Renata Funcia De Bonis Cadernos de viagem: notas de percurso, devaneios e registros Sete volumes São Paulo, 2020 UNESP | Universidade Estadual Paulista Instituto De Artes Programa De Pós-Graduação Em Artes Doutorado Em Artes Visuais CADERNOS DE VIAGEM: notas de percurso, devaneios e registros Volume 1: Notas Introdutórias Renata Funcia De Bonis Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Linha de Pesquisa Processos e Procedimentos Artísticos, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Artes Visuais Orientação: Prof. Dr. José Paiani Spaniol São Paulo 2020 B715c Bonis, Renata Funcia De Cadernos de viagem : notas de percurso, devaneios e registros / Renata Funcia De Bonis. -- São Paulo, 2020 496 p. : fotos, 7 v. Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Artes, São Paulo Orientador: José Paiani Spaniol 1. escritos de viagem. 2. arte contemporânea. 3. land art. 4. caspar david friedrich. 5. stonehenge. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Artes, São Paulo. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. Agradecimentos Agradeço pelo imenso apoio, ajuda, contribuição, assistência, auxílio, guarida, proteção, amparo e socorro nos últimos quatro anos: À Olga e César, pela terna paciência e audição incansáveis sobre minhas perambulações pelo mundo; Ao Daniel, pelas tantas referências diretas e indiretas durante meus percursos; Ao Maurício, pela (essencial) presença, carinhosa e atenta, em todos os momentos dessa jornada; Ao Daniel, por caminhar sempre ao meu lado; Ao Zé, por me acompanhar e acreditar que meus percursos poderiam virar texto e trabalho; por sempre me encorajar a viajar mais e mais - e retornar para compartilhar tudo; Agnus, Tiago e Sérgio pelos comentários durante as qualificações, que ajudaram a moldar e enxergar os caminhos do trabalho com mais clareza. Resumo O trabalho aborda, narra, descreve, analisa e devaneia sobre viagens feitas no período de 2013 a 2020, todas em contextos distintos, mas com uma meta em comum: visitar e experenciar arte. Pequenos e grandes acontecimentos pessoais são pontuados a partir de meus deslocamentos, desde visitas a monumentos neolíticos, até uma tarde em uma lavanderia em uma pequena cidade. Em meio a essas histórias, aproximo obras de diversos artistas de diferentes períodos da história da arte e também verso sobre as reverberações de tais viagens e situações na minha própria produção artística. Palavras-chave: Escritos de Viagem. Stonehenge. Caspar David Friedrich. Land Art. Arte Contemporânea. Abstract The work addresses, narrates, describes, analyzes and daydreams about trips made in the period from 2013 to 2020, all in different contexts, but with a common destination: to visit and experience art. Minute and grand personal events are punctuated from my travels, from visits to Neolithic monuments, to an afternoon in a laundry in a small town. In the midst of these stories, I bring together works by different artists from different periods of the history of art and also verse about the reverberations of such trips and situations in my own artistic production. Keywords: Travel Writing. Stonehenge. Caspar David Friedrich. Land Art. Contemporary Art. Sumário Volume I: Notas Introdutórias Volume II: Stonehenge Volume III: Lavanderia Sun and Wash Center Volume IV: À volta de Robert Smithson Volume V: Parque Geológico do Varvito Volume: VI: Anotações a partir de Caspar David Friedrich Volume VII: Viagem em volta da Sala 2.10 Notas Introdutórias Notas Introdutórias Ao longo dos anos fui adquirindo o que chamo de sabedorias do viajar. Tal sabedoria reside na capacidade de se mover de forma leve. Nada me deixa mais feliz do que organizar uma mala pequena que caiba tranquilamente na cabine do avião. Já sofri crises de tendinite ao puxar bagagens pesadíssimas, cheias de livros, de cidade em cidade. Já empurrei malas densas, com todo tipo de tralha que acabei não usando. Se consigo organizar uma mala leve, sou tomada pela certeza de que vou viajar com mais espaço para que novas experiências tomem lugar. Viajando com regularidade a trabalho durante a minha infância e adolescência, meu pai sempre foi um mestre em fazer as malas. Sempre admirei sua habilidade. Assisti-lo desfazer sua pequena bagagem ao voltar era mágico. O aproveitamento de espaço era fascinante: as poucas roupas estavam impecavelmente dobradas. Os CDs dos últimos lançamentos das nossas bandas favoritas estavam protegidos em meio às camisas sociais. Bonecas saíam de dentro de sapatos e encontravam suas caixas que haviam sido desmontadas e encaixadas perfeitamente entre a nécessaire e o pacote de biscoitos que todos estavam esperando. De formato retangular, feitos de massa amanteigada e cobertos por uma fina camada de chocolate ao leite, além de serem deliciosos, esses biscoitos simbolizavam o ‘viajar’ para mim quando criança. Tal mimo se tornou um clássico da casa. Normalmente meu pai retornava de viagem aos finais de semana. Estes eram regados a biscoitos tarde adentro no sofá. 5 Com o tempo fui pegando o know-how de como viajar leve, e fui também desenvolvendo meus próprios rituais. O momento que coloco o adaptador universal de tomada na mala beira a euforia. Ali, naquele objeto que cabe na palma da mão, feito em plástico branco e fabricado na China, mora o prelúdio de pequenas revoluções particulares. Durante os preparativos para minhas primeiras jornadas, a grande ansiedade que vinha da possibilidade de me deparar com momentos de descanso e monotonia (por que não?) me obrigava a preencher diversos compartimentos da bagagem com livros, até então preteridos, mas que habitavam pacientemente minhas prateleiras. No entanto, apesar deste esforço, quantos livros já não cruzaram o Atlântico e continuaram com suas páginas cerradas e recolhidas? Com o tempo desenvolvi o hábito de escolher apenas um livro que julgo carecer estar na presença do que estou prestes a ver. A mala perfeita para qualquer que seja o destino seria aquela que leva poucas roupas, um livro relevante, e claro, um adaptador universal de tomada. CADERNOS DE VIAGEM: notas de percurso, devaneios e registros Procurei registrar as viagens que fiz desde 2013 em uma série de cadernos. Tais percursos, aqui retomados a partir de fragmentos e memórias, tangenciam uma série de pensamentos ao redor do campo da arte e outras disciplinas que influenciam minhas investigações e práticas artísticas. Diversas localidades e trabalhos realizados por uma série de artistas foram abordados, de lavanderias mundanas em cidades desconhecidas até intervenções da Land Art; desde uma viagem rápida de trem até uma visita a Stonehenge. A partir de tais encontros traço relações que inscrevem sentido ao meu próprio pensamento sobre meu trabalho e minha produção. Assim, o trabalho aqui apresentado trata de uma coleção de inúmeras notas mentais a partir dos meus deslocamentos nos últimos anos, muitos deles para ver e visitar arte. As viagens narradas e retratadas tencionam levar o leitor o mais próximo possível da experiência vivenciada por mim. Os diversos assuntos e vontades que me atravessam como artista estão presentes nas distintas perambulações relatadas nos cadernos. Algumas situações são apresentadas sem grandes introduções e explicações. Certos relatos são de pequenos acontecimentos que passaram, se foram, sobrevoaram minhas andanças, mas que me causaram grande impacto, por mais diminutos e efêmeros que tenham sido, uma vez que viagens não trazem necessariamente conclusões, mas incitam a reflexão e instigam o olhar. 7 Dentre os percursos e suas relativas reverberações citados nos cadernos adiante, posso citar as novas e densas camadas adicionadas ao meu entendimento do conceito de paisagem – ampliados consideravelmente em atos como identificar, visitar e gravar os sons dos lugares retratados pelo artista Caspar David Friedrich em suas pinturas durante o século XIX. Ou ainda, a experiência ímpar de vivenciar e andar em silêncio sobre o espiral de rochas que compõe “Spiral Jetty”, obra de Robert Smithson, ouvindo somente os ruídos da sola emborrachada dos meus sapatos rangendo contra o sal do solo. É relevante explicitar que não existe hierarquia entre as fotografias e os textos apresentados. Ambos têm a mesma força comunicativa e, além disso, suas conjunções geram novos significados. A fotografia me serve como anotação, tal como a caneta no papel ou a digitação no aplicativo Notes do celular. Os cadernos não carecem de ordem cronológica para leitura e apreensão. São eles: Stonehenge Viagem de bicicleta a Stonehenge / Apontamentos e conexões entre monumentos megalíticos pré-históricos, as obras de Nancy Holt, Richard Serra, Donald Judd, Richard Long, Michael Heizer e os sambaquis brasileiros / Anedotas do trajeto / Passagem pelo “Observatorium” de Robert Morris, em Lelystad, Holanda / Nota de reverberação sobre minha produção, mais especificamente na minha obra “6h35/20h04 (16 de abril de 2017)”; Lavanderia Sun and Wash Center Notas sobre uma tarde na monótona cidade de Genk, na Bélgica (de dentro de uma lavanderia); À volta de Robert Smithson Registros fotográficos das visitas ao “Spiral Jetty” em Utah, Estados Unidos, em 2014, e ao “Broken Circle” e “Spiral Hill”, em Emmen, Holanda, em 2018; Parque Geológico do Varvito Expedição ao Parque Geológico do Varvito, localizado em Itu, São Paulo / Apontamentos sobre o tempo geológico em contraposição ao tempo do homem / Nota de reverberação em minha produção, mais especificamente na obra “Monolito”; Anotações a partir de Caspar David Friedrich Viagem ao Norte da Alemanha, em decorrência da bolsa de pesquisa na residência artística Künstlerhaus Lukas, em Ahrenshoop / Pesquisa e identificação dos lugares que Caspar David Friedrich pintou na região / Captação de som das paisagens / Início do projeto “Anotações a partir de Caspar David Friedrich” / Desenvolvimento e exposição do projeto no Instituto Tomie Ohtake em São Paulo / Exposição do projeto comissionado para mostra no Palazzo Fortuny, em Veneza, juntamente à pintura “O Sonhador”, do próprio Friedrich. 9 Viagem em volta da Sala 2.10 Reflexões a partir de visitas semanais a uma sala expositiva do Museu Rijks, em Amsterdã. \ 1 1 Wiltshire, InglaterraStonehenge Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra UNESP | Universidade Estadual Paulista Instituto De Artes Programa De Pós-Graduação Em Artes Doutorado Em Artes Visuais CADERNOS DE VIAGEM: notas de percurso, devaneios e registros Volume II: Stonehenge Renata Funcia De Bonis Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Linha de Pesquisa Processos e Procedimentos Artísticos, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Artes Visuais Orientação: Prof. Dr. José Paiani Spaniol São Paulo 2020 Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Estação Waterloo, Plataforma 6 19 de Julho de 2016 8h20 Na manhã de terça-feira, o dia mais quente do ano em Londres, chego na estação Waterloo e pego o trem em direção a Salisbury. O termômetro aponta 33,5º C. Sento-me na poltrona de número 10. A luz do sol atravessa o grosso vidro da janela do trem, esquentando o meu braço e ombro direito. A viagem tem duração de aproximadamente 1h30. O plano nesta manhã é ao chegar a Salisbury, alugar uma bicicleta e pedalar 21km até Stonehenge e os sítios pré-históricos adjacentes, numa tentativa de evitar os ônibus e guias turísticos. Stonehenge sempre esteve presente em meu imaginário. Depois de décadas conjecturando sobre as hipóteses de sua existência via reproduções, finalmente consegui organizar a visita e o percurso de bicicleta, após um convite para uma exposição em Londres. Na mochila, além de água, castanhas e maçãs para resistir ao longo trajeto de bicicleta, levo alguns livros. 