UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Instituto de química - Campus de Araraquara - SP RAFAEL GUSTAVO TREVIZAN A QUÍMICA DAS CORES DOS TECIDOS AFRICANOS: UMA TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA PARA VALORIZAR A ETNOCIÊCNIA AFRICANA ARARAQUARA 2021 RAFAEL GUSTAVO TREVIZAN A Química das Cores dos Tecidos Africanos: Uma Transposição Didática para Valorizar a Etnociêcnia Africana Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Instituto de Química, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção do título de Licenciado em Química. Orientador: Prof. Drª. Eva Aparecida da Silva Araraquara 2021 RAFAEL GUSTAVO TREVIZAN A Química das Cores dos Tecidos Africanos: Uma Transposição Didática para Valorizar a Etnociêcnia Africana Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Instituto de Química, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obtenção do título de Licenciado em Química. Araraquara, 04 de março de 2021 BANCA EXAMINADORA PROFª. DRª. EVA APARECIDA DA SILVA PROFª. DRª. CLAUDETE DE SOUSA NOGUEIRA PROFª. DRª. LUCIANA MASSI AGRADECIMENTO Em primeiro lugar aos meus pais Maria Cristina Mariano e Claudemir Trevizan e meu irmão Ryan Aparecido Trevizan, por nunca terem medido esforços para me proporcionar tudo de melhor que puderam e por sempre me dar apoio e incentivo em minhas decisões, à minha tia Marisa Aparecida Trevizan e aos meus avós paternos Luzia Barbosa Trevizan e Antônio Trevizan que sempre facilitaram para que a caminhada fosse mais agradável. Também às pessoas com quem convivi ao longo desses anos de curso, que me incentivaram e que certamente tiveram impacto na minha formação acadêmica, incluindo especialmente meus colegas de curso, com quem convivi intensamente durante os últimos anos, e que me proporcionaram companheirismo e uma imensa troca de experiências que me permitiram crescer não só como pessoa, mas também como formando, dando destaque para André Luís Pinotti Júnior, Camila de Toledo Piza, João Victor Callera Pedroso e Tiago Junqueira Scali. E por último, porém não menos importante, à Deus, que sempre esteve comigo e fez com que meus objetivos fossem alcançados durante todos os meus anos de vida e de estudos. Sumário RESUMO .............................................................................................................................. 7 APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 9 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 14 1.CURRÍCULO E DESCOLONIZAÇÃO ............................................................................ 20 2.ÁFRICA, TECIDOS AFRICANOS E A ETNOCIÊNCIA DO GRUPO ASANTE ............ 26 3.PIGMENTOS E APLICAÇÕES EM CONCEITOS QUÍMICOS NUMA PROPOSTA DE TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA ............................................................................................ 36 3.1.TECIDOS, PIGMENTOS E A IMPORTÂNCIA DOS CORES .................................. 36 3.2.UMA PROPOSTA DE TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA: A QUÍMICA DOS PIGMENTOS NOS TECIDOS AFRICANOS .................................................................. 42 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 46 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................. 47 “A desconstrução do homem faz-se necessária, diante sua evolução em busca de uma eterna construção, que talvez jamais se conclua”. Humar José de Souza https://www.pensador.com/autor/humar_jose_de_souza/ RESUMO A descolonização do currículo se faz necessária diante da nítida hegemonia científica eurocêntrica, que invisibiliza outras etnociências, como é o caso da africana, desconsiderando as grandes contribuições tecnológicas, científicas, comerciais e, até mesmo políticas e administrativas, existentes na África. Sendo assim, especificando a confecção, tecelagem, tingimento e estamparia de tecidos do grupo Asante, pertencente ao povo Akan, localizado na região de Gana, este trabalho objetivou contextualizar e valorizar a cultura e a etnociência africana e, ao mesmo tempo, relacionar a questão de pigmentos orgânicos e naturais utilizados nesses tecidos à conceitos químicos como estrutura e nomeação da molécula, tipos de ligações, grupos funcionais e polarização que se faz presentes nas moléculas de pigmentos, possíveis de serem abordados no ensino de Química para o ensino médio. Portanto, a partir da relação entre esses saberes – africano e curricular – foi apresentada uma proposta de transposição didática, com o que já é exigido no currículo do ensino médio para o ensino de Química, e com o que prevê a Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da História e Cultura da África e Afro-brasileira. Para isso, realizou-se uma pesquisa bibliográfica, com um levantamento de fontes primárias e secundárias acerca do assunto, concluindo que uma compreensão de mundo vai além dos conteúdos escolares e dos livros, e que a realidade necessita de questionamentos acerca das “verdades” estabelecidas e aprendidas ao longo da história, para que todos possam estar abertos a conhecerem e reconhecerem outras epistemologias e etnociências. Palavras chaves: Descolonização do currículo; Tecidos africanos; Pigmentos; Ensino de Química; Transposição didática. ABSTRACT The decolonization of the curriculum is necessary in face of the clear Eurocentric scientific hegemony, which makes invisible other ethnosciences, such as the African one, disregarding the great technological, scientific, commercial, and even political and administrative contributions that exist in Africa. Thus, specifying the making, weaving, dyeing, and printing of textiles of the Asante group, belonging to the Akan people, located in the region of Ghana, this work aimed to contextualize and enhance the African culture and ethnoscience and, at the same time, relate the issue of organic and natural pigments used in these textiles to chemical concepts such as structure and naming of the molecule, types of bonds, functional groups and polarization that are present in pigment molecules, which can be addressed in the teaching of chemistry for high school. Therefore, based on the relationship between this knowledge - African and curricular - a proposal for didactic transposition was presented, with what is already required in the high school curriculum for the teaching of Chemistry, and with what is foreseen by Law 10.639/2003, which made the teaching of African and Afro-Brazilian History and Culture mandatory. To this end, bibliographic research was conducted, with a survey of primary and secondary sources on the subject, concluding that an understanding of the world goes beyond school content and books, and that reality needs questioning about the "truths" established and learned throughout history so that everyone can be open to knowing and recognizing other epistemologies and ethnosciences. Keywords: Curriculum decolonization; African fabrics; Pigments; Chemistry teaching; Didactic transposition. APRESENTAÇÃO Sou natural de Araraquara e vivi durante quinze anos onde meu pai e meus avós viveram a vida toda, em uma pequena vila que hoje foi completamente destruída dentro da usina Zanin. Meu pai, 47 anos, possui o ensino fundamental incompleto e trabalhou 32 anos como mecânico de máquinas pesadas na própria usina onde morei, e, mesmo em meio de tantas dificuldades, permaneceu lá por ser um bom funcionário e sempre pensar na família. Hoje, ele se encontra aposentado e somente agora conseguiu possuir uma certa estabilidade financeira. Minha mãe, 45 anos, atualmente empregada doméstica, depois de muitos anos veio se formar somente em 2019 no ensino médio e está cursando técnico em enfermagem, o que diz ser o sonho dela, sempre se dedicando à família, e começou a ter sua independência só agora, tirando também sua habilitação recentemente. Além disso, tenho um irmão mais novo de 18 anos, que se espelha muito em mim e me sinto na obrigação de dar um bom exemplo. Venho de uma família muito simples, mas que fez e faz de tudo para que eu sempre tenha o melhor que podem me oferecer, além de me incentivarem em minhas decisões. Iniciei minha vida escolar aos três anos de idade e sempre fui muito interessado, desde a pré-escola, e estimulado a me dedicar. No decorrer dos anos muitas coisas aconteceram e mudanças de escolas foram feitas, o que me marcaram muito, e o ensino fundamental, na terceira série com a professora Nilce, fez com que a minha vontade de estudar crescesse cada vez mais. O jeito rigoroso de ser e de cobrar as lições, além de todas as atividades extras que ela sempre propôs para a turma, me instigava demais. Vale lembrar também das incríveis professoras Bete, Elisandra, entre outras do fundamental II, que me ajudaram muito a prestar o tão sonhado vestibulinho da ETEC para cursar o ensino médio. No entanto, foi grande a decepção de não ter sido aprovado nesse vestibulinho, que, juntamente com o fato dos meus pais estarem se separando, da mudança de casa e de escola, e alguns outros problemas pessoais, fez com que eu desenvolvesse uma fase depressiva em minha vida. Entretanto, tudo isso me fez crescer e tomar outros caminhos, os quais me orgulho de ter vivido. Como já dito, me mudei depois de quinze anos na usina e fui para a cidade, no bairro para o qual minha avó paterna também se mudou e no qual até hoje não fiz muitas amizades, já que a partir daí minha vida se tonou muito corrida. No ensino médio, portanto, estudei na escola E.E “Bento de Abreu”, embora num primeiro momento não era nela que gostaria de ingressar, mas foi uma grande experiência, a qual, hoje, jamais trocaria por nenhuma outra. Muitos professores, e até mesmo estagiários passaram pela minha vida nessa época, e me fizeram ter vontade de ingressar em alguma universidade (mesmo não tendo muito conhecimento do que era até então). Do primeiro ano até o terceiro tive Química com a sábia professora Alcenir, que mais tarde descobri ter se formado na instituição que me encontro hoje. O esforço máximo para tirar dez em todas as provas, e quase sempre conseguia, fez com que eu escolhesse mais para frente o curso de Química da UNESP, em Araraquara. No segundo colegial começaram as necessidades de fazer algo além do ensino médio, já que sempre me preocupei muito com o futuro, foi quando quebrei o bloqueio que tinha e prestei mais uma vez o vestibulinho da ETEC, mas dessa vez para o curso técnico em mecatrônica, e não para o ensino médio. Fui aprovado e cursei até 2014, momento em que me formei juntamente com o ensino médio. Na ETEC fiz amizades e reencontrei amigos que hoje faz toda a diferença em minha vida, além de adquirir uma experiência que, mais para frente, me fez estar no emprego atual. Depois de ter tido uma grande e linda formatura, bateu o desespero do que fazer depois disso, já que arrumar emprego não estava fácil, mesmo tendo um curso técnico. Sendo