Cartas vazias Ana Maria Esteves Leituras e leitoras de um Centro de Referência Down CARTAS VAZIAS FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Herman Jacobus Cornelis Voorwald Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto Editor Executivo Jézio Hernani Bomfim Gutierre Conselho Editorial Acadêmico Alberto Tsuyoshi Ikeda Áureo Busetto Célia Aparecida Ferreira Tolentino Eda Maria Góes Elisabete Maniglia Elisabeth Criscuolo Urbinati Ildeberto Muniz de Almeida Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan Nilson Ghirardello Vicente Pleitez Editores Assistentes Anderson Nobara Fabiana Mioto Jorge Pereira Filho ANA MARIA ESTEVES CARTAS VAZIAS LEITURAS E LEITORAS DE UM CENTRO DE REFERÊNCIA DOWN Editora afiliada: © 2012 Editora UNESP Direitos de publicação reservados à: Fundação Editora da UNESP (FEU) Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ E83c Esteves, Ana Maria Cartas vazias: leituras e leitores de um Centro de Referência de Down / Ana Maria Esteves. São Paulo: Editora Unesp, 2012. Inclui bibliografia ISBN 978-85-393-0378-6 1. Down, Síndrome de. 2. Educação inclusiva. 3. Educação especial. 4. Distúrbios da aprendizagem nas crianças. I. Moraes, Rodolpho Vilhema de. II. Zanardi, Maria Cecília França de Paula Santos. III. Título. 12-9355 CDD: 371.9 CDU: 376.1 Este livro é publicado pelo projeto Edição de Textos de Docentes e Pós-Graduados da UNESP – Pró-Reitoria de Pós-Graduação da UNESP (PROPG) / Fundação Editora da UNESP (FEU) Às meninas Jane, Dânia e Andréa, que me abriram horizontes para novas leituras com seus escritos. Minha gratidão a todos aqueles que contribuíram para este estudo. Em especial, agradeço a meu orientador, professor Dagoberto Buim Arena, pela presença constante e suas valiosas contribuições, ao Centro de Referência Down, que me abriu as portas. Introdução: de Safo de Lesbos às leitoras de um Centro de Referência Down 11 1 História de uma pesquisa 17 2 As leitoras e as situações de leitura no Centro de Referência Down 29 3 Família, Igreja e Escola: espaços de formação leitora das mães e professoras 55 4 Leitoras em formação: as meninas Jane, Dânia e Andréa 85 Algumas considerações: nas malhas da interdição, a tessitura das práticas de leitura 107 Referências bibliográficas 115 SUMÁRIO Parti de uma representação de leitura feminina tão antiga quanto a história da civilização ocidental, a imagem da poetisa Safo de Lesbos lendo para suas alunas-amigas. Safo (630-596 a.C.), que fundou uma espécie de escola de meninas para aprendizagem da música, da poesia, das artes e do papel de mulhe- res para futuras esposas, lia para suas alunas-amigas. A poetiza sentada parece preparar-se para ler um poema escrito em rolo de papiro para três alunas-amigas. Em um de seus poemas anunciava que: “agora estes versos vou cantar lindamente para encantar as amigas...” (Fontes, 2003, p.57). A representação da situação de leitura sugere uma recitação de um poema; a escuta permitiria que as alunas-amigas partilhassem da leitura, em voz alta, de Safo. Para Chartier (1999), uma leitura coletiva que proporciona cumplicidade e convivência a partir do texto escrito. A história de mulheres, do gineceu ao lar burguês, da pólis grega à democracia contemporânea, de uma sociedade agrícola para uma socie- dade de mercado, do mundo da oralidade para o mundo da cultura es- crita, vem revelando permanências e mudanças, rupturas e continuida- des que afetam suas práticas cotidianas, inclusive as práticas de leitura. Para Perrot (2005), até o final do século XIX, as mulheres foram mais imaginadas, idealizadas, representadas do que descritas, narradas, contadas. Frequentemente excluídas da vida pública, não apareciam INTRODUÇÃO: DE SAFO DE LESBOS ÀS LEITORAS DE UM CENTRO DE REFERÊNCIA DOWN 12 ANA MARIA ESTEVES nas estatísticas, não votavam, não tinham visibilidade em arquivos públicos e só começaram a ter presença à medida que se apropriaram da leitura e da escrita. Sem visibilidade, quase não deixaram marcas, sinais, traços. Eram figurantes nos espaços públicos. Se a história das mulheres é uma história de silêncios, isso se repete nas histórias de lei- toras, é necessário descobrir nas entrelinhas a presença quase invisível de suas práticas de leituras. De acordo com Lyons (1999, p.167), no século XIX, “possivel- mente mais mulheres do que se imagina eram então capazes de ler”, embora não soubessem escrever, pois a Igreja Católica aconselhava que seus fiéis lessem a Bíblia e seu catecismo, mas considerava que a escrita traria uma perigosa independência às mulheres. Nas escolas da Europa, o número de meninas era bem menor que de meninos; parece ter sido o crescimento do público leitor feminino que acelerou as taxas de alfabetização das mulheres. Os escritos da Bíblia, do Livro de horas e da Vida dos Santos eram as principais leituras femininas no espaço privado do lar. Nessa época, outros objetos de leitura, gêneros textuais e suportes passaram a fazer parte das práticas femininas de leitura: revistas, romances populares e livros de cozinha. A imagem de uma leitora brasileira da segunda metade do século XIX é representada pelo pintor brasileiro Almeida Júnior (1850-1899) no quadro Leitura, de 1892. Em um terraço de um casarão, uma jovem, sentada, lê. Seu corpo parece confortavelmente acomodado na poltro- na. Ela segura com a mão esquerda um livro com a capa dobrada. Tem o olhar voltado para a página e lê silenciosamente. Os longos cabelos cuidadosamente trançados, a blusa de jabô, o leque apoiado no colo, levemente preso pela mão direita, sugerem certa nobreza. Parece tratar-se de uma leitura de um romance, muito frequente na época. A partir do século XIX, aprender a ler e a escrever trouxe uma nova perspectiva de vida às mulheres: depois dos livros de reza, vieram os diários, os romances, as revistas femininas, a correspondência, os jornais. As mulheres passaram a frequentar a escola, foram para a universidade, para o trabalho nas fábricas, para as ruas. Minha opção de pesquisar práticas de leitura de mulheres explica-se em razão do papel mediador que as mulheres vêm desempenhando na CARTAS VAZIAS 13 educação de crianças, jovens e adultos, particularmente nos processos de apropriação da leitura e da escrita. Historicamente, destinou-se à mulher a função de cuidadora em nossa sociedade; a ela é atribuída a missão de cuidar de filhos e educá-los, sobrinhos, netos, irmãos ou alunos. Há sempre a figura de uma mulher, mãe, tia, avó, vizinha, babá, irmã, catequista, contadora de história e professora mediando a leitura de leitores-aprendizes, seja na escola, seja fora dela. Devo esclarecer que a opção de pesquisar práticas femininas de leitura não se assenta nas diferenças sexuais entre homens e mulheres, uma vez que enfoca “os usos sexualmente diferenciados dos modelos culturais comuns aos dois sexos” (Chartier, 1995, p.39). Assim, na aná- lise de práticas de leitura de mulheres busquei caracterizar as leitoras a partir de suas maneiras de ler que se constituem de gestos, hábitos e espaços, organizam-se diferentemente nos mais diversos grupos de leitores e dependem de fatores como: competência para ler, normas e convenções que estabelecem usos legítimos do livro e outros suportes, maneiras de ler e interpretar e ainda expectativas e interesses. Nessa perspectiva, o mundo em que se circunscreve o texto é um mundo de formas, de objetos, de convenções, que exige do leitor a tarefa de construir seu sentido, na medida que partilha, com outros leitores, competências, códigos, usos, interesses, os quais se cons- tituem em práticas de leitura específicas do leitor e, paralelamente, de sua comunidade leitora. É necessário considerar as variações das formas de textos e as variações de público leitor, ou seja, dimensionar os textos escritos e seus leitores, por meio de recortes culturais, o que não exclui um recorte social que revele os contrastes entre as classes sociais. No entanto, é a identidade das práticas de leitura que partilham as comunidades de leitores em suas relações com os textos que explicam os recortes culturais, tais como diferenciação de gênero, de faixa etária, de profissão etc. (Cavallo; Chartier, 2002). Para Certeau (2008, p.269-70), os leitores são “viajantes, circulam nas terras alheias, nômades caçando por conta própria através dos campos que não escreveram”. O autor conceitua o ato de ler como uma operação de caça em terras alheias, formas de usar a leitura e operar sobre ela na sociedade de consumo. As práticas de leitura são, portanto, 14 ANA MARIA ESTEVES maneiras que os leitores usam a leitura e como operam sobre ela, em possíveis “estilos de ação” que criam ao utilizar maneiras de ler no jogo em que consiste a leitura a partir dos primeiros contatos com o escrito. Definindo a leitura como uma “operação de caça”, Certeau (ibidem, p.262-3) afirma que: A leitura é apenas um aspecto parcial do consumo, mas fundamental. Numa sociedade sempre mais escrita, organizada pelo poder de modificar as coisas e reformar as estruturas a partir de modelos escritos (científicos, econômicos, políticos), mudada em textos combinados (administrativos, urbanos, industriais etc.), pode-se muitas vezes substituir o binômio produção-consumo por seu equivalente e revelador geral, o binômio escrita-leitura. Hoje, leitura e escola encontram-se tão intimamente relacionadas, que, ao falarmos de leitura, a vinculamos aos espaços escolares, pois compete à escola ensinar instrumentos, formas de pensamento e con- teúdos no processo de apropriação e objetivação dos indivíduos. A aprendizagem da leitura requer instrução, diferentemente da fala que aprendemos naturalmente ouvindo as pessoas em nosso entorno nos primeiros anos de vida. Para a maioria dos leitores, a aprendizagem da leitura passa por um processo de escolarização e depende do ensino sistematizado que cabe à escola oferecer. Segundo Foucambert (1994), a formação de leitores realiza-se no contexto mais amplo da sociedade como fonte de conhecimento. A escola é apenas um dos espaços de transformação das relações com a escrita, lugares sociais como igrejas, família, bibliotecas, livrarias, centros de lazer, associações de moradores, sindicatos, empresas, praças e tantos outros são também espaços de leitura. Somos leitores na escola e fora dela e nossas práticas diferenciam-se de acordo com as condições subjetivas e objetivas em que nos encon- tramos, os espaços onde lemos, os objetivos que definimos, os suportes que temos em mãos, os interesses que nos movem, as comunidades leitoras com as quais nos identificamos, as práticas que herdamos e aquelas que reinventamos no cotidiano anonimamente, pois as práticas CARTAS VAZIAS 15 de leitura se realizam nos espaços da família, igreja, círculo de amigos, trabalho, escola, enfim nos grupos de pertencimento com os quais leitores e leitoras compartilham suas leituras. O livro, fruto de minha tese de doutorado, “Entre gestos e práticas: leituras de mães, professoras e meninas de um Centro de Referência Down”, defendida em 2010, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Unesp, campus de Marília, sob a orientação do professor Dagoberto Buim Arena, aborda práticas de leitura de três professoras, três mães e três meninas que frequentam um Centro de Referência para pessoas com síndrome de Down. Essas leitoras percorreram trajetórias próprias de leitura, entre táticas e estratégias, apropriaram-se de maneiras de ler nas relações da oralidade com a cultura escrita, na escola e fora dela. Constituíram comunidades leitoras. Para essas mulheres, a leitura tem uma presença singular no cotidiano, um significado especial em suas vidas. Quais seriam as práticas de leitura de três mães, três professoras e três meninas do Centro de Referência Down? Eis a principal questão que direcionou minha investigação no processo de geração de dados para análise das práticas de leitura das participantes deste estudo. Tendo como objetivo conhecer suas práticas de leitura, analisei as maneiras de ler, suportes em que leem, necessidades que a mobili- zam, propósitos que direcionam suas leituras, lugares e tempos para atos de leitura. Iniciada a coleta, ao perceber que os gestos de leitura das meninas com síndrome de Down pareciam não ter visibilidade, busquei