao fazer escolhas na alimentação, mas por outro lado, esta autonomia reflete a insegurança do comensal sobre as suas escolhas na alimentação. Devido ao processo de industrialização dos alimentos, que é acentuada com o término da Segunda Guerra Mundial, onde passa a haver uma revolução tecnológica e grande investimento do setor agroindustrial, inserindo o alimento na economia internacional, as refeições também sofrem transformações. O indivíduo passa a se alimentar com comidas rápidas, os fast foods, que refletem a padronização alimentar. Assim, os autores caracterizam esta fase de industrialização como período da modernidade alimentar, no qual a alimentação está sujeita a uma nova significação. O consumidor está distante da produção dos alimentos e desconhece os processos de origem, fabricação e produto final, que estão disponíveis nos hipermercados. Os transtornos alimentares e a incerteza sobre o que consumir são gerados devido a este processo de industrialização e racionalização na alimentação. Diante disso, a alimentação é redefinida e os indivíduos são levados a uma obsessão pelo selo de qualidade, 2 Segundo dados do Ministério da Saúde, 51% da população brasileira estão acima do peso. De acordo com a matéria, este problema também é atribuído a transformações alimentares: ―Apesar de a obesidade estar relacionada a fatores genéticos, há importante influência significativa do sedentarismo e de padrões alimentares inadequados no aumento dos índices brasileiros. Forte aliado na prevenção de doenças crônicas não transmissíveis, o consumo de frutas e hortaliças está sendo deixado de lado por uma boa parte dos brasileiros.‖ Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2015. http://www.brasil.gov.br/saude/2013/08/obesidade-atinge-mais-da-metade-da-populacao-brasileira-aponta-estudo/obesidade.jpg/view http://www.brasil.gov.br/saude/2013/08/obesidade-atinge-mais-da-metade-da-populacao-brasileira-aponta-estudo/obesidade.jpg/view 27 pela garantia da origem e da pureza original dos alimentos, sentindo-se inseguros quanto à escolha dos alimentos. Fischler (1995), ao analisar as transformações alimentares na sociedade, utiliza os conceitos de cacofonia alimentar e de polifonia dietética. As mudanças na produção dos alimentos, que compreende a sua industrialização e a transformação para o paladar artificializado, com adoção de corantes, açúcares etc, acarretam patologias devido à ausência de regras e pela incerteza do consumidor em suas escolhas. [...] [Fischler] analisa que nas sociedades contemporâneas, uma polifonia dietética se instalou praticamente de maneira constante: o Estado, o movimento organizado dos consumidores, os médicos de diversas especialidades, a indústria, a publicidade, a mídia, contribuem com essa situação, de maneira mais ou menos confusa e contraditória para o comensal. Esta polifonia dietética se funda em uma verdadeira e planetária cacofonia alimentar: os discursos dietéticos se mesclam, se confrontam ou se confundem com os discursos culinários e gastronômicos, os livros de regime com os livros de receitas, os manuais de nutrição com as guias gastronômicas. Por todas as partes crescem as prescrições e as proibições, os modelos de consumo e as advertências: nesta cacofonia, o comensal desorientado, em busca de critérios de escolha, deseja, sobretudo, nutrir suas incertezas (FONSECA et al., 2011, p. 3857). Tanto Fischler (1979) como Poulain (2006) atribuem à gastro-anomia a consequência da modernidade alimentar, caracterizada por três fenômenos: uma situação de superabundância alimentar, diminuição dos controles sociais e a multiplicação dos discursos da alimentação. A superabundância alimentar é o resultado da produção industrial, com a fabricação de alimentos que tem sabor e aroma artificiais, que integram o cardápio do cotidiano. Para Fischler (1979) e Poulain (2006), a modernidade é assinalada através da diminuição dos controles sociais, gerando a falta de regras ao consumir os alimentos. Teríamos perdido a coesão, no sentido durkheimiano do termo. Assim, a ausência dessas regras é provocada pela multiplicação dos discursos sobre a alimentação, cujos profissionais da área divergem em suas opiniões sobre como devemos nos alimentar. Diante desta anomia, encontramos uma sociedade diagnosticada, segundo Fischler (2011), com a psicopatologia da alimentação cotidiana. Há uma desestruturação na alimentação, uma tendência dos indivíduos a não seguir as regras sociais estabelecidas, que provocam doenças e transtornos obsessivos. [...] Com a desestruturação dos sistemas normativos e de controle social que regulavam tradicionalmente as práticas alimentares, pode-se dizer que está havendo uma ―psicopatologia da alimentação cotidiana‖. Temos como exemplos claros a epidemia da obesidade, da bulimia, da anorexia, do uso de 28 reguladores de apetite, dos transtornos ansiosos e compulsivos, entre tantos outros. É para isso que quis chamar atenção quando falei de gastro-anomia e de psicopatologia da alimentação cotidiana. E essa situação só tem se agravado, desde então. (FISCHLER, 2011 p. 241). Para Poulain (2006), tais transformações geram a desestruturação das refeições, o crescimento do beliscar e do lambiscar. Juntamente a estas consequências e associada às dificuldades sociais na alimentação, há a ascensão do individualismo que se reflete no aumento das refeições solitárias e apressadas do cotidiano, causando também o fenômeno da obesidade. Tendo em vista estas mudanças, Fischler (2011) afirma que a população obesa está nas camadas de baixa renda, onde privilegiam o consumo de alimentos com alto teor calórico. Isto demonstra o resultado da incerteza nas opções sobre o que consumir. [...] Mas não é tão fácil assim fazer a escolha certa. Existem muitos conflitos na escolha. E existe uma verdadeira cacofonia de informações, conselhos, perguntas, prescrições e proibições. É difícil classificar e analisar tudo isso e fazer a escolha mais acertada. A obesidade é, supostamente, o resultado de escolhas que não são certas. Em todos os países do mundo desenvolvido, e também em cidades dos países em desenvolvimento, os mais pobres são mais gordos, não os ricos. Os pobres tendem a escolher os alimentos com mais calorias. E, de fato, os alimentos altamente calóricos são os mais baratos e os mais fáceis de encontrar, abrir, comer. E, além disso, eles têm um gosto mais marcante: são mais doces ou mais salgados, têm mais gordura, são mais crocantes, frequentemente. (FISCHLER, 2011, p. 238). Assim, para os autores, a industrialização e a racionalização da produção dos alimentos é a responsável pelo desenvolvimento exacerbado da ansiedade na prática alimentar. Para Poulain (2006), ―a alimentação é sempre uma fonte de relativa ansiedade‖. O comedor moderno está sujeito a uma ―diminuição da pressão do grupo, da dimensão coletiva‖ e exposto ao ―aumento de discursos contraditórios no modo do é necessário‖ (POULAIN, 2006, p. 69, grifo do autor). A anomia abarca não apenas a regulamentação de uma sociedade e as transformações das tradições, mas também gera uma série de imposições ―higienistas, identitárias, hedonistas, estéticas...