7 Londres, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Relembrando uma passagem de Sergei Eisenstein1: “Livros e estradas. Uma viagem através de páginas e uma viagem através de montanhas, campos e estepes. Não importa se viajo para um sanatório, de uma cidade a outra, para uma estação de águas, ou se parto à procura de uma locação para um filme, ou se faço uma viagem curta. Minha principal preocupação é sempre: quais livros serão meus companheiros de viagem. (...) Quando parto em viagem, os livros precisam harmonizar-se uns com os outros e se dispor com o mesmo cuidado com que se faz um arranjo de flores. A escolha é influenciada, até certo ponto, pela paisagem que espero ver” (EISENSTEIN, 1987, pag 23). Com carinho e cuidado similar, escolho para me acompanhar nesta viagem: - “Walkscapes: O caminhar como prática estética”, de Francesco Careri (2015); - “Overlay: Contemporary Art and the Art of Prehistory”, de Lucy Lippard (1995); - “Novas Derivas”, de Jacopo Crivelli Visconti (2014). 1 Serguei Mikhailovitch Eisenstein (1898-1948), cineasta soviético; dirigiu Outubro, filme analisado no livro seminal “Caminhos da Escultura Moderna”, de Rosalind Krauss. Wiltshire, Inglaterra Nos três livros há menções sobre intervenções pré-históricas na paisagem e a artistas contemporâneos que utilizam a paisagem como suporte ou como protagonistas de seus trabalhos. De alguma maneira, gostaria que aquelas reproduções e descrições estivessem na presença real das rochas que avistarei em breve. Stonehenge é uma estrutura monumental do período neolítico, fase final da pré-história, datada de quatro a cinco mil anos atrás. A formação que conhecemos hoje é somente uma parte de uma grande área, que era quinze vezes maior. Muitos dos estudos colocam como uma das principais justificativas para sua estruturação o fato de que servia como um observatório do sol e das constelações. As rochas que formam Stonehenge foram erguidas e posicionadas de maneira adequada para possibilitar a observação e pontuação da posição de certos astros. Durante o solstício de verão no hemisfério norte, o sol nasce sobre a pedra principal de Stonehenge. Até os dias de hoje o evento é celebrado no local. Nas cadeiras paralelas a que estou sentada, dois homens de camisa de manga comprida, abotoaduras e calça social conversam antes do trem partir. O trem não possui ar condicionado e o calor parece aumentar a cada minuto. 9 Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Os homens parecem ser executivos. As discussões sobre contratos, sócios e negócios são interrompidas por comentários sobre o clima; o forte calor que faz no dia mais quente do ano e o fato deste verão estar surpreendentemente ensolarado para a chuvosa e cinzenta Londres. Apesar da temperatura abafada, os dois tomam café em copos altos do Starbucks. Ambos os recipientes têm ‘Simon’ escrito a caneta preta na lateral. Os dois copos sobre a mesa instantaneamente me remetem aos menires, monumentos rochosos megalíticos, com suas inscrições, erguidos verticalmente sobre o horizonte, assim como as rochas de Stonehenge. O trem abre as portas na estação de Andover, uma antes de Salisbury. Os dois ‘Simon’ descem levando consigo seus menires de papel. Ao chegar ao meu destino, ando até o centro da cidade utilizando um mapa. Salisbury é uma pequena e linda cidade arborizada, com muitos canais e uma simpática feira na praça central, em frente a uma roda gigante. Passo pelos ônibus turísticos que seguem para Stonehenge e noto diversos estabelecimentos homônimos, desde hotéis a lojas diversas. Sob o sol de 34° C, encontro a loja que aluga bicicletas: Hayball. Ao entrar na loja passo por centenas de bicicletas à venda, capacetes, faróis e acessórios. Dirijo-me ao balcão e pergunto ao atendente sobre o aluguel. 1 1 Wiltshire, Inglaterra Estrada A303, Amesbury Wiltshire, Inglaterra Estrada A303, Amesbury Para minha surpresa, recebo uma resposta negativa: -‘Você chegou tarde. Estão todas alugadas.’ Pergunto por alternativas, não era possível que meu plano não daria certo. Nada. Nenhuma estava disponível. Saio da loja frustrada, pensando se teria que pegar o temido ônibus turístico. Caminho lentamente de volta à estação, cabisbaixa, quando vejo um casal empurrando bicicletas na direção da loja. Resolvo segui-los, na esperança de que eles estivessem devolvendo as bicicletas. Sim, era meu dia de sorte. Entro alegre na loja atrás deles. Posso ouvir o casal comentar, em inglês, com um carregado sotaque alemão, ao fazer a devolução, como o passeio até Stonehenge é bonito e o quanto eles adoraram o programa. Eles estão animados, com a pele dourada pelo sol. Em seguida sou atendida. Faço o pagamento do aluguel e entrego meu documento ao dono da loja. Ao ver a minha nacionalidade, ele sorri e me pergunta se agora os brasileiros são amigos dos alemães, afinal, estes tornaram possível o meu programa naquela terça-feira. Inesquecível 7X1. Com o mapa em mãos vejo as estradas que preciso tomar para chegar até lá. Parece fácil. Tiro algumas dúvidas e saio para começar o trajeto. O sol está quase alcançando o zênite. 1 3 Wiltshire, Inglaterra Vejo que preciso pegar a estrada de número 45, que beira o rio Avon. Feliz, penso que escolhi o dia perfeito para fazer esse percurso. O dia está lindo. Encontro a saída da cidade e entro rapidamente na estrada 45, que diferente do que eu imaginava, é cercada por casas e bares. Nenhuma ciclovia. A topografia também não é plana como eu presumia e eu me esforço para conseguir subir as ladeiras. Logo divido a estrada com carros que trafegam nas duas direções. Alguns deles diminuem a velocidade quando chegam perto de mim, outros fazem questão de arrancar com os potentes motores de seus carros. Em nenhum momento vejo o rio Avon, aquele que eu esperava pedalar ao lado. Após aproximadamente uma hora pedalando avisto placas para Stonehenge. Estou em Amesbury, falta pouco. Uma pausa para água e alongamento. Continuo a pedalar. Logo chego a uma estrada maior, mais movimentada. Em uma descida, enquanto tento me concentrar para manter o equilíbrio em alta velocidade, vejo do meu lado direito, quilômetros à frente, Stonehenge. Ao mesmo tempo que me sinto maravilhada, a sensação de estranhamento é tremenda: as rochas monumentais estão próximas a uma estrada de tráfego intenso, ao lado de centenas de caminhões. Wiltshire, Inglaterra Estrada A303, Amesbury Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Uma sobreposição violenta de tempos: um monumento pré- histórico ao lado de veículos em alta velocidade, máquinas metálicas expelindo gás carbônico e passando pela paisagem de modo agressivo e ignorante. Após alguns minutos, percebo não haver mais espaço para mim na estrada. Claramente é perigoso demais para seguir pedalando. Continuo o trajeto a pé, empurrando a bicicleta. Respiro fundo. Tenho pouca área disponível na lateral da rodovia para andar. Passo por vários coelhos atropelados, que se estiram no asfalto como tapetes. Do meu lado direito, Stonehenge está cada vez mais próximo. Já é possível avistar visitantes andando em sua volta. O sol está a pino, escaldante. Após avistar as imensas rochas que se erguem na paisagem plana, tudo o que salta aos meus olhos sobre o horizonte parece mimetizar Stonehenge. Vacas na beira da estrada, corvos no campo, todos parecem formar composições similares na paisagem. Com o restante da minha força chego ao visitor center e estaciono a bicicleta. Com meu ingresso comprado previamente pela Internet entro em uma fila. Devido à primeira parte da viagem, chego exausta e tensa. Foram 21 km em pouco menos de duas horas. Estou coberta por uma fina camada de terra. Pego uma brochura cafona que me lembra a de um parque temático. Consigo ver ao longe pequenas construções circulares de paredes brancas e teto de palha. Conto cinco de onde estou, Wiltshire, Inglaterra como uma pequena vila. Pela brochura me dou conta que estas são reproduções de casas neolíticas, construções que foram encontradas a alguns quilômetros dali. Acredita-se que serviam de moradia das pessoas que trabalharam na empreitada de Stonehenge. Dentro delas há réplicas de cerâmicas e artefatos. As casas contam com uma pequena área cercada por rochas no chão, centralizada, onde possivelmente eram feitas fogueiras. O teto, feito em palha trançada, dava vazão à fumaça. Ouço um murmúrio, um ruído contínuo e percebo que tal incômodo vem dos inúmeros audioguides. Disponíveis em todas as línguas, visitantes andam com grandes aparelhos ultrapassados grudados aos ouvidos, olhando para o chão. Uma massa sonora ocupa a área de entrada do parque, um trânsito de línguas, entonações e sotaques que atropelam uns aos outros. Em uma brochura leio que o monumento pertenceu a propriedades privadas até 1918, quando Cecil Chubb, morador local, comprou Stonehenge em um leilão e o entregou ao país. A partir daí Stonehenge passou a ser conservado pelo Estado. Antes disso, havia construções vizinhas aos sítios pré-históricos (derrubadas quando a devida atenção foi dada ao lugar) e a circulação era completamente livre e desimpedida. Infelizmente a proteção e conservação necessária de uma paisagem com tal importância histórica traz consigo barulhentos audioguides e 1 9 Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra lojas com souvenires irrelevantes que desviam a atenção e a reflexão que o monumento exige. Tento atravessar todo o furor consumista alienado e sigo em frente. A distância entre o visitor center e a entrada de Stonehenge é de 2 km, mais ou menos 25 minutos a pé. Vejo um ônibus levando visitantes até lá com dizeres simpáticos em um letreiro digital: Subo na bicicleta e sigo os ônibus. Não é permitido caminhar entre as rochas. Os visitantes podem apenas caminhar ao redor do monumento, com alguns metros de distância, separados por um cordão de segurança. Corvos voam de rocha em rocha, desconfiados, como se estivessem guardando o local. Alguns deles se aglomeram junto aos aspersores de água que irrigam a grama, aliviando o forte calor, fazendo sua cor preta ficar ainda mais forte e brilhante sob a luz do sol. Dou a volta completa em torno do sítio arqueológico, desviando dos inúmeros visitantes em busca da selfie perfeita, grupos de turistas e suas sombrinhas, crianças e idosos fazendo piquenique. A composição circular é impressionante, assim como sua monumentalidade. TO THE STONES TO THE STONES TO THE STONES TO THE STONES TO THE STO Wiltshire, Inglaterra Stonehenge passou por três períodos de construção em um intervalo de pouco mais de mil anos, entre 3100 a.C. a 2000 a.C. As primeiras rochas deslocadas para a área formavam dois círculos concêntricos incompletos de pedras azuis, com cerca de quatro toneladas cada. Essas pedras foram transportadas do Monte Preseli, no País de Gales, cerca de 385km ao norte de Stonehenge, por volta de 2150 a. C.. Cerca de mil anos depois, os círculos de pedras azuis foram realocados para dentro e para o entorno da estrutura, sendo substituídos por grandes rochas, megalitos que formam a construção que conhecemos hoje, com 30 rochas ligadas como um anel. Estas rochas têm cerca de sete metros de altura, pesam 40 toneladas e teriam sido deslocadas