en- tender se o CRDown é um espaço mais de interdição da leitura que de incentivo às práticas de leitura como espaço multidisciplinar de apoio à inclusão de crianças e jovens com síndrome de Down. Não sendo da área de Educação Especial, este estudo não pretende tratar de quaisquer aspectos relacionados à deficiência. O critério estabelecido para a escolha das mães, professoras e me- ninas entrevistadas foi de que se identificassem em torno de um eixo comum, em um espaço onde desenvolvessem cotidianamente múltiplas atividades, inclusive a de leitura. De um lado, o ensino da leitura era um dos principais objetivos do CRDown e, sobretudo, um desafio para as mães voluntárias e as profissionais que ali atuavam. Mães, pro- 1 HISTÓRIA DE UMA PESQUISA 18 ANA MARIA ESTEVES fessoras e terapeutas trabalhavam profissional e voluntariamente com o mesmo objetivo: cuidar e educar pessoas com síndrome de Down, em situações formais e informais de educação, dentre elas situações de leitura. De outro, as meninas com Down revelavam a necessidade de ler e de apropriarem-se de práticas de leitura da cultura escrita que circulavam em seu entorno. A escolha pela pesquisa qualitativa justifica-se pelo fato de tra- balhar “com o universo de significados, motivos, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos” (Minayo, 1994, p.21). Entre as pos- sibilidades da pesquisa qualitativa, escolhi o estudo de caso de caráter etnográfico por permitir uma descrição mais densa do objeto leitura, realizado por meio de entrevistas, observações formais e informais, análise documental e registro fotográfico. Nas entrevistas, levantei dados sobre as práticas de leitura de mães, professoras e meninas. As observações formais nos atendimentos pe- dagógicos e terapêuticos de fonoaudiologia e fisioterapia do CRDown possibilitaram conhecer o enfoque dado ao ensino de leitura. As obser- vações informais permitiram acompanhar a rotina de funcionamento da entidade, para identificar situações e diálogos sobre leitura. A análise documental limitou-se ao Projeto Político Pedagógico (2007) com o intuito de verificar o discurso pedagógico da entidade sobre leitura e ensino de leitura. As gravações das entrevistas e os registros fotográficos garantiram que as situações e os diálogos sobre leitura no CRDown e fora dele fossem armazenados para posteriormente ser reconstituídos e analisados. O Centro de Referência Down O CRDown, situado ao norte do estado do Paraná, é uma sociedade civil de utilidade municipal, estadual e federal, sem fins lucrativos, presidida por uma das mães. Nasceu de um projeto de extensão universitária de uma universidade pública, prestando serviços nas áreas de fisioterapia, fonoaudiologia e psicologia. Os pais das crian- CARTAS VAZIAS 19 ças assistidas, envolvidos no projeto, perceberam a necessidade de continuar o trabalho iniciado. Criaram então o CRDown, movidos pela necessidade de oferecer aos filhos melhores condições de vida, de educação e integração social. O foco principal do Centro de Referência hoje é o Centro de Edu- cação Especial Crescer (Ceec), um projeto criado para oferecer atendi- mento pedagógico e terapêutico a crianças e jovens com síndrome de Down em seu desenvolvimento biopsicossocial e educacional, tendo como referência a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação e as políticas educacionais da Unesco. O Ceec atende gratuitamente a cerca de 120 pessoas com síndrome de Down. São crianças, jovens e adultos que participam de programas voltados para a educação infantil, apoio à inclusão, escolaridade, edu- cação profissional, educação física, educação artística e atendimento terapêutico (fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, psicolo- gia e serviço social). Desenvolve também alguns projetos em parceria com universidades, empresas e voluntários. Trajetória da pesquisa e instrumentos teórico-metodológicos No desenvolvimento da pesquisa, o projeto elaborado previamente sofreu alterações durante sua execução. Eu havia planejado entrevistar quatro professoras em três encontros com cada uma delas, mas uma das professoras desistiu depois da primeira entrevista. Além disso, os encontros foram reduzidos para dois em razão da pouca disponi- bilidade de tempo alegada pelas professoras. As entrevistas com as três meninas, acompanhadas de suas mães, foram incorporadas ao projeto de pesquisa já em execução, pois, logo que realizei as primeiras observações informais, percebi que seus gestos de leitura pareciam não ter visibilidade para professoras, terapeutas e até para suas mães. Estes instrumentos de pesquisa devem contemplar a linguagem como objeto de análise que se materializa nos discursos das participantes ao se referirem a suas práticas de leitura. 20 ANA MARIA ESTEVES Em novembro de 2007, fiz os primeiros contatos no CRDown. Com o projeto de pesquisa em mãos, procurei a assistente social que me encaminhou para a psicóloga e esta me apresentou à presidente da diretoria da entidade. Apresentei meu projeto a elas e pedi autorização para realizar a pesquisa, assim como esclareci os objetivos do traba- lho, deixando uma cópia para que pudessem conhecê-lo na íntegra. Comecei também a buscar informações sobre a entidade. Autorizada a realização da pesquisa, passei a frequentar o CRDown, ainda como visitante, para conhecer seu funcionamento. A equipe multidisciplinar dividia-se em atendimento terapêutico e atendimento pedagógico. O atendimento terapêutico abrangia as áreas de fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicologia e assistência social. O atendimento pedagógico era feito por professoras, quase todas pedagogas. Apenas dois professores faziam parte da equipe pedagógica: um professor de Educação Física e um professor de Artes. Havia também mulheres que trabalhavam na administração, limpeza, cozinha e serviços gerais. Após algumas observações e diálogos informais que mantive du- rante os meses de novembro e dezembro de 2007, tomei conhecimento da rotina de funcionamento do Centro de Referência, do papel das mães como voluntárias e das profissionais, as terapeutas e professo- ras. A pesquisa foi agendada para fevereiro de 2008, embora alguns atendimentos terapêuticos começassem antes do início do ano letivo. Em fevereiro de 2008, retomei as visitas ao CRDown para as pri- meiras observações e escolha dos sujeitos que participariam das entre- vistas individuais. Só então pude fechar um cronograma, que foi sendo alterado de acordo com a receptividade e a disponibilidade das partici- pantes da pesquisa. As primeiras observações formais foram realizadas nas salas de atendimento fisioterápico e atendimento pedagógico, já as observações na sala de atendimento fonoaudiológico demoraram para ser autorizadas, uma vez que as profissionais se mostraram receosas com minha permanência durante o atendimento. As entrevistas, observações formais e registros fotográficos foram realizados no pri- meiro semestre de 2008, embora eu permanecesse em campo por mais tempo para observações informais e informações complementares. CARTAS VAZIAS 21 Passei a conviver com mães, professoras, terapeutas e meninas que frequentavam o CRDown para acompanhar suas atividades no cotidiano. A partir de diálogos informais com essas mulheres, foram sendo definidos os sujeitos que participariam das entrevistas e das observações nas salas de atendimento terapêutico e pedagógico. As observações formais e informais As observações formais nos atendimentos pedagógico e terapêutico permitiram levantar dados sobre o ensino e as práticas de leitura no interior da instituição, revelando as concepções que permeiam as ativi- dades com a linguagem que ali eram desenvolvidas. Segundo Macedo (2006, p.91), “o processo de observação não é um ato mecânico [...] ele está inserido num processo de interação e de atribuição de sentidos”. Por meio das observações formais e informais pude acompanhar mães, professoras, terapeutas e meninas com Down, conhecer suas referên- cias culturais para compreender suas ações de leitura e os significados que atribuem a ela. As observações formais somaram dezoito sessões: seis, na sala de atendimento fisioterápico; quatro, na sala de atendimento fonoau- diológico; oito, em duas salas de atendimento pedagógico de duas professoras que ensinavam jovens com síndrome de Down. Algumas observações tornaram-se participantes, pois como pes- quisadora, eu era solicitada a expor minhas concepções a respeito das situações de leitura de que participava. Nessas situações havia uma troca entre mim como pesquisadora e as mães, professoras e terapeutas, ainda que eu percebesse em algumas situações que a pesquisa era vista como um processo teórico distante das práticas de leitura que ali se realizavam. Já nas observações informais, houve menos participação, pois meu papel era compartilhar com as mulheres as atividades que estavam sendo realizadas, atenta para captar as situações e os diálogos sobre leitura que surgissem inesperadamente. As observações informais aproximaram-me principalmente do grupo de mães, menos resistentes e mais flexíveis que as profissionais. Eu as acompanhava e com elas compartilhava as atividades cotidianas, 22 ANA MARIA ESTEVES sobretudo, os diálogos sobre seus filhos, suas vidas, o trabalho, a fa- mília, o Centro de Referência, de tal forma que, no final da pesquisa, sentia-me parte do grupo, embora tivesse consciência do trabalho de pesquisa que estava desempenhando. Nas situações de interação com as mulheres participantes, pro- curei não impor pontos de vista e preconceitos que influenciassem suas ações e respostas para captar, na ótica delas, suas ideias e valores sobre a leitura e suas práticas. As observações informais sinalizaram caminhos para as entrevistas individuais com as mães, professoras e meninas, à medida que me proporcionaram participar do cotidiano delas, envolvendo-as no projeto e envolvendo-me em suas atividades. Assim, ao escolher as mulheres que participariam das entrevistas, con- siderei essa aproximação no cotidiano e o interesse que demonstraram em participar do estudo. Foi também no início das observações informais que entrei em contato com as três meninas com síndrome de Down. Nos intervalos de suas atividades conversávamos informalmente. Decidi entrevistá- -las, pois acrescentariam a minha pesquisa algo fundamental: a relação entre seus gestos de leitura e as situações de leitura que vivenciavam no Centro de Referência, mediadas pelas profissionais que ali atua- vam. Passei a observá-las no CRDown e entrevistei-as em suas casas, acompanhadas por suas mães. As entrevistas Como pesquisadora, parti do pressuposto de que os sujeitos pesquisados possuem um saber sobre as coisas do mundo, inclusive sobre a leitura e suas práticas. Assim, nas entrevistas, busquei a cumplicidade das mães, professoras e meninas para lhes informar sobre o projeto de pesquisa e a participação delas na elaboração desses saberes implícitos em suas práticas de leitura. As entrevistas com as mães, professoras e meninas deveriam constituir-se numa situação em que pudessem organizar suas ideias e refletir sobre suas práticas de leitura ao elaborarem o discurso sobre o assunto. Para Szymanski (2004, p.14), esse “processo interativo complexo tem um CARTAS VAZIAS 23 caráter reflexivo, num intercâmbio contínuo entre os significados e o sistema de crenças e valores, perpassados por emoções e sentimentos dos protagonistas”. Devo esclarecer que as professoras entrevistadas não foram as mesmas dos atendimentos pedagógicos observados, assim como as meninas entrevistadas não eram filhas das mães que participaram da pesquisa. Todas as participantes da pesquisa receberam nomes fictícios para não ser identificadas. As professoras foram chamadas pelos nomes de Marina, Valéria, Clara. As mães receberam os nomes de Cida, Edna e Rosa e as meninas com Down foram chamadas de Jane, Dânia e An- dréa. As professoras dos atendimentos pedagógicos observados foram Marta e Elaine. Dalva foi o nome dado à fisioterapeuta e Aline, para a fonoaudióloga, cujos atendimentos terapêuticos foram observados. As entrevistas com as professoras Marina, Valéria e Clara foram realizadas às sextas-feiras, tendo em vista que faziam hora-atividade nesse dia, sem a presença de