‖ (POULAIN, 2006, p. 69). Portanto, as transformações da modernidade alimentar, compreendidas como imposições identitárias e estéticas, nos faz refletir sobre os escritos de Mauss (1991) em seu livro As técnicas corporais. Nele, o autor salienta como a construção do corpo se orienta a partir do aspecto cultural. Moldamos nossa aparência segundo a cultura presente na sociedade. Os discursos propagados na modernidade alimentar orientam a aparência dos 29 corpos de tal modo que a busca pelo equilíbrio monopoliza o discurso nutricional científico e do grande público, e, ao mesmo tempo, há representação do desequilíbrio, característico da anomia, e de uma desordem simbólica que se expressa nas patologias alimentares mencionadas. A homogeneização no paladar também é discutida por Hernández (2005) a partir da influência da industrialização nos últimos quarenta anos. Para o autor, apesar de muitas pessoas rejeitarem a ideia de ―indústria alimentar‖, os alimentos são produzidos cada vez mais sob a forma industrial. Grandes empresas controlam cada vez mais o processo de fabricação e distribuição dos alimentos, afetando diretamente o consumo tanto em países desenvolvidos como em países em desenvolvimento. Tal processo industrial especializa-se de forma constante. Segundo Hernández (2005): [...] a tecnologia alimentar desenha constantemente novos produtos e as últimas aplicações alimentares da biotecnologia anunciam novidades para o futuro mais ou menos imediato, tais como: tomates que não apodrecem, leite de vaca com vacinas incorporadas, berinjelas brancas, arroz colorido e aromatizado, batatas com amido de melhor qualidade, que as tornará mais adequadas ao cozimento do que à fritura; milho com um leve sabor de manteiga etc (HERNÁNDEZ, 2005, p. 133). Com a especialização industrial ocorre a ―homogeneização progressiva dos alimentos‖, pois em sua produção é crescente a composição de aditivos como aromatizantes, corantes, conservantes e etc, que contribuem para a preocupação com a ―ingestão prolongada dessas substâncias desconhecidas‖ (HERNÁNDEZ, 2005, p. 133). Entretanto, apesar do contexto de abundância alimentar, o que se observa é que os países desenvolvidos ou ricos, em opções e diversidade alimentar, demonstram a má nutrição. O interesse de grandes empresas em produzir alimentos ao menor custo influencia no sentido de que o consumo se torne cada vez mais homogeneizado, gerando problemas ao consumidor. Atualmente, a artificialidade da alimentação suscita problemas para o consumidor. Produz tanto a ruptura com as regras ancestrais quanto a oportunidade de provocar a evolução no perfil do comensal, como um indivíduo consciente de seu passado cultural, autônomo (livre de suas eleições alimentares na abundância da oferta), responsável (formado pelo conhecimento das características dos alimentos) e promotor de sua própria riqueza alimentar (HERNÁNDEZ, 2005, p. 136). Conforme abordado, esta homogeneização do paladar é consequência do processo da industrialização alimentar que reflete na crescente individualização de sua prática na modernidade. Entretanto, nesta evolução do perfil do comensal, também, há grupos que 30 questionam a produção de alimentos artificial e contaminada, prejudicando a saúde e o meio ambiente. O vegetarianismo, por exemplo, é a expressão de uma sociedade que necessita de novas formas de produção alimentar mais éticas, levando em consideração questões ecológicas, sociais e econômicas para serem repensadas. Tanto o vegetarianismo, como o Slow Food, representam a emergência do indivíduo ―responsável‖, ―autônomo‖ que promove a conscientização sobre a riqueza e a diversidade alimentar, alertando para a necessidade do resgate dela (HERNANDÉZ, 2005). Sobre o crescente número de pessoas que aderem ao vegetarianismo, Greif (2002, p. 64) salienta que, embora a abstinência de carne não represente o fim do atual sistema de produção, o seu crescimento tenderá a promover um impacto maior e mais significativo no boicote dos produtos de origem animal, trazendo como consequência a transformação no comportamento consumista das populações: Apesar de não ser apenas isto suficiente para resolver os problemas econômicos e sociais, o vegetarianismo é um grande passo na direção correta. Também na busca de uma sociedade produtivamente sustentável, e ecologicamente correta, o vegetarianismo é necessário: os desmatamentos, a extinção das espécies, o desperdício de energia, de água, a poluição atmosférica e dos cursos d‘água estão todos relacionados com a posição de consumidor secundário que o homem tem assumido na pirâmide de níveis tróficos. A recomendação pelo vegetarianismo pode a princípio parecer uma atitude radical e apaixonada, mas antes, se constitui em uma proposta sensata e com vistas a atingir o equilíbrio entre recursos e necessidades. Nesse sentido, os grupos sociais emergentes que se manifestam e alertam para a necessidade de uma sociedade sustentável e ecologicamente correta promovem impactos através das suas escolhas como consumidores. O Slow Food salienta como os consumidores são responsáveis pelas transformações no mercado alimentar através do ato agrário. As escolhas refletem a posição política do comensal, capazes de transformar o mercado ao exigir que o alimento tenha uma produção sustentável, originado de pequenas localidades, contribuindo para ajudar as famílias produtoras. A teoria de Habermas (2012), Giddens (1991) e Beck (1997) auxilia na compreensão da alimentação como objeto do campo político e de interesse dos demais grupos sociais, na qual o alimento passa a ser compreendido na ―ambientalização e politização da vida privada e 31 contemporânea‖, e seu consumo uma prática política. (PORTILHO; CASTAÑEDA; CASTRO, 2011, p. 100). 