assim, fui atrás de fazer algum curso profissionalizante no SENAI, onde fiquei durante dois anos, fazendo alguns cursos na área da solda e mecânica, mesmo com toda a indecisão do que queria fazer. Com todo esse caminho percorrido, e ainda com a ânsia e incentivo dos meus familiares de ingressar em alguma universidade (já que ninguém próximo da família é formado no ensino superior), uma vez que não havia conseguido ao término do ensino médio, fiquei com muitas dúvidas acerca do curso que gostaria de seguir e, então, decidi fazer o CUCA, o Cursinho Pré- vestibular da própria UNESP, que é um projeto de extensão para os alunos da rede pública da cidade. Fazia o cursinho dentro do Instituto de Química (o que me fez querer estar ali novamente e tomar minha decisão final acerca do curso que gostaria de ingressar) e o SENAI, ao mesmo tempo, levando marmita todos os dias e chegando em casa muito tarde. Todo o esforço e dedicação valeram a pena, quando em 2016 consegui finalmente ingressar na UNESP, escolhendo o curso de licenciatura, já que é noturno e, ao mesmo tempo, havia conseguido um emprego de mecânico na Lupo. Estava, portanto, com uma felicidade que não cabia em mim, até virem as dificuldades das matérias e a canseira do dia a dia, porém, com muito esforço e dedicação, faço essa rotina até os dias de hoje. Durante esse período acadêmico, além das amizades, conheci professores doutores que possuem toda minha admiração pelas pessoas que são e também por exercerem tão bem suas profissões, como o professor Amadeu, com seu grande conhecimento e responsabilidade, a professora Luciana, que não precisa se esforçar muito para ser admirável com sua “sede” e prazer pelo o que faz, e o professor Denis, com sua admirável didática na hora de ensinar uma das áreas que os alunos possuem mais dificuldade, que é a físico-química. Também conheci muitos professores que, com todo respeito, me servem de exemplo para nunca ser como eles. Todos os semestres possuem suas dificuldades específicas e até hoje não consigo descrever qual foi o pior deles, no entanto, cada um que se passa aumenta a vontade de que o curso chegue ao fim (mesmo que eu saiba que sentirei falta depois), já que a exaustão que vem dos anteriores é imensa. No primeiro semestre do quarto ano (2019) comecei a ter a matéria CLAEQ (Currículo, linguagem e avaliação no Ensino de Química) com a professora Luciana Massi, matéria que me permitiu fazer essa narrativa e pensar em tudo que já passei para estar aqui, e que, apesar de pensar muitas vezes em desistir, me fez ter alguma motivação para continuar. Essa disciplina me fez sentir na pele o que de fato é a licenciatura, já que foi a primeira pedagógica que lhe deu a devida importância, e além da grande bagagem de conteúdo que nos acrescentou, nos fez ter contato direto com a sala de aula, que é um dos caminhos que podemos tomar depois de formados. Um outro ponto importante apenas discutido e cobrado na disciplina de CLAEQ foi o TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), já que realmente estamos chegando próximos ao fim do curso, o que está me deixando louco também, mas é necessário, e com essa narrativa foi possível identificar um pouco mais o assunto do qual vai tratar esse trabalho final. Na disciplina de CLAEQ houve a proposta, pela professora Luciana, de elaboração de um banner que estimulasse a criatividade dos futuros formandos para se chegar ao tema do tão temido TCC, no âmbito do ensino de Química. A partir dessa proposta, tive a ideia de retratar a questão étnico-racial, trazendo os pigmnetos utilizados nos tecidos africanos, juntamente com a química orgânica, conforme ilustrado na Figura 1, e essa decisão fez com que tudo fluísse e evoluísse primeiramente para o projeto e, por fim, para esta monografia. Figura 1. Banner com uma primeira ideia antes da monografia Fonte: elaboração própria Durante a graduação toda procurei encontrar disciplinas que me fizessem ver sentido na vida real, de forma que me despertassem a vontade de trabalhar em alguma área específica. Como meu emprego é na indústria e sempre tive contato com a indústria propriamente dita, já que morava em uma usina e meu pai sempre trabalhou lá, hoje minha vontade é atuar na mesma área, no entanto não excluo a possibilidade de lecionar ou até mesmo seguir com a vida acadêmica, só preciso de um tempo para decidir tudo isso. Sendo assim, sempre achei interessante a química analítica e a bioquímica, já que conseguia me enxergar fazendo isso. Como o TCC tem que ser relacionado com a educação, pensei em pesquisar algo relacionado à algum processo químico na indústria, mais especificamente a tinturaria de tecidos, além disso a questão étnico-racial sempre me interessou, e acho essencial realizar alguma pesquisa relacionada a isso, já que venho de uma família afrodescendente e que foi completamente afetada com todo o histórico que esse grupo sofreu, e sofre. Uma professora que me instigou em relação a esse assunto foi a Eva, da FCLar, a qual pedi que me orientasse e ela aceitou. Para que a pesquisa se torne algo relevante é necessário trabalhar com um problema de pesquisa que irá “tapar” a lacuna de algum aspecto que ainda não foi estudado ou não foi completamente resolvido pelos conhecimentos científicos já estruturados. Sendo assim, o estudo proposto para o TCC se propõe a conhecer e contextualizar a história e as culturas africanas, destacando delas suas técnicas científicas de tecelagem, mais especificamente a estamparia de seus tecidos, com a utilização de diferentes pigmentos, que poderão nos permitir também identificar seus sentidos e significados, de forma a relacioná-los à influência africana na produção do conhecimento na química e na ciência em geral, numa perspectiva da etnociência. Este estudo tem, então, como problema de pesquisa a questão da descolonização do currículo, ao trabalhar com todos os aspectos citados, deixando de lado o eurocentrismo, e, em seguida, a aplicação de conceitos químicos a partir das moléculas dos pigmentos . Logo, a linha temática é Diferença, multiculturalismo, interculturalidade e o tema Educação étnico- racial e ensino de química/ciências. Inicialmente o título da minha pesquisa era A química das cores dos tecidos africanos: uma proposta diferencida de sequência didática, no entanto, depois de muita discussão algumas mudanças foram realizadas, tendo um “encurtamento” do caminho que foi feito, onde não houve uma proposta de SD (Sequência Didática) e nem de uma UDM (Unidade Didática Multiestratégica), sendo necessária então a mudança de título para A química das cores dos tecidos africanos: uma transposição didática para valorizar a etnociência africana. O motivo dessa mudança foi o tempo para realizar o encerramento do projeto concomitantemente com a realização da monografia do TCC, já que apenas a pesquisa bibliográfica sobre os aspectos citados já seria muito trabalhosa e se fosse trazer o que se encontrava no título anterior seria necessário construir um embasamento teórico para a SD ou UDM, trazendo a metodologia pedagógica e tudo mais. Com o acontecimento inesperado da pandemia, devido ao coronavírus (Covid-19), a partir de março de 2020, minha rotina de trabalho e de toda minha família foi mudada e, obviamente, fomos diretamente afetados financeiramente e psicologicamente, sendo assim, com muita coisa para pensar, foi difícil evoluir com o TCC, no entanto, depois de alguns contatos com minha orientadora, tudo se encaminhou bem, já que a pandemia não influenciou em nenhuma coleta de dados por se tratar de um trabalho que envolve a pesquisa bibliográfica. Em julho começaram as aulas remotas e, embora eu não seja muito a favor do “EAD”, não vejo alternativa diferente para não perder o ano todo. Em outubro de 2020 a questão de ter que lidar com a tecnologia para dar continuidade com o curso já não era mais um problema, já que, depois de um semestre todo usando ferramentas para tonar o ensino possível tudo já foi devidamente adaptado, desde aulas remotas comuns, como também interativas e até mesmo estágios sendo realizados online. Com o projeto pronto, depois de uma intensa orientação pela disciplina IPEC, ministrada pela professora Luciana Massi, foi possível continuar e aprofundar mais na realização da monografia do TCC, para, enfim, concluir o curso no início de 2021. O projeto foi uma construção muito importante, antecipando a monografia do TCC, que talvez possa ser visto como um incentivo para a pesquisa no país, a partir dele todos os critérios para uma realização de pesquisa foi trabalhada, desde a estrutura da pesquisa juntamente com a formatação necessária, revisão bibliográfica, metodologias e linguagens científicas. Na faculdade sinto que cresci muito com o passar do tempo, participando de tudo que eu pude (já que por trabalhar sobra pouco tempo para outras atividades acadêmicas, para além das aulas), como organização do EVEQ (Evento de Educação em Química), bateria Atômica e, recentemente, a monitoria do CCA (Centro de Ciências). Li uma entrevista de Regina Almeida, feita por Rafaela Valero da Silva e Luciana Massi, que conta sua trajetória de vida, na qual diz possuir sonhos, como o de “concluir todas as etapas de ensino” até ao nível de Doutorado. Como ela, mesmo com todas as dificuldades e grandes indecisões que ainda possuo, também tenho o sonho de me formar e talvez continuar na universidade para concluir essas etapas, apesar de pensar em atuar na indústria, e, além disso, possuir alguma estabilidade na vida em todos os aspectos. 