por 40 km. Dentro desta estrutura foi construída uma outra, que lembra uma ferradura, com cinco conjuntos de duas rochas que apoiavam uma terceira no topo. Algumas das rochas eram encaixadas com sistema macho-fêmea, surpreendentemente sofisticado para a época. Locomover-se em volta da estrutura provoca uma percepção diferente do entorno e de todo o território circundante. É incrível pensar no trajeto percorrido para deslocar todas as rochas. São centenas de quilômetros de distância, que levantam questões sobre a escolha dessas rochas específicas. Estariam elas em um lugar tido como especial e por isso foram retiradas de lá? 2 7 Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Ou este tipo de rocha carregava um significado para esses povos? Quase todas as culturas que conhecemos atribuíram significados fortes a rochas e pedras, como fertilidade, cura, energia e sorte. Segundo Lucy Lippard afirma em “Overlay: Contemporary Art and the Art of Prehistory”, as rochas tocam os seres humanos por sugerirem imortalidade. Como se pacientemente tivessem conseguido sobreviver a todas as intempéries do mundo. Se pensarmos na nossa cultura hoje, urbanizada, nos damos conta de que estamos sendo enterrados por materiais e informações descartáveis. Lippard credita os artistas como os principais agentes hoje a trabalharem com rochas, celebrando seu potencial simbólico e formal2. Stonehenge é um marco na paisagem, um marco na geografia do local. Ver de perto as gigantescas rochas é como visitar um parente que você conheceu quando era criança e nunca mais encontrou. Conhecemos esse lugar, mas parece haver algo de errado, diferente ou estranho que torna difícil reconhecê-lo quando o vemos ao vivo. Visitar tal localidade é refletir sobre a imagem, a representação, a interferência e a transformação na paisagem causada pelo ser humano. 2 Ironicamente, quase vinte anos depois, Lippard, em seu livro “Undermining: A Wild Ride Through Land Use, Politics, and Art in the Changing West”, fala sobre a forte influência da Land Art nas gerações seguintes, apontando em tom de denúncia o uso e retirada inconsequente e irresponsável de terra e rochas por artistas, o que quase levou à extinção de certos tipos de rocha, como o cascalho no deserto do Novo México. Wiltshire, Inglaterra É inevitável imaginar como era a paisagem e suas cercanias no período em que Stonehenge foi elaborado. Antes dos menires, no período paleolítico, o espaço era transformado pelo caminhar. O deslocamento, mesmo sem deixar vestígios visíveis e físicos, produziu lugares e mapeamentos, mesmo que mentais. Assim o espaço se torna lugar: arquiteturas simbólicas criadas provavelmente seguindo as coordenadas dadas pelo horizonte em relação à movimentação do sol. O espaço que anteriormente era errático e multidirecionado, agora encontra um indício de ordem e mudança de significados. Já no período neolítico os menires representam a primeira transformação física na paisagem. O ato de erguer a 90° uma rocha que antes se encontrava na horizontal consiste na primeira transformação física feita pelos seres humanos na paisagem. É uma ação aparentemente simples, mas marcante e transformadora. A relação entre a paisagem e a geografia muda permanentemente: o espaço nunca mais foi o mesmo depois desta ação. Francesco Careri discorre sobre como a presença dos menires leva a paisagem natural ao estado de paisagem artificial, apontando que “o menir é a nova presença no espaço neolítico, é o objeto ao mesmo tempo abstrato e vivente a partir do qual, a seguir, se desenvolveram a arquitetura (a coluna tripartida), e a escultura (a lápide-estátua)”(CARERI, 2015, p.56.). 3 1 Wiltshire, Inglaterra Ao observar as rochas monumentais de Stonehenge, imediatamente penso nos artistas da Land Art dos anos 60 e 70. A Land Art veio como uma resposta dos artistas ao sistema de arte vigente, principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra. Produzindo fora do espaço do cubo branco das galerias, instituições e museus, artistas como Robert Smithson, Walter de Maria, Nancy Holt e Michael Heizer produziram obras com escalas monumentais, criando novas relações entre a paisagem e a percepção e expectativa do público com a obra de arte, que agora tinha que se deslocar para lugares nada convencionais, como lagos e desertos inóspitos, para ver determinados trabalhos. Estas novas relações entre a obra de arte e a paisagem ecoam até hoje na produção de artistas contemporâneos. Nancy Holt3, principal expoente feminina da Land Art, é a autora de uma das obras contemporâneas que, a meu ver, mais se relaciona com monumentos neolíticos. “Sun Tunnels” (1973) trata de quatro tubos de concreto pré-moldado, instalados no deserto de Great Basin, em Utah, Estados Unidos. Os cilindros estão perfeitamente posicionados a fim de provocar uma interação única do visitante com o cosmos, mais especificamente com o sol, a lua e constelações. As peças estão alinhadas com os 3 Nancy Holt, artista norte-americana (1938-2014). Conhecida por suas esculturas públicas e obras de Land Art, também trabalhou com outras mídias, como fotografias e vídeos. Wiltshire, Inglaterra Sun Tunnels, 1973. Nancy Holt, Great Basin,Utah Wiltshire, Inglaterra solstícios de verão e inverno, formando um ‘X’ aberto no deserto. Além disto, cada um dos túneis possui pequenas perfurações que se alinham com as constelações de Draco, Perseus, Columba e Capricórnio. Apesar de utilizar de um material pré-moldado, aparentemente frio e que provém da construção civil, Holt cria uma experiência holística entre o expectador, o entorno, a obra, o universo e seus fenômenos astronômicos. A escala dos tubos de concreto ironicamente associa-se à humana. Ao se adentrar as peças, a paisagem inóspita do deserto e suas montanhas de topos nevados são emoldurados pelos cilindros. A ausência de construções próximas confere à obra de Holt (e às suas reproduções) um ar atemporal. Os túneis anônimos debaixo de nossos pés e dos automóveis nas grandes cidades são elevados a monumentos, o que proporciona uma conexão pontual e específica do espectador com os astros, contemplação que está também presente em Stonehenge. Como outras obras da Land Art, visitar “Sun Tunnels” requer um deslocamento incomum, que beira a peregrinação. Lembro-me de duas obras que tive a oportunidade de visitar nos últimos anos que também envolviam o caminhar, a intervenção no espaço e novas relações com a paisagem. Uma delas é “Áfangar” (1990), de Richard Serra4. 4 Richard Serra é um artista norte-americano, nascido em 1938. Escultor ligado ao Minimalismo, produz grandes peças com materiais industriais, como aço, borracha e chumbo; algumas delas chegam a pesar toneladas. Quando trabalha no espaço público suas obras de grande escala tendem a discutir o fluxo de deslocamento das pessoas no espaço. Wiltshire, Inglaterra 3 5 Áfangar, 1990. Richard Serra, Ilha de Viðey, Islândia Wiltshire, Inglaterra 15 untitled works in concrete, 1980-1984. Donald Judd, Chinati, Marfa, Texas Wiltshire, Inglaterra 3 7 A obra é composta de pares de colunas fincadas no solo de uma ilha próxima a Reykjavík, na Islândia, onde estive em 2013 por ocasião da residência artística NES. As colunas emolduram a paisagem, assim como as rochas de Stonehenge. Sendo uma obra permanente, a ilha de Videy é transformada perduravelmente pelas rochas de basalto escolhidas por Serra. Suas colunas são menires contemporâneos, que estabelecem marcos na paisagem e introduzem novos significados para as rochas e para o lugar. A obra provoca uma óbvia relação entre o corpo e a paisagem. O caminhar e o deslocamento são parte da obra. É necessário percorrer toda a área da ilha a pé para ver os dezoito pares de colunas de basalto que constituem “Áfangar”. O clima na Islândia não é, em nenhuma estação do ano, convidativo, de modo que o percurso necessário para ver toda a obra é exaustivo, gelado e, quase sempre, molhado. É difícil calcular a altura das rochas estando distante das colunas. Ao caminhar em sua direção ocorre um calibramento de escalas. No lado norte de Videy, as colunas emolduravam Reykjavik, uma ilha maior e povoada. Já no lado sul, as colunas enquadram o mar crespo e as nuvens apressadas e carregadas de água. Outra obra que me veio à mente enquanto contemplava Stonehenge foi “15 untitled works in concrete” (1980-1984), Wiltshire, Inglaterra de Donald Judd5, obra permanente no terreno da Chinati Foundation, localizado em Marfa, Texas. Tive a oportunidade de visitá-la em 2014, numa viagem de pesquisa de campo. Os grandes blocos de concreto podem ser vistos de longe e emolduram a paisagem à sua volta, assim como Stonehenge e “Sun Tunnels”. As peças acinzentadas se destacam de longe, ao se projetarem no terreno plano e de paisagem rasteira. As 15 obras de Judd se impõem na paisagem e a modificam – assim como “Áfangar” faz com a ilha de Videy. Porém, nesse caso, o fato de as estruturas serem construídas com concreto e não escolhidas e retiradas da natureza, como as colunas de basalto de Serra, fazem com que elas estabeleçam mais uma relação com o entorno. Além de pontuar o espaço e emoldurar a paisagem, as peças de Judd traçam relações com a arquitetura de suas imediações, que também usam concreto e moldes similares. As obras de Judd são impecavelmente produzidas. O molde de madeira que recebe o concreto ainda ressoa nas peças; os veios, nós e texturas das tábuas são facilmente identificados no concreto. As peças possuem espaço interno, criando relações com o corpo perante a paisagem. A incidência do sol sobre as obras produz sombras que criam incontáveis formas geométricas dentro e fora delas. O sol e o calor também provocam efeitos 5 Artista norte-americano (1928-1994).Utilizava materiais industriais como metal, madeira compensada, concreto e plexigass que lhe ofereciam um acabamento impecável para suas obras seriais. Em 1971 muda-se para Marfa, Texas, onde compra um campo de treinamento militar abandonado. A partir daí a escala de suas obras e de sua produção aumenta. Wiltshire, Inglaterra físicos nas peças, sujeitando-as a se dilatar (e se retrair), movendo-se sobre o terreno, de forma quase imperceptível, mas não deixando de marcar o solo. Caminhando pela grande área da Fundação Chinati, a paisagem desértica de Marfa é capturada pelas formas de Judd. Enquanto Judd se preocupa com a finalização primorosa de suas peças de concreto que dão um aspecto serial e industrial à obra, como também ocorre com os tubos pré-moldados de Holt, Serra escolhe as rochas de basalto in natura, que refletem a paisagem bruta e ríspida da Islândia. Todas as obras, no entanto, instigam o visitante a percorrer toda a vasta área onde estão instaladas. O deslocamento faz parte destes trabalhos e esta ação inscreve significado a eles. Serra, Judd e Holt tratam, como Stonehenge, da monumentalidade e da interferência humana na paisagem em seus contextos específicos. Retomando as afirmações de Careri sobre o ato de caminhar ser uma ação que já causava interferências sem sinais aparentes e traços físicos na paisagem pelos povos do período paleolítico, acho pertinente apontar a obra “A Line Made by Walking” (1967) de Richard Long6. Neste caso é o corpo do artista que age e interfere na paisagem, marcando uma linha no solo feita 6 Artista inglês nascido em 1945, relacionado à Land Art na Inglaterra. Produziu diversas obras a partir de caminhadas que resultam em mapas, fotografias e textos como registro dessas ações, assim como esculturas e instalações que se utilizam de rochas, terra e materiais naturais de lugares específicos. 