2.1.1 A emergência de uma nova política para o contexto da modernidade alimentar Habermas (2012), ao tratar da modernidade, faz uma crítica da construção da razão ao longo da história. O autor menciona como a sociedade privilegiou o agir instrumental em detrimento da ação comunicativa ou dialógica. Criamos uma razão patológica onde não se busca o entendimento das relações interpessoais do Mundo da Vida. Entretanto, para o autor, a modernidade é a oportunidade gerada para o ser humano discutir sobre os dogmas e verdades únicas com relação à moral, à ciência e às artes, e chegar a um consenso, por meio do espaço dialógico. Na discussão entre os indivíduos, há oportunidade de estabelecer o diálogo, sendo possível desprender-se da filosofia dialética idealista e construir uma razão prática. Portanto, a teoria de Habermas (2012) demonstra uma visão libertadora do homem, a partir da construção do diálogo pelo qual se conquista uma razão libertadora. Retomando o que foi explicitado na seção 1.2, na visão de Habermas (2012), a sociedade está dividida em Mundo da Vida e o Sistema. O Mundo da Vida é o espaço em que estão as relações interpessoais, ou seja, o espaço no qual o processo comunicativo se dá nas relações pessoais e intuitivas. Segundo Habermas (2012), o Mundo da Vida é compreendido pelo discurso prático, as interações espontâneas entre os indivíduos conduzem ao processo de argumentação, ou ao desenvolvimento de uma racionalidade que pretende exteriorizar a fala, o agir, o discurso explicativo, nesta comunicação é exteriorizado simbologias. No Mundo da Vida, o processo argumentativo é exteriorizado com objetivo de tematizar, problematizar, julgar evidências sociais, que refletem a cultura, as normas e tradições na sociedade. Estas evidências são utilizadas no processo argumentativo e são acessíveis para o julgamento objetivo dos indivíduos, que buscam estabelecer ao através do diálogo processos de aprendizagem, e a procura cooperativa pela verdade. O Sistema é o espaço da razão instrumental, é o espaço da organização política, econômica que orienta as formas da produção do capitalismo, é o mundo organizado pelo mercado, pelo trabalho, e, portanto, é a macroestrutura da sociedade. Conforme salienta Habermas (2012), ao passo que a sociedade se torna complexa, com a o desenvolvimento da racionalização instrumental, que inclui o desenvolvimento do Estado e economia capitalista, a 32 ação comunicativa passa a ser influenciada pelo Sistema. O que ocorre neste desenvolvimento social, retratado por Habermas (2012) como a passagem para a modernidade, é que há contaminação de ambos os mundos na sociedade. O Mundo da Vida foi colonizado pelo Sistema. Para o regaste do Mundo da Vida, Habermas (2012) acredita que a saída acontece por meio da discussão e da razão dialógica. A influência do Mundo sistêmico tem gerado e orientado as ações humanas para a razão instrumental nas ciências, nas relações pessoais, nas tradições, moral, fé, religião e cultura na sociedade, remetendo ao espírito weberiano da racionalização em todos os campos sociais, levando ao processo de desencantamento do mundo. Assim, para Habermas (2012), a modernização capitalista confunde os papéis que configuravam a sociedade tradicional. Na sociedade tradicional, os modelos de cultura e personalidade eram moldados pela igreja, família e as demais instituições. Com o progresso da modernização, os pensamentos tendem a sofrer rupturas com a tradição, gerando autonomia e individualização. O progresso desta estrutura racional no Mundo da Vida cada vez mais é dependente dos próprios homens, em seus pensamentos racionais, e menos do modelo das sociedades tradicionais. Para o resgate do Mundo da Vida, a teoria da comunicação de Habermas (2012) propõe a orientação dos atores com base no saber intuitivo, adquirido da própria organização simbólica ou da construção de seus valores culturais, mediados pela linguagem no Mundo da Vida. A partir dessa orientação, os atores devem voltar-se para o entendimento no espaço do diálogo. O autor propõe esta teoria da comunicação para a compreensão da complexidade dos sistemas sociais na modernidade (HABERMAS, 2012, p. 217), buscando uma razão esclarecedora e uma forma de vida dialógica e coletiva, com a capacidade de emancipar o indivíduo e transformar o mundo social. Dessa forma, concluo que Habermas (2012) pretende por meio da teoria da modernidade reformular o processo Dialético do Iluminismo - onde houve o desenvolvimento da razão instrumental colonizando o Mundo da Vida. O autor, a partir do modelo da ação comunicativa deseja, ―reconquistar o mundo vivido e os espaços usurpados pelo sistema, passando de uma ação instrumental para a ação comunicativa‖ (ROUANET, 1987, p. 166). Esta teoria de Habermas (2012) faz refletir sobre a história da alimentação e o surgimento de grupos em defesa dela, como o Slow Food. Esses grupos tentam restabelecer, através da ação comunicativa, novas formas de enfrentar a racionalização no processo produtivo da alimentação. Por meio do diálogo, tentam discutir estratégias e conscientizar maneiras 33 alternativas de produção, com o objetivo de trazer a alimentação para o espaço do Mundo da Vida. Além de Habermas (2012), autores como Beck(1997), ajuda a compreender o processo de modernização e seus reflexos para a alimentação. Na obra, A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva, o autor propõe a junção de escritos sobre o debate da Modernidade versus Pós- modernidade. Beck(1997) pretende convergir sobre temas como destradicionalização, modernidade reflexiva e questões ecológicas que não são reduzidas apenas à preocupação com o meio ambiente. O autor reflete sobre uma nova modernidade pós-industrial, que caracteriza a fase da modernidade reflexiva. Esta modernidade não é retratada por uma paralisia política, como é descrita por diversos autores, mas ao contrário, surgem novas formas de intervenção através da vida cotidiana, interferindo nas tomadas de decisões da política ortodoxa. Assim, a política não desaparece, mas é redefinida por um novo caráter prático que modifica as estruturas do sistema político formal. Beck (1997, p. 12) inicia seu texto definindo a modernização reflexiva ―como a possibilidade de uma (auto) destruição criativa para toda uma era: aquela da sociedade industrial. O sujeito dessa destruição criativa não é a revolução, não é a crise, mas a vitória da modernização ocidental‖. A modernização reflexiva significa a ―desincorporação‖ e a ―reincorporação‖ das formas sociais industriais por outra modernidade. [...] Se, no fundo, a modernização simples (ou ortodoxa) significa primeiro a desincorporação e, segundo, a reincorporação das formas sociais tradicionais pelas formas sociais industriais, então a modernização reflexiva significa primeiro desincorporação e, segundo, a reincorporação das formas sociais industriais por outra modernidade. Assim, em virtude do seu inerente dinamismo, a sociedade moderna está acabando com sua formação de classe, camadas sociais, ocupação, papéis do sexo, família nuclear, agricultura, setores empresariais e, é