15 INTRODUÇÃO Segundo Lopes (1999), o currículo é resultado dos conflitos entre forças sociais e interesses entendidos como artefatos social e histórico, sendo, portanto, mutável e modelado pela comunidade de especialistas que decidem sobre ele, além da sociedade e dos interesses em jogo de todas as partes do poder, que podem abrir e fechar portas para os conteúdos que serão postos para os alunos. Sabendo, portanto, que os saberes são modificados dependendo do espaço e do contexto determinado pelo sistema de poderes, é importante falar sobre a hegemonia curricular e a universalização do currículo. Lopes (2010) afirma que o ensino é dado de forma que O passado é significado como o território do determinismo semântico, das identidades fixas e, por isso mesmo, opressora das diferenças e dos localismos, com sujeitos centrados – os intelectuais – que julgavam estabelecer projetos universais capazes de oprimir projetos particulares. Para esses, melhor vivermos na fluidez dos tempos atuais, na pós- modernidade do indeterminismo semântico, quando tudo pode ser significado de outra maneira, pois não há verdades absolutas. Tempos em que é possível não haver um centro no currículo oprimindo formas particulares e diferentes de ver o mundo, onde é possível trabalhar pela maior valorização da cultura, a escola pode estar aberta a novas formas de inventar o mundo que não sejam marcadas pelos padrões eurocêntricos, científicos, economicamente dominantes, brancos, heterossexuais e masculinos. (LOPES, 2010, p. 28) Em relação à hegemonia curricular, Teixeira (2017), tomando como referência Tomaz Tadeu da Silva (1999), nos alerta sobre a existência de uma ideologia abstrata, uma concepção de mundo dominante, eurocêntrica, que desvaloriza outras culturas e etnociências. Só conseguiríamos compreender esse conjunto de significados e valores a partir da análise dos processos nos quais os mesmos são encarnados pelos sujeitos, tornando-se parte da sua forma de interpretar o mundo ao incorporar um emaranhado de concepções, culturas e tradições, nos quais as instituições educacionais (como a escola) teriam papel fundamental, já que são os principais agentes que selecionam dentro da cultura e de um vasto campo de possibilidades “o passado” e “a tradição” que devem ser difundidos, enfatizando certos significados e práticas, e negligenciando e excluindo outros. (TEIXEIRA, 2017, p. 6-7) 16 Desta maneira, para Silva (1999), a descolonização do currículo se faz necessária para a superação dessa ideologia abstrata e concepção de mundo dominante, que ocasiona a manipulação dos “de baixo”, “dominados”, que seriam, desta forma, “inferiores”. Com isso, é preciso mudar a ideia de que [...] o currículo é sempre resultado de uma seleção: de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte que vai constituir, precisamente o currículo. (SILVA, 1999, p. 156). A partir disso, sabe-se que muitas técnicas científicas surgiram na África, ainda que não exclusivamente, pois a História foi construída simultaneamente em todo território mundial, mas tem havido uma invisibilização e subvalorização da história e das culturas do continente africano em detrimento da valorização da história e da cultura européia. Logo, não cabe valorizar mais uma história e cultura que outras, mas reconhecê-las e respeitá-las em suas diferenças, de forma a estabelecer um diálogo e um intercâmbio equânime entre elas, conforme a perspectiva da etnociência. A Etnociência é compreendida como o conhecimento dos nativos de uma dada cultura, que serve como base para a construção de suas realidades, ligando a cultura ao conhecimento científico avançado. (MARTINS et al, 2015, p. 74) Com isso, cada etnociência tem sua importância e seu fundamento para aquele povo em específico e a sociedade como um todo é muito influenciada por cada uma delas, principalmente por aquelas pelas quais o país é colonizado, por isso deveriam fazer parte do currículo e serem abordadas na sala de aula, já que não é apenas a etnociência européia que faz parte da sociedade brasileira, mas também a africana e as indígenas, como consta das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornaram obrigatório o ensino da História e Cultura da África, Afro-brasileira e dos Povos Indígenas. Desta forma, Precisamos valorizar mais os conhecimentos produzidos pelos povos que foram cruelmente subalternizados pelas forças colonialistas. Muitas questões do mundo ainda precisam ser descobertas e a melhor forma para fazer isso é mergulhar profundamente nas raízes, crenças e conhecimentos daqueles que nunca tiveram oportunidade de expor as belezas e a fantasias de seu mundo, que foram proibidos de viver. Contudo, pela interiorização das suas próprias forças esses encantos foram vividos num mundo invisível e parte deles está sendo revelada. (MARTINS et al, 2015, p. 86) 17 Com a universalização de uma única ideologia e história eurocêntrica, tal como presentes no currículo, as técnicas científicas que se diferenciam da européia, dentre elas as africanas, são julgadas sem fundamentos. A técnica de tecelagem na África, que é o principal foco deste trabalho, faz parte de uma vasta tradição têxtil nesse continente, sendo até mesmo utilizada como moeda corrente, de troca e/ou para pagamentos de multas. Além disso, o acúmulo de tecidos era indicação de elevado status e poder, sendo também utilizados em ocasiões especiais como nascimentos, casamentos e, até mesmo, funerais. Para as culturas africanas o tecido é como se fosse uma segunda pele, onde o fio utilizado para tecer é assimilado ao fio que tece a vida, feito de idas e voltas. Não apenas o tecido em branco é importante como também os variados símbolos que representam muitos significados para as culturas africanas. O batik (Figura 2), por exemplo, é um tecido estampado cuja serigrafia resulta de pesquisas ligadas a mitos, lendas e símbolos do folclore nativo. No tingimento desses tecidos são utilizados muitos pigmentos inclusive os naturais e suas misturas formam as tradicionais e chamativas estampas, com inúmeros significados para diversos grupos. Figura 2. Batik Fonte: https://qhistoriaessa.blogspot.com/2013/11/batik-africano.html Logo, tomando como referência as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, é possível propor o estudo da história e das culturas africanas, com destaque à técnica científica da estamparia em tecidos, com seus múltiplos sentidos e significados, e a realização de uma transposição didática, nas aulas de Química, para que os alunos do ensino médio entrem em contato com a estamparia africana e, sobretudo, com cores e pigmentos utilizados para tingi-la, e acessem muitos dos conceitos químicos a partir das moléculas de diversos pigmentos naturais como a do betacaroteno (Figura 3), inclusive naturais, presentes em sua composição. Exemplos desses 18 conceitos químicos são: a estrutura e nomeação da molécula, tipos de ligações, os grupos funcionais e a polarização. Figura 3. Fórmula estrutural do betacaroteno Fonte: https://educador.brasilescola.uol.com.br/estrategias-ensino/atividade-pratica-sobre-oxidacao-compostos- organicos.htm Para isso, o estudo realizado trata-se de uma pesquisa bibliográfica sobre a história e cultura africana, em especial sobre a técnica de tingimento de tecidos, utilizando-se de pigmentos naturais, no diálogo com conceitos químicos como estrutura e nomeação da molécula, tipos de ligações, os grupos funcionais e a polarização. Com isso, pretendeu-se trazer a valorização da cultura africana e, ao mesmo tempo, transmitir o conteúdo que já é obrigatório no currículo de química para o ensino médio. Para alcançar os objetivos propostos, fez-se necessário, portanto, um levantamento bibliográfico acerca dessas temáticas no portal de periódicos da Capes e do google acadêmico, dentre outras fontes, tomando como referência alguns operadores booleanos como: pigmentos naturais and África ou pigmentos naturais and ensino de química. Segundo Gil (2008), a pesquisa bibliográfica utiliza-se de fontes primárias como livros, capítulos de livros, artigos, dissertações e teses científicos consolidados para a coleta dos dados necessários à fundamentação e análise do “objeto de estudo”, diferente da pesquisa documental, que se vale de fontes secundárias, muitas das quais ainda não receberam um tratamento analítico, como reportagens de jornais, filmes ou até mesmo gravações. A opção por uma pesquisa tanto bibliográfica quanto documental é vantajosa em relação à coleta de dados e/ou agrupamento de conceitos para a fundamentação da pesquisa realizada, já que a maioria do material pode ser encontrado facilmente nas bibliotecas, mas também na internet, como livros, artigos, dissertações e teses. O debate sobre a utilidade da história e do por que estudá-la é inacabável, pois alega-se que muito do que ocorreu antigamente talvez não seja mais útil nos dias de hoje, no entanto, é de suma importância estudar a história, pois ela coloca em relação passado, presente e futuro. 19 Contudo, segundo Vavy Borges (1985) e RonaldoVainfas (2009), é preciso se atentar para o fato de que a história depende e pode sofrer a interferência do historiador que a conta e a escreve, dada a particularidade de cada um e de suas interpretações acerca do contexto sociocultural, político e histórico no qual vive e observa. Sendo assim, a pesquisa histórica também exige a pesquisa e revisão bibliográfica dos materiais já produzidos, e, com ela, a busca e seleção de fontes confiáveis, bem como o cruzamento entre muitas dessas fontes. Por tudo isso, este trabalho buscou por fontes acerca da história e cultura da África, como forma de contextualizá-la e valorizá-la, destacando, especificamente, a história e cultura do grupo Asante, que compõe o povo Akan, para, a partir da técnica científica de estamparia em tecido e de pigmentação para seu tingimento, apresentar uma transposição didática que poderá auxiliar na implementação da Lei 10.639/2003 no currículo de química do ensino médio. Logo, pretendeu-se, a partir dos tecidos africanos do grupo Asante, suas estampas e os pigmentos utilizados para o tingimento,estabelecer uma relação com conceitos químicos abordados no ensino de química, como, por exemplo, estrutura e nomeação da molécula, tipos de ligações, os grupos funcionais e a polarização, tal como propostos pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), dando destaque às moléculas dos pigmentos naturais extraídos de legumes e vegetais. Sendo assim, este Trabalho de Conclusão de Curso está estruturado em três capítulos. O primeiro capítulo, CURRÍCULO E DESCOLONIZAÇÃO, traz a concepção de currículo, a partir de alguns autores, como é o caso de Tomaz Tadeu da Silva, tendo como foco principal a desconstrução política, social e étnico-racial do atual modelo, já que é nítida a desigualdade nele existente, em todos os seus aspectos. Com isso, a descentralização de uma única etnociência é apresentada, dando abertura para a inclusão de outras, como é o caso da africana. Já no segundo capítulo, ÁFRICA, TECIDOS AFRICANOS E A ETNOCIÊNCIA DO GRUPO ASANTE, se reportando ao que foi discutido no capítulo anterior, é abordada a importância de estudar outras etnociências, em específico a africana, desconstruindo preconceitos em relação a mesma. Para isso, é apresentado a história, cultura e costumes do grupo Asante, pertencente ao povo Akan, situado atualmente na região de Gana, ressaltando as grandes contribuições que trazem para o mundo, em particular a confecção, tecelagem e tingimento de tecidos, junto com suas incríveis e chamativas estampas, com inúmeros símbolos, chamados Adinkras, e seus respectivos significados. 20 E, por fim, encerrando o trabalho, o terceiro capítulo, PIGMENTOS E APLICAÇÕES EM CONCEITOS QUÍMICOS NUMA PROPOSTA DE TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA, que, ao tomar como referência a utilização de pigmentos para o tingimento dos tecidos e símbolos dos tecidos do grupo Asante, e também do mundo todo, traz a história do surgimento da confecção e tecelagem dos tecidos, juntamente com o tingimento dos mesmos, dando ênfase aos pigmentos orgânicos e naturais, com o intuito de aplicar conceitos da química orgânica, como a estrutura e nomeação da molécula, tipos de ligações, os grupos funcionais e a polarização, numa proposta de transposição didática para o terceiro ano do ensino médio, a partir da valorização da etnociência africana, especificamente aquela referente à síntese de alguns pigmentos com o propósito de estampar os símbolos Adinkras em tecidos. 