alunos, planejavam as atividades pedagó- gicas de sua sala e, portanto, tinham certa disponibilidade de tempo. Agendadas com uma semana de antecedência, nem sempre aconteciam como haviam sido planejadas. Situações imprevisíveis obrigavam-me a cancelar e remarcá-las. No início, havia um clima de desconfiança, superado após o primeiro encontro, ao perceberam que eu não estava ali para avaliá-las como profissionais. Marina, Valéria e Clara participaram de duas entrevistas indivi- duais: no primeiro encontro, busquei dados sobre suas histórias de vida e no segundo, sobre suas histórias de leitura. A primeira entrevista foi com Marina, mas, na data agendada, houve uma reunião não prevista no CRDown e a entrevista foi desmarcada. Aguardei o término da reunião para agendar com ela outra data. Encontramo-nos no inter- valo da equipe pedagógica e, imediatamente, percebi sua resistência. Ela se adiantou e disse que estava muito ocupada com seu trabalho pedagógico e que nem se lembrava que a entrevista fora marcada para aquela data. Propus-lhe meia hora de entrevista para não adiarmos a data. A professora acabou aceitando e saímos à procura de um lugar silencioso. Marina encontrou disponível uma sala de atendimento pedagógico que ficava mais ao fundo do corredor. Após assinar o 24 ANA MARIA ESTEVES Termo de Consentimento, pedi-lhe autorização para ligar o gravador. Percebi que ela estava tensa, embora eu tivesse feito o possível para deixá-la à vontade. Nesse primeiro encontro, a professora falou sobre sua história de vida, a família, a infância, a escola, a adolescência, a profissionalização, o casamento, a vida adulta. À medida que Marina começou a falar, sua resistência diminuiu. Relembrava com prazer sua infância, falava animadamente da família e quando me dei conta já havíamos passado do horário. Ela precisava ir embora, pois trabalhava à tarde em uma escola pública, em um projeto de Educação Especial para acompanhamento individual de um aluno com deficiências múltiplas. Agendamos nossa segunda entrevista e me despedi dela com a certeza de que continuaria participando da pesquisa. Voltei à tarde para entrevistar as professoras Valéria e Clara. Elas estavam ocupadas e, assim como Marina, não se lembravam do com- promisso anteriormente assumido. Tentei negociar uma mudança no horário para não ter que adiar esse primeiro contato. Pareciam receo- sas. A desistência poderia ser vista como falta de colaboração com a instituição, uma vez que a direção estava interessada na pesquisa como uma forma de contribuição ao CRDown. A entrevista seguinte foi com Valéria. A situação repetiu-se como a de Marina. Ela resistiu inicialmente, mas, assim que começamos a falar de sua vida, entusiasmou-se. Percebi nela uma preocupação com a pronúncia e dicção, uma postura mais formal, mas foi-se soltando aos poucos. Clara foi a última professora a ser entrevistada. Também ela parecia um pouco resistente, falava pausadamente, mas demonstrava motivação para participar da entrevista. Porque o tempo excedia, combinamos o próximo encontro e nos despedimos. As dificuldades para concluir as entrevistas ainda não estavam superadas. A segunda entrevista com as professoras também foi des- marcada por causa de reuniões no CRDown com a direção e visitas que as professoras faziam a algumas escolas públicas. Notei que Marina estava para desistir de sua participação. Tentei mais uma vez negociar um tempo menor para não comprometer o andamento de suas ativi- dades. Novo agendamento foi feito e comuniquei à diretora para que as entrevistas não tivessem de ser mais uma vez adiadas. CARTAS VAZIAS 25 Voltei à tarde para as entrevistas com Valéria e Clara e não as en- contrei, porque haviam saído para visitar algumas escolas de ensino regular frequentadas por seus alunos. As entrevistas foram novamente agendadas. Mantive diariamente contato nos intervalos, o que acabou facilitando a aproximação. Valéria, Marina e Clara estavam bem mais receptivas no segundo encontro. Percebi que falar sobre suas histórias de leitura as motivava e podia contribuir para o trabalho docente, à me- dida que elaboravam os processos vividos para constituírem-se leitoras. As entrevistas com as mães, diferentemente das entrevistas com as professoras, não apresentaram resistência, ao contrário, era visível a satisfação de estarem ali falando sobre suas vidas e suas leituras. A primeira entrevista com as mães foi realizada no CRDown, no espaço que permaneciam enquanto aguardavam os atendimentos terapêutico e pedagógico de seus filhos. Durante a entrevista, constatei que, embora ficassem à vontade, seria necessário conhecer o espaço privado em que as entrevistadas realizavam suas leituras, por isso, a segunda entrevista com cada uma delas foi realizada em suas casas. Essa mudança propi- ciou que eu conhecesse os lugares onde liam, os objetos de leitura que possuíam, suas maneiras de ler. A análise do Projeto Político Pedagógico A análise de documentos é um instrumento importante que auxilia o pesquisador na tarefa de buscar novos aspectos e aprofundar a pes- quisa. O documento constitui-se uma fonte de dados indispensável no estudo de caso, pois, de acordo com Brumer (1969, apud Macedo, 2006, p.108), ele é um “fixador de experiências que torna possível resgatar o objeto vivido”. Assim, a análise do Projeto Político Peda- gógico (2007) do CRDown foi um instrumento para analisar as ações planejadas para o ensino de leitura. Na análise do Projeto Político Pedagógico busquei identificar o contexto em que a palavra “leitura” foi empregada. O programa de linguagem de Educação Infantil continha um único tópico de leitura, “Valorização dos diferentes tipos de leitura”, mas não esclarecia que leituras seriam essas. O programa Escolaridade, equivalente à educação 26 ANA MARIA ESTEVES básica, abrangia Língua Portuguesa como área de conhecimento em torno de três eixos: a língua oral, a língua escrita e a análise linguística. No tópico Linguagem Oral, a palavra leitura foi citada cinco vezes como conteúdo a ser trabalhado: leitura sensorial, leitura de logoti- pos, manuseio de jornais, revistas e outros materiais com intenção de leitura, leitura de gravuras, leitura e interpretação de textos variados. No programa Educação Profissional, a leitura foi mencionada como conteúdo a ser trabalhado em diversas atividades. Os itens enume- rados, seguidos de uma outra lista de atividades a serem realizadas, também não se articulavam aos conteúdos. Mais adiante, o documento novamente propunha diversas ativi- dades de leitura, entre elas leitura de textos informativos, narrativos, ficcionais, parlendas, trava-língua, leitura em voz alta, individualmente e em grupo, leitura silenciosa, leitura sequenciada, leitura do alfabeto, de gibis, jornal, leitura de gravuras, leitura para os alunos que ainda não liam de forma independente. Os conteúdos foram apenas enumerados e, embora algumas atividades fossem contextualizadas, o Projeto Po- lítico Pedagógico não apresentava uma fundamentação teórica para o ensino de leitura e não considerava que, para a aprendizagem da leitura e da escrita, seria preciso identificar ou criar nos aprendizes a neces- sidade de apropriação da linguagem escrita, a partir dos usos sociais. Os registros fotográficos O uso de fotos, de acordo com Bauer e Gaskell (2008, p.137), como instrumento na pesquisa qualitativa, “oferece um registro restrito, mas poderoso das ações temporais e dos acontecimentos reais – con- cretos e materiais”. Não havia sido prevista no projeto de pesquisa a utilização de imagens em pinturas e fotografias. Entretanto, logo que iniciei, percebi a necessidade de recorrer a pinturas que representassem mulheres em situações de leitura e também de registrar, por meio de fotografias, situações de leitura e lugares do escrito no CRDown e fora dele. Os registros fotográficos das situações de leitura complementa- ram os dados coletados nas observações formais dos atendimentos terapêuticos e pedagógicos e nas observações informais: corredores, CARTAS VAZIAS 27 secretaria, biblioteca, espaço das mães. Foi empregado também na entrevista com uma das mães, Cida, e nas entrevistas com as meninas Dânia, Jane e Andréa para mostrar seus escritos e objetos de leitura, revelando concepções, maneiras de ler e propósitos de leitura. Uma vez apresentada a trajetória da pesquisa e os recursos teórico- -metodológicos empregados, no segundo capítulo apresento as leitoras deste estudo, mães, professoras e meninas com síndrome de Down e as situações de leitura observadas no espaço das mães, biblioteca, aten- dimentos pedagógicos e terapêuticos do Centro de Referência Down. Os relatos das mães revelaram que, embora com diferentes histórias de vida, o nascimento de um filho com síndrome de Down implicou mudanças de valores, de atitudes, de práticas no cotidiano marcadas pela dor, incertezas e dedicação. Para essas mulheres, ser mãe signi- ficava assumir no cotidiano a autoria de ter um filho “especial”. As professoras, também com diferentes histórias de vida, tomaram o CRDown como lugar de trabalho e de missão e nele permaneciam com um sentimento de pertença. Ser professora em um Centro de Referên- cia Down implicava processos e papéis assumidos em um cotidiano profissional de doação e desconforto. As meninas com síndrome de Down, de acordo com Cardoso (2003), nem “anjos” nem “pobres criaturas”, eram mulheres-leitoras em formação. As leitoras As mães Cida foi a primeira mãe entrevistada. Ela é a 15a filha de uma família muito pobre do interior do Paraná. Aprendeu a ler e a escre- ver em uma escola pública de periferia. Conheceu o marido quando 2 AS LEITORAS E AS SITUAÇÕES DE LEITURA NO CENTRO DE REFERÊNCIA DOWN 30 ANA MARIA ESTEVES estava terminando a 8a série, mas só se aproximaram depois de alguns anos. Ela engravidou, casou e teve seu primeiro filho. Saiu do em- prego e, com o fundo de garantia, comprou a geladeira, “que a gente não tinha nada, com o dinheiro fui comprando as coisas. Ele foi não parando no emprego, ficava um mês, saía, dois meses, saía; não sei o que acontecia, sabe. Ele bebia quando era solteiro, quando casou, piorou”. Quando Cida engravidou pela segunda vez tinha 34 anos. Veio a G com síndrome de Down e eu não trabalhei mesmo mais. Eu fiquei em casa. A médica pediatra passou e me deu a notícia. Nossa! Eu não sabia o que era síndrome de Down, o que tinha que fazer com a criança com síndrome de Down, quais eram as consequências. Então, a médica falou ainda que ela tinha sopro, tinha uma hérnia e que eu tinha que correr atrás, que uma criança assim eu tinha que cuidar com todos os cuidados. Aquilo me assustou, me apavorou. Eu chorei, questionei Deus naquela hora, depois eu pedi perdão. “Senhor, por que comigo? Já sabe de tudo que eu passei na minha vida, porque o Senhor colocou mais isso no meu caminho? Eu não pedi para o Senhor mandar ela perfeitinha, com saúde?” Chorei, chorei, chorei e dormi. Ele falou assim: “Olha! Nós estamos juntos. Ela é nossa filha, nós vamos lutar juntos, isso não vai mudar nada o nosso sentimento por ela, é a mesma coisa, é até mais ainda”. Deus foi tão bom que, na primeira consulta com o cardiologista, ele já descartou o problema do coração. Ela é só alegria, graças a Deus. É a coisa mais linda do mundo e veio mudar a vida da gente, veio fazer a gente ver a vida diferente. Eu penso em voltar a trabalhar, penso em voltar a estudar. Eu estou criando a G. para ser autônoma. Eu quero que ela trabalhe, que ela estude, se tiver jeito de ir pra faculdade, vai, se tiver condições e se Deus quiser vai ter! Se ela quiser casar... Eu vou estar sempre do lado dela. Pela minha vontade, ela vai ser completamente independente porque eu trago aqui é para isso. Levo na outra escola pra ela ficar independente. Esse é o meu objetivo. O relato de Rosa, 42 anos, mostrou que sua história de vida poderia também ser dividida pelo fato marcante do nascimento do filho com Down. CARTAS VAZIAS 31 Eu estudava perto de casa, em escola pública. Eu era uma aluna muito comportada. A escola respondia às minhas necessidades até certo ponto. Depois, que eu fui para o colegial, eu comecei a estudar à noite. Primeiro, eu trabalhei em uma firma de amigos meus. A gente assistia televisão e gravava todos os programas. Depois de lá, eu fui para a Caixa Econômica, como esta- giária. Depois disso, fui secretária administrativa, trabalhei em uma financeira. E depois, com vinte e poucos anos, me casei. Infelizmente eu parei, não fiz mais uma faculdade. Fiz curso técnico, passei por um concurso público. Atuo na área de saúde, num posto que funciona 24 horas. Estou no posto há 9 anos. Depois, Eu engravidei. Penso que foi da vontade de Deus e a gente ficou muito feliz. Veio o M. assim. No meu modo de pensar é presente de Deus, porque é difícil, mas desde pequena, eu sempre soube que tinha uma missão muito grande. Aí veio o M. e eu soube que a missão era essa mesmo. Então é difícil, mas é uma luta que vale a pena. Eu, que sou uma profissional da área da saúde nunca tinha visto um bebê Down, olha que eu trabalho num posto 24 horas. Então, nessa fase eu comecei a ler, ler, ler muito, muito, muito, ler tudo e foi horrível porque eu não devia ter feito isso. Lia, lia, lia e falava: “meu Deus, será que meu filho vai ser assim?”