claro, também com pré-requisitos e as formas contínuas do progresso técnico-econômico. Este estágio, em que o progresso pode transformar em autodestruição, em que um tipo de modernização destrói outro e o modifica, é o que eu chamo de etapa da modernização reflexiva. A modernidade reflexiva é caracterizada pelo autor como algo diferente da modernização industrial. Ela invade os contornos da sociedade industrial e abre novos caminhos para outra modernidade, e por isso se torna radicalizada. Dessa forma, a modernização reflexiva é algo mais amplo, que modifica estruturas e que resulta na insegurança para todos na sociedade, onde há lutas e transformações difíceis de delimitar. Ao mesmo tempo em que se produzem mudanças sociais e revoluções, a modernidade está 34 associada ao dinamismo, coincidindo com catástrofes, pobreza, problemas ecológicos - gerando conflitos que produzem uma sociedade de risco. Ela também não só sobrepõe mas favorece e intensifica as ―conceituações tradicionais‖. A intensa obsolescência da sociedade industrial permite que surja uma nova conceituação para a modernidade. Nasce uma sociedade de risco, onde há riscos sociais, econômicos, políticos e individuais que tendem a escapar do controle das instituições políticas e industriais. Dessa forma, o controle das decisões sociais e políticas tornam-se problemáticas. As ações ainda são tomadas por uma velha estrutura da sociedade industrial, mas por outro lado, as organizações, sistemas judiciais e a política são obscurecidos por debates conflituosos que surgem dentro da sociedade de risco. A modernização reflexiva torna-se sinônimo de autoconfrontação e reflexo de uma sociedade que evolui para uma modernidade autônoma e uma sociedade de risco, na qual não é possível planejar ou controlar, significando uma autoconfrontação com os efeitos desta sociedade perigosa. Assim, a sociedade de risco torna-se reflexiva e autocrítica na medida em que ela é um problema para si própria, assim como ela é a consciência de que vivemos uma ameaça imposta a todas as situações, mas que percebemos não haver controle dos acontecimentos. A modernidade reflexiva é também caracterizada por uma crescente individualização, na qual os processos decisórios cada vez mais se concentram em riscos pessoais e escolhas individuais. Instituições como família e grupos coletivos, nas quais os indivíduos baseavam suas decisões, são substituídas por uma individualização, em que a tradição cede lugar para as decisões individuais, desestimulando a interação tradicional. Entretanto, Beck (1997) não somente aponta a configuração de uma sociedade de risco, na qual os indivíduos tendem a não se orientarem pela tradição, vivendo uma desconfiança e uma relação perigosa em todas as esferas da vida que inclue os riscos no campo agroalimentar, como também demonstra em sua teoria as transformações na esfera política, com outras formas de atuação na sociedade contemporânea (PORTILHO; CASTAÑEDA; CASTRO, 2011). Nesse sentido, as formas convencionais de participação política ocorrem por meio de sindicatos, partidos políticos e movimentos sociais institucionalizados. Contudo, as mudanças políticas nas sociedades contemporâneas, tratadas pelos autores, apontam para ―atuações mais autônomas, menos hierárquicas e não institucionalizadas de participação, incluindo boicotes, compras responsáveis e petições on-line‖ (PORTILHO; CASTAÑEDA; CASTRO, 2011, p. 35 101). Essas novas formas de atuação ultrapassam a dimensão do local e do global, em que as ações políticas passam para o âmbito privado, tornando-se parte das decisões subjetivas e da vivência cotidiana dos indivíduos. Giddens (1991, p. 132) aponta algumas dessas características sobre as transformações na modernidade, em que as circunstâncias permitem uma reflexividade, impulsionando os indivíduos para o ativismo: Confiança e risco, oportunidade e perigo — estas características polares, paradoxais, da modernidade permeiam todos os aspectos da vida cotidiana, mais uma vez refletindo uma extrapolação extraordinária do local e do global. A aceitação pragmática pode ser mantida em relação à maioria dos sistemas abstratos que invadem as vidas dos indivíduos, mas por sua própria natureza tal atitude não pode ser mantida o tempo todo e a respeito de todas as áreas de atividade. Pois a informação perita recebida é freqüentemente fragmentária ou inconsistente, da mesma forma que o conhecimento reciclado que colegas, amigos e íntimos passam um para o outro. Pessoalmente, devem-se tomar decisões e forjar políticas. O privatismo, evitar engajamento contestatório — que pode ser apoiado por atitudes de otimismo básico, pessimismo ou aceitação pragmática — pode servir aos propósitos da ―sobrevivência‖ cotidiana de muitas maneiras. Mas ele tende a ser entremeado de fases de engajamento ativo, mesmo por parte daqueles mais inclinados a atitudes de indiferença ou cinismo. Pois, para repetir, no que toca ao equilíbrio de segurança e perigo que a modernidade introduz em nossas vidas, não há mais ―outros‖ — ninguém pode estar completamente de fora. As condições de modernidade, em muitas circunstâncias, provocam ativismo ao invés de privatismo, por causa da reflexividade inerente à modernidade e porque há muitas oportunidades para a organização coletiva no interior dos sistemas poliárquicos dos estados-nação modernos. Dessa forma, como aponta Habermas (2012), a modernidade abre espaço para a ação comunicativa, para a ação dialógica dos indivíduos, permitindo novos ativismos fora do campo político tradicional e o questionamento sobre as instituições instauradas. Na nova configuração da modernidade, a vida privada não deve ser desmerecida como espaço de luta pela emancipação (PORTILHO; CASTAÑEDA; CASTRO, 2011). Assim, segundo Beck (1997), pode ser configurado o ―renascimento não institucional do político em áreas distintas para uma nova cultura política‖. Assim, se na modernidade clássica o conceito de política significava deixar a esfera privada para se dedicar à pública, com a atual invasão do político na esfera privada as experiências que eram consideradas declínio ou morte da política podem ser pensadas como reposicionamento do político. Na modernização reflexiva, esse autor observa uma ampliação do conceito de política na medida em que a redução da participação pública nas esferas tradicionais reflete um processo de transição em que as velhas políticas dão lugar às novas políticas, concentradas na vida privada. Esse renascimento não institucional do político pode ser explicado por meio do conceito de subpolítica, uma política à margem e além das instituições políticas dos 36 Estados-Nação; uma política direta