21 1. CURRÍCULO E DESCOLONIZAÇÃO O currículo se constitui como um campo de disputas, conflitos e interesses, envolvendo diferentes agentes e agências sociais, ele é materializado, possui diversas dimensões e pode ser definido em três tipos: o prescrito (legal), por exemplo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) ou a Base Nacional Comum Curricular (BNCC); o efetivo (real), aquele que o professor executa na relação com as políticas da própria escola; e o oculto (abstrato), que depende exclusivamente das influências e valores da própria escola ou do professor (o que é dado sem intenção). A partir dessa caracterização, constata-se que, segundo Lopes (1999), o currículo é mutável e o conteúdo é modelado pela comunidade de especialistas e de outros agentes, de acordo com os interesses em jogo no contexto social, político, econômico e cultural no qual ele está inserido. No currículo estão dispostos os conteúdos e os saberes a serem ensinados, porém, esses saberes chegam do meio acadêmico para a sala de aula, por meio de uma transposição didática, que, segundo Chevallard (1991), envolve os conhecimentos científicos (teoria baseada na história, problematização e contextualização) e o cotidiano, além disso passa por um “filtro” chamado por ele de noosfera (Figura 4), através da demanda social dos representantes do sistema de ensino, ao se encontrarem, de maneira direta ou indireta, com os representantes da sociedade mais ampla, ou seja, pais de alunos, especialistas do ensino e políticos. Sendo assim, a noosfera opera em um delicado equilíbrio ao filtrar e transpor os saberes, da seguinte maneira: SABER SÁBIO, imposto pela comunidade acadêmico-científica; SABER A SER ENSINADO, colocado nos livros didáticos, resultando no saber escolar; e o SABER ENSINADO, o de fato ensinado (CHEVALLARD, 1991 – minha tradução). Figura 4. Noosfera (CHEVALLAR) A = Alunos, P = Professor, S = Saber ensinado. 22 Além disso, antes mesmo do currículo ser discutido dentro de cada escola e aplicado da maneira com que cada instituição decide, e de ser influenciado por todas as questões citadas, sua elaboração envolve interesses econômicos, políticos, sociais e educacionais, que vêm da comunidade epistêmica, composta por acadêmicos especialistas em educação, pela representação de dirigentes estaduais e municipais de ensino, e de instituições privadas, bem como por políticos, que o ditam e o definem. Logo, o currículo é um campo de disputas. Tomaz Tadeu da Silva (1999), tomando como referência Althusser (1970), diz que a permanência da sociedade capitalista depende da reprodução de seus componentes econômicos e ideológicos, e a escola possui o papel de ser o “aparelho ideológico de estado”, produzindo e disseminando a ideologia capitalista. Com isso, o autor diz que: A problemática central da análise marxista da educação e da escola consiste, como mostra o exemplo de Althusser, em buscar estabelecer qual é a ligação entre a escola e a economia, entre educação e a produção. Uma vez que, na análise marxista, a economia e a produção estão no centro da dinâmica social, qual é o papel da educação e da escola nesse processo? Como a escola e a educação contribuem para que a sociedade continue sendo capitalista, para que a sociedade continue sendo dividida entre capitalistas (proprietários dos meios de produção), de um lado, e trabalhadores (proprietários unicamente de sua capacidade de trabalho), de outro? Althusser nos deu, como vimos, um tipo de resposta: a escola contribui para a reprodução da sociedade capitalista ao transmitir, através das matérias escolares, as crenças que nos fazem ver os arranjos sociais existentes como bons e desejáveis (SILVA, 2004, p. 30-31). E, ainda, segundo esse autor, no contexto da estrutura capitalista, a educação e a escola também vêm contribuindo para a definição de quais histórias e culturas devem compor o currículo, a partir de uma relação de poder que sobrevaloriza os conhecimentos eurocêntricos em detrimento dos conhecimentos dos chamados grupos minoritários, como negros e indígenas, descendentes e ascendentes de africanos e de povos originários, como é o caso da sociedade brasileira. Com isso, Tomaz Tadeu da Silva, põe em evidência a dimensão cultural do currículo. Tendo consciência que o currículo não se trata de um assunto superficial e que envolve muito mais do que aparentemente pode envolver, Tomaz Tadeu da Silva (1999), em seu trabalho “Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo”, trata sobre as teorias do currículo, trazendo a origem desse campo a partir de vários autores e sua classificação em três vertentes: teorias tradicionais, críticas e pós-críticas. Esse autor defende que apenas defnições não deixam transparecer de fato a essência do currículo e sim “nos revela o que uma 23 determinada teoria pensa que o currículo é”. Com isso. “Foi também com as teorias críticas que pela primeira vez aprendemos que o currículo é uma construção social” (SILVA, 1999, p. 148). Dessa maneira, em outras palavras, o currículo é compreendido como a própria religião com seus dogmas impostos e seguidos por possuir uma grande influência sob seus seguidores, logo, uma invenção social como qualquer outra, resultado de um processo histórico que envolve diretamente o poder, sendo reconhecido como válido apenas o conhecimento formal, universal, comumente acessado pela classe dominante, aquela vista como detentora da melhor bagagem cultural e social. E os outros sujeitos, pertencentes a outra classe social, não são reconhecidos como portadores de conhecimentos válidos, já que não têm acesso fácil aos chamados produtos culturais universais. Isso se deve a todo um processo histórico que está ligado a essa invenção e construção social, não existindo apenas o conhecimento válido, mas sim o conhecimento considerado válido numa perspectiva de poder. Sendo assim, “A formação da consciência, dominante ou dominada, é determinada pela gramática social do currículo” (SILVA, 1999, p. 148). Como já dito, tanto a situação social quanto a escolar influenciam na aprendizagem do aluno, considerando desde o acesso à informação elaborada até a participação e entendimento desse aluno. Portanto, o currículo vai muito além do conceito, passando ser essa construção social, já que, através das relações sociais reproduzidas pelo currículo, as diversas classes sociais “aprendem” quais são seus respectivos papéis na sociedade. Dessa maneira, é possível dizer que no ensino privado o ambiente social é elitizado, e, tendo isso, a consciência formada é a do grupo dominante; já na escola pública, a consciência é a do grupo dominado. Com toda essa problemática em jogo é possível perceber que: “Se a ideologia cedesse lugar ao verdadeiro conhecimento, o currículo e a sociedade seriam finalmente emancipados e libertos” (SILVA, 1999, p. 149). Desta forma, o que Silva (1999) quer dizer é que se a ideologia sobre as consciências sociais não fosse expressa da maneira que é, onde o poder econômico define um papel de classe dominante e dominada, e sim cedesse lugar ao verdadeiro conhecimento – a compreensão da nossa própria experiência e sociedade, estaríamos livres das amarras ideológicas e não haveria desigualdades. Com o passar do tempo, a interferência direta do currículo na sociedade foi sendo cada vez mais percebida e trabalhada, já que ele implica não apenas na desigualdade econômica, mas também cultural e social no processo educativo, e até mesmo de construção identitária dos estudantes. O que se faz presente no currículo vigente, como já discutido, se deve a todo o processo histórico que definiu o que é mais relevante de ser ensinado. No entanto, como definir 24 o que é relevante ou não em uma comunidade escolar que é composta por uma enorme diversidade social, étnica e cultural? Um dos principais objetivos da escola é a formação de uma sociedade “igualitária”, porém isso não se faz presente nos ambientes, relações e materiais escolares. A supervalorização de um determinado grupo étnico-racial e sua cultura, bem como a desvalorização de outros grupos e suas culturas, nos permite dizer que existe uma hegemonia curricular fixada no ensino há muito tempo. E em relação a essa hegemonia curricular, Teixeira (2004), analisando Williams (2005), considera que a utilização do conceito de hegemonia possibilitaria a crítica à noção de ideologia, a qual menospreza a complexidade da transformação social: [...] se a ideologia fosse meramente um conjunto imposto e abstrato de noções, se nossas ideias, suposições e hábitos políticos e culturais fossem tão somente o resultado de manipulação específica, de uma espécie de treinamento público que pudesse ser simplesmente eliminado ou reprimido, então seria muito mais fácil do que jamais foi ou é, na prática, modificar ou transformar a sociedade (WILLIAMS, 2005, p. 216). Com isso, para Williams (2005), hegemonia: [...] é um corpo completo de práticas e expectativas; implica nossas demandas de energia, nosso entendimento comum da natureza do homem e de seu mundo. É um conjunto de significados e valores que, vividos como práticas, parecem se confirmar uns aos outros, constituindo assim o que a maioria das pessoas na sociedade considera ser o sentido da realidade, uma realidade absoluta porque vivida, e é muito difícil, para a maioria das pessoas, ir além dessa realidade em muitos setores de suas vidas (p. 217). E para conseguir compreender todos os conceitos e valores desse processo que compõe cada sujeito é necessário interpretar e incorporar um emaranhado de concepções tradicionais e culturais de cada um à instituição escola, visando sua valorização. Desta forma, a escola passa a ter o papel de selecionar dentro da cultura de um vasto campo de possibilidades o passado e a tradição, que deve ser difundida, organizando diversas formas de interpretação de experiência. Sendo assim, é necessária uma legitimação de uma nova epistemologia de conhecimentos, relativizando a grande presença da perspectiva eurocêntrica no currículo, incluindo e fazendo reconhecer como importantes outras etnociências, defendendo uma perspectiva pluriversal não centrada, que deixa de lado o silenciamento acerca das 25 especificidades existentes no mundo, o que, de acordo com Nogueira (2012), representa a capacidade de refletir e regenerar um método de ação e prática: Ou seja, não se trata de dividir e divorciar os elementos, mas, compreendê-los de modo articulado, policêntrico, dentro de um polidiálogo, uma efetiva pluriversalidade. [...] pluriversalizar as abordagens, revitalizando e regenerando as redes de relacionamentos