. Depois eu parei, a hora que eu soube que era mesmo. Eu percebo, de quando ele nasceu pra hoje, eu acho que já melhorou muito. Mas eu acho que a inclusão melhorou muito, só que também, por outro lado, o governo inclui, só que também não forma, então os professores que lidam não estão preparados, nem os médicos estão preparados pra dar a notícia pra mãe. Hoje eu vivo cada dia. Sabe o que é diferente quando você tem um filho Down? É que você começa a viver diferente, você vive cada dia o seu dia. É o que deveria todo mundo fazer, mas a gente só aprende isso quanto tem um filho Down. Edna, 49 anos, nascida em Roma, na Itália, morava no Brasil desde 1991. A mãe era professora primária e o pai tinha uma construtora. Com três anos foi para a escola. Aos seis anos entrou para uma asso- ciação de escoteiros vinculada à paróquia da Igreja Católica. Nos fins de semana, a mãe costumava levá-la para visitar museus e praças e à missa aos domingos. Edna fez o antigo curso clássico e pretendia fazer Belas Artes, mas os pais impediram porque era visto como um curso 32 ANA MARIA ESTEVES de esquerda. Então ela iniciou o curso de Arqueologia, mas abandonou porque nos anos 1980 “tinha terrorismo, as Brigadas Vermelhas na uni- versidade, era um horror”. Edna começou a trabalhar, customizando tênis para crianças. Depois foi ajudante de figurino para cinema. Com 28 anos, casou-se e veio para o Brasil, pois seu marido já administrava negócios da família no país. Tiveram duas filhas, a segunda nasceu com Down. O relato de Edna mostra como sua vida mudou. Então cheguei em casa, o pediatra falou “olha, sair de casa nem pensar, a tua filha não pode entrar no quarto. Tem que ficar isolada. Manda em- bora cachorro e gato [...] Veio o outro amigo de família que era psiquiatra e falou: Para com isso, não acredita, faz a sua vida normal, leva a M. junto com você. O primeiro ano no CRDown, você enlouquece porque o fato de ver vários e ver o bebê e ver como ele vai ficar com o passar dos anos; aquilo é um choque muito grande. Em 2000, Edna participou do Congresso Brasileiro de Síndrome de Down, em Curitiba. “Primeiramente, chorei quando vi quinhen- tos, não sei, mil síndrome de Down e, depois, com o tempo comecei a me interessar, comecei a frequentar mais o Centro de Referência, pesquisava para todos os lados, chamei amigas da Itália para me enviar material.” Logo depois, ela assumiu a presidência da entidade. Quan- do a entrevistei estava no terceiro mandato. Ao falar sobre a situação das mães que têm um filho com síndrome de Down, relatou que a influência da igreja é grande; “esse senso de culpa se nasce o filho com uma deficiência porque fez alguma coisa na vida. Eu sou mãe, eu sou católica, acredito só que eu tenho uma visão um pouco diferente da vida. Uma coisa que noto é esse sofrimento que elas têm”. As professoras Clara, 35 anos, era a mais jovem das professoras entrevistadas. Com oito anos foi morar com a avó paterna, mãe de dezesseis filhos. Frequen- tar escola sempre foi um desafio, pois a avó não queria que ela estudasse. Quando era criança, “frequentava o Centro, mas graças a Deus eu tinha CARTAS VAZIAS 33 um avô que era ministro da igreja e ele começou a me levar, acho que por obra do Espírito. Aí eu comecei a participar na Igreja Católica”. Com quinze anos, Clara voltou a morar com a mãe. O padrasto “começou a fazer da minha vida um inferno. Ele queria ver a gente longe, não queria mais que eu estudasse também”. Para estudar, Cla- ra enfrentou a avó, o padrasto e o pai. Buscou na religião força para prosseguir seus estudos. “Fiz uma promessa, até hoje eu cumpro essa promessa todo ano. Fiz uma promessa para Nossa Senhora da Imacu- lada Conceição que na sexta-feira santa eu ia ficar 24 horas sem comer”. Ao concluir o 2º grau, casou-se. Separou-se quando o filho tinha três anos e começou a trabalhar com a mãe, que tinha uma fabriqueta de costura. Clara casou-se novamente e arrumou emprego em uma empresa de cosméticos onde trabalhou dez anos. Fez pedagogia em uma universidade particular e, em 2007, começou a trabalhar no CR- Down. Em 2008, cursou uma Especialização em Educação Especial e passou a trabalhar em período integral. Marina, 54 anos, professora aposentada, passou a infância no interior do estado de São Paulo onde o avô e o pai vendiam café. Aos sete anos foi com a família foi para o Paraná. O pai era contador, a mãe, de origem libanesa, sempre se dedicou ao comércio. Marina fez Magistério, depois cursou Pedagogia. Quando terminou a graduação, assumiu uma classe na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). Fez um curso de Especialização em Educação Especial e passou a trabalhar também com uma sala especial de uma escola pública. Na sala especial multisseriada, Marina efetivou-se e lecionou 27 anos. Foi a primeira professora de sala especial em sua cidade. “Tenho uma experiência de vida estrondosa, tenho relatos que daria para escrever livros de sala especial, porque além dos alunos crescerem, também eu fui crescendo junto com eles.”. Ao aposentar-se, mudou-se para a cidade onde reside atualmente. O marido já aposentado voltou a trabalhar na área de comunicação e Marina “ficava sozinha, então eu me enfronhei nas atividades da igre- ja”. Aprovada em um concurso da Secretaria de Educação Especial, Marina retornou ao magistério, no CRDown. “Foi uma experiência muito nova, eu não tive contato como professora com crianças com 34 ANA MARIA ESTEVES síndrome de Down porque eu sou da época em que crianças com síndrome de Down eram sinônimo de Apae”. Marina faz planos para trabalhar por mais dez anos, depois pretende dedicar-se aos netos e à Igreja Presbiteriana do Brasil. Valéria, 40 anos, nasceu numa fazenda, no interior do Estado do Paraná. A família, de origem italiana, trabalhava na lavoura. Nos primeiros anos de ensino fundamental, frequentou uma escola rural, em uma sala multisseriada. Valéria queria ser professora, costumava brincar de dar aula para suas primas. “Eu era a professora, então eu queria ensinar. Eu me lembro da minha professora de 1a série e eu me imaginava no lugar dela.” Quando entrou na escola, ficou “uns quinze dias chorando, porque eu era muito pequena, muito pequena, e as outras que estavam na 2a série já eram moças, eu tinha receio”. Valéria recordou-se dos primei- ros livros e “de uma história, era do João Pé de Feijão”. Rememorou o momento, no “final da aula, uns vinte minutos, todo dia, uma história diferente, esse momento também era muito esperado” e das brincadeiras “salva-lata [...] a gente se escondia na roça, [...] de jogar futebol com os meninos”. A família mudou-se para a cidade e ela foi para “um colégio grande que tinha da 1a série à 8a. Tinha educação física, artes, bordado, essas coisas”. Quando a família retornou à fazenda, ela cursava o Magistério, viajava todos os dias para estudar na cidade. Concluído o magistério, mudou-se e foi morar com uma tia. Seu primeiro emprego foi numa escola particular como substituta. Logo depois, foi para uma clínica particular para trabalhar com uma psicomotricista. Para a professora, essa experiência “foi uma grande lição, eu digo que tudo que eu acabei aprendendo e sendo hoje, eu devo muito a ela”. Em seguida, trabalhou oito anos em uma instituição para crianças com necessidades especiais, embora não tivesse formação na área de Educação Especial. Cursou História em uma faculdade particular e um curso de especialização. Em 2003, entrou no CRDown para prestar atendimento pedagógico. Valéria fazia planos para cursar “especiali- zação em Educação Especial. Eu quero fazer psicopedagogia, é meu sonho, eu pretendo continuar, eu não pretendo parar”. CARTAS VAZIAS 35 As meninas Os primeiros contatos com Jane, Dânia e Andréa aconteceram informalmente nos intervalos das atividades que participavam e du- rante as observações dos atendimentos terapêuticos e pedagógicos. A aproximação foi passo a passo, conversávamos nos recreios, às vezes na entrada ou no final do período. Em outros momentos, eu apenas as acompanhava a distância, atenta aos seus movimentos e gestos de leitura. Aproximei-me também das mães para conhecer as histórias de vida de Jane, Dânia e Andréa, até que amadureci a ideia de entrevistá- -las fora do Centro de Referência. Desde os primeiros contatos, as mães mostraram-se dispostas a colaborar e muito interessadas em que suas filhas participassem do estudo. As meninas também reagiram positivamente e quando comuniquei a possibilidade de entrevistá-las em suas casas, ficaram entusiasmadas. Receberam-me efusivamente e comportaram-se como verdadeiras anfitriãs. As entrevistas com Jane (18 anos), Dânia (16 anos) e Andréa (17 anos) foram acompanhadas pelas mães, que podiam intervir quando solicitadas ou quando entendessem que deviam acrescentar alguma informação necessária. Entrevistar as meninas em casa possibilitou conhecer o espaço familiar, os lugares de leitura, os materiais escritos que constituíam suas referências de leitura, os suportes utilizados, enfim, suas maneiras de ler no cotidiano. Jane foi a primeira das meninas entrevistadas. Ela concluiu o 4º ano do ensino fundamental em 2006 e deixou de frequentar a escola. O pai, assalariado e a mãe, dona de casa, tiveram três filhas, uma já casada; outra, concluindo o ensino superior e Jane, a caçula. A família morava em um pequeno apartamento no terceiro andar de um prédio sem elevador. Para Jane era extremamente cansativo subir as escadas, uma vez que ela apresentava problemas cardíacos. Na parede de seu quarto havia um mural com suas fotos, de familia- res e amigos, e algumas colagens. Seus escritos estavam por toda parte: em pastas, sacolas e mochilas que Jane organizava detalhadamente. Havia também uma televisão, um DVD, um aparelho de som e um 36 ANA MARIA ESTEVES computador. Jane carregava sempre uma mochilinha preta com seus pertences pessoais, escova, espelho, batom, livros e outros objetos. Em um de nossos primeiros encontros, na sala de atendimento fisioterápico, ela mostrou os livros que carregava na mochila e pude ver o brilho em seus olhos ao comentar as histórias lidas e relidas. Conheci Dânia na sala de atendimento pedagógico. Ela morava num bairro distante do centro da cidade, em uma casa ampla e confor- tável construída pelo pai, que era pedreiro. A mãe, uma senhora com mais de cinquenta anos, era dona de casa e mãe de três filhos. Dânia era a filha mais nova. Assim como Jane, concluiu o 4º ano do ensino fundamental em uma escola pública e parou de frequentar o ensino regular. Ela e Jane frequentavam outro centro de referência onde faziam atividades lúdicas, artísticas e de informática. No quarto de Dânia havia fotos na parede, uma delas a mostrava recebendo o certificado de conclusão do 4º ano do ensino fundamental, que ela fez questão de mostrar assim que cheguei para entrevistá-la. O computador era utilizado para jogos em CDs, emprestados por uma professora do CRDown. No guarda-roupa, Dânia guardava uma máquina de escrever que usara para aprender datilografia. As roupas e sapatos estavam impecavelmente organizados. No canto, a televisão que assistia à noite. Na varanda do fundo ficavam seus passarinhos e embalagens amontoadas que Dânia doava para reciclagem. Dânia frequentou a Apae dos seis