que envolve a participação individual nas decisões. Para Beck(1997) na sociedade de risco global, a privacidade — como a menor unidade concebível do político — contém dentro de si a sociedade mundial. Esta nova qualidade do político se fortalece justamente com a expansão da preocupação ecológica e com os riscos associados ao desenvolvimento tecnológico. (PORTILHO; CASTAÑEDA; CASTRO, 2011, p. 103) Esse rearranjo organizacional, com movimentos sociais a favor da produção alimentar mais ética, sustentável e ecologicamente correta, abre novas possibilidades políticas que atuam em cooperação com a política clássica das instituições (GOHN, 2014). O Slow Food inicia a sua história na Europa, a partir da contestação dessas transformações alimentares, que são representadas pela ―alimentação rápida‖ (fast food) (CARNEIRO, 2003). O Slow Food logo se espalha e se transforma em uma rede, acrescentando-se à lista de mobilizações no Brasil que são atreladas ao campo da organização alimentar (GOHN, 2014). 2.1.2 O retrato dos novos movimentos sociais O cenário para a emergência de novos movimentos sociais que defendem a transformação das práticas alimentares, como o Slow Food, tem como pano de fundo a passagem da sociedade industrial para a sociedade capitalista pós-industrial. Nessa passagem, há uma fragmentação da sociedade, em que ela se torna individualizada, mas também ocorre o alargamento dos movimentos sociais, com novas características. O sujeito ―escapa‖ da influência da estrutura de classes e da força de trabalho, promovida anteriormente pelo pensamento político-partidário característico dos movimentos sociais nos anos 1960. Nesse sentido, o desenvolvimento da sociedade capitalista não mais se sustentaria no processo de produção e na estratificação da força de trabalho. Assim, passaríamos a uma sociedade da informação, da comunicação em rede, em que a produção está voltada para o campo simbólico das sociedades de consumo (OLIVEIRA, 2014; CASTELL, 2006; MELUCCI, 1989; ARAÚJO; LIMA, 2010). A configuração do novo desenvolvimento capitalista está centrada no trabalho imaterial, produzindo novos efeitos na classe trabalhadora, com novos rearranjos para a ampliação da democratização. O sujeito passa a ser o centro do debate na sociedade contemporânea, capaz de pensar sobre a sua cidadania e subjetividade. Os indivíduos 37 participam da produção de informações, contribuem com os discursos de suas próprias competências para o estabelecimento de ações e estratégias organizativas. Estes discursos materializam-se nas ações cotidianas dos consumidores ou em ações de movimentos sociais, como o Slow Food (GORZ, 2003; MELUCCI, 1989; ARAÚJO; LIMA, 2010). Para Melucci (1989), as novas formas de ação coletiva adquirem outra definição a partir de 1970. Nesse período, os movimentos sociais eram tratados com certo dualismo, como efeito de crises estruturais ou das contradições sociais. Esta visão impedia de tratar a ação coletiva dentro de um sistema de relações. Dessa forma, as análises sobre os movimentos sociais concentrar-se-iam mais em uma abordagem sistêmica do que na lógica dos atores. Portanto, Melucci (1989) expõe que a ação coletiva deve ser compreendida, também, dentro de uma abordagem individual, com objetivos, recursos e obstáculos, analisada a partir de uma orientação intencional dentro de uma lógica sistêmica que opera ações nas quais o sujeito pode criar oportunidades e sofrer coerções. ―Os movimentos são sistemas de ação (ou formas específicas de relações sociais) que operam no campo sistêmico de possibilidades e limites‖ (MELUCCI, 1989, p. 52). Diante disso, a partir dos anos 1970, a complexidade da ação coletiva é interpretada por Melucci (1989) em uma estrutura social em que há o deslocamento da origem dos conflitos do sistema econômico e industrial para as áreas culturais, no plano simbólico. Nesse sentido, os movimentos sociais serão analisados a partir da ação dos atores, com a sua autonomia, sobretudo, com o poder da linguagem ao anunciar os conflitos e as mudanças sociais. Para Melucci (1989), a ação social não é motivada apenas por conflitos econômicos ou orientada somente pela questão política, mas os indivíduos buscam uma solidariedade e identidade, concentrando-se em sua autorrealização ao contestar a lógica nos campos culturais e na vida cotidiana das pessoas. Portanto, para Melucci (1989), os movimentos sociais passam a adquirir um caráter antagonista, de contestação social, exigindo maior espaço para a democratização e aceleração dos direitos, assim como o alargamento desses movimentos significa a emergência do sujeito cooperativo à área de política pública, que atua para colaborar na gestão e na fiscalização dos atos governamentais. Esses novos movimentos sociais, que operam em rede, denunciam a tirania do Mundo da Vida, buscando o diálogo e a articulação com os grupos de poder, com o objetivo de desburocratizar e resgatar o mundo vivido (HABERMAS, 2012). 38 Gohn (2014, p. 59) analisa a emergência desses novos atores, no Brasil, que fixarão as suas metas e conquistas nos espaços da sociedade política junto aos antigos atores (movimentos sociais e associativistas da década de 1980 e 1990). A autora assinala as novas parcerias que se abrem entre o governo e sociedade civil organizada, por meio de políticas públicas. Portanto, ampliou-se o leque de atores sociais, assim como o campo da sociedade civil. Disso resultou um descentramento dos sujeitos históricos em ação antes focado nas classes e nos movimentos populares. Surgiram novas facetas à cidadania, como o exercício da civilidade, a responsabilidade social do cidadão como um todo e etc., ou seja, destacaram-se não apenas os direitos, que são a alavanca básica do conceito de cidadania, mas também se introduziu a questão dos deveres da responsabilização nas arenas públicas, essa responsabilização abriu caminhos para a participação de diferentes e novos atores sociais nas políticas de parcerias entre o Estado e a sociedade civil. Passou-se a enfatizar a responsabilização dos cidadãos, das empresas e dos órgãos governamentais nas novas políticas públicas; criam-se espaços para a participação nessas políticas via parcerias ou nos espaços criados institucionalmente, como os conselhos gestores e os fóruns sociais públicos. Gohn (2014) aponta que a nova política, em parceria com a sociedade organizada, caracterizou os projetos e programas de forma ―propositiva‖ e não apenas reivindicativa. Os movimentos passam a adquirir o caráter mais ativo ao incorporar e propor projeto social de ação, que exige resultados e tem prazos. Para a autora, a palavra mobilizar passou a ser sinônimo de arregimentar e organizar a população para participar de programas e projetos sociais. ―O militante foi se transformando no ativista organizador das clientelas usuárias dos serviços sociais. Dominar códigos das novas tecnologias e participar de redes sociais passou a fazer parte do perfil desse ativista.