políticos, econômicos, etnicorraciais, de gênero, exercícios de sexualidade etc (NOGUERA, 2012, p. 69). Sendo assim, de acordo com Candau (2010), a descolonização do currículo se faz necessária já que a composição da população, não apenas brasileira, mas a de todas as nações, é constituída por diversas etnias, e a colonização de cada uma envolve uma complexidade e uma formação muito maior, não sendo possível ignorar a diversidade existente. Com isso: [...] a decolonialidade implica partir da desumanização e considerar as lutas dos povos historicamente subalternizados pela existência, para a construção de outros modos de viver, de poder e de saber. Portanto, decolonialidade é visibilizar as lutas contra a colonialidade a partir das pessoas, das suas práticas sociais, epistêmicas e políticas (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 24). E visando a inclusão dessa diversidade no currículo escolar brasileiro, especialmente a étnico-racial, é que, como conquista do movimento negro brasileiro, em 9 de janeiro de 2003 foi sancionada a Lei 10.639, no primeiro mandato do governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) n o 9.394, de 20 de dezembro de 1996, para incluir no currículo oficial das escolas da educação básica a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências”. Sendo assim, a Lei n o 9.394/1996 passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro- Brasileira. § 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm#art26a 26 § 3o (VETADO)" "Art. 79-A. (VETADO)" "Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’" (BRASIL, 2003). Em 2008, a LDB/1996 foi novamente alterada, agora pela Lei 11.645, em seu art. 26-A, incluindo à História e Cultura da África e Afro-brasileira a História e Cultura dos Povos Indígenas. Com isso, a partir de então passa a ser obrigatória a inclusão no currículo escolar de conhecimentos, saberes e práticas que envolvam outras etnociências, para reconhecê-las e valorizá-las tal como o é a européia. Para isso foram criadas várias demandas de formação de professores, de elaboração de material didático e paradidático de apoio aos professores, bem como a tentativa de incluir essas temáticas na grade curricular dos cursos de graduação e pós- graduação. No entanto, nos deparamos com um longo caminho na efetiva implementação das Leis 10639/2003 e 11.645/2008 nas escolas de educação básica e nos cursos do ensino superior, principalmente os de licenciatura, marcado por avanços, retrocessos e estagnação. Houve um aumento no número de cursos de formação dos profissionais da educação, projetos elaborados e a publicação e distribuição, através do Ministério da Educação, de materiais que possam ampliar o leque de opções destes profissionais na elaboração de suas práticas de ensino voltadas para a educação étnicorracial. Mas, podemos observar que, após dezessete anos da promulgação da Lei 10.639/03, a mesma não foi efetivamente implementada e nem se encontra nos projetos políticos pedagógicos (PPP) das escolas. E segundo Nilma Lino Gosmes (2012), os cursos superiores não há uma formação sólida e nem uma qualificação nessa temática, e nas salas de aula de educação básica a menção à história e cultura da África e afro-brasileira é feita, na maioria dos casos, no mês de novembro, especificamente no dia da Consciência Negra, sendo representada, ainda, por atividades que envolvem a culinária, a capoeira, o samba, e outros traços culturais representativos do encontro das “três raças” (negros/africanos, brancos/europeus e indígenas), o que reduz, por exemplo, o debate acerca do racismo e de seus impactos na sociedade brasileira e na vida da população negra ao longo da história, bem como a possibilidade de abordar essa temática em todas as disciplinas que compõem o currículo escolar. [...] pesquisas revelam avanços, porém destacam que ainda há um distanciamento a superar na relação entre a política de formação de professores(as), a gestão dos sistemas de ensino e das escolas, e as práticas pedagógicas realizadas no cotidiano das instituições escolares. Os motivos e as disputas são múltiplos e variados [...] e são históricos, culturais, políticos, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm#art79a 27 econômicos, religiosos e ideológicos. No caso específico da questão racial, somam-se a esses motivos a presença do mito da democracia racial, o racismo ambíguo, o preconceito e a discriminação racial. Tal situação acaba por interferir na implementação da Lei n.º 10.639/03 nos sistemas de ensino, bem como no enraizamento e na sustentabilidade das práticas pedagógicas realizadas pelas escolas (Gomes, 2012, p. 360). E por fim, Santana (2006) nos chama a atenção ao “destacar que a garantia legal dos direitos não promove sua concretização. São as atitudes efetivas e intencionais que irão demonstrar o compromisso com tais direitos” (2006, p. 41). Importante ressaltar que, apesar do currículo possuir uma grande influência no processo de socialização dos sujeitos que pertencentes a uma dada sociedade, por meio da escolarização, em relação à manutenção da desigualdade social, particularmente, ele não é o único responsável, mas diversos outros fatores que compõem a estrutura e as relações sócioculturais. 28 2. ÁFRICA, TECIDOS AFRICANOS E A ETNOCIÊNCIA DO GRUPO ASANTE Com a obrigatoriedade e necessidade da inclusão das temática étnico-racial africana e indígena no Brasil, e com toda a movimentação para a implementação da Lei 10.639, complementada pela Lei 11.645, é preciso pensar em como trabalhar, com propositividade, conteúdos relacionados a essa temática. Mas, é preciso se atentar para o perigo de contar uma história única, eurocêntrica, por isso a importância de apresentar e representar a história africana, levando em conta a diversidade que a compõe (que é o foco deste trabalho), sem a estereotipar a partir de aspectos ligados à pobreza, doença, selvageria, dentre outros, trazendo, portanto, conhecimentos novos e positivos em relação a lugares e povos. Sendo assim, a BNCC para o ensino médio, dentro de suas competências gerais, traz alguns pontos que nos interessam mais detidamente em relação a essa temática, são eles: 6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade. 8. Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas. 9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza (BRASIL, 2018, p. 9-10). Com isso, primeiramente, é necessário emancipar-se e combater preconceitos e discriminações na sala de aula, para conseguir enxergar, por exemplo, a grandiosidade que a África nos apresenta através das grandes contribuições tecnológicas, científicas, comerciais e até mesmo políticas e administrativas. Depois, é preciso refletir de qual África estamos falando, um continente homogêneo ou heterogêneo? O que utilizamos para representá-lo e como caracterizá-lo? Com isso, é de extrema importância e indispensável falar sobre a colonização, já que é impossível não considerar a exploração comercial, os tráficos e a invasão colonial que houve nesse continente. E é preciso entender que por esses e outros motivos esse continente é tão menosprezado, bem como apresentado a partir de imagens estereotipadas e situações de desvalorização. Uma vez contextualizado e caracterizado o continente africano, positiva e afirmativamente, é necessário incluir o conteúdo étnico-racial de maneira que o faça ter a 29 mesma importância que os outros temas abordados pelo currículo escolar, levando em consideração as descobertas, saberes e práticas dos povos africanos, assim como sua exerceu contribuição para a ciência, a partir de sua etnociência. O processo de ensino-aprendizagem para a educação étnicorracial deve possibilitar, portanto, momentos de inquietação, de busca e construção de conhecimentos, neste caso, sobre a África, um continente plural que excede concepções simplistas advindas da imaginação de muitos. A escola é um local que possui uma diversidade muito grande, e é preciso que ensine que a ciência e suas descobertas não giram em torno de apenas uma epistemologia, e muito menos é completamente eurocêntrica, assim como ela geralmente é exposta. Mesmo que esse assunto seja julgado, muitas vezes, complexo e acima do entendimento de alunos do ensino fundamental, é necessário trabalhar essa temática desde cedo para que, ao final da escolaridade, no ensino médio, seja efetivadao de maneira mais madura e compreensiva, confirmando o fato de que a composição da ciência é feita por diversas etnociências, deixando de lado um entedimento que se fundamenta na herança colonial. […] O texto curricular, entendido aqui de forma ampla – o livro didático e paradidático, as lições orais, os rituais escolares, as datas festivas e comemorativas – está recheado de narrativas nacionais, étnicas e raciais. Em geral, essas narrativas celebram os mitos da origem nacional, confirmam o privilégio das identidades dominantes e tratam as identidades dominadas como exóticas ou folclóricas. Em termos de representação racial, o texto curricular consersa, de forma evidente, as marcas da herança colonial. O currículo é, sem dúvida, entre outras coisas, um texto racial. A questão da raça e da etnia não é simplesmente um ‘tema transversal’: ela é uma questão central de conhecimento, poder e identidade (SILVA, 2011, p. 101-102). É necessário sempre destacar que o continente africano é composto por uma grande diversidade de povos e o quanto a colonização afetou diretamente sua organização. No entanto, como a história em torno de todo o continente é muito extensa, nos atentaremos apenas a uma parte dela, ao entrar em contato com o grupo Asante que compõe grande parte do povo Akan, situado na África ocidental onde atualmente se localiza Gana, trazendo sua história, cultura e contribuições. Na África ocidental, antes mesmo da colonização, já existiam muitos povos que habitavam o local, entretanto sua organização era completamente diferente do que se encontra nos dias atuais a partir dessa colonização, possuindo apenas um chefe que comandava um agrupamento de pessoas e administrava tudo. Porém, com o crescimento cada vez maior e com a prosperidade das “cidades” foi necessária uma administração cada vez mais complexa. O povo Akan/Acãn, formado por diversas etnias, se destacando pelo intenso comércio 30 de ouro extraído das minas localizadas nesta região, praticado à base de “trocas”, do escambo de mercadorias como tapetes coloridos, conchas vermelhas, vinho branco, pimentas, entre outros, poderá ser, portanto, abordado em sala de aula, tendo em vista seus saberes e práticas. Além do ouro, uma produção que merece destaque entre o povo Akan era a dos tecidos, utilizados como bem de consumo, sobretudo pelas pessoas que ocupavam um lugar social de destaque social. Tempos depois ele se popularizou. Por toda parte fiava-se e tecia-se[...]um pano forte, grosso, durável e bonito. [...] Os tecidos, as contas, as