meses aos oito anos. De acordo com sua mãe, lá aprendeu apenas as vogais. A inclusão de Dânia em uma escola pública foi muito difícil porque o preconceito era grande e ninguém aceitava uma criança com síndrome de Down. A mãe só conseguiu matricular a filha numa escola cerca de três quilômetros distantes de casa. Mãe e filha iam e voltavam a pé todos os dias. Foi nessa escola pública municipal que Dânia fez até o 4º ano do ensino fundamental. Andréa foi a terceira menina entrevistada. Morava com a mãe e o irmão mais velho, em um pequeno sobrado num condomínio popular A mãe tinha cerca de quarenta anos. Vendia perfumes e cosméticos e, eventualmente, fazia massagens na casa das clientes. Acompanhava a filha em todas as suas atividades. CARTAS VAZIAS 37 Andréa frequentou uma escola particular na educação infantil, mas foi encaminhada para o CRDown porque, de acordo com a diretora, a escola não estava preparada para lidar com ela. Quando a entrevistei, ela fazia o 4º ano do ensino fundamental em uma classe de Educação para Jovens e Adultos (EJA). Tinha sido reprovada duas vezes no 3º ano, por isso a mãe a transferiu para o curso noturno e matriculou-se também para acompanhá-la. Ela passava horas no quarto brincando, desenhando e pintando. Da cozinha, a mãe ouvia a voz da filha con- versando com as bonecas; ela era a professora de suas bonecas-alunas. No CRDown frequentava a sala de atendimento pedagógico e fazia sessões de fisioterapia e fonoaudiologia. Para Dânia, Jane e Andréa, o CRDown ocupava um lugar pri- mordial em suas vidas, como espaço de possíveis interações sociais e possibilidades de inserção na cultura escrita. Leitura no Centro de Referência Down O CRDown era um lugar marcado e demarcado pela diferença, que caracteriza a síndrome de Down como deficiência e, em torno dessa diferença, mães, professoras e terapeutas mobilizavam-se com o mesmo objetivo: cuidar e educar pessoas com síndrome de Down. Embora tivessem o mesmo objetivo, as mães e as profissionais não partilhavam o trabalho ali desenvolvido. Separadas, mães de um lado e profissionais de outro, também não partilhavam entre si suas práticas de leitura. As observações apontaram inicialmente diferentes papéis sociais assumidos pelas profissionais e pelas mães do CRDown. As mães que atuavam como voluntárias desempenhavam o papel de acompanhantes de seus filhos, mas permaneciam a maior parte do tempo isoladas no es- paço a elas destinado. As professoras e terapeutas exerciam um trabalho assalariado e circulavam nos espaços destinados aos atendimentos, sala multidisciplinar, secretaria e diretoria. Os diferentes papéis marcavam também lugares sociais: mães voluntárias de um lado e profissionais assalariadas de outro. As situações de leitura observadas também pareciam divididas pelos lugares sociais que ocupavam. 38 ANA MARIA ESTEVES Leitura no espaço das mães No CRDown, as mães encontravam-se diariamente, reunidas em grupo, faziam trabalhos artesanais, preparavam lanches, conversavam, trocavam receitas culinárias e conselhos. No cotidiano, cumpriam ações e ritos, desenvolviam táticas de resistência diante das dificuldades para enfrentar as limitações dos filhos, as dificuldades financeiras, o preconceito, o fim do casamento (algumas relataram que o marido foi embora logo após o nascimento do filho com síndrome de Down). O cotidiano, de acordo com Burke (1992, p.24), [...] inclui ações [...] e também atitudes, o que poderíamos chamar de hábitos mentais. Pode até incluir o ritual. E o ritual, indicador de ocasiões especiais na vida dos indivíduos e das comunidades, é com frequência definido em oposição ao cotidiano. Por outro lado, os visitantes estran- geiros muitas vezes observam rituais cotidianos na vida de toda sociedade – modos de comer, formas de saudação etc. que os habitantes locais não encaram de forma alguma como rituais. Ao vivenciarem no CRDown as práticas cotidianas próprias do espaço privado, as mães reproduziam ações e ritos próprios cultivados na intimidade do lar, rompendo os limites entre público e privado. Práticas como bordar, pintar, tricotar, cozinhar, aprendidas e desen- volvidas na privacidade do lar, também faziam parte do cotidiano das mães no Centro de Referência. Entre elas, trocavam esses saberes, ensinando umas às outras o que sabiam. Estabeleciam uma forma de comunicação, tendo como código cores e linhas. Comercializavam individualmente a pequena produção com muita dificuldade e, por isso, a diretora da entidade planejava criar uma associação de artesãs que se especializassem para o mercado de exportação com o objetivo de gerar renda para as mães e para a entidade. Voluntárias de fora vinham semanalmente ensinar pintura em tecido e outros trabalhos artesanais. Duas mães punham em prática as técnicas de pintura, enquanto as outras observavam e, ao mesmo tempo, conversavam entre si. CARTAS VAZIAS 39 O artesanato parece ter-se constituído como tática das mães para romper os silêncios e participar da vida social, uma vez que a maioria delas não trabalhava fora para cuidar dos filhos. Anne Marie Char- tier (2002) retoma a concepção de Certeau (2008) e diferencia táticas culturais e estratégias institucionais. Para A. M. Chartier (ibidem, p.79, tradução nossa): As estratégias dominam seu espaço de ação, jogam relações de força, capitalizam seus resultados, definem projetos, impõem programas. As culturas, ao contrário, estão do lado das táticas: do mesmo modo que os falantes tomam seus enunciados de uma língua e conversam em função dos encontros, cada ator impõe, a sua maneira, sua marca própria sobre o que lhe foi dado fazer, compreender e viver. Sem dúvida, não é a posse do terreno sobre o qual se move, é no repartir das cartas de seu jogo: a cultura se joga sempre “no terreno do outro”. É nesse jogo de táticas e estratégias que situei as práticas de lei- tura das mães no CRDown. Ali as mães voluntárias usavam táticas culturais, diferentemente das professoras e terapeutas que utilizavam estratégias institucionais nos atendimentos pedagógico e terapêutico. Por isso, poder-se-ia afirmar que, no CRDown, as práticas de leitura se realizavam entre táticas culturais e estratégias institucionais. O espaço das mães constituiu-se como um “lugar de fala e parti- cipação” (Lessa, 2004), em que essas mulheres praticavam as “artes de fazer” (Certeau, 2008). A formação dessas redes de comunicação indireta pelo artesanato (Lessa, 2004) parece ter sido uma tática uti- lizada pelas mães no CRDown. O uso da palavra para elas não tinha apenas a função de meio de comunicação, servia também como forma de afirmar a identidade da instituição. Em várias observações informais, presenciei mães fazendo uso da palavra para legitimar o CRDown, embora quase não participassem das decisões administrativas que eram tomadas no dia a dia pela di- retoria. Nesses momentos, pude verificar como elas estavam sempre vigilantes para reafirmar, por meio da palavra, o papel desse espaço institucional e preservar sua imagem. 40 ANA MARIA ESTEVES Cumprindo com o papel de cuidadoras, durante os intervalos das atividades dos filhos, cuidavam dos mais dependentes e, quando necessário, acompanhavam atentas as brincadeiras no pátio. Também ajudavam a servir a merenda, práticas femininas do cotidiano que se repetiam naquele espaço. Essas práticas pareciam ter pouca visibilidade para o CRDown, o que impedia de serem vistas como práticas cultural- mente construídas de participação das mães no cotidiano da instituição. Também as práticas de leitura das mães passavam despercebidas no CRDown. A imagem captada pela câmara fotográfica reproduziu cinco mulheres, entre elas três lendo; duas lendo uma carta-comunicado; a outra, à direita, lendo um livro com ilustrações. Embora estivessem reunidas no mesmo espaço e momento, liam cada uma para si. Não liam em voz alta, sequer mexiam os lábios durante a leitura. Não havia ali nenhuma cumplicidade entre elas. As leituras não eram partilhadas. A leitura de entretenimento era solitariamente saboreada e as leituras do comunicado do Centro de Referência que caracterizavam uma leitura informativa também não eram partilhadas. Situações de leitura pareciam não ter nenhuma visibilidade para o CRDown, que não via as mães como leitoras. Em uma outra situação de leitura, as mães conversavam, folheavam catálogos de cosméticos e perfumaria da Avon e um outro catálogo cha- mado Shopping de produtos diversificados, ambos direcionados ao pú- blico feminino. Fizeram uma leitura rápida, os catálogos passavam rapi- damente pelas mãos de algumas delas. Embora ali estivessem reunidas, nada partilharam sobre o que liam. Os suportes ali presentes eram re- vistas femininas, catálogos e comunicados afixados em um mural. Não havia livros ou outros objetos de leitura no espaço destinado às mães. Uma terceira situação de leitura observada no pátio do CRDown mostrou uma mãe distante do grupo que lia silenciosamente. Mer- gulhada no texto, ela interrompeu a leitura quando me aproximei e mostrou-me a Bíblia, dizendo que preferia gastar seu tempo com a leitura do livro que considerava indispensável. A Bíblia em sua bolsa permitia ler e reler trechos, quando estivesse com algum tempo dispo- nível. Era uma leitura intensiva. O desdobramento da pesquisa apon- taria a presença marcante das leituras religiosas das mães e professoras. CARTAS VAZIAS 41 Em outro momento, as mães reunidas conversavam, uma delas lia atenta uma apostila. Percorria as páginas silenciosamente de um texto informativo sobre sexualidade e gravidez. A auxiliar de enfermagem de um Centro de Saúde lia para fazer uma palestra sobre o assunto. Parecia bastante motivada e permaneceu nessa leitura até o final do texto. Lia movida pelo desejo de aprender e ensinar outras mulheres em seu trabalho. Pouquíssimas mães trabalhavam no mercado formal, essa mãe era uma rara exceção. Foi a única situação de leitura de trabalho que presenciei entre elas. Em uma observação informal, acompanhei um diálogo sobre leitura. De repente, uma das mães falou para as outras que, na ado- lescência, lera muita poesia, que gostava de ler, mas que havia deixado de ler por falta de tempo. Foi uma fala inesperada, mas as mulheres nada responderam. Ela havia descoberto a poesia em um livro, na casa onde trabalhava como babá. Levava um caderno, e com a permissão da patroa, copiava as poesias para depois reler em casa. Acostumadas com a minha presença e informadas do trabalho que desenvolvia, quando falavam alguma coisa sobre leitura, olhavam para mim. Eu percebia que era para ver se as aprovava ou não, já que não se viam como boas leitoras, como constatei durante a investigação. Em casa, o principal entretenimento dessas mulheres era a televisão, principalmente novelas e minisséries. Apenas uma das mães afirmou nos diálogos informais ter trocado a televisão pelo computador, des- cobrindo sozinha como usar alguns recursos de jogos virtuais. Poucas mulheres tinham computador em casa, para uso dos filhos. Foram muitas tardes para poucas situações de leitura que se repe- tiam. Elas folheavam catálogos e revistas. As leituras eram feitas entre um e outro trabalho artesanal ou dos diálogos entre elas. Das revistas que folheavam, liam alguma coisa. Logo desistiam e voltavam para os trabalhos artesanais e conversas que prosseguiam no dia seguinte. Leitura nos atendimentos pedagógicos Nos atendimentos pedagógicos, o ensino de leitura priorizava o método fônico e essa opção era justificada pela própria deficiência, 42 ANA MARIA ESTEVES a síndrome de Down. Entretanto, há uma diferença entre ensinar o código alfabético e mediar o processo de apropriação da linguagem escrita como um instrumental cultural complexo. As concepções que permeavam as práticas pedagógicas, ao priorizar o ensino do código alfabético, reduziam a língua a letras e sons, quando a língua viva é enunciação. Lemos e escrevemos enunciados, que, por sua vez, encontram-se no mundo da cultura e, só por meio dela, entramos em contato com a língua como objeto social e histórico (Bakhtin, 1992). As situações de leitura observadas mostraram a distância entre as práticas de leitura no CRDown e os gestos de leitura das meninas. Os discursos de professoras e terapeutas sobre as dificuldades de apren- dizagem da