‖ (GOHN, 2014, p. 59-60). Diferente de movimentos sociais da década de 1970 e 1980, os novos movimentos sociais atuam por redes sociais, locais, regionais, nacionais, internacionais ou transnacionais, utilizando-se de novos meios de comunicação e informação, como a Internet. Esta nova ação promove o que Habermas denominou de agir comunicativo. A criação de novos saberes, na atualidade, são produtos dessa comunicação (GOHN, 2011). O Slow Food e seus membros, como exemplo desses novos movimentos sociais, utilizam a Internet, através de redes sociais, para divulgar projetos locais, regionais e encontros internacionais. O Movimento busca a rede para reforçar a importância da tradição cultural na alimentação dos diversos povos e para chamar a atenção para a necessidade de transformar as formas de cultivo, utilizando recursos renováveis e mais limpos. 39 Como salienta Gohn (2011), esses novos movimentos na atualidade tem o ideário civilizatório no horizonte para a construção de uma sociedade mais democrática. Entre as ações, a autora destaca a sustentabilidade e não apenas o autodesenvolvimento. Tais movimentos lutam contra a exclusão por novas políticas de inclusão e pelo reconhecimento da diversidade cultural. Questões como a diferença e a multiculturalidade têm sido incorporadas para a construção da própria identidade dos movimentos. Há neles uma ressignificação dos ideais clássicos de igualdade, fraternidade e liberdade. A igualdade é ressignificada com a tematização da justiça social; a fraternidade se retraduz em solidariedade; a liberdade associa-se ao princípio da autonomia — da constituição do sujeito, não individual, mas autonomia de inserção na sociedade, de inclusão social, de autodeterminação com soberania. Finalmente, os movimentos sociais tematizam e redefinem a esfera pública, realizam parcerias com outras entidades da sociedade civil e política, têm grande poder de controle social e constroem modelos de inovações sociais (GOHN, 2011, p. 336- 337). Para Gohn (2014), os denominados ―novos movimentos sociais‖ inovam na construção de outros modelos para a sociedade, ressignificando seus ideais clássicos, assim como a questão dos direitos é algo que continua presente e de forma institucionalizada, como, por exemplo, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA). O CONSEA incorpora a participação de representantes da sociedade civil, criando inúmeros programas e políticas, como foi o caso do Marco Estratégico Mundial para a Segurança Alimentar e Nutricional, que conta com as políticas do governo brasileiro, que apoiam a agricultura familiar e estabelecem estratégias imediatas e estruturantes a longo prazo. O conselho tem projetos específicos para incorporar as mulheres no acesso à terra e aos meios produtivos. Criou-se, também, o Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Terreiro (FONSANPOTE), voltados para a população afrodescendente. Dentre outros projetos, o CONSEA insere-se na política voltada para as mulheres, visando à sua inserção em inúmeras políticas públicas, como estratégia de institucionalização das políticas de igualdade de gênero. É importante reforçar que, junto ao CONSEA, é estabelecida uma parceria com a sociedade civil e com os novos movimentos sociais, como o Slow Food. Nesse sentido, o Slow Food apoia a produção familiar em várias localidades no Brasil, anunciando feiras de agricultura familiar e promovendo a discussão sobre temas relacionados à alimentação, como fora organizado, no parque de exposição, em Salvador, no dia 2 de dezembro de 2015. No 40 evento houve uma parceria entre o CONSEA Bahia e a comunidade local para discutir a agricultura familiar, incentivando o comparecimento de toda a comunidade na feira, realizada em Salvador, para o fortalecimento do mercado solidário, que seria realizada até o dia 6 de dezembro de 2015 3 . Dentre outros eventos que merecem destaque pela mobilização social no Brasil, ressaltamos o evento realizado no Rio Janeiro, em 2012, A cúpula Mundial dos Povos, que ocorreu paralelamente à Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável (a Rio + 20). Ela foi composta por ONGs e movimentos sociais de várias partes do mundo, ganhando a atenção da mídia pelas manifestações, marchas e passeatas. O evento foi significativo não apenas por demarcar demandas, denúncias, críticas às políticas governamentais, mas também por demonstrar o poder da temática do meio ambiente como agregadora de movimentos sociais. A Cúpula dos Povos foi um ponto de convergência para as demandas de mulheres, jovens, indígenas, sem-terra, quilombolas, povos de comunidades tradicionais, pequenos agricultores, recicladores de material, cooperativados, movimentos e organizações de luta pelo direito à cidade e religiões de mundo todo (GOHN, 2014). O Slow Food esteve presente na Cúpula dos Povos e organizou uma mesa de trabalho que contou com a participação de seu presidente, Carlo Petrini, um dos convidados pelo governo brasileiro. Foi um momento de troca de experiências e ―testemunho‖ entre os participantes. Ao comparar os dois eventos: Cúpula dos Povos versus conferência oficial da ONU, Petrini convoca todos os membros a lutarem contra um ―sistema agroalimentar‖ insustentável. (OLIVEIRA, 2014). Ao longo do evento foram selecionadas experiências relativas ao Slow Food, que se assemelham ao ―testemunho‖, sugerindo casos de sucesso que deveriam ser seguidos. O trabalho de Oliveira (2014) retrata esses diversos casos, dentre os quais, relatos de chefs de cozinha, líderes de convivia e representantes de entidades que apoiam cooperativas locais de produtores. Em relação aos casos de sucesso, Carlo Petrini proferiu um discurso falando da importância desses relatos para mobilizar toda a comunidade de jovens, agricultores, chefs de cozinha e produtores — como os de queijos artesanais — para o fortalecimento dos programas do Slow Food, bem como para construir uma nova ideia sobre alimentação. Um dos depoimentos destacados por Oliveira (2014) foi a de Luiz Carrazza, representante da 3 Disponível em: . Acesso em: 3 dez. 2015. http://www.sdr.ba.gov.br/2015/11/564/Abertura-oficial-da-VI-Feira-Baiana-da-Agricultura-Familiar-acontece-neste-domingo-29.html http://www.sdr.ba.gov.br/2015/11/564/Abertura-oficial-da-VI-Feira-Baiana-da-Agricultura-Familiar-acontece-neste-domingo-29.html 41 entidade Central do Cerrado, que relatou, em