3 9 Wiltshire, Inglaterra A Line Made by Walking, 1967. Richard Long Wiltshire, Inglaterra pelo ato de caminhar em linha reta. Agindo e sofrendo o embate com a paisagem, a ação aqui é feita pelo corpo de Long, que cria uma relação espacial única e particular. Aqui, seu corpo se converte em uma medida perante o lugar. Ele caminha para afirmar a sua experiência física com o mundo. Long testa e estica os limites do fazer da escultura quando caminha; uma ação efêmera e passageira que transforma o lugar e a paisagem. O que acessamos é um registro desta ação, uma fotografia onde podemos, a partir do título “A Line Made by Walking”, identificar uma linha reta marcada no solo. Rebecca Solnit analisa a escolha dos lugares que Long fazia seus trabalhos e caminhadas, apontando que este “gosta de lugares onde nada parece ter quebrado a conexão com o passado antigo, de modo que raramente aparecem edifícios, pessoas e outros vestígios do passado presente ou recente”(ROELSTRAETE, 2010, p.44). Nas palavras de Long: “A natureza sempre foi gravada por artistas, desde pinturas rupestres pré-históricas até a fotografia de paisagem do século XX. Eu também queria tornar a natureza o assunto do meu trabalho, mas de novas maneiras. Comecei a trabalhar ao ar livre 4 1 Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra usando materiais naturais como grama e água, e isso evoluiu para a ideia de fazer uma escultura caminhando ... Meu primeiro trabalho feito pela caminhada, em 1967, era uma linha reta em um campo de grama, que também era meu próprio caminho, indo a lugar nenhum. No início dos trabalhos subsequentes de mapas, registrando caminhos muito simples, mas precisos, sobre Exmoor e Dartmoor, minha intenção era fazer uma nova arte que também fosse uma nova maneira de caminhar: o andar como arte.” (TUFNELL, 2007, pag.39). Caminhando pelo grande território onde se encontra Stonehenge, percebo sutis elevações na paisagem seguidas por declives. Logo os identifico como o “Greater Cursus”, que consistiu em uma vala circular com quase 100 metros de diâmetro, seis metros de largura e quase dois metros de profundidade. A terra retirada na escavação foi utilizada para a construção de um relevo de quase dois metros de altura. Estes provavelmente serviam como caminhos ligados a uma rota ritualística para observar o nascer do sol e agrupamentos de estrelas. Hoje elevação e declive já não contam com tais medidas de altura e depressão, de modo que a intervenção na paisagem pode passar desapercebida. Imagino que quando foram construídas, esta vala e elevação eram, porém, grandes Wiltshire, Inglaterra 4 3 e vistosas marcas na topografia. Esta ação na paisagem me chamou atenção pelo fato do uso da própria terra como material construtivo. O processo de retirar e remover a matéria como ato escultórico, a fim de construir um espaço negativo me remeteu ao trabalho de Michael Heizer7, cuja produção tem uma forte relação com a paisagem e a terra como matéria para suas obras. Seu pai era antropólogo e o levou em várias viagens de campo para Peru, Bolívia e Nevada quando criança. Tais viagens acabaram por construir um vocabulário visual e teórico quando Heizer começou a atuar como artista. Uma de suas obras mais emblemáticas, “Double Negative”, é um exemplo de como o artista trabalha na paisagem, fazendo uma intervenção de escala monumental, subtraindo matéria - neste caso milhares de toneladas de terra - para realizar duas trincheiras de cerca de 450 metros de comprimento, 15 metros de profundidade e 9 metros de largura em meio ao deserto de Nevada. Para visitar esta obra é necessário percorrer o deserto de carro seguindo diretrizes pelo GPS, e com sorte, encontrar os imensos talhos de Heizer, após caminhar alguns quilômetros. 7 Artista norte-americano nascido em 1944, um dos pioneiros da Land Art. Está produzindo em Nevada desde 1972, a obra “City”, que tem lançamento previsto para 2020 e será uma das maiores obras já feitas. . Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Double Negative, 1970. Michael Heizer, Overton, Nevada Wiltshire, Inglaterra Não consigo pensar em uma intervenção na paisagem tão oposta a “A Line Made by Walking”. Ainda não tive a oportunidade de visitar “Double Negative”, mas consigo projetar o impacto que a obra deve provocar ao vivo, ao caminhar no árido, inóspito e seco deserto de Nevada, no vazio negativo de Heizer. Além de intervenções monumentais na paisagem, outras obras do artista deixam claro o seu interesse pela pré-história e artefatos relacionados. No fim da década de 80, Heizer produziu uma série de esculturas que replicam colossalmente ferramentas do período neolítico e paleolítico. Em concreto, ele expõe essas formas em bases de ferro. Todos os detalhes de entalhe e fissuras estão presentes nas réplicas. Interessa-me o modo que Heizer trabalha com a escala na paisagem e dentro do espaço expositivo. Dentro da galeria, ele aumenta ferramentas pré-históricas. Ao dar a estas formas uma escala monumental, ele retira a utilidade delas, como que se as elevasse a outro patamar, valorizando as primeiras ferramentas feitas pelo homem. Ferramentas que eram usadas para escavar, furar, lixar e quebrar. Fora do espaço expositivo, ele se utiliza de monstros da engenharia e construção, que ele jocosamente denomina de ‘dumb tools’ (algo como ‘ferramentas idiotas8’), 8 “Common Shovels, awkward looking excavating devices, what Michael Heizer calls “dumb tools,” picks, pitchforks, the machine used by suburban contractors, grim tractors that have the clumsiness of armored dinosaurs (…).” SMITHSON, R. Sedimentation of the mind: Earth works. In: FLAM, J. Robert Smithson: Collected Writings. Londres: University of California Press, 2006, p.100-113. Wiltshire, Inglaterra Biface Perforator #2, 1988-89 Michael Heizer Wiltshire, Inglaterra para furar, lixar, quebrar e escavar, realizando intervenções de escala gigantesca na paisagem. Tanto dentro do cubo branco expositivo quanto fora, Heizer nos faz sentir pequenos. Não importa se estamos perante imensas formas/ferramentas pré-históricas ou ao lado de monstruosos recortes na terra no meio do deserto. Ele consegue, de modo exemplar, trabalhar com os princípios da escultura: escala, a relação entre negativo e positivo, adição e subtração. Voltando a Stonehenge, debaixo do forte calor do sol, penso nas ações humanas que já transformaram esta paisagem. Stonehenge hoje é circundada por grandes estradas e grandes monstros que soltam fumaça e se locomovem em alta velocidade ininterruptamente ao seu lado. A estrutura de Stonehenge foi provavelmente usada para diferentes finalidades ao decorrer de sua existência. Como qualquer arquitetura, esta deve também ter sido apropriada por diferentes povos ao decorrer dos séculos, tendo seu uso original transformado. Contudo, as mudanças da paisagem circundante não deixam de surpreender. Vemos dois tempos convivendo lado a lado. Tempos completamente opostos. Coexistindo. A contemplação de Stonehenge remete à provável intenção inicial de sua estrutura, servir como um observatório. Agora Wiltshire, Inglaterra seu território está dividido com uma construção que privilegia o automóvel e a rapidez no deslocamento. Uma sensação de estranheza me preenche ao observar o lugar e tentar imaginar quantos percursos foram feitos e realizados nesta área, hoje tão modificada. Tenho convicção de que a área na qual Stonehenge foi erguido era tida como especial, um solo sagrado. Desde o século XVIII foram descobertos cerca de cem pontos de enterros de cremação. Acredita-se que existem mais muitos outros ainda não escavados na área. Algumas dessas cremações foram datadas sendo de 2300 anos atrás, o que indica que Stonehenge era um local que recebia essas práticas e rituais muito tempo após suas rochas serem erguidas. Além de restos mortais, são comumente encontrados nestas escavações artefatos como cerâmicas e peças feitas com ossos junto aos corpos. Esses túmulos estão sob pequenos montes que se projetam na paisagem e quase passam desapercebidos pelo visitante, por parecerem pertencentes à topografia. Estes montes, assim como os menires, também são intervenções na paisagem feitas pelos seres humanos. Recordo-me dos sambaquis na costa brasileira, principalmente no litoral de Santa Catarina, onde em uma viagem recente pude ver, após visitar o Museu do Homem do Sambaqui, em Florianópolis, pequenas montanhas próximas ao mar. Depois tive conhecimento de que eram constituídas de material 4 9 Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Túmulo funerário (burial mounds) em Stonehenge, Wiltshire. Wiltshire, Inglaterra Sambaqui em Nova Camboriu, Jaguaruna Wiltshire, Inglaterra Sambaqui em Nova Camboriu, Jaguaruna orgânico e calcário e não faziam parte da topografia natural. O sambaqui guarda informações sobre os povos que viveram em seu entorno há quatro mil anos, do que se alimentavam e indícios de como era a sua vida. Em escavações junto aos sambaquis foram encontrados moluscos, esqueletos de peixe e pequenos animais. Em vários deles havia restos mortais humanos, mostrando que alguns povos os utilizavam como lugar sagrado para enterrar seus próximos. Ao passar do tempo, esse material calcário se torna compacto pela fossilização que ocorreu devido às chuvas, que petrificam a estrutura dos moluscos e ossos, formando uma sólida protuberância na paisagem e, como os montes que serviam como túmulos ao redor de Stonehenge, são camuflados na paisagem. A forma e escala dos sambaquis brasileiros e dos montes funerários da Inglaterra são muito similares. Lugares que apesar de tão distantes geograficamente, são ligados por práticas semelhantes e contam com a peculiaridade social e contexto em que estão inseridos. São 15h45 e o sol ainda não deu trégua. Passo pela loja do visitor center e toda a indagação histórica em que me vi envolvida nas últimas horas é impactada e atravessada pelos milhares de souvenires de Stonehenge. Chocolates no formato das rochas, roupas de bebê, pingentes, canecas, bonés, quebra-cabeças... Um monumento tão carregado de significados, 5 3 Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra sendo reproduzido imageticamente de modo desenfreado, esvaziando toda a potência da experiência da visita. Minha pele arde e decido começar a segunda parte da viagem, o retorno à Salisbury. Serão mais 21km. Arrumo minha mochila, tomo água e subo na bicicleta. O retorno é tão ou até mesmo mais tenso que a vinda. Faço várias paradas para tomar água e recuperar a respiração. Os coelhos e raposas estirados como tapetes me fazem julgar a estrada ainda mais hostil. Caminhões e carros parecem mais nervosos, barulhentos, agressivos e apressados; as subidas e descidas mais brutais e tortuosas. Ou seria o meu cansaço? Chego em Salisbury e devolvo a bicicleta. Pergunto ao funcionário da loja pelo bar com a cerveja mais gelada da cidade. Dirijo-me ao centro, a pele ardendo do sol, que começa finalmente a baixar. Peço um copo de Moretti. Sento-me numa mesa na praça. Ao meu lado um grupo de amigos aproveita o fim do dia mais quente do ano tomando cerveja e vinho branco. Um deles fala sobre o calor, sobre o sol forte que cegou a todos 5 5 Wiltshire, Inglaterra nesta terça-feira. O outro comenta sobre a noite anterior, discorre sobre o céu estar tão estrelado que teve vontade de fazer um pedido