leitura e da escrita partiam da deficiência e justificavam as limitações das crianças e jovens com Down para se apropriarem da linguagem escrita. O ensino de leitura não era questionado, uma vez que o foco era deslocado para a deficiência. Ao tratar da alfabetização, o Projeto Político Pedagógico do CRDown estabelecia que as atividades de alfabetização deviam ser adequadas aos interesses dos alunos, suas experiências no uso da linguagem. A alfabetização é apresentada como um processo de apro- priação da linguagem escrita por meio da interação do aluno com outras pessoas, pois a aprendizagem da leitura era das metas mais desejadas pelas famílias e pelos educadores. Embora o Projeto Político Pedagógico afirmasse a relevância das experiências de linguagem de crianças e jovens com Down e apre- sentasse a alfabetização como processo de apropriação da linguagem escrita, as atividades pedagógicas não contemplavam as práticas de leitura desses alunos. A expectativa do CRDown e da família era que eles fossem alfabetizados, isto é, que aprendessem a ler e a escrever o código linguístico. Mães, professoras e terapeutas supunham que, dominando o código alfabético, os alunos desenvolveriam “natural- mente” práticas de leitura e escrita. As falas das meninas também sugeriam o descompasso entre seus gestos de leitura e as práticas de leitura no CRDown. O ensino de leitura limitava-se muitas vezes à leitura de palavras curtas, descon- textualizadas e distantes das necessidades das meninas, no cotidiano. CARTAS VAZIAS 43 Nas atividades pedagógicas, trabalhavam-se práticas culturais de leitura próprias da escola, sendo a alfabetização centrada na decifração do código alfabético. Ao falar sobre as atividades nos atendimentos pedagógicos, Jane apontou práticas de escrita escolarizadas, que não contemplavam a leitura e produção de textos. Durante sua entrevista, não mencionou uma única situação de produção de texto nos atendimentos pedagó- gicos que frequentava. Ana Maria: Na sala de aula, o que você faz? Jane: Eu escrevo. Ana Maria: O que você quer? Jane: Não, o que a professora quer. Ana Maria: E o que a professora quer que você escreva lá? Jane: É... continhas, é... Ana Maria: O que mais? O que ela pede para escrever? Ana Maria: Na sala de aula, o que você faz? Jane: Ah! Ela pede para escrever a data de hoje. Dânia também relatou práticas de leitura distantes dos usos sociais de leitura. Dânia: [A professora] fala bastante. Ana Maria: Fala bastante o quê? Dânia: Atividade. Ana Maria: Então, você faz o que a professora pede? Dânia: É. Ana Maria: Você fica inventando suas histórias? Dânia: Não. Pesquisadora: Não dá tempo? Dânia: Não. Ana Maria: Lá na sala de atendimento pedagógico é mais ler pala- vrinhas? Dânia: Leio. Curta. Ana Maria: Curta? Você não gosta de palavra comprida? Dânia: Não. 44 ANA MARIA ESTEVES Embora a leitura de textos em variados gêneros discursivos fosse uma atividade pouco explorada no CRDown, as meninas liam em casa, principalmente Jane e Dânia. Jane costumava ler histórias em seu quarto, à noite. Os livros eram emprestados ou presenteados por sua madrinha. Às vezes, ela pedia que a mãe lesse em voz alta. A mãe relatou que, no ano de 2007, a filha trazia da escola toda semana “livros novos, que eram histórias”. Jane lembrou de uma das histórias lidas, o conto de fadas Chapeuzinho Vermelho. Dânia lembrou-se de um livro doado à biblioteca do CRDown, no início do ano letivo de 2008. Pela sua fala, ela teria lido o livro antes da doação à biblioteca, pois os empréstimos eram realizados esporadicamente e dependiam da disponibilidade de cada professora. A biblioteca acabou sendo desmontada para dar lugar à sala da pre- sidência da entidade. Ana Maria: Lá você tem livro para ler? De histórias? Dânia: De histórias? Ana Maria: Lá você lê? Dânia: Leio. Ana Maria: Histórias inteiras? Que histórias você já leu? Você lembra? Dânia: Do esqueleto. Ana Maria: Do esqueleto? Dânia: É. A minha mãe comprou o material. Ana Maria: No seu material escolar tinha esse livro? Dânia: É. Além de livros, outros suportes de leitura foram mencionados pelas meninas, como gibis e revistas. No CRDown eram utilizados para recortar, colar figuras e palavras, fazer legendas para colagens no caderno. Embora as meninas demonstrassem interesse pela leitura de textos, nos atendimentos pedagógicos trabalhavam quase sempre palavras soltas, fragmentos de textos, lições cartilhescas, colagens de palavras e figuras. Em casa, as mães reproduziam para as filhas as maneiras de ler e escrever aprendidas na escola, muito semelhantes às situações de leitura do CRDown. CARTAS VAZIAS 45 O ensino de leitura, baseado na correspondência entre sons e letras tornava difícil para Dânia, Jane e Andréa saírem dos gestos para as prá- ticas de leitura. O método fônico frequentemente utilizado era o Mé- todo das Boquinhas, embora não fosse oficialmente adotado. Trata-se de um método fonovisioarticulatório que utiliza estratégias fonêmicas (fonema/som), visuais (grafema/letra) e articulatórias (boquinha). De acordo com Jardini (2009), o desenvolvimento do Método das Boquinhas “foi alicerçado na Fonoaudiologia com a Pedagogia, que o sustenta, sendo indicado para alfabetizar quaisquer crianças e reabi- litar os distúrbios de leitura e escrita”. Segundo a autora, “o ponto de partida do ser humano na aquisição de conhecimento reside na boca, que produz sons – fonemas, que são transformados em fala, meio de comunicação inerente ao ser humano”. Para a autora, a aquisição da leitura e da escrita depende da deco- dificação/codificação em letras (grafemas), como no processo fônico, ou seja, trabalha as habilidades fonológicas e a consciência fonológica. Por isso, cada letra precisa ser pronunciada isoladamente, o que faci- lita o processo de decodificação por meio de mecanismos concretos e sinestésicos. Pelo Método das Boquinhas, “quaisquer aprendentes, de maneira simples e segura”, podem adquirir a leitura e a escrita, tendo como única “ferramenta de trabalho – a boca”. O Método das Boquinhas motiva crianças a “pensar a língua escrita a partir da boca” e desen- volver habilidades, para produzir textos significativos, só adquiridas depois de alfabetizadas (Jardini, 2009). Na defesa do método fônico de alfabetização, Moraes (1996), con- trapondo-se a uma afirmação de Vygotsky, compara o ato de aprender a ler ao ato de aprender a tocar piano, com o objetivo de mostrar que, assim como para aprender a tocar piano é necessário aprender teclas e notas musicais, para aprender a ler é preciso aprender letras e sons. Segundo Moraes (ibidem, p.269): Na aprendizagem de uma habilidade, há momentos críticos em que determinada aquisição deve ser realizada para que a aprendizagem se desenvolva eficazmente. Não se começa a aprendizagem de piano pedindo 46 ANA MARIA ESTEVES ao aluno que interprete diretamente as obras. A relação entre as teclas e as notas deve ser ensinada explicitamente no início da aprendizagem. A falta de certos conhecimentos críticos entrava o processo de aprendiza- gem, tanto no piano como na leitura. Contrariamente ao método global, o método fônico é baseado na ideia de que no processo de aprendizagem há passagens obrigatórias. Já para Vygotsky (2000, p.183): Nosso ensino da escrita não se baseia no desenvolvimento natural das necessidades da criança, nem em sua própria iniciativa: chega-lhe de fora, das mãos do professor e lembra a aprendizagem de um hábito técnico, como, por exemplo, tocar piano. O aluno desenvolve a agilidade de seus dedos e aprende, lendo as notas, a tocar as teclas, mas não se introduz na natureza da música. A comparação de Vygotsky (ibidem), entre o ato de escrever e o ato de tocar piano demonstra exatamente o oposto da tese de Moraes. Para o Vygotsky, aprender a ler e a tocar piano como hábito técnico não é o caminho para penetrar na natureza da linguagem escrita, nem da música. Assim como não penetramos na natureza da música pela identificação e repetição de notas musicais, não nos apropriamos da linguagem pela identificação de letras e sons. Na sala de atendimento pedagógico da professora Elaine, ela trabalhava com quatro adolescentes, duas vezes por semana, durante uma hora e meia em uma sala pequena, onde havia uma mesa redonda no centro, algumas cadeiras, pouco cartazes nas paredes, um armário com portas no qual guardava cadernos dos alunos e outros materiais. Na primeira observação, acompanhei uma atividade de leitura. Ela entregou os cadernos do ano anterior para os alunos, tubos de cola e tesouras, com uma atividade escrita para que recortassem de revistas palavras que começassem com a letra L. Os alunos abriram os cadernos, enquanto a professora Elaine explicava o que deviam fazer, mas nenhum deles leu as instruções escritas. Pareciam desin- teressados, ausentes. CARTAS VAZIAS 47 Jane tentou sair da situação e falou sobre o namorado, mas ninguém respondeu. Ela silenciou e todos retomaram a busca de palavras. No final da atividade, a professora leu oralmente as palavras de dois alunos, sem nenhum comentário. As palavras recortadas pelos outros dois alunos foram verificadas silenciosamente pela professora, mas não foram compartilhadas com outros alunos. Na segunda observação de atendimento pedagógico, a professora colocou sobre a mesa dois pequenos cartazes com letras do alfabeto para exercitar o Método das Boquinhas. Os alunos ficavam atentos aos movi- mentos que a professora fazia com a boca para pronunciar as vogais. Re- petiam pausadamente cada som, olhando fixamente os cartazes e tenta- vam acompanhar as instruções da professora, mas não demoraram muito para que demonstrassem cansaço. Em seguida, escreveram no caderno, a pedido da professora, números e sílabas com as quais deviam formar palavras que começassem pela sílaba “fa”, como em “fa + rofa = farofa”. Na terceira observação, os alunos receberam seus cadernos com alguns quadrinhos de gibis para que fizessem legendas. Eles fizeram exatamente como a professora havia pedido; para cada quadrinho uma legenda que não tinha nenhuma relação com os outros quadrinhos. Confusos, entreolhavam-se e olhavam os quadrinhos. Jane repetiu as legendas, sem atentar para o fato de que deveria compor uma sequên- cia. Ao corrigir, a professora assinalou apenas as inadequações orto- gráficas de sua atividade, mas nada mencionou a respeito da sequência ou desse gênero textual. O objetivo, que parecia implícito na atividade proposta, é que os alunos escreviam para a professora corrigir os erros. Finalmente, na última observação presenciei os alunos que tra- balhavam com cabeçalho, utilizando para isso um calendário móvel. Eles tinham de trocar o dia da semana e o dia do mês do calendário móvel. Embora acertassem a data, identificavam apenas algumas le- tras e números de acordo com as instruções dadas. Dessa vez, quem interrompeu a atividade foi Dânia ao falar baixinho que tinha em sua mochila “cartinhas vazias”. A professora nada respondeu, os colegas calaram-se e Dânia ficou com suas cartas vazias sem resposta. Depois, durante sua entrevista, ela iria me revelar os segredos de suas cartinhas vazias, tão significativas que se tornariam título deste livro. 