conchas, as joias de cobre, latão, ouro, estanho e prata eram bens de luxo, bem como a noz-de-cola, que mastigada, refresca a boca, reduz a fadiga, a fome a sede [...] no início era um artigo de consumo restrito aos aristocratas e homens de posse, que podiam distribui-las aos demais, na solenidades e nos grandes momentos. Com o andar dos tempos, foi-se popularizando: tornou-se praxe, nas casas de gente comum, oferece-la aos visitantes, como sinal de hospitalidade, e dá-la de presente nos casamentos, nos funerais e outras festas e cerimônias (SILVA, 2002, p. 198). O povo Akan, como já dito, é constituído por diversas etnias e a que mais se destaca são os Ashantes. Eles dominaram a região da Costa do Ouro, atualmente Gana, do final do século XVII até o início do século XX, quando ocorreu a chegada dos europeus, se tonando uma colônia britânica. Desde então, segundo Alberto da Costa e Silva (2002), “as mudanças foram irreversíveis” (p.7). A partilha da terra foi feita de maneira dominadora, não respeitando as características étnicas e culturais de cada povo, o que contribui para muitos conflitos, já que tribos aliadas foram separadas e tribos inimigas foram unidas. A Figura 5 representa, na primeira ilustração, o continente africano dividido em sua grande diversidade de povos e etnias; a segunda ilustração mostra a divisão após a Conferência de Berlim; e a Figura 6 mostra a localização específica da Costa do Ouro. 31 Figura 5. Divisão do continente africano antes e depois da colonização Fonte: https://pt.slideshare.net/ManuelaCosta32/africa-53670166 Figura 6. Mapa do continente africano com Costa do Ouro/Gana em destaque Fontes: https://misosoafricapt.files.wordpress.com/2012/03/mapa_africa-pt12.jpg O povo Ashanti ou Asante (Figura 7) ocupava toda a região da Costa do Ouro e, dessa forma, também dominava grande parte da cultura, crenças e filosofias do local. A partir de relatos orais desse período histórico, tem-se informações sobre o grande líder Obiri Yeboa, um rei que conseguiu unir diversos grupos Akan, e, após sua morte, seu sobrinho Osei Tutu tomou o trono e trouxe com ele Okomfo Anokye, que acreditava que possuía poderes mágicos. Em 1697, o novo rei convocou uma assembléia para transmitir a mensagem que Nyame, o Deus supremo dos Akans, havia feito uma eleição divina de Tutu, derrubando um banquinho de maderia do céu, através de Okomfo, para que o rei descansasse os joelhos. Esse banquinho, 32 parcialmente de ouro, continha então a alma coletiva e o espírito de todo o povo Asante, se tornando um símbolo de união e prosperidade. Figura 7. Grupo Asante com destaque para seus tecidos e Osei Tutu de branco Fonte: https://twitter.com/savagefiction/status/1024138825411584001 Isso fez com que esse povo se unificasse e consolidasse a confederação Asante. Osei Tutu reinou até 1731, e por volta de 1824 a nação Asante se tornou um dos mais poderosos estados da África ocidental, a confederação controlava mais de cem milhas quadradas de terra e sua burocracia real exerceu uma força administrativa e uma soberania política por muito tempo. Além de toda sua história, filosofia e crença, um dos legados desse povo são os Adinkra, que, segundo Willis (1998), é um conjunto de ideogramas esculpidos em madeiras ou peças de ferro e estampados em adereços, principalmente em tecidos, como se fossem carimbos. Esses símbolos possuem diversos significados, representando um fato histórico, um comportamento humano, ou até mesmo um vegetal ou animal. Dessa forma, eles transmitem, visualmente, ideias, mensagens e valores, sendo também muito vinculados a contos populares com grandes valores morais. Adinkra refletem os costumes e valores tradicionais específicos, conceitos filosóficos, códigos de conduta e as normas sociais do povo Akan. Eles são uma expressão da visão de mundo Akan. Os símbolos de Adinkra têm significados em várias camadas e níveis de interpretação. Estes símbolos Akan são carimbados em panos de cores variadas e simbolizam parábolas, aforismos, provérbios, ditos populares, eventos históricos, penteados, traços do comportamento animal ou formas de objetos inanimados ou feitos pelo homem (WILLIS, 1998). 33 Os Adinkra, muito além de serem estampados e possuirem diversos significados, eram muito utilizados em cerimônias importantes, como funerais que transmitiam uma mensagem de despedida ao defunto e que, inclusive, possui o significado de “adeus à alma”, literalmente falando. Infelizmente não se sabe a história real da origem desses símbolos, no entanto, o que se sabe é que eles foram transmitidos pelos mais velhos (anciãos), e representam toda a complexa espiritualidade e conduta de vida desse povo através de sua cultura, costumes e filosofia de vida. Segundo Danzy (2009), apesar da grande importância e representação que os Adinkra possuem, com o decorrer do tempo eles foram popularizados e atualmente podemos encontrá- los em praticamente tudo. Além dos tecidos, eles também estão presentes em paredes, objetos, jóias, casas, edifícios, entre outros lugares pertencentes ao povo Akan. Com o tempo, muitos símbolos antigos perderam sua importância como novos símbolos foram criados. O surgimento de novos símbolos é o reflexo das novas ideias que se desenvolveram como resultado de mudanças sociais, culturais e históricas. […] Os símbolos de Adinkra e seus significados têm transcendido o tempo, eles se adaptaram às mudanças sociais, culturais e históricas que caracterizam a sociedade ganense moderna (DANZY, 2009, p. 3). O número total de símbolos não foi registrado precisamente, contudo existem mais de quinhentos, que foram devidamente identificados e documentados, e, como já dito, eles estão em crescente expansão com o passar do tempo. Além disso, existem os mesmos símbolos representados de diversas formas e tamanhos diferentes. Carmo (2016) traz alguns desses símbolos e seus respectivos significados, como podem ser vistos no Quadro 1, resultado das informações compiladas por Brandão (2016), Nascimento (2009) e Willis (1998). Quadro 1. Exemplos de símbolos Adinkra SíMBOLO SINGNIFICADO/ ENSINAMENTO ABAN Uma fortaleza ou uma casa de dois andares, associada à sede do governo Símbolo da força, da sede do poder, da autoridade e da magnificência. 34 ADINkRAHENE Rei dos símbolos do Adinkra Símbolo de autoridade, grandeza, prudência, firmeza e magnanimidade. De acordo com relatos orais, este símbolo representa ser o chefe de todos os projetos Adinkra e constitui a base da impressão Adinkra. AGYNADAWURU O gongo de agyin, o servo fiel Símbolo da fidelidade, estado de alerta e assiduidade Agyin era um servo do rei de Asante. Relatos orais afirmam que ele era fiel. Ele também foi gentil e cortês. Agyin tam- bém exibia uma prontidão para servir. AkOMA “O coração” Símbolo do amor, boa vontade, paciência, fidelidade, carinho, resistência e consistência. AkOMA NTOSO Os corações juntados ou unidos Símbolos do acordo, união e da unidade (no pensa- mento e na ação) ou um contrato. O símbolo significa a «união» e unidade nacional. Ele basicamente simboliza a necessidade de uma ação concentrada e uma frente unida. ANANSE NTONTAN “Teia de aranha” Símbolo da sabedoria, a criatividade e as complexida- des da vida. Ananse, a aranha, é um personagem bem conhecido em contos populares africanos. ANI BERE A ENSO GYA “Por mais que uma pessoa fique de olhos vermelhos (séria), seus olhos não produzem fogo” Símbolos de paciência, auto-contenção, auto-discipli- na e auto-controle. Este símbolo sugere que, se as pessoas estão ansiosas e dedicadas a fazer uma tarefa, não significa necessariamente, que podemos ver que a ansiedade (vermelhidão) em seus olhos. 35 AYA “A samambaia” Símbolo de resistência, independência, desafio contra dificuldades, resistência, perseverança e desenvoltura. A samambaia é uma planta resistente que pode crescer em lugares difíceis. “Um indivíduo que usa este símbolo sugere que resista muitas adversidades e supere muita dificuldade.” BESE SakA “Saco de nozes de cola” Símbolo de riqueza, poder, abundância, fartura, união e unidade. A noz de cola desempenhou um papel importante na vida econômica de Gana. A colheita de dinheiro amplamente usada está intimamente associada com a riqueza e abundância. Este símbolo representa também o papel da agricultura e do comércio de aproximação dos povos. BI NkA BI “Não morda o outro” Símbolos de justiça, lisura, a liberdade, a paz, o perdão, harmonia e à prevenção de conflitos ou distúrbios. Este símbolo adverte contra a provocação e conflitos. A imagem é baseada em dois peixes que mordem um ao outro na cauda. FAFANTO “A borboleta” Símbolo de ternura, delicadeza, honestidade e fragili- dade. A borboleta pode estar voando em torno de uma vasilha de vinho de palma, mas ela não bebe, porque não tem dinheiro para comprar. FAWOHODIE “Independência” Símbolo da independência, liberdade, emancipação. Independência vem com as suas responsabilidades. 36 MATE MASIE “O que eu ouço, eu mantenho – eu entendo!!” Símbolo da sabedoria, conhecimento e prudência. Entendimento significa sabedoria e conhecimento, mas também representa a prudência de se levar em considera- ção o que outra pessoa disse. Fonte: CARMO, Eliane Boa Morte do. História da África nos anos inciais do Ensino Fundamental: os Adinkra; (Monografia) Mestrado profissional em história da áfrica, diáspora e povos indígenas. 192. ed. rev. Universidade Federal do Reconcavo da Bahia Centro de Artes, Humanidades e Letras: Cachoeira, 2016. É muito comum, como já dito, encontrar os símbolos Adinkra em diversos lugares, e hoje em dia não apenas encontramos estampas como as ilustradas nas Figuras 8 e 9 no próprio povo akan e continente africano, como também em outros espaços, pois assim como muitos conhecimentos, técnicas, descobertas científicas, comidas costumes e crenças, a estamparia, principalmente de tecidos, possui grande influência em diversos países, inclusive no Brasil. Como também visualizamos nas figuras 10 e 11, há representações dessas estampas em diversos lugares, tecidos e objetos. Figura 8. Estampas Adinkra em almofada Figura 9. Estampas Adinkra em tecidos Figura 10. Símbolos Adinkra esculpido na madeira Figura 11. Estampas Adinkra em vestimentas Fonte: CARMO, Eliane Boa Morte do. História da África nos anos inciais do Ensino Fundamental: os Adinkra; (Monografia) Mestrado profissional em história da áfrica, diáspora e povos indígenas. 192. ed. rev. Universidade Federal do Reconcavo da Bahia Centro de Artes, Humanidades e Letras: Cachoeira, 2016. 