para as estrelas. Uma mulher fala sobre a lua, que estava cheia e muito grande, amarela. Termino minha cerveja sorrindo, apesar das pernas exaustas e a pele ardendo, ando até a estação para pegar o trem de volta a Londres. O trem volta cheio para a cidade. Sento-me na poltrona 15 e tento dormir um pouco, mas tenho medo de perder a estação. A viagem é desconfortável, meu corpo está coberto de terra, sinto-me dolorida e exausta. Depois de 1h20 começo avistar as redondezas de Londres. Agora os edifícios também me parecem grandes e erráticos menires urbanos. Com o trem parado em uma estação próxima a Waterloo, vejo a lua cheia do lado direito do vagão. O trem começa a se mover e a lua desaparece e reaparece por detrás de prédios e pontes, como num jogo entre ela e o horizonte do panorama urbano. Do lado esquerdo do vagão vejo o pôr do sol, esse que me trouxe tanta energia e cansaço e que foi tão aludido neste dia. O céu se enche de cores quentes, laranjas, vermelhos e rosas, como em uma despedida dramática. Desde sempre o ser humano foi guiado pelos sistemas orbitais dos astros que definem nossos calendários e ciclos cotidianos diários. Hoje não poderia ser diferente. Wiltshire, Inglaterra Londres, Inglaterra Até amanhã, sol. b Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, InglaterraAmsterdã, Holanda Derde Wittenburgerdwarsstrast, 1 23 de Dezembro de 2019 5h49 O despertador do celular ruge na manhã fria - e ainda escura - dessa segunda-feira. As cortinas estão abertas, mas ainda assim nenhuma luz atravessa os grandes vidros das janelas do quarto. O solstício acaba de anunciar o início do inverno por meio da noite mais longa do ano no hemisfério norte. De olhos semiabertos visto as roupas, cuidadosamente escolhidas e separadas na noite anterior. Pego minha mochila, que contém alguns textos selecionados e um pequeno lanche preparado previamente. Sigo para estação central de Amsterdã. É dado início à corrida contra o nascer do sol, rumo ao trabalho “Observatorium”, de Robert Morris9, localizado na pequena cidade de Lelystad, província de Flevoland. O trajeto consiste em uma viagem de trem até a estação central de Lelystad, onde pegarei um ônibus intermunicipal até um ponto específico no meio de uma estrada. Na última etapa, um percurso de 20 minutos caminhando. 9 Artista, escultor e escritor norte-americano (1931-2018). Morris produziu ao longo de sua vida um conjunto de objetos e ações capazes de resignificar relações entre público e obra. 6 1 Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra O vento atravessa todas as camadas de roupas que visto nessa manhã. Algodão, jeans, lã, nada consegue bloquear a gelada corrente de ar que atravessa a plataforma deserta da estação central. O trem finalmente chega. Está vazio, escolho uma poltrona para me sentar. Dezenas de minutos se passam. Apesar de estar ao lado de uma janela com vista em um vagão quase inteiramente desocupado do trem, sou tomada por uma sensação de enclausuramento. Não consigo ver absolutamente nada da paisagem lá de fora. Pelo vidro apenas o breu. Aproveito para ler um texto que trouxe comigo sobre a emblemática exposição intitulada “Sonsbeek 1971”, da qual só tomei conhecimento depois de ter me mudado para a Holanda, há cerca de dois anos. A exposição comissionou e deu atenção a obras ao ar livre e suas diversas relações espaciais, propondo a construção de trabalhos permanentes de caráter público. Robert Morris foi um dos artistas participantes, assim como Robert Smithson, que realizou na ocasião a obra “Broken Circle/Spiral Hill”, que tive oportunidade de visitar no ano anterior. As obras da exposição “Sonsbeek 1971” se espalharam por mais de doze províncias da Holanda. A contribuição de Morris para a mostra, “Observatorium”, foi erguida primeiramente no município de Wiltshire, InglaterraAmsterdã, Holanda Velsen. Porém, com o desenvolvimento e construção de um novo projeto urbanístico na área, a obra teve que ser destruída. Felizmente, após alguns anos, o trabalho foi reconstruído em 1977, com o apoio do Museu Stedelijk, de Amsterdã. Hoje a obra está instalada permanentemente em Lelystad, a menos de 60 quilômetros da capital holandesa. Em pouco menos de uma hora chego à estação central de Lelystad. Do lado de fora da estação vejo o letreiro luminoso do ônibus que devo pegar: número 145. O percurso de ônibus não é longo. Agora consigo ver pelas janelas a silhueta das árvores e algumas construções na paisagem. O breu do céu começa a dar lugar a uma luz azul, profunda, densa e dramática. Lelystad é uma cidade de pouco mais de 70 mil habitantes, que fica a uma altitude de cinco metros abaixo do nível do mar. Fundada em 1967, é claramente um exemplo da notável engenharia e infraestrutura do país, onde vemos que a paisagem é inteiramente artificial e construída sobre a água. Como dizem os holandeses: Deus fez o mundo, mas foram eles que fizeram a Holanda. 6 5 Wiltshire, Inglaterra Horizontes infinitos, nenhuma elevação: a típica e muitas vezes entediante paisagem local. Ao invés de montanhas, serras ou uma exuberante vegetação, o céu é a grande atração na Holanda. Toda a água que atravessa e cerca o país espelha os teatrais e intensos começos e fins de dia. A paisagem fica cada vez mais nítida, com isso a minha ansiedade aumenta. O “Observatorium” de Morris consiste em uma construção que se baseia nos monumentos neolíticos. Assim como Stonehenge, o trabalho permite visualizar precisamente o sol nascer nos solstícios de verão e inverno, através de uma estrutura minuciosamente elaborada para este fim. Calculei toda a rota da viagem com cuidado. Qualquer atraso ou erro implicaria não conseguir ver a obra de Morris em seu potencial maior, sendo ativada pelo movimento do sol nascendo por dentro de uma de suas estruturas constitutivas. Sinto-me como um satélite ou um corpo celeste em órbita, se deslocando conforme as leis da física e as forças gravitacionais. Desço no ponto que o aplicativo do Google-Maps me indica. O ônibus continua seu caminho. Assisto seu farol iluminando a paisagem erma do meu entorno. A poucos metros uma grande placa indica a direção do “Observatorium”. Começo ali a caminhada derradeira até a obra. Wiltshire, InglaterraLelystad, Holanda Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Apesar de sua aproximação e diálogo com outros artistas, como Robert Smithson e Nancy Holt, ao construir “Observatorium” em um lugar que julgava de fácil acesso desde centros urbanos, Morris enfatizou, de modo crítico aos seus colegas e pares, que sua obra tinha como objetivo ser experimentada por um público amplo, diferentemente dos trabalhos de Land Art localizados em regiões remotas e que exigem uma peregrinação para serem vivenciados. O fácil acesso ao “Observatorium” era um conceito-chave para o artista. A ideia era permitir que o visitante se locomovesse até a obra sem grandes esforços, utilizando a rede de transporte público, por meio de uma breve viagem de carro ou até mesmo via uma praticável viagem de bicicleta. Tal interesse do artista provou-se efetivo, não apenas na localização original do trabalho, mas também na reconstrução e nova colocação da obra em Lelystad. Prevenida contra a escuridão que envolve meu corpo enquanto caminho em direção ao “Observatorium” e na intenção de me tornar visível e me proteger dos poucos caminhões que passam pelos dois lados da pista, retiro do bolso da minha jaqueta e prendo na alça da minha pequena mochila um pequena luz LED vermelha portátil que geralmente utilizo como farol traseiro de minha bicicleta. Sigo caminhando. 7 1 Lelystad, Holanda Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Do meu lado esquerdo, a estrada. No lado direito identifico dezenas de ovelhas que se aglomeram na esperança de se esquentar sobre o solo pantanoso. É um cenário um tanto esquizofrênico: pequenas casas de campo e seus rebanhos de ovelhas convivem lado a lado com inúmeras e modernas turbinas eólicas. Hélices colossais e aerodinâmicas que giram silenciosamente, como se estivessem pontuando uma cadência da paisagem, o ritmo próprio daquele lugar. Cada turbina possui um grande farol vermelho luminoso em uma de suas extremidades. Devido à minha distância, este me parece apenas um pequeno foco de luz, remetendo-me à pequena luz de LED vermelha presa a minha mochila e que acompanha meus passos neste exato momento. Após atravessar um curto túnel que garante uma passagem segura por baixo de uma rodovia, vejo ao meu lado esquerdo uma grande peça metálica que se desponta do gramado. Lentamente meus olhos identificam em meio a escuridão da manhã algumas elevações no terreno. Havia finalmente chegado ao “Observatorium”. Cruzo a última estrada apressadamente, após esperar por um breve intervalo entre os carros e caminhões velozes. Recordo-me de Stonehenge e da experiência de cruzar estradas diante de grandes veículos para chegar a uma construção que se relaciona com movimentos astronômicos, Wiltshire, InglaterraLelystad, Holanda objetos celestiais tão indiferentes ao trânsito de veículos e produtos que ocorre por ali. Foi necessária, tanto ao chegar em Stonehenge, quanto ao “Observatorium”, uma “calibragem” do olhar, um ajuste da atenção. Sair do estado de alerta que nos é imposto ao andarmos rente a uma estrada ou quando estamos à espera de um trem que que se aproxima a estação, atravessados por todos os ruídos que grandes máquinas produzem. Entrar, finalmente, em uma situação de apreciação e contemplação que construções como esta suscitam e requerem. A obra consiste em duas elevações concêntricas de terra. A elevação exterior mede cerca de 92 metros de diâmetro. O terreno possui três estruturas em V que pontuam o entorno e são visíveis desde o interior da obra. Duas são feitas de rocha e uma de aço. O círculo interno foi construído por meio de uma estrutura de madeira que sustenta a elevação de terra, que é coberta por grama. Este círculo possui quatro grandes aberturas, uma delas triangular. Estas passagens enquadram as estruturas em V que pontuam o círculo externo, que por sua vez recebem o nascer do sol em épocas específicas do ano: a estrutura metálica de aço nos equinócios e as de rocha nos solstícios de inverno e verão. 7 9 Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra A cor do céu lentamente fica mais clara, mas ainda não há sinal do sol. Percorrendo o interior da obra vejo vestígios de uma fogueira na grama. Vários grafites adornam as paredes internas do círculo central. Em um deles uma nave espacial parece estar prestes a pousar. Assim como em Stonehenge, durante o solstício de verão (que no hemisfério Norte ocorre no mês do junho), também há uma grande festa no “Observatorium” para comemorar o início do verão e o dia mais longo do ano. Em Stonehenge, o parque é aberto ao público. Lá multidões fantasiadas e dançantes se reúnem entre as rochas para testemunhar e reverenciar o sol. Já no “Observatorium” acontece, desde 1997, um festival ao longo dos dias 19 e 20 de junho. O evento “Sunsation” abriga um número limitado de visitantes que acampam em torno da obra. O início do verão é celebrado com uma série de apresentações teatrais, literárias e musicais que ocorrem no centro do trabalho, a partir das 5h, juntamente com o nascer do sol. “Observatorium” é uma obra de Land Art pioneira devido ao seu caráter convidativo que, de forma não restritiva, abriga até hoje manifestações públicas diversas. Wiltshire, InglaterraLelystad, Holanda Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Morris parece ter atingido um de seus objetivos iniciais: produzir uma obra de grande escala, fácil acesso e que promove uma experiência ímpar ao público visitante. O céu parece mais claro e consigo ver nitidamente a movimentação das nuvens. Com mais luminosidade enxergo mais detalhes presentes na obra: cogumelos crescendo nas tábuas de madeira, restos de fogos de artifício no solo, desenhos e rabiscos feitos por pessoas que passaram por ali sobre as superfícies estruturais. Observo cachorros que correm pelo terreno enquanto seus donos pacientemente os esperam retornar. Salvo esses transeuntes, que aparentam estar habituados a andar por ali, não há mais ninguém aguardando para assistir o solstício. O inverno não é capaz de motivar tantos visitantes quanto o verão. No ponto central da obra se encontra uma rocha fixada ao solo que marca o cerne da estrutura do trabalho, o ponto de maior reverberação de som do círculo, capaz de produzir um considerável eco. Tento imaginar o som deste local em meio às apresentações que ocorrem durante o festival do solstício de verão. Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Às 8h47 sou surpreendida pelo nascer do sol, que atravessou bravamente as nuvens e o céu nublado daquela manhã, sendo emoldurado pela base de rocha em V projetada por Morris. Ao surgir através da obra, o sol se assemelha a uma bola de fogo que se movimenta verticalmente, dando início de maneira dramática a mais um dia, o dia mais curto do ano. Os raios de sol cortam o céu. Posso sentir minha pele recebendo seu calor. Estar presente em uma obra tão rígida e sólida na manhã do solstício de inverno, paradoxalmente, me proporcionou um momento singular, breve e efêmero. Assistir ao sol ativando o trabalho de Morris demonstrou o perfeito equilíbrio presente entre o uso e manipulação de materiais como concreto, madeira e aço, com o grandioso movimento dos astros. Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, InglaterraLelystad, Holanda n 9 5 Em minutos o sol já está reinando no céu, iluminando tudo. Começo o percurso de volta para casa. O ônibus 145 não tarda a passar. De dentro do ônibus posso enxergar com facilidade a paisagem que tangencia a estrada, paisagem que naquela manhã estava envolta pela escuridão. Os poucos passageiros a bordo ingerem bebidas energéticas e conversam em voz alta, como se aquele ônibus, naquele momento específico do dia, fosse uma extensão de suas casas. Olham para mim como se um estranho tivesse adentrado um recinto particular. O sol ergue-se no céu e um curto dia se inicia. Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Reverberações Wiltshire, Inglaterra Em março de 2017 fui selecionada para a residência artística “Cripta 747”, em Turim, na Itália. Era a minha primeira vez na cidade, onde acabei morando por cerca de três meses. Caminhava diariamente alguns poucos quilômetros da casa ao ateliê da residência. O nome do bairro no qual caminhava me intrigou desde o início: Aurora. Aos poucos, com o passar das semanas, fui estabelecendo algumas relações entre o nome do bairro e o vigor da energia presente nas ruas e vielas que o cortavam. Aurora era um bairro majoritariamente habitado por imigrantes. Apesar de não conseguir identificar todas as línguas que ouvia ao cruzar com tantas pessoas que se reuniam ao redor de cafés e nas entradas dos prédios, conseguia ao menos diferenciá-las, evidenciando a pluralidade de origens presentes naquele destino. Ficava impressionada com a quantidade de aglomerações e agrupamentos de homens nas esquinas, passagens e vielas do bairro, jogando cartas ou conversa fora. Com o passar do tempo fui percebendo um senso de transitoriedade por ali. Testas franzidas e olhares atentos ao entorno, porém algo parecia os conectar com localidades e pessoas remotas. Inúmeros celulares, verdadeiras extensões dos braços, em alguns momentos ativos, tocando e vibrando; em outros, silenciosos, à espera de um Wiltshire, Inglaterra contato, uma informação ou de alguma possibilidade de mudança. Sem cortinas no quarto do meu apartamento e ainda extremamente sensível devido à sensação de jet lag que atormentava meu sono e rotina, comecei a me levantar da cama assim que o sol começava a clarear o céu. Naturalmente, após um breve café da manhã, andava ao ateliê acompanhada pela alvorada. Ao fim do dia, quando o sol estava a terminar sua calorosa aparição diária eu me dirigia de volta para casa. Ao sair do prédio todas as manhãs, percebia que a luz da aurora despertava todos os habitantes do bairro, um convite para a rua. Vagarosamente os raios de sol anunciavam um novo dia, mais um, um novo dia após outro dia. Um dia renovado para se fazer tudo novamente ou para se fazer tudo diferentemente. Ao passar o primeiro mês tendo meus dias e produtividade guiados pelo movimento solar, disciplinando meu estado físico e psicológico após uma mudança brusca de fuso horário, passei a refletir sobre a palavra e o conceito de aurora, em como o nome da área em que estava morando representava um fenômeno natural e seu processo de transição luminosa gradual que ocorre entre noite e dia. A contemplação sobre o termo 1 0 1 Wiltshire, Inglaterra me levou a compor uma narrativa estética a partir da relação entre uma série de sensações e fenômenos percebidos durante o dia pela materialidade do mundo, incluindo o próprio corpo humano e a energia emanada pela estrela ao redor da qual orbitamos infinitamente. Ponderando sobre as ramificações do sol sobre a terra, para além da mais óbvia relação física que torna toda forma de vida do planeta dependente da energia solar, refleti sobre o ciclo de vida e morte que reside no cotidiano de cada um de nós, a efemeridade do presente, a inevitável decomposição do dia para a noite, e, em seguida, da noite para o dia, um big bang ininterrupto, inescapável. O trabalho titulado “6h35 / 20h04 (16 de abril de 2017)” se origina de um processo de interpretação cromático e diário acerca dos fenômenos naturais do amanhecer e do anoitecer. No dia 16 de abril de 2017, caminhei pelo bairro de Aurora, em Turim, vestindo duas camisetas brancas distintas em dois momentos diferentes do dia; a primeira, durante o amanhecer, a segunda, durante o anoitecer. Para ocasião apliquei às camisetas uma substância fotossensível usada historicamente para a criação de cianotipias. Wiltshire, Inglaterra Às 6h35, horário do nascer do sol daquele dia, caminhei pelo bairro com uma das camisetas embebida com a substância fotossensível, permitindo que a luz do sol interagisse fisicamente com a substância, marcando e tornando visível os raios de sol que entravam em contato com meu corpo, registrando, por meio da luz, meus movimentos e minha relação com o espaço do bairro. Às 20h04 do mesmo dia, quando o sol estava a se recolher após mais uma longa aparição, caminhei pelo bairro com a outra camiseta contendo a substância fotossensível, permitindo que os últimos raios solares reagissem com os químicos presentes no tecido e representassem meu percurso particular. Após estes percursos, revelei as respectivas camisetas, deixando visível a relação do meu caminhar com os raios de luz que inauguram e encerram o dia. Ao final da residência artística, elaborei e apresentei uma exposição individual que naturalmente se intitulou “Aurora”, no contexto da galeria Giorgio Galotti. Nela tive a oportunidade de mostrar, em conjunto com outros trabalhos produzidos naquele período, as duas camisas tingidas pela luminosidade do sol, instaladas em dois polos opostos do espaço da galeria, uma ao leste e outra ao oeste, com a intenção de recriar o ciclo e percurso do nascer e do pôr do sol dentro de um ambiente asséptico de uma galeria de arte contemporânea. 1 0 3 . Wiltshire, Inglaterra Renata De Bonis, 6h35 / 20h04 (16 de abril de 2017), duas camisetas brancas preparadas com solução de cianotipia e usadas pela artista em 16 de abril de 2017, uma ao amanhecer e a outra ao entardecer Wiltshire, Inglaterra Renata De Bonis, 6h35 / 20h04 (16 de abril de 2017), duas camisetas brancas preparadas com solução de cianotipia e usadas pela artista em 16 de abril de 2017, uma ao amanhecer e a outra ao entardecer 1 0 5 Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra 1 0 7 Renata De Bonis, 6h35 / 20h04 (16 de abril de 2017), duas camisetas brancas preparadas com solução de cianotipia e usadas pela artista em 16 de abril de 2017, uma ao amanhecer e a outra ao entardecer Wiltshire, Inglaterra Referências: BRYAN-WILSON, Julia. Robert Morris (October Files). Cambridge: MIT Press, 2013. CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar como prática estética. São Paulo: Gustavo Gili, 2015. COTRIM, Cecília. FERREIRA, Gloria. Escritos de artistas: Anos 60/70. 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Gauthiér. http://www.christophergauthier.com/ summer-solstice-memorial-for-nancy-holt-at-the-sun-tunnels/ (acessado 05/09/2017) Página 40: A Line Made by Walking, 1969, Richard Long, fotografia Richard Long. http://www.richardlong.org/ Sculptures/2011sculptures/linewalking.html (acessado 12/08/2017) Página 44: Double Negative, 1970, Michael Heizer, fotografia http://doublenegative.tarasen.net/double-negative/ (acessado em 19/08/2017) Página 47: Biface Perforator #2, Michael Heizer, 1989/1990, fotografia Pace Wildenstein. http://www.artcritical.com/ DavidCohen/sun_images_august/Michael-Heizer-1.jpg (acessado 21/09/2017) Página 52: Sambaqui de Jaguaruna, fotografia de Joannis Mihail Moudatsos, http://www.panoramio.com/ photo/76669694 (acessado em 04/10/2017) Página 105 e 107: fotografias de Sebastiano Pellion di Persano Todas as outras imagens presentes neste caderno são de autoria de Renata De Bonis. Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Wiltshire, Inglaterra Genk, Bélgica Sun and Wash Center Lavanderia Sun and Wash Center Genk, Bélgica Genk, Bélgica Genk, Bélgica UNESP | Universidade Estadual Paulista Instituto De Artes Programa De Pós-Graduação Em Artes Doutorado Em Artes Visuais CADERNOS DE VIAGEM: notas de percurso, devaneios e registros Volume III: Lavanderia Sun and Wash Center Renata Funcia De Bonis Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Linha de Pesquisa Processos e Procedimentos Artísticos, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Artes Visuais Orientação: Prof. Dr. José Paiani Spaniol São Paulo 2020 Genk, Bélgica Genk, Bélgica Genk, Bélgica Genk, Bélgica Genk, Bélgica Genk, Bélgica Stalenstraat, 165 Lavanderia Sun and Wash Center 6 de julho de 2016 18:03h Genk, Bélgica Genk, Bélgica Genk, Bélgica Nenhuma máquina livre. Sento e assisto os tambores rodando com roupas alheias. Cada máquina tem um timer no visor. São oito máquinas no total. A primeira, da esquerda para direita, está quebrada. Um adesivo com os dizeres em caixa alta TIJDELIJK BUITEN DIENST1 está colado no visor. A segunda está na programação de lavagem 1. Ainda faltam 40 minutos para o término. A terceira está na lavagem 3. O visor indica que ainda faltam 43 minutos para o término. A quarta máquina está quebrada, mas sem adesivo ou qualquer aviso no visor; uma mulher aponta para a máquina e diz “Kaputt!” A quinta máquina está na lavagem 4. O visor me diz que ainda faltam 41 minutos para o término. A sexta máquina está na lavagem 5 e ainda faltam 21 minutos para o término. A sétima e oitava máquina estão livres. Elas são grandes, para até 13kg de roupa. São para lavar edredons, cobertores, roupas de cama e toalhas. A lavagem para estas máquinas custa 7 euros. Para as menores, para até 6,5kg, o preço é de 3,40 euros. 