48 ANA MARIA ESTEVES Na sala de atendimento pedagógico da professora Marta, eram atendidos dez adolescentes sentados em carteiras enfileiradas. Ra- ramente faltavam às aulas e participavam ativamente das atividades propostas pela professora. Nas paredes, havia um calendário, os nomes da turma com suas fotos e um cartaz com números. Na primeira observação, ela escreveu na lousa a data do dia. Em seguida, professora e alunos juntos fizeram uma oração. Depois, conversaram sobre suas atividades do dia anterior. Marta estava trabalhando com a letra “L” e a letra “T”. Na lousa, escreveu uma palavra que começava com a letra “L” e pediu aos alunos que falassem palavras que começassem com essa letra. Citou o nome de um dos alunos que se iniciava com a mesma letra. A professora aproveitou a palavra “terça-feira” escrita na lousa para identificar a letra “T”. A seguir citou palavras como “Tatu, Teto, Tempo”. Partiu então para a família silábica “la-le-li-lo-lu”. Um aluno lembrou que a palavra “laranja” começava com a letra “L”. A professora pediu que dissessem mais palavras, imediatamente uma das alunas disse a palavra “maçã”. Os alunos faziam frequente- mente associações livres de palavras do mesmo campo semântico. As redes semânticas ou mapas conceituais pareciam motivá-los para a aprendizagem da leitura e da escrita ao estabelecerem representações de conceitos e suas relações. Mas as redes semânticas não prosseguiam porque não faziam parte das atividades pedagógicas planejadas. A última atividade, nesse dia, foi a leitura em voz alta pela profes- sora de uma história sobre a Páscoa. Ela pediu que eles escrevessem na lousa a palavra “coelho”. A palavra foi escrita de três maneiras distintas. Em seguida, juntos passaram a soletrar as sílabas “ca” e “co”. O aluno que havia escrito “cuelo” foi até a lousa e fechou a vogal, escrevendo “coelo”. Depois foi a vez de treinar o dígrafo na palavra “coelho”, repetindo-a inúmeras vezes. Para Mello (2009, p.26): Em geral, ensinam-se letras e sílabas para as crianças na educação infantil e no processo inicial de alfabetização no ensino fundamental. Parece que, ante a complexidade da escrita, buscou-se uma forma de tornar o processo mais simples. O problema é que, ao tornar o processo CARTAS VAZIAS 49 mais simples buscando ensinar primeiro as letras para então chegar aos processos de comunicação e expressão, se perdeu de vista a função social da escrita, ou seja, o fim mesmo para o qual a escrita foi criada. O método tradicional de alfabetizar com letras e sílabas parecia dificultar mais ainda a aprendizagem da leitura e da escrita desses alu- nos. Decodificar o código alfabético não tinha nenhuma relação com a linguagem que eles utilizam para ler e escrever no cotidiano. Isso ficava evidente quando eles “desligavam-se” das atividades na sala para fazer as redes semânticas ou para falar do cotidiano, de acontecimentos em casa, notícias de televisão, do próprio Centro de Referência. Na segunda observação da professora Marta, os alunos prepararam uma apresentação para a semana de Monteiro Lobato (1882-1948). Marta tinha nas mãos dois livros do escritor retirados do acervo da biblioteca. Na lousa, ela escreveu o nome completo do escritor e perguntou aos alunos o que sabiam sobre sua vida. Imediatamente um aluno falou que “ele era um grande escritor e que havia criado os personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo”. Esse aluno demonstrou ter lido/ouvido Monteiro Lobato em casa, pois ele conhecia vários livros do autor. Enquanto a professora folheava um livro, os alunos citaram nomes dos personagens como Emília, Narizinho, Pedrinho, Rabicó, Visconde de Sabugosa, Vovó Benta. Marta então perguntou “o que tia Nastácia fazia no sítio do Pica-Pau Amarelo”. Um dos alunos prontamente respondeu que “ela fazia bolinhos de chuva”. Todos os alunos passa- ram a citar nomes de pratos culinários que apreciavam. A professora prosseguiu a lição e as redes semânticas referentes a pratos culinários não se realizaram. Em seguida, Marta escreveu o nome do escritor, em caixa-alta, e solicitou que todos escrevessem no caderno. Nem todos conseguiram. Um deles ficou olhando demoradamente para a palavra, esforçando-se para decifrá-la letra a letra. Na terceira observação, a professora Marta voltou a falar sobre o escritor Monteiro Lobato. Depois, escreveu na lousa as palavras “cuca, cubo, coco”. Então, solicitou que eles falassem palavras que começassem com as mesmas sílabas. Uma das alunas disse: “coruja”. 50 ANA MARIA ESTEVES Outro, falou que “a coruja dormia durante o dia e ficava acordada durante a noite”. Sentada, ao lado de um dos alunos, percebi que ele tentava ler as palavras, soletrando baixinho cada sílaba. A professora pediu que identificassem o número de sílabas, cada um dizia um nú- mero. Como demorassem a identificar, desistiram, cansados de contar e recontar sílabas. Um dos alunos, bem humorado, perguntou se a professora lem- brava da música que falava “roubaram minha cueca pra fazer pano de prato”. O aluno insistiu que era “uma marchinha de carnaval”, mas sua voz foi abafada pelo coro de vozes que repetia as palavras “cubo, cueca, coco”. Eles sabiam de cor letras de músicas e gostavam de cantar. Outras palavras como “carne, coelho, comida” foram ditas pelos alunos. Logo, um aluno associou as palavras ditas a alimentos e disse: “salada, ovo, churrasco”. Eles tentavam buscar o significado das palavras, a partir de conexões semânticas estabelecidas em associações livres e, para isso, operavam simbolicamente a linguagem. O atendimento estendeu-se. Marta chamou a atenção dos alunos para que se fixassem no nome do escritor Monteiro Lobato. Escreveu na lousa o nome de um personagem do autor, “rabicó”, apontando para a sílaba “co” que estava sendo trabalhada. Um dos alunos falou: “raposa”. Outra aluna mencionou a palavra “cachorro”, estabelecendo de imediato uma associação. Na lousa, a pedido da professora, a mesma aluna fez várias tentativas para escrever a palavra. O atendimento pedagógico foi encerrado com um jogo de palavra- -cruzada com o nome do escritor. Foram várias tentativas até que comple- tassem as lacunas. Embora manifestassem dificuldade, demonstravam interesse por atividades lúdicas que utilizavam a linguagem escrita. Na última observação, Marta trabalhou sobre os povos indígenas, seus costumes e sua história. Um dos alunos passou a falar imitando o linguajar dos portugueses. Ela pediu que ele lesse o texto de um livro didático sobre o Descobrimento do Brasil. Após a leitura em voz alta para todos ouvirem, a professora falou sobre os costumes indígenas, particularmente sobre as danças. O aluno continuou lendo o texto sobre o Descobrimento do Brasil. Cansados de escutar, demonstravam de- sinteresse pela leitura. Para mantê-los atentos, a professora até cantou CARTAS VAZIAS 51 um trecho de uma música que falava sobre os índios. O atendimento pedagógico foi encerrado com a elaboração de um acróstico com a palavra “Lobato”. Os atendimentos pedagógicos observados mostraram que as ati- vidades de leitura e escrita ficavam circunscritas ao ensino do código alfabético, embora os alunos interviessem com suas redes semânticas que evidenciavam o desejo de trazer para a sala de aula a língua viva que circula no cotidiano de cada um deles. Leitura nos atendimentos terapêuticos As situações de leitura nos atendimentos fisioterápicos e fonoaudia- lógicos revelaram que as concepções de linguagem que permeavam a leitura derivavam da concepção de língua como sistema fixo e invariável que o aluno adquire ao treinar habilidades de identificação de letras e sons. Assim como nos atendimentos pedagógicos, os atendimentos te- rapêuticos privilegiavam as atividades de identificação de letras e sons. Na sala de atendimento fisioterápico de Dalva, as seis observações realizadas mostraram que ali, além dos exercícios de alongamento e fortalecimento muscular, também se realizavam situações de leitura. Dalva utilizava, entre outros, jogos de encaixe de letras do alfabeto. As atividades de identificação de letras e sons do código alfabético tomavam uma boa parte de tempo da sessão e eram frequentes. Na última observação, a fisioterapeuta atendeu Jane, uma das meninas entrevistadas. Era abril de 2008 e a Páscoa aproximava-se. Jane falou sobre o suposto namorado, evidenciando sua necessidade de participar de situações de interação por meio da linguagem oral. No final, abriu sua mochilinha preta para mostrar a boneca Barbie dentro de um ovo de Páscoa. Tirou também um envelope com um desenho de um coração partido ao meio, onde estava escrito o nome dela e do namorado e, também, uma agenda que ela usava como diário. Jane carregava sempre na mochilinha pequenos livros. A agenda, a folha e o envelope eram indícios de seus gestos de leitura, que pare- ciam imperceptíveis e invisíveis para as terapeutas e professoras, suas principais mediadoras no ensino da leitura. 52 ANA MARIA ESTEVES Nas observações de atendimentos fonoaudiológicos, Aline uti- lizava um software para terapia de fala e linguagem. Tratava-se do Fono Speak, baseado no método fonético, chamado de Método das Boquinhas que era utilizado também nos atendimentos pedagógicos. O Fono Speak, utilizado pela fonoaudióloga em três dos quatro aten- dimentos observados, é um software desenvolvido especificamente para Fonoaudiologia que realiza apoio terapêutico para a fala e a linguagem. O software utiliza recursos multimídia para três fases da terapia de fala e linguagem: aquisição, treinamento e automatização de fonemas. Contém vídeos, desenhos animados, palavras e frases com apelo auditivo e visual, além de oito jogos que estimulam os pacientes durante o tratamento. Nas sessões observadas de atendimentos fonoaudiológicos, realiza- das individualmente, meninos e meninas sentavam-se diante da tela do computador, olhavam atentamente uma boca pronunciando as vogais pausadamente e repetiam os mesmos fonemas. Depois, trabalhavam as famílias silábicas. Seguia-se o reconhecimento de palavras com as sílabas trabalhadas. Na última etapa havia jogos com letras, sílabas e palavras. A leitura era sempre em voz alta. Na terceira observação, a fonoaudióloga utilizou o jogo Alfabeto Alegre. No final do atendimento, Aline comunicou-me que entraria de licença e que as observações deveriam ser finalizadas antes que a nova fonoaudióloga iniciasse seu trabalho, pois os pacientes estariam em fase de adaptação. As seis observações previstas foram reduzidas para quatro. Na última observação, um menino e a fonoaudióloga disputaram um jogo de identificação de letras e palavras que começava com uma letra grafada em caixa-alta e letra cursiva. No último jogo, o menino tinha de arrastar letras espalhadas na tela do computador até uma figura para escrever a palavra correspondente. Na última observação, o mesmo menino participou de um jogo com as letras do alfabeto que explorava palavras repetidas em outros jogos. Em seguida, buscou no menu um jogo de memória. Embora os atendimentos terapêuticos fizessem parte das ativi- dades previstas no Projeto Político Pedagógico, não se realizavam articulados às atividades pedagógicas, desenvolviam-se voltados CARTAS VAZIAS 53 para suas especificidades clínicas. O trabalho fonoaudiológico en- focava o desenvolvimento da linguagem oral e escrita na deficiência, priorizando a reabilitação da linguagem, particularmente da fala dos alunos com Down. Leitura na biblioteca Havia, numa das salas da entidade, um acervo de livros, de lite- ratura infantil e juvenil e algumas obras de referência. A sala ficava sempre aberta, pois era passagem obrigatória para a secretaria, a sala da diretoria administrativa e a sala da equipe multidisciplinar, mas não havia atendimento para empréstimos de livros e não presenciei nenhuma atividade de leitura dos alunos nesse espaço. Inesperadamente, em uma das observações informais, testemunhei uma mãe que atravessou com a filha o corredor e foi até a biblioteca para ler com ela, enquanto aguardava o atendimento terapêutico da filha com Down. Embora não se constituísse como “lugar de leitura”, o “lugar dos livros” existia no CRDown como um corpo estranho em relação aos demais espaços físicos. De acordo com Arena (2009, p.162-4): [...] não bastam espaços e livros guardados para caracterizar a existência de uma biblioteca escolar; não são os objetos físicos que dão a ela a exis- tência e a vida; nem é somente com eles que o diretor pode afirmar que há biblioteca na escola. O seu estatuto, como lugar dos livros ou de biblioteca, é conquistado pela existência das relações entre alunos, livros, professores de biblioteca e professores de sala de aula [...] Há espaços para os livros, mas sem o estatuto que permitiria o mergulho na cultura literária para o nascimento e crescimento do pequeno leitor. Havia uma sala ampla com livros organizados em estantes, assim como cadeiras, mesas e estantes para guardar os livros e receber os leitores. As cadeiras estavam sempre vazias, os livros nos mesmos lugares e o silêncio constante denunciavam a ausência de leitores. 