seu depoimento, como a entidade, que apoia pequenos agricultores, busca aproximar a produção e o consumo dos valores que se relacionam com o ideal de justiça do Slow Food. O representante ainda destacou a importância da combinação de trabalhos profissionais como chefs, nutricionistas e cientistas do alimento, que exercem o papel de ―peritos‖ na alimentação. Por um lado, alguns desses ―peritos‖ atuam na produção com a elaboração de matérias-primas nas pequenas propriedades e, por outro lado, outros atuam no sentido de flexibilizar as leis sanitárias para pequenos agricultores, buscando adequação e maior valorização da produção familiar. O Slow Food tem contribuído muito. A gente tem a contribuição de vários chefs que estão desenvolvendo novos produtos. A gente tem a contribuição de nutricionistas, de cientistas de alimentos que têm ajudado muito a gente e a gente precisa se unir nessa luta de mudar um pouco essas regras que são pensadas pras grandes indústrias, que não servem pra gente e colocam a gente na marginalidade, deixando cada vez mais difícil a gente fazer esse trabalho que é tão importante. O mundo precisa saber o que ele está consumindo lá fora e que também existem coisas mais importantes pra gente desenvolver. (OLIVEIRA, 2014, p. 164). Assim, o Slow Food busca contribuir para a valorizão do alimento dentro dos novos movimentos sociais. Adiante, um pouco da história do Slow Food, retratada por Oliveira (2014), que se inicia na Europa, e como o Slow Food se relaciona com o conceito de alimento bom, limpo e justo. 2.2 A história do Slow Food Oliveira (2014) retrata a história do Slow Food a partir de um manifesto, publicado em 1987, por jornalistas e escritores italianos anunciando o lançamento de um movimento que defenderia o direito ao prazer na alimentação. O texto foi publicado no jornal comunista Gambero Rosso, de grande circulação na Itália. O manifesto denunciava que a ―rapidez‖ da vida moderna e o estilo fast da alimentação estavam destruindo os velhos hábitos alimentares, com a invasão nos lares do fast food. Após ser lançado o manifesto, surgiram declarações de apoio para fundar o movimento internacional, depois denominado de Slow Food. http://www.centraldocerrado.org.br/ 42 As origens do movimento, contudo, são anteriores à década de 1980. O Slow Food teria iniciado, em um contexto cultural específico, na década de 1970. As raízes ideológicas e históricas do Slow Food remontam ao período de grandes manifestações culturais e políticas da Europa, especificamente na Itália. Após os acontecimentos de Maio de 1968, em Paris, e do Outono Quente, em 1969, movimentos de jovens, operários e intelectuais de esquerda buscavam caminhos alternativos para a política. (ANDREWS, 2008; OLIVEIRA, 2014). Nesse contexto, um grupo de jovens ativistas de esquerda — Carlo Petrini, Azio Citi e Giovanni Ravinale — moradores da cidade de Bra, localizada na região do Piemonte, no norte da Itália, começaram a dedicar-se a iniciativas sociais e populares (OLIVEIRA, 2014). Segundo Oliveira (2014), o grupo, incialmente, era próximo do PCI (Partido Comunista da Itália), depois migraram para o PDUP (Partido da Unidade Proletária), que acolhia os marxistas que discordavam das posições do PCI. Em 1975, um dos integrantes do grupo, Carlo Petrini, foi eleito consigliere comunale (vereador), na Prefeitura de Bra, fato que deu maior visibilidade às ações do grupo. A política de Carlo Petrini e dos demais do grupo eram voltadas para a expressão cultural e a identidade regional. Sobre o fato, Oliveira (2014, p. 10) relata: ―Em 1979 organizaram o primeiro festival internacional de tradições populares piemonteses, o Canté i’euve. Em seguida, participaram e fundaram outras associações político-culturais, todas ligadas à esquerda italiana‖. Petrini, ao longo desses anos, redescobriu novas tradições rurais da sua região, suas festas, suas canções populares, bem como sua cultura alimentar e sua vinicultura. No início da década de 1980, Petrini contribuía com artigos para a revista La Gola, que após sua reorganização, por meio do grupo, passa a se chamar ARCI Gola, periódico essencial à fundação do Slow Food, em meados de 1980. Assim, relata Oliveira (2014, p. 11): A Associazione Ricreativa Culturale Italiana (ARCI) era uma rede nacional de clubes recreativos e culturais, fundada em 1957 por militantes que, em sua maioria, estavam ligados ao Partido Comunista Italiano [...]. A rede gerou uma grande variedade de clubes e associações dedicados a interesses particulares tópicos, como a caça, o esporte, os direitos das mulheres, a música, o cinema, o meio ambiente e a gastronomia. Oliveira (2014) ainda destaca que era comum o movimento da esquerda italiana se organizar pela criação de associações gastronômicas regionais e populares. [...] os militantes abriram Case del Popolo, hosterie e trattorie (cantinas) tradicionais, lugares destinados ao lazer das classes populares, dos 43 trabalhadores da terra e das indústrias. Essas experiências, junto com a eleição de Carlo Petrini para a presidência da federação cultural e recreativa de esquerda Arci Gola (que mais tarde passou a ser Arcigola), com as atividades e a fama alcançada por esta na divulgação das tradições e excelências gastronômicas italianas, contribuíram decisivamente para a elaboração e futura forma organizativa do Slow Food. A partir da criação do ARCI Gola, que defendia uma nova filosofia do gosto, os seus ideais ganharam notoriedade, com uma exposição cada vez maior. Não somente na Itália, mas também em outros países, ―começara-se já a falar sobre a relação entre os alimentos e a comunidade, sobre o excessivo uso de eletricidade e o sacrifício da qualidade para a obtenção de dinheiro rápido.‖ (FERREIRA, 2009, p. 4). Dessa forma, o número de adeptos tornou-se cada vez maior, com a presença de médicos, jornalistas, advogados e gourmets. Diante da grande repercussão de seus ideais, o ARCI Gola organizou uma competição entre vários restaurantes com a ajuda do jornal político Gambero Rosso, jornal no qual o grupo publicava, constantemente, artigos acerca da alimentação. A competição fez tanto sucesso que levou à organização de uma conferência em Montalcino, comuna italiana na região de Toscana. Esta conferência foi o princípio do Slow Food. Deste modo, o Movimento SF (Slow Food) começou a difundir-se por outros países, onde pequenas associações locais eram formadas, de nome convivium, uma palavra que advém do latim e significa reunião/convívio. O Movimento Slow Food tornou-se oficialmente uma associação internacional a 10 de Dezembro de 1989, no Opéra Comique em Paris, quando delegados de quinze países ratificaram um protocolo significante da sua adesão aos princípios ideológicos contidos no Manifesto. A reunião em Paris, que durou dois dias, incluiu debates, jantares, provas de degustação entre outros eventos, anunciando o longo caminho que a SF iria percorrer (FERREIRA, 2009, p. 5). Assim, nasce o Slow Food. Muito mais que ser um movimento antagônico ao fast food, o Slow Food pretende se concentrar nos hábitos e culturas alimentares que podem ser extintas diante da uniformidade do gosto. Sobre a atuação do SLow Food, Ferreira (2009, p. 7-8) declara: ―A SF (Slow Food) pretende salvar e reviver os legados gastronómicos locais, levando os indivíduos a recuperar a memória das práticas gastronómicas regionais. Se a pressa ameaça o prazer sensorial, a lentidão é o antídoto certo‖. 