1 Temporariamente sem serviço. 7 Genk, Bélgica Genk, Bélgica Genk, Bélgica Dentro da lavanderia há duas máquinas de venda automática, uma de refrigerante e outra de sabão em pó e amaciante. A de sabão em pó e amaciante é especialmente bonita. A luz das lâmpadas fluorescentes sobre os produtos plásticos azuis e rosas produz uma atmosfera celestial para os sacos de sabão e fragrâncias artificiais de lavanda. Enquanto admiro as máquinas automáticas, um casal abre a porta da lavanderia repentinamente. Com eles um pequeno pássaro entra voando, determinado e veloz, em direção ao fundo do imóvel. O casal se dirige a mim em uma língua que não consigo identificar. Eles não se surpreendem com a entrada do pássaro e continuam a me questionar. Eu respondo trêmula “sorry, do you speak english?”. A mulher arrisca o inglês algumas vezes e, sem sucesso, sai da lavanderia frustrada. Assim que a porta se fecha atrás do casal eu corro para a parte de trás para tentar encontrar o pássaro. Ele parece um pardal, assustado por estar em um local fechado e estranho. As paredes da lavanderia são, em sua maioria, cobertas por espelhos. O pardal se espanta com a minha presença e tenta voar, sem sucesso, chocando seu pequeno e frágil corpo contra as paredes. Tento rodeá-lo, na expectativa de que ele voe até a frente e encontre a saída. De dentro do silêncio da lavanderia posso ouvir o pio de pássaros do lado de fora. 9 Genk, Bélgica Genk, Bélgica Genk, Bélgica Genk, Bélgica VUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUMMMMMMMMUMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMM, Penso se os pássaros em liberdade estão se comunicando com o colega que, aflito, voa de um lado a outro, estabanado e nervoso, sem estratégia alguma. Em meio às tentativas de escapar, o pássaro faz pausas em frente aos espelhos da lavanderia e parece ficar cada vez mais confuso com seu duplo refletido. No chão da lavanderia, perto da porta, existe um tipo de mecanismo com ímã para manter a porta aberta, mas claramente está quebrado ou com algum problema. Tento repetidas vezes travar a porta para que, aberta, facilite a saída do pequeno voador. Sem êxito. Quando constato que esse é um trabalho para duas pessoas, um homem vê pelo lado de fora o meu estranho movimento contínuo da parte de trás para a frente da lavanderia e acaba por compreender o motivo de meu esforço. Ele abre a porta, trocamos algumas palavras, cada um em sua língua e, na segunda tentativa de direcionar o pássaro para a porta, ele voa para fora em um voo forte e preciso. Há uma troca de olhares vitoriosos e aliviados entre o homem e eu, enquanto mais algumas palavras indecifráveis são trocadas entre nós. A porta se fecha atrás dele, deixando a lavanderia novamente em seu marasmo prévio. Genk, Bélgica Genk, Bélgica VUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUMMMMMMMMUMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMM, A primeira máquina continua quebrada. A primeira máquina continua quebrada. A segunda máquina marca 13 minutos para o término da lavagem. A terceira, 17 minutos para o seu término. A quarta máquina continua kaputt. A quinta máquina marca 14 minutos. A sexta máquina está parada, o ciclo de lavagem terminou. A sétima e a oitava máquinas continuam livres. 13 Genk, Bélgica Genk, Bélgica Genk, Bélgica Genk, Bélgica Na parte de trás da lavanderia estão as secadoras. Há também três misteriosas portas azuis com os dizeres Hawaii, Jamaica e Saint-Tropez pintados em amarelo. Abaixo dos mesmos, a palavra RELAX em caixa alta. Um desenho simplificado de uma pessoa deitada ilustra cada porta. Tamanha foi a minha surpresa ao abrir essas portas da esperança e encontrar camas de bronzeamento artificial velhas, empoeiradas e ultrapassadas em pequenos quartos escuros sem janelas e com lâmpadas queimadas. Hawaii, Jamaica e Saint tropez. O que esses lugares teriam em comum? Talvez o sol? Talvez o estereótipo de inércia e tranquilidade das regiões praianas? O tempo lento, os dias quentes e serenos que se sucedem enquanto “lagarteamos” na horizontal? Quem sabe a sensação relaxante do sol esquentando a pele ou até mesmo o ato de ouvir, de olhos fechados, as ondas batendo na costa, sentido a areia entre os dedos dos pés? Sol. Calor. Ardência. Pele bronzeada. Em Genk, Bélgica. Onde passo frio e só chove há semanas. Penso no sol escaldante de Camus, na areia quente e da luz ofuscante do Mediterrâneo. Penso sobre a longitude geográfica contrastante em que me encontro, cá nesta lavanderia. Os velhos quartos de bronzeamento artificial me dão arrepios. . Genk, Bélgica Genk, Bélgica Distância em quilômetros entre Genk e os locais aludidos*: Genk e Hawaii – 11.848km Genk e Jamaica – 7.947km Genk e Saint-Tropez – 1.214km *distâncias calculadas por meio de um site de livre acesso na Internet, que me assegura de que a distância é calculada levando em conta a curvatura da Terra. 17 Genk, Bélgica Genk, Bélgica Genk, Bélgica Genk, Bélgica Cinco mulheres entram na lavanderia falando alto e gesticulando fortemente. Elas começam a tirar a massa de roupas do tambor e, desnorteadas, se atropelam entre camisetas, regatas, peças rosas, brancas, verdes, que são desvencilhadas umas das outras com afobação. Agora a máquina de número seis se encontra livre. Coloco minhas roupas e as de Daniel dentro do tambor. Escolho a lavagem 3, coloco sabão nos compartimentos e vou até a máquina colocar 3,40 euros. Tento escolher as moedas menores: entram cinco moedas de vinte centavos, uma moeda de dois euros e quatro moedas de dez centavos. Genk, Bélgica Genk, Bélgica Agora a máquina seis tem 56 minutos no visor, a sétima e a oitava continuam vazias, a primeira continua quebrada, a segunda ainda tem 3 minutos até seu término, a terceira 9 minutos, a quarta máquina continua quebrada, e a quinta ainda tem 5 minutos até o ciclo se encerrar. 21 6 Genk, Bélgica Genk, Bélgica Genk, Bélgica Genk, Bélgica Stalenstraat, 422 Apartamento da residência FLACC 7 de julho de 2016 5:17h Daniel: - Amor? Eu: - Uhm? D: - Você ouve o pássaro andando no forro do telhado? 5 Genk, Bélgica Genk, Bélgica 25 Genk, Bélgica Great Salt Lake, Estados Unidos À volta de Robert Smithson À volta de Robert Smithson Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos UNESP | Universidade Estadual Paulista Instituto De Artes Programa De Pós-Graduação Em Artes Doutorado Em Artes Visuais CADERNOS DE VIAGEM: notas de percurso, devaneios e registros Volume IV: À volta de Robert Smithson Renata Funcia De Bonis Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Linha de Pesquisa Processos e Procedimentos Artísticos, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Artes Visuais Orientação: Prof. Dr. José Paiani Spaniol São Paulo 2020 Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Spiral Jetty Rozel Point 21 de outubro de 2014 10:40h Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos 9 Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos 17 Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Broken Circle/Spiral Hill Emmerhoutstraat 150 10 de setembro de 2018 13:10h Emmen, Holanda Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Recepção e arquivo da obra Broken Circle/Spiral Hill na entrada da pedreira em Emmen Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados UnidosEmmen, Holanda Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Great Salt Lake, Estados Unidos Itu, Brasil Parque Geológico do Varvito Parque Geológico do Varvito Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil UNESP | Universidade Estadual Paulista Instituto De Artes Programa De Pós-Graduação Em Artes Doutorado Em Artes Visuais CADERNOS DE VIAGEM: notas de percurso, devaneios e registros Volume V: Parque Geológico do Varvito Renata Funcia De Bonis Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Linha de Pesquisa Processos e Procedimentos Artísticos, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Artes Visuais Orientação: Prof. Dr. José Paiani Spaniol São Paulo 2020 Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Rua Glacial Parque Geológico do Varvito 9 de Setembro de 2016 11:50h Quinta-feira. Um dia quente de primavera. Saí do meu apartamento em São Paulo, onde moro no primeiro andar, de um prédio de três andares, na Zona Oeste. Percorri 89 km de carro até chegar na Rua Glacial, em Itu. 5 Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil - ‘Nome sugestivo. Isso tudo já foi gelo um dia.’ Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil A pulsação constante do centro da cidade de São Paulo, onde nasci e moro, levou-me a capturar estas imagens, pensando a repetição, o ritmo e o tempo como princípios elementares à experiência natural e humana, presentes desde o batimento cardíaco e a respiração, até os sistemas orbitais dos astros que definem nossos calendários e ciclos cotidianos. Mas há algo distinto aqui. O Parque Geológico do Varvito, o mais importante monumento do gênero na América do Sul, preserva formações rochosas com relevância histórica. O local é composto principalmente por vastas sucessões repetidas de camadas e sedimentos rítmicos, chamados varvito. 1 1 Itu, Brasil Essa formação rochosa comprova a existência do supercontinente conhecido como Pangeia, que existiu entre 200 a 540 milhões de anos atrás, quando todos os continentes formavam uma única massa de terra. A existência do Parque Geológico do Varvito é uma evidência física importante da teoria da deriva continental, revelando uma das muitas cicatrizes formadas pelo deslocamento das massas de terra em todo o globo. De maneira semelhante, esta formação rochosa geológica específica também pode ser encontrada em Isandlwana, Zululand, na África do Sul. Suas características correspondem precisamente ao Parque Geológico do Varvito, um espelhamento claro, a mesma estrutura terrestre agora dividida em duas, prova de que há milhões de anos as costas do Brasil e da África do Sul eram adjacentes. As camadas de rocha contam a história de um mesmo lugar, separado por um oceano de tempo. Um monumento geológico partido, que convida a uma inspeção atenta, um lugar de reflexão sobre os limites de nossa perspectiva e esforços como seres humanos. Entre as camadas de rocha são encontrados fósseis de animais invertebrados, suas marcas e vestígios da movimentação e deslocamento de seus corpos, testemunhos embutidos da evolução, que datam de 280 milhões de anos atrás, quando a região passou por um longo período de glaciação de seus lagos e rios. Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil 12 Itu, Brasil Itu, Brasil 12 Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil 1 7 A água proveniente destes lagos e rios, que se solidificou e se transformou em tantas evidências concretas, é o mesmo elemento que hoje separa massas de terra. Cada camada de rocha representa fielmente um ano de sedimentação; sua espessura relativa é um registro preciso do clima daquele ano. O varvito é uma rocha-testemunha e sua formação destaca a passagem do tempo, uma imensa biblioteca de dados em camadas solidificadas. Itu, Brasil 18 Itu, Brasil Itu, Brasil 18 Itu, Brasil Ao estar na presença das gigantes formações rochosas em Itu, reflito sobre a ocupação espacial perversa e fútil dos seres humanos na sociedade moderna, obcecados por paredes, fronteiras e propriedades, um contraste à formação dos continentes e à lenta estruturação, ano a ano, das camadas do varvito. A ação contínua da espécie humana sobre a terra e seus conteúdos acabma por preservar apenas os sintomas nefastos dessa relação paradoxal, extinguindo aquilo que deveríamos cuidar. Parece-me que os esforços nossos de cada dia, de se tornar memória, de deixar legados e assim por diante, acaba por evidenciar somente nossa pequenez e egocentrismo. Não é coincidência vivermos no momento em que a palavra “Antropoceno” foi cunhada. A contradição reside no fato de que o que tornará a espécie humana história é o seu próprio colapso. O tempo geológico é indiferente à moral humana: não pretende ser positivo, correto ou ‘bom’; ele simplesmente é. Nesse fluxo contínuo de apenas ser, reside algo que nos parece imortal e imutável. Não há nenhum esforço humano comparável. Pelo contrário, parece que na sociedade moderna o ser humano é uma contradição inevitável, o que se reflete em nossa relação com a natureza, na aspiração por uma permanência grandiosa em meio à finitude e pequenez de nossas existências. Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Não há ação humana da qual o planeta se beneficie. O melhor seria se não atuássemos e nos entregássemos ao silêncio, à reclusão e à imobilidade. As rochas do Parque Geológico do Varvito são depoimentos sobre a formação da Terra tal como a conhecemos, salientando as derivas continentais, as eras climáticas dissonantes e as formas de vida presas entre elas. Quando miramos esse monumento há uma coerência pictórica, escultórica e volumétrica. Pergunto-me qual será o legado deixado por nós após o colapso de tudo? Camadas e camadas sedimentares, aglomerados e cistos de concreto, cimento, gesso, tinta, piche, vidro, plástico e estruturas metálicas que em um dado momento formavam edifícios, apartamentos, salas, conjuntos habitacionais, sobreposições de andares, de vidas e de rotinas distintas, uma sobre a outra. Uma aglomeração de hábitos particulares e cíclicos que em um dado momento identificaram-se como uma peculiar formação urbanística, endurecida e rígida, uma cidade, onde caminhamos, onde ao fim, nossos passos irresponsáveis não passam de vestígios fossilizados. O que deixaremos para a história para além destes testemunhos de uma vida incongruente e descolada do próprio mundo que habitamos e de seu respectivo tempo geológico e astronômico? z Itu, Brasil Itu, Brasil 2 3 Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Reverberações Itu, Brasil Em 2013 fui selecionada para uma residência artística no norte da Islândia, no pequeno vilarejo de Skagastrond, onde residi por cerca de três meses, convivendo apenas com outros 500 habitantes locais. Meu ateliê foi instalado dentro de uma antiga peixaria, um enorme e volumoso galpão à beira-mar. A casa que me foi disponibilizada ficava a cerca de 15 minutos a pé de distância do ateliê, na beirada de uma montanha branca. Se o clima da Islândia já não é, digamos, amigável., no norte da ilha ele é ainda mais sofrível. Os 15 minutos de distância entre o ateliê e minha habitação muitas vezes se transformavam em uma extensa jornada, onde a simples ação de caminhar se convertia em uma briga ferrenha contra ventos possantes, chuvas vigorosas e inescapáveis escorregões sobre o chão congelado. Montanhas gigantescas envolviam o vilarejo e diversos mitos e histórias da região mencionavam as vigorosas formações rochosas em suas narrativas. Um dia, ao tentar subir ao cume de uma delas, fui tomada por uma sensação estranhíssima de vertigem. A montanha parecia ficar cada vez maior e mais robusta a cada tentativa de aproximação ao seu topo. Não consegui concluir meu objetivo. Quando estava novamente em solo firme, sentei-me, contemplei a grande montanha por um largo tempo, pensando em quantos indivíduos de gerações distintas já não passaram pela mesma sensação e pela mesma impossibilidade. Quantos anos teria aquele pedaço enorme de rocha? Este simples embate me afligiu, fazendo me sentir enormemente insignificante. Itu, Brasil Itu, Brasil Na verdade, toda a minha experiência na Islândia me impactou dessa maneira. O clima é rude, grosseiro, longe de ser convidativo e faz questão de te lembrar constantemente do quão impotente e fraco você realmente é. Nos percursos diários entre minha casa e o ateliê, comecei a coletar um fragmento de rocha por dia. Quando chegava ao ateliê, inspecionava o fragmento mineral cuidadosamente e o pintava a tinta óleo sobre papel. Essa ação começou de modo despretensioso, mas ao passar de uma semana, percebi que ali habitava uma espécie de calendário material. Esta prática foi estendida por todo o período que residi no vilarejo. No último dia eu havia preenchido uma grande parede do ateliê com 90 pinturas retratando 90 rochas. Havia ali um registro da passagem do tempo. As 90 rochas pontuavam 90 dias da repetição de uma mesma, porem distinta ação, 90 dias onde repeti um procedimento para refletir acerca de conceitos como serialização, ritmo e representação. As noventa pedras eram únicas. Mas não eram todas a mesma, afinal? 2 7 Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Monolito: vista da exposição ‘Norte’ Centro Cultural São Paulo, 2014 Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Vista do atelie da residência NES Skagastrond, Islândia, 2013 Itu, Brasil Vista da caminhada entre minha casa e o ateliê Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Hólabraut 25, Skagastrond, Islândia Itu, Brasil Itu, Brasil Itu, Brasil Referências: CARNEIRO, C. D. R. Glaciação antiga no Brasil: parques geológicos do Varvito e da Rocha Moutonnée nos municípios de Itu e Salto, SP. Terrae Didatica, 12(3), pp. 209-219, 2016. ROCHA-CAMPOS, Antônio Carlos . Varvito de Itu, SP -Registro clássico da glaciação neopaleozóica. Em: Schobbenhaus, C., Campos, D.A., Queiroz, E.T., Winge, M.,Berbert-Born, M. (Eds.), Sítios geológicos e paleontológicos do Brasil, primeira ed. DNPM/CPRM - Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleobiológicos, Brasília, pp. 147-154, 2012. Disponível < http://sigep.cprm.gov.br/sitio062/ sitio062.pdf> (acessado 18/06/2017) TAVENER-SMITH R, MASON TR. A late Dwyka (early Permian) varvite sequence near Isandlwana, Zululand, South Africa. Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology. Volume 41, edição 3–4, Abril de 1983, pp. 233-249, 1983. Itu, Brasil Itu, Brasil Imagens: Páginas 28/29, 30/31 e 32: fotografias de Claus Lehmann. Todas as outras imagens presentes neste caderno são de autoria de Renata De Bonis. Itu, Brasil Ahrenshopp, Alemanha Anotações a partir de Caspar David Friedrich Caderno 1 Anotações a partir de Caspar David Friedrich Ahrenshopp, Alemanha Ahrenshopp, Alemanha Ahrenshopp, Alemanha UNESP | Universidade Estadual Paulista Instituto De Artes Programa De Pós-Graduação Em Artes Doutorado Em Artes Visuais CADERNOS DE VIAGEM: notas de percurso, devaneios e registros Volume VI: Anotações a partir de Caspar David Friedrich Renata Funcia De Bonis Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Linha de Pesquisa Processos e Procedimentos Artísticos, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Artes Visuais Orientação: Prof. Dr. José Paiani Spaniol São Paulo 2020 Ahrenshopp, Alemanha Ahrenshopp, Alemanha Ahrenshopp, Alemanha Ahrenshopp, Alemanha Ahrenshopp, Alemanha Ahrenshopp, Alemanha Künstlerhaus Lukas Dorfstraße 35 5 de setembro de 2015 9h20 Ahrenshopp, Alemanha Ouço um som lá fora. (Ouço um som lá fora?). -Tum- Abro os olhos. Agora estou definitivamente acordada. -Tum- Um som tímido, abafado, quente e pesado. Será que alguém trabalha no jardim? O quarto recebe uma luz azulada proveniente das finas cortinas de seda transparentes que disfarçam a grande janela do dormitório. Da cama posso ver as copas das árvores, se movimentando de um lado a outro, com um molejo remansado. Ouço o farfalhar das folhas através dos espessos vidros da janela. Observo o movimentar sincronizado dos galhos. Por vezes aparentam estar lutando para se desvencilhar um dos outros, angustiados. Não ouço vozes ou carros passando. Ahrenshopp, Alemanha Ahrenshopp, Alemanha Ao sair debaixo do encorpado edredom e me levantar da cama, o estalar da madeira das longas e antigas tábuas que cobrem o piso ressoam no espaço, reverberando nas paredes brancas de pé direito alto do quarto/ateliê. Ando e conto doze passos. Estou na mesa de trabalho. Cada passo é exaltado pela madeira, que parece responder sonoramente a cada movimento meu. É sábado e tenho preguiça de descer à cozinha para tomar um chá e preparar um café da manhã. É meu terceiro dia no vilarejo de Ahrenshoop, na residência artística Künstlerhaus Lukas. Até agora o que fiz foi organizar materiais de trabalho e localizar telefones e contatos para dar início à pesquisa que me trouxe até aqui, na qual me debruço sobre os lugares e paisagens que o pintor alemão Caspar David Friedrich (1774- 1840) retratou. Ahrenshoop fica a 100 km de Greifswald, cidade natal de Friedrich e cenário de tantas pinturas comoventes de sua autoria. Greifswald será a minha primeira parada. Lá tenho um encontro marcado com a diretora da instituição Caspar David Friedrich Zentrum, que gentilmente havia separado um relevante material sobre o artista para minha pesquisa. 7 Ahrenshopp, Alemanha Ahrenshopp, Alemanha Ahrenshopp, Alemanha Ahrenshopp, Alemanha A partir deste encontro pretendo traçar um roteiro de viagem pelo norte da Alemanha para ir ao encontro das paisagens que Friedrich imortalizou nos séculos XVIII e XIX, para assim poder dar início ao meu projeto intitulado “Anotações a partir de Caspar David Friedrich”, que consiste na captação sonora das localidades representadas nas telas do artista alemão. Abro as cortinas. A luz que preenche o quarto é branca, como a cor do céu nesta manhã. Da janela vejo cavalos que se movimentam de acordo com a cadência deste sábado frio. Eles são brancos e se destacam da grama verde recém cortada. Aparentam estar colados na paisagem por como em um chroma-key. A grama cortada parece-me impecável e os equinos se destacam do entorno verde como se reluzissem a luz do sol ao caminhar. Observo o movimento dos animais, que se deslocam pausadamente pelo vasto gramado durante alguns minutos. Percebo que há meses não tinha o privilégio de ver o tempo passar desta maneira, muito menos horas de sobra para contemplar cavalos brancos passeando por uma imensidão verde, ou até mesmo mirar as nuvens e o céu de manhã. Atentamente listo e identifico os sons que reverberam até meus ouvidos. Lembro-me de uma frase de Friedrich e vou ao encontro de minhas anotações. Ahrenshopp, Alemanha Ahrenshopp, Alemanha “Eu devo me entregar ao que me rodeia, me unir com suas nuvens e rochas, para ser o que eu sou. Preciso de solidão para me comunicar com a natureza1” (WOLF, 2003, pag 9). Esta frase, assim como toda a produção de Friedrich, me acompanhou em diversas viagens nos últimos anos. Em 2009 estive no deserto de Joshua Tree, na Califórnia (no contexto da residência artística JTHAR). Caminhando, cheguei sem querer a um mirante de tirar o fôlego, chamado Keys View. A vista era alterosa, de um deserto que parecia infinito. Areia, areia, areia até o olho não alcançar mais. Algumas elevações sutis, rochas e arbustos. Chegou a me faltar ar. Creio que foi a minha primeira experiência com o sobre-humano: a imensidão de uma natureza tão bruta e avassaladora vista do alto de toda a minha brevidade humana. Essa sensação ainda est