37 O processo de estamparia dos símbolos Adinkra em tecidos é muito importante e é feito através de carimbos chamados de selo Adinkra, e a tinta utilizada é feita com a parte interna das cascas da árvore denominada Badee (Euphorbiaceae). Esta árvore cresce nas savanas do norte de Gana, perto das cidades de Ejura, Amanten e Atebubu. Mergulha-se as cascas em água, durante a noite, e, posteriormente, o material marrom- avermelhado é batido em pilão até ficar macio. Em seguida, este material é cozido, o que faz com que a cor da casca seja extraída e tinja a água. Após a evaporação, a mistura é coada em pano e volta à fervura até se tornar um líquido espesso, que receberá o nome de Adinkra aduro, esse corante final irá deixar uma superfície preta, brilhante quando aplicado ao tecido. Sendo assim, segundo Leslie White (2009), os símbolos são unidades básicas do comportamento humano e possuem valores dependentes do valor ou significado que possuem para os seus criadores ou usuários. Este valor nunca é determinado por algo relacionado às características físicas do objeto e sim ao que ele representa a quem o possui. Além disso, segundo White (2009), a distinção entre símbolo e signo é que símbolo é a criação do valor de algo e o signo é a indicação de algo já existente. Com isso, os símbolos possuem uma linguagem cifrada das aspirações e dos ideais do ser humano, eles existem desde tempos imemoráveis e continuarão existindo. Como já visto, na cultura do grupo Asante os símbolos são muito importantes, assim como para muitos outros povos, trazendo ideias, valores, crenças e convicções. Alguns símbolos, como os religiosos, são profundos, por mais simples que possam parecer, outros possuem fortes significados dentro de contextos históricos e também culturais, quando são adorados, manifestam e alimentam o respeito e o despertar de energias inesperadas, como no caso da bandeira nacional de um país ou até mesmo símbolos de movimentos sociais, como a suástica, que marcou fortemente o nazismo. 38 3. PIGMENTOS E APLICAÇÕES EM CONCEITOS QUÍMICOS NUMA PROPOSTA DE TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA 3.1. TECIDOS, PIGMENTOS E A IMPORTÂNCIA DOS CORES A história traz muitas informações sobre tecidos e símbolos em todas as sociedades, já que a necessidade de se cobrir sempre acompanhou a humanidade, tanto em relação à sobrevivência quanto, até mesmo, à satisfação de desejos estéticos, desde o paleolítico o homem da caverna utilizava peles de animais, após a caça, para sobreviver ao clima e à própria natureza, quando necessário. Além de peles de animais, ou até mesmo a lã e a seda, os primeiros materiais têxteis, que são muito antigos, também têm origem vegetal, por exemplo: o linho, rami e algodão. O linho era um tecido utilizado em vestes de nobres, sacerdotes e dignitários; já a lã era muito utilizada em toda região montanhosa da antiga mesopotâmia. Tanto a lã quanto o pêlo eram considerados populares na Mesopotâmia e Egito. Todos os tipos de filamentos e tecidos foram descobertos até meados de 5000 a.C; já o ato de tecer também é muito antigo, mas estima-se que o tear tenha sido inventado a mais de 6000 anos, quando o homem, esticando estes fios, amarrados entre uma árvore e o próprio corpo, e alternando a trama (que juntamente com a urdidura são os componentes básicos para transformar fios em tecidos, entrelaçando os mesmos), improvisou o tear. Posteriormente, e até os dias de hoje, primeiro, o algodão e, em seguida, a seda começaram também a ser muito utilizados no ramo têxtil. Logo em seguida surgia o tingimento desses tecidos, como ilustra a prática na Figura 12, os quais podiam ser tingidos com corantes naturais oriundos de pigmentos vegetais e animais, sendo comuns os tons branco, preto e castanho, que se aproximava do marrom avermelhado. O império da Nova Roma se diferenciou quando trouxe a cor púrpura, privativa à nobreza e reservada ao casal imperial, que era um pigmento extraído a partir de um muco opaco eliminado por alguns moluscos. A Figura 13 mostra a cor púrpura aplicada nesses tecidos. Além do tingimento, também se destaca nessas indumentárias a estamparia de animais, flores e simbologias bíblicas. 39 Figura 12. Tingimento de tecidos da nobreza Fonte: https://br.pinterest.com/pin/299278337732969412/ Figura 13: Tecidos da nobreza tingidos da cor púrpura Fonte: https://www.hisour.com/pt/purple-in-history-and-art-26727/ Nessa mesma época os africanos do Egito Antigo e da mesopotâmia descobriram a confecção e tecelagem de tecidos, além de corantes naturais de uma série de plantas para seus tingimentos, já que a história sempre ocorreu simultâneamente em todo domínio terrestre. Com o passar do tempo, novas técnicas, tanto de tecelagem quanto de tingimentos e estamparias, foram aprimoradas e automatizadas, e novos pigmentos orgânicos, e até mesmo inorgânicos, foram sendo descobertos. Sendo assim, é possível observar o ambiente que nos rodeia com uma infinidade de cores desde sempre, geradoras de sensações e emoções e através dos tempos, o homem sempre se sentiu atraído por elas, fazendo das cores uma expressão de seu universo interior. Estima-se que as primeiras tentativas humanas de se praticar a Química estejam ligadas à obtenção e à preparação de matérias corantes, a pelo menos 20.000 anos. As primeiras tintas eram obtidas essencialmente de fontes vegetais e tinham pouca durabilidade (SOLOMONS,2005). No Brasil, 40 segundo a ABIQUIM (Associação Brasileira de Química), o mercado de importações relacionado a corantes e pigmentos movimentou, em 2007, cerca de 515 bilhões de dólares. Os pigmentos estão sempre presentes na vida cotidiana, até mesmo em aplicações em que a evidência direta de sua presença (cor) não pode ser notada, não apenas em objetos, vestimentas ou construções, mas também na própria alimentação. O desenvolvimento de cores em uma ampla variedade de materiais é facilitado pela existência de vários tipos de pigmentos: orgânicos, inorgânicos, naturais, sintéticos, minerais, fluorescentes, perolados, entre outros, e suas aplicações dependem da necessidade e toxidade que podem oferecer tanto para a saúde quanto para o meio ambiente (BONDIOLI, 1998; CASQUEIRA, 2008). Um pigmento é definido como sendo um particulado sólido, que seja insolúvel no substrato no qual venha a ser incorporado e que não reaja quimicamente ou fisicamente com este. Ou seja, são compostos químicos constituídos por partículas, as quais são insolúveis em um determinado meio de interesse, e em sua dispersão em uma determinada substância dão origem ao que chamamos de sistemas coloidais. Dentre os sistemas coloidais, que geralmente são obtidos quando se faz a dispersão de pigmentos, nós temos os chamados sóis. Sóis são partículas sólidas dispersas em um líquido imiscível, como, por exemplo, as tintas. Deve-se, contudo, diferenciar pigmentos dos corantes solúveis: os primeiros são pequenos corpúsculos corantes insolúveis no meio em que são dispersos; no caso dos corantes solúveis, as soluções penetram no material a ser tingido, não apenas lhe emprestando coloração, mas reagindo com o material (BONDIOLI, 1998; CASQUEIRA, 2008). Entre as propriedades apresentadas pelos pigmentos, as mais importantes são as óticas, principalmente a capacidade de fornecer cor e a opacidade. Sendo assim, os pigmentos produzem cor por ação de íons cromóforos que absorvem a radiação visível de forma seletiva, e sendo estabilizados por mecanismos químicos apropriados conseguem manter sua ação pigmentante sob condições químicas e de temperatura desfavoráveis (CASQUEIRA, 2008). A atribuição física que permite que esses compostos apresentem cor é a capacidade de absorver comprimentos de onda de luz visível bem determinados, essa absorção da luz é um processo pelo qual a luz que incide sobre um corpo é convertida em energia. É importante não confundir a cor absorvida pelas substâncias com a cor refletida por elas. https://brasilescola.uol.com.br/fisica/luz.htm https://brasilescola.uol.com.br/fisica/energia-1.htm 41 A cor real de uma substância colorida é exatamente aquela que ela não foi capaz de absorver, ou seja, a cor refletida e observada depende da frequência com que as substâncias são capazes de absorver. Por exemplo, um tecido branco não absorve nenhum dos comprimentos de onda da luz visível, refletindo-os, enquanto um tecido preto absorve todos e não reflete nenhum. Um exemplo mais específico é a cor azul, ela não é capaz de absorver a luz cuja frequência corresponde à cor azul, por isso, essa luz é refletida e o objeto é visto em tal coloração. Esse comportamento está diretamente relacionado às estruturas moleculares dos compostos e à capacidade dos olhos humanos diante da faixa de luz que podemos enxergar. (SOLOMONS,2005). Abaixo, na Figura 14, encontra-se a faixa de luz visível pela qual conseguimos enxergar tudo. Figura 14. Frequência e comprimento de onda da luz visível Fonte: https://brasilescola.uol.com.br/fisica/cores-2.htm Apesar dos pigmentos serem os componentes principais na síntese das tintas, não são o suficiente para fazer com que a tinta possua uma boa consistência e para sua fixação nas telas. Para isso, durante a fabricação das tintas é utilizado um aglutinante, que possui a função de ligar e fixar os fragmentos do pigmento ao local onde a pintura será realizada. Ao longo dos anos, diversos compostos foram utilizados para esse fim, dentre eles a têmpera de ovo, óleo, goma arábica e também cola de origem animal (RODRIGUES, 2011). Entre os métodos de classificação dos pigmentos, alguns não possuem estrutura química bem definida ou possuem mais de uma função química em suas estruturas. Uma possibilidade de classificação é dividi-los como orgânicos ou inorgânicos, naturais e sintéticos, sendo os naturais aqueles que são encontrados na natureza, podendo ser citados como exemplo os óxidos 42 de ferro, que dão origem a diversas colorações, do amarelo ao marrom. Os pigmentos sintéticos se diferenciam por serem preparados pelo homem mediante procedimentos químicos. Importante ressaltar, e não confundir ou assimilar, que os pigmentos naturais não são sinônimos de pigmentos orgânicos, já que existem diversos pigmentos sintéticos que também são orgânicos. Com o foco no tingimento dos tecidos, com a grande demanda da indústria têxtil ao redor do mundo, o dilema de utilizar corantes naturais ou sintetizados está sempre presente, já que os corantes sintéticos são muito tóxicos, danificam o meio ambiente, e prejudicam a saúde humana. No entanto, apesar dos corantes naturais serem menos prejudiciais, eles são caros, tem menos variedade de cores e não são econômicos para a fabricação em larga escala; já os corantes sintéticos fazem mais sentido econômico, por terem um preço mais competitivo e uma grande variedade de cores disponíveis. Sendo assim, ao citar os dois tipos de pigmentos e na intenção de defender o uso dos naturais, que trazem muito menos danos à vida, destacamos alguns exemplos na Figura 15. Figura 15. Exemplos de pigmentos orgânicos naturais Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-1-Estrutura-de-alguns-exemplos-de-pigmentos- vegetais-clorofila-tetrapirrol_fig1_273167886 A clorofila é um pigmento encontrado em plantas, algas e algumas bactérias, sua característica é de coloração verde, sendo