44 Nesse sentido, o Slow Food ―pretende redescobrir o bem-estar advindo de uma alimentação saudável‖ (FERREIRA, 2009, p. 8), entendendo que o prazer à mesa é a chave para amenizar as consequências das patologias alimentares. Dessa forma, o Slow Food busca ao mesmo tempo resgatar a responsabilidade civil, política e alimentar, expresso pelo conceito da ecogastronomia. Este conceito refere-se à forte ligação que há entre o prato e o planeta, sendo que o consumidor se torna um coprodutor, apoiando ativamente o produtor e fazendo parte do mesmo processo de produção. Esta contribuição do consumidor é o significado do conceito ato agrário, em que as escolhas e critérios para o consumo se tornam políticas, interferindo no modo de produção e na organização do mercado, levando em consideração os benefícios de se escolher um alimento bom, limpo e justo para construir a nova ecogastronomia. Segundo o Slow Food Brasil, o conceito de ecogastronomia é a atitude do indivíduo capaz de combinar respeito e o interesse pela cultura enogastronômica, em defesa da biodiversidade agrícola. Ainda dentro deste princípio da ecogastronomia, o Slow Food apoia um novo modelo de agricultura, que é menos intensivo e sustentável, com base no conhecimento das comunidades locais. 2.2.1 A filosofia do ―bom‖ para o Slow Food Para Petrini (2009), ―bom‖ é aquilo que está relacionado à esfera sensorial, influenciada por fortes fatores pessoais, culturais, históricos e socioeconômicos. Segundo o autor, este é um conceito relativo, porém o que é bom está sendo renunciado a uma objetividade, a uma regra em que estabelece o que é igual para todos. O conceito de ―bom‖ na gastronomia está vinculado a uma naturalidade, respeitando as características originais dos alimentos, oferecendo sensações reconhecíveis e agradáveis em determinado momento, para uma cultura específica. Entretanto, Petrini (2009, p. 98) ressalta que o que é bom para uma pessoa não necessariamente significa que é bom para outra, e por isso o autor destaca dois fatores subjetivos que determinam o que é um alimento bom: ―o sabor (pessoal, ligado à esfera sensorial individual) e o saber (cultural, ligado à história das comunidades e ao know- how)‖. Assim, para o fundador do Slow Food, o ―bom‖ é parte da construção do gosto, que ao mesmo tempo é sabor e saber, e, portanto, essa construção do gosto relaciona-se com a percepção cultural. Petrini (2009) analisa como a questão do gosto e do prazer se transformam 45 na história e se diferencia entre pobres e ricos. Dessa forma, a escolha do que é bom, ou a sua formação, depende da cultura e da situação econômica do indivíduo. A escolha do alimento não necessariamente é agradável ao paladar, mas torna-se boa pelas condições econômicas. Sobre esta questão, Bourdieu (2007, p. 185-186) faz um estudo comparativo com a classe burguesa e a classe popular na forma de tratar a alimentação. A maneira de servir e oferecer os alimentos são traduzidos em formas diferentes, demonstrando a relação com o corpo e com a alimentação, produzindo a distinção de classes. As refeições das classes populares não possuem formalidades, são refeições fartas e abundantes, caracterizadas pela presença de molhos, massas, batatas e sopas. A disposição das refeições, o modo de organização dos pratos, talheres, copos, não seguem regras de etiqueta. E o autor reforça: ―Tudo pode ser colocado à mesa‖, ou seja, não existe a sequência das refeições ou a separação do prato de entrada, prato principal e sobremesa. O autor afirma que a classe popular está ―presa por uma economia dos deslocamentos‖ ao economizar pratos, talheres e organizar a mesa com todas as refeições (prato de entrada, principal e sobremesa). É aceito o reaproveitamento dos recipientes utilizados por outro membro da família, a familiaridade economiza a ―frieza‖ e o polimento da classe burguesa. Também são permitidas ―transgressões‖ ao comer sem formalidades. Já a burguesia (detentora das práticas dominantes nas relações sociais, responsável por produzir a doxa), preza por comer nos ―conformes‖, transformam a refeição em ―cerimônia social‖. As refeições seguem uma sequência (prato de entrada, prato principal e sobremesa), a repetição desses pratos deve ser feita com discrição, o que está em cima da mesa deve ser retirado para servir a sobremesa, tudo expressa um habitus de ordem e conduta. Para Petrini (2009) esta construção do gosto impõe limites espaciais, culturais, sociais e econômicos, mas um ponto de partida em comum a todas as culturas é o aumento da predileção ao artificial. O autor afirma a necessidade de nos posicionarmos a favor do gosto ―natural‖ ao recusar o artificial, proporcionado pela comida padronizada. É um ato de responsabilidade e de consciência da realidade, resgatando o respeito às matérias-primas produzidas. Petrini (2009, p. 104, grifo do autor) explica mais claramente o conceito de alimento ―natural‖ e como este conceito está relacionado com a valorização da matéria-prima e do bem-estar na alimentação: 46 É necessário especificar o que se pretende dizer por natural, conceito que não equivale a ―orgânico‖. Natural significa não utilizar elementos demais, estranhos e artificiais em relação ao sistema ambiente/homem/matéria- prima/processamento: aditivos, conservantes químicos, aromas artificiais ou supostamente ―naturais‖, tecnologias que subvertem a naturalidade do processo de trabalho, da criação do gado, do cultivo e da cozinha [...]. As matérias-primas devem ser sadias, íntegras, livres de tratamentos químicos ou processos intensivos. Devem ser tratadas com processos que respeitem suas características originais. A qualidade de um queijo, por exemplo, está estreitamente ligada à qualidade do leite que se emprega, e este será bom na medida em que for boa a alimentação do animal que o produziu. O mesmo vale para a carne, que será boa se respeitados os critérios de natural