54 ANA MARIA ESTEVES Eventualmente, uma ou outra professora retirava alguns livros. Não havia ninguém para organizar o acervo, fazer empréstimos e realizar atividades de leitura. Não se tratava de falta de iniciativa da direção e dos professores, que reafirmavam nos discursos a importância da leitura, mas era preciso pensar coletivamente a produção de leitura, o trabalho de mediadores e o planejamento de atividades para os leitores. Enfim, as situações de leitura no CRDown nas salas de atendi- mento pedagógico mostraram práticas culturais de leitura próprias da escola, na alfabetização tradicional, centradas no código alfabético. Nos atendimentos pedagógicos, as tentativas dos alunos de partirem para as redes semânticas, ao insistirem nas associações livres de pa- lavras, revelaram sua motivação para dominar a língua viva, em sua dialogicidade. Nos atendimentos fonoaudiológicos, a leitura na tela do computador evidenciou certa familiaridade de crianças e jovens com esse suporte, entretanto essa leitura priorizava o a decifração do código linguístico. As observações na biblioteca do CRDown foram marcadas pela ausência de leituras e leitores. Apresentadas as leitoras deste estudo e as situações de leitura nos espaços do Centro de Referência Down, no capítulo seguinte trato da formação leitora das mães e professoras, desde a infância, nos espaços da Família, Igreja e Escola. A análise das práticas de leitura nos espaços família, Igreja e escola de que as mães e professoras fizeram parte desde a infância evidenciou as relações entre cultura oral e cultura escrita no desenvolvimento de suas práticas leitoras. Primeiramente, descrevo as práticas de escuta na infância, as figu- ras de leitores na família e os primeiros contatos com os escritos. Em seguida, trato da influência da igreja na formação leitora das mães e professoras, destacando as leituras de devoção. Na análise das práticas de leitura na escola, aponto maneiras de ler, escritos e objetos de leitura como a cartilha, com ênfase na alfabetização. De acordo com Cavallo e Chartier (2002), a história da leitura passou por três grandes revoluções. A primeira, no século XII, ocorreu com a mudança da função da escrita; as práticas monásticas de leitura foram substituídas pelo modelo escolástico. A escrita, desvinculada da leitura, cuja função primordial era preservar-se no suporte livro, transformou o ato de ler em trabalho intelectual. A leitura silenciosa provocou profundas mudanças nas práticas de leitura, pois, ao pres- cindir da voz, remeteu o ato de ler para novos usos do livro e novas posturas do leitor. As leituras tornaram-se livres, rápidas e privadas. No segundo momento, por volta do século XVIII, a leitura intensiva, de poucos textos lidos, relidos e memorizados, foi sucedida pela leitura 3 FAMÍLIA, IGREJA E ESCOLA: ESPAÇOS DE FORMAÇÃO LEITORA DAS MÃES E PROFESSORAS 56 ANA MARIA ESTEVES extensiva, que atingiu os mais variados tipos de impresso, consumidos rapidamente por leitores, em leituras fluidas, rápidas e irreverentes. A terceira revolução foi marcada pela transmissão eletrônica dos textos, que vem mudando radicalmente a relação do leitor com o es- crito e introduzindo novas maneiras de ler que lembram a leitura do rolo manuscrito e do códex. O texto eletrônico subverte as práticas de leitura, tirando do leitor o contato físico com a materialidade do livro, ao ser substituído pela tela do computador. O papel do leitor amplia-se ao permitir outras formatações, fazer recortes, alterar o texto, tornar-se coautor do texto. Para tratar da formação leitora das mães e professoras, faz-se ne- cessário primeiramente conceituar as práticas culturais e as relações entre a cultura escrita e a oralidade que permeiam as práticas de leitura. Para Rockwell (2001, p.14): A ideia de prática cultural lembra a atividade produtiva do ser humano, no sentido material e também na esfera simbólica. O conceito de prática cultural serve de ponte entre os recursos culturais e a evidência observável de atos de ler em certos contextos. Os fragmentos de textos e de registros do cotidiano são inteligíveis apenas quando podemos observar pautas recorrentes, e imaginar o significado que estes poderiam ter para os sujeitos envolvidos na produção. [...] As práticas culturais não são ações isoladas que registramos; pressupõem certa continuidade cultural nas maneiras de ler, de relacionar-se com o escrito, de atribuir sentido aos textos. As práticas culturais de leitura, como atividade produtiva do ser humano, material e simbólica, implicam processos de apropriação de escritos que leitores e leitoras realizam no ato cotidiano de ler/ouvir. Nessa perspectiva, os discursos e as representações das leitoras deste estudo remetem a situações de leitura/escuta, aos objetos lidos, sua produção, ou seja, aos interesses e intenções que os produziram, aos gêneros nos quais foram entalhados, aos destinatários para os quais se dirigem, aos espaços em que foram produzidos, ainda que não mantenham uma relação direta com as práticas de leitura que essas leitoras realizam no cotidiano. Tomo esses espaços institucionais como CARTAS VAZIAS 57 lugares de produção e reprodução da cultura oral e da cultura escrita: para as mães e professoras foram espaços marcantes em sua formação leitora, desde a infância. Galvão e Batista (2006) tratam de culturas escritas, não da cultura escrita em oposição à cultura oral, alinhando os estudos sobre a cul- tura oral e a cultura escrita em duas vertentes. A primeira, com ênfase nas formas de inserção da sociedade na cultura escrita, condições de alfabetização das populações e o tipo de cultura escrita construído nesse processo. A segunda vertente de estudos sobre a cultura oral e a cultura escrita trata: [...] de práticas de leitura e escrita, de modos de inserção individuais em culturas escritas e da maneira pela qual essas culturas adquirem uma identidade específica, seja em razão das finalidades e dos usos que nela se relacionam o impresso e o manuscrito, assim como a oralidade. As investigações do segundo grupo, portanto, voltam-se, com ênfase, para a diluição das dicotomias dos primeiros estudos sobre a cultura escrita. (Galvão; Batista, 2006, p.430) Ao tratar da construção da cultura escrita no Brasil, nos séculos XIX e XX, Galvão (2007, p.12) situa “os processos que possibilitam a entrada na cultura escrita de indivíduos, famílias e grupos sociais tradicionalmente associados à oralidade em momentos históricos distintos”. Em 1820, apenas 0,20% da população estava alfabetizada. Poucos livros circulavam, pois havia apenas algumas tipografias e livrarias no Rio de Janeiro. O país foi marcado pela oralidade e pelo analfabetismo até início do século XX. Na década de 1960, 46% da população não sabia ler e escrever. Esses três fatores – alfabetização, escolarização e circulação de livros – parecem ter distanciado os bra- sileiros da cultura escrita. Viñao Frago (1999, p.137), ao tratar das relações entre linguagem oral e linguagem escrita, esclarece: [...] cada uma destas duas linguagens, a oral e a escrita, tem sua própria dinâmica e lógica interna, suas normas e consequências. Nem a escrita é a linguagem falada traduzida para o texto escrito – como se tratasse de uma 58 ANA MARIA ESTEVES gravação – nem a fala é a linguagem escrita incorreta ou desvalorizada. Ali, porém onde existe o escrito, nenhuma das duas linguagens pode ser entendida sem considerar suas interações e influências mútuas. Portanto, a cultura escrita e a cultura oral são tomadas, neste estudo, como duas práticas culturais distintas, que não se dicotomizam: a ora- lidade é uma dimensão constitutiva da cultura escrita. Essa abordagem implica enfocar as relações entre a linguagem oral e a linguagem escrita como duas práticas culturais que se interpenetram, se influenciam e se modificam mutuamente. Práticas de leitura e família As histórias ouvidas na infância, as figuras de leitores presentes e os escritos domésticos constituem as experiências de leitura da criança na família, antes mesmo de serem alfabetizadas. Para Chartier, Clesse e Hébrard (1996, p.25), a criança faz um longo percurso, [...] desde a etapa em que sabe ver que há qualquer coisa escrita num objeto àquela em que, sem ainda saber realmente ler, é capaz de compreender um bom número de mensagens só pelo fato de que tem familiaridade com o contexto no qual elas aparecem. Muitas crianças aprendem desta forma, em suas famílias, que os escritos existem, que os adultos os utilizam e há nisso algo que desencadeia uma curiosidade precoce acerca dos sinais gráficos e das mensagens que eles contêm. O entorno exerce um papel fundamental na apropriação das prá- ticas de leitura na infância. Ele não é em si a condição que determina objetivamente o desenvolvimento da criança, pois é a relação que a criança estabelece com o entorno que é determinante. O papel do fator ambiental muda no processo de desenvolvimento da criança e tam- bém varia entre diferentes grupos da mesma idade, pois “um mesmo acontecimento que ocorre em diferentes idades da criança se reflete em sua consciência de uma maneira completamente diferente e tem um significado extremamente diferente” (Vygotsky, 1935). CARTAS VAZIAS 59 Portanto, a formação leitora das mães e professoras se inicia nas relações que estabeleceram com a família, a princípio calcadas na oralidade. Neste sentido, pode-se pensar que os gestos de leitura da família, as figuras de leitores e o contato com os escritos domésticos representaram uma experiência emocional nos primeiros anos de vida que precedeu à apropriação da linguagem escrita propriamente dita. A contação de história ou reconto Para Bajard (2007, p.24-5), ler em voz alta ou com a voz em repouso é “tomar conhecimento de um texto gráfico”. O autor separa as expres- sões “leitura” para designar a compreensão e “voz alta” para tratar da transmissão do texto pela voz. Define leitura como “a compreensão da forma gráfica de um texto”, já ler em voz alta é transmitir vocalmente um texto. A transmissão vocal de um texto exigiria nesta perspectiva uma leitura prévia para ser compreendido. A voz que medeia revela aos ouvintes o texto escrito, que pode ser compreendido pela escuta, sem necessariamente passar pelo ato de ler em voz alta ou silenciosa- mente. O autor diferencia escuta da contação de histórias e escuta de leitura de histórias. A contação de histórias ou reconto é uma prática cultural antiga, de todas as culturas, que se manteve na tradição oral. De acordo com Bajard (2007, p.26), o reconto é “uma prática da oralidade (da oratura, para distingui-la da literatura, universo da escrita). O contador transmite a outras gerações estórias recebidas de sua comunidade através de uma estrutura narrativa estável, veiculada por uma forma linguística evolutiva”. O reconto ou contação de histórias remete ao mundo da oralidade, enquanto a leitura de uma história se insere na escrita, mas esses mundos não estão dissociados, pois a oralidade participa do escrito, da mesma forma que a escrita traz ecos da oralidade. Tem sua importância para que as crianças vivenciem situações da vida real, por meio da ficção, e se apropriem de um discurso complexo e articulado de que a linguagem oral no cotidiano prescinde. Aquele que lê traduz uma manifestação grá- fica (texto escrito) em matéria sonora (texto lido). Nessa situação, dife- rentemente do reconto, as crianças entram em contato com as narrativas 60 ANA MARIA ESTEVES escritas, mesmo não alfabetizadas, pois as histórias lidas por um media- dor aproximam a criança do livro e da escrita, pelo contato físico com o livro e o contato visual com as imagens e com o texto (Bajard, 2007). Clara vivenciou suas primeiras experiências de escuta de histórias na rua, ao juntar-se a primos e tios para ouvir “uma tia que contava histórias, reunia todo mundo, adulto, criança, todo mundo para ouvir as histórias dela, todo dia à noite, ela tinha um capítulo para contar”. Marina ouviu muitas histórias, “daquelas histórias antigas, as moças colocavam a bacia com água perto da fogueira, pingava vela para sair as iniciais do nome do namorado, futuro marido”, ou ainda histórias que provocavam tanto medo que “quando criança a gente tinha até medo de passar no cemitério por causa dos causos”. Valéria teve a presença constante da avó, “minha mãe trabalhava bastante. Minha avó que ficava sendo a cuidadora”. A escuta de histórias marcou suas primeiras experiências de leitura no entorno familiar. “A gente ficava, eu e mais três primas, com a mi