assim, ela absorve luz nos comprimentos de luz violeta, azul e vermelho, e, dessa forma, reflete a luz verde. O betacaroteno é um pigmento de 43 cor laranja aginda e atua como antioxidante natural, absorvendo indiretamente a vitamina A no organismo. Já a pelargonidina é um pigmento que produz uma coloração laranja-avermelhada e está presente em frutas como: morango, acerola, amora, ameixa, e em flores como a Gerânio. E a betanina, vermelho beterraba, é uma substância que consiste no extrato aquoso da raiz da beterraba vermelha, extraído, geralmente, após a fervura em água, e apresenta uma cor rosada. Dessa maneira, existem diversos outros pigmentos que podem ser extraídos da própria natureza, e apesar de não possuir a imensa variedade que os pigmentros inorgânicos possuem, é possível ter uma ampla possibilidade de cores a partir deles, como mostra a Figura 16. Figura 16. Pigmentos naturais Fonte: https://www.stylourbano.com.br/kaiku-transforma-residuos-de-frutas-e-vegetais-em-pigmentos- naturais/ Com isso, após a abordagem acerca do currículo e da necessidade de sua desconstrução étnico-racial e social, seguida da apresentação e contextualização da história e cultura da africana, em específico da etnia Asante, com o foco nos tecidos e em seu tingimento com a utilização de pigmentos, ressaltando os pigmentos orgânicos naturais e suas vantagens e desvantagens, é possível, nesse momento, colocar em relação toda essa temática com as competências e habilidades a serem desenvolvidas a partir da química orgânica, no interior da 44 área de Ciências da Natureza e suas Tecnologias, tal como previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do ensino médio e, complementarmente, no Novo Currículo do Estado de São Paulo. No tópico 5.3.1 da BNCC do ensino médio, referente à àrea das CIÊNCIAS DA NATUREZA E SUAS TECNOLOGIAS NO ENSINO MÉDIO, consta, portanto, a competência específica a ser desenvolvida a partir da química orgânica: 2. Analisar e utilizar interpretações sobre a dinâmica da Vida, da Terra e do Cosmos para elaborar argumentos, realizar previsões sobre o funcionamento e a evolução dos seres vivos e do Universo, e fundamentar e defender decisões éticas e responsáveis (BRASIL, 2018, p. 556) Seguindo essa competência, está a seguinte habilidade: (EM13CNT207) Identificar, analisar e discutir vulnerabilidades vinculadas às vivências e aos desafios contemporâneos aos quais as juventudes estão expostas, considerando os aspectos físico, psicoemocional e social, a fim de desenvolver e divulgar ações de prevenção e de promoção da saúde e do bem- estar (BRASIL, 2018, p. 557). Essa competência e habilidade estão presentes na unidade temática VIDA, TERRA E COSMOS, e, de acordo com o novo Currículo Paulista, na disciplina de Química, no 3° ano do ensino médio, deve haver a abordagem acerca dos “Compostos orgânicos (funções orgânicas: estrutura, propriedades e características para a saúde humana)” (SÃO PAULO, 2019, p. 160). 3.2. UMA PROPOSTA DE TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA: A QUÍMICA DOS PIGMENTOS NOS TECIDOS AFRICANOS Segundo Chevallard (1991), a Transposição Didática é uma “ferramenta” que permite o movimento que parte do saber sábio (aquele que os cientistas descobrem) para o saber a ensinar (aquele que está nos livros didáticos) e, por fim, para o saber ensinado (aquele que realmente acontece em sala de aula), ou seja, o saber do campo científico para o campo escolar. Sendo assim, “A Transposição Didática, em um sentido restrito, pode ser entendida como a passagem do saber científico ao saber ensinado” (CHEVALLARD, 1991, p. 24, minha tradução). No entanto, essa transposição do conhecimento científico com fins de ensino e divulgação não se trata de uma simples adaptação ou uma simplificação do conhecimento, e 45 sim de um conjunto de transformações adaptativas que vão torná-lo apto a ocupar um lugar entre os objetos de ensino. Sendo assim, será possível apresentar, aqui, uma proposta de transposição didática (Quadro 2) que coloca em relação os saberes científicos surgidos na África, em particular aqueles referentes à estamparia e tingimento de tecidos com pigmentos orgânicos, e os conteúdos curriculares para o ensino de Química, no ensino médio, particularmente aqueles que envolvem a Química orgânica e os compostos orgânicos. O objetivo também é visibilizar a etnociência africana e contribuir para a implementação da Lei 10.639/2003 no ensino de Química. É importante ressaltar que a ideia principal para a elaboração dessa proposta foi baseada no trabalho “História da África nos anos inciais do Ensino Fundamental: os Adinkra”, de Carmo (2016), sendo adaptada para o ensino de química e, em especial para o ensino médio, além de todas as diveras modificações necessárias. Quadro 2. Transposição didática proposta A química dos pigmentos nos tecidos africanos Conteúdo: Ciências da natureza e suas tecnologias - Compostos orgânicos (funções orgânicas: estrutura, propriedades e características para a saúde humana). Atividade - Síntese e análise dos conceitos químicos, a partir dos pigmentos orgânicos naturais para a estamparia dos símbolos Adinkras. Metodologia: Existem diversas maneira de produzir tintas a partir da extração de pigmentos naturais de alimentos, no entanto, a extração por meio da trituração, seguida do cozimento desses alimentos, torna as cores mais intensas. Sendo assim, para a obtenção pelo menos das cores verde, laranja, laranja-avermelhado, e rosa, com a intenção de apresentar os pigmentos das moléculas de clorofila, betacaroteno, pelargonidina e betanina respectivamente, serão necessários os seguintes ingredientes e procedimentos: Ingredientes: 1. Espinafre = tintura verde (clorofila) 2. Cenoura = tintura laranja (betacaroteno) 3. Acerola = tintura laranja-avermelhado (pelargonidina) 46 4. Beterraba = tintura rosa (batanina) Para cada tintura é necessário: - 1 (um) frasco com tampa - 100 ml de cola branca - 100 ml de cada suco extraído após a trituração e o cozimento Modo de preparar: - Triturar em um liquidificador cada alimento; - Em seguida, cozinhar cada um por cerca de 8 minutos em pouco mais de 100 ml para que o evaporar da água não interfira nos 100 ml que será utilizado na mistura final; - Colocar no frasco os 100 ml de cola branca que servirá como aglutinante para uma maior consistência e fixação da tinta; - Acrescentar o suco retirado de cada alimento, misturá-los no frasco e agitar bem; - Manipular a quantidade de cola, dependendo da consistência final. Durante a aula prática, deverá ser ressaltada a importância da utilização de pigmentos naturais versos os pigmentos sintéticos, em seus prós e contras. Em seguida, após uma contextualização da África, do grupo Asante e da importância dos tecidos e dos símbolos Adinkras, tendo as tintas prontas, poderão ser disponibilizados moldes feitos com papel E.V.A, com diversos símbolos Adinkras, especificando o significado de cada 47 um. Com isso feito, é possível a estampagem desses símbolos em pedaços de panos ou camisetas, a partir dos pigmentos produzidos. Após toda essa prática, que abrange a produção de pigmentos naturais e a valorização da história e cultura do grupo Asante, conceitos básicos de química orgânica podem ser trabalhados a partir das moléculas de cada pigmento utilizado, sendo eles: estrutura e nomeação da molécula, tipos de ligações, grupos funcionais e polarização, de acordo com o que é exigido pelo currículo escolar. A molécula do betacaroteno, por exemplo, é devidamente nomeada de acordo com as normas da IUPAC (União Internacional de Química Pura e Aplicada) e pertence ao grupo dos carotenoides (carotenos), que apresenta em sua estrutura química 40 átomos de carbono e várias ligações duplas conjugadas, suas colorações se devem ao comprimento de onda captado a partir dessa grande cadeia aberta. Além disso, o betacaroteno é formado por dois aneis hexagonais (não aromáticos), que são ligados a essa cadeia insolúvel em água. Na imagem da molécula de betacaroteno abaixo são apresentadas as características citadas, como as duplas ligações em círculos vermelhos, a cadeia aberta no retângulo em verde e os aneis hexagonais nos hexagonos azuis. Além dessas características é possível trabalhar muitas outras, de diversos pigmentos, como os apresentados. 48 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o intuito de mostrar a necessidade de uma descolonização do currículo escolar e da valorização de outras etnociências, especificamente a africana, para a compreensão da História e da Ciência, juntamente com a intenção de contribuir e fazer com que a Lei 10.639/03 seja efetivamente implementada e inclusa nos Projetos Político-Pedagógicos (PPP) das escolas, e não apenas destacada no dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), é que esse trabalho apresentou uma proposta de transposição didática para o ensino de Química orgânica, no ensino médio. Essa proposta colocou em relação a história e cultura africana, em especial aquela que informa sobre a técnica de tingimento de tecidos do grupo Asante, pertencente ao povo Akan, que habita o estado de Gana. na África Ocidental, utilizando-se de pigmentos naturais e da grande importância dos símbolos Adinkras para esse grupo, e os conteúdos curriculares propostos para a disciplina de Química, que envolvem os conceitos de estrutura e nomeação da molécula, tipos de ligações, os grupos funcionais e a polarização. Espera-se, com isso, dar ênfase à valorização da cultura africana e, ao mesmo tempo, ao conteúdo que já é obrigatório no currículo de química orgânica para o ensino médio. Sendo assim, pôde-se concluir que a questão étnico-racial percorre a compreensão da história da humanidade e de formação do povo brasileiro, bem como de suas raízes em África, e também dos povos originários da terra, os indígenas. Além disso, uma compreensão de mundo vai além dos conteúdos escolares e dos livros, abrangendo o conhecimento de si, do entorno, da sociedade, da formação da humanidade, e da produção do conhecimento. Portanto, a realidade necessita de questionamentos acerca das “verdades” estabelecidas e aprendidas ao longo da história, para que a partir disso os sujeitos possam estar abertos a conhecerem e reconhecerem outras epistemologias e etnociências. 49 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORGES, Vavy Pacheco. editora: Brasiliense. coleção: PRIMEIROS PASSOS. - 2ªed. Vol. 17, 1993. BRANDÃO. Ana Paula (coord.). Saberes e Fazeres in a Cor da Cultura. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho. 2006. Caderno 3. Disponível em: http://www. acordacultura.org.br/sites/default/files/kit/Caderno3_ModosDeInteragir.pdf. Acesso em: 04 jan. 2021. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Educação é a Base. Brasília, MEC/CONSED/UNDIME, 2017. Disponível em: . Acesso em: 02 jul. 2020. 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