VINICIUS DA SILVA PROENÇA GRATIA DEI: Legitimidade e Poder no IV Concílio de Toledo na Hispania Visigoda (Século VII) ASSIS 2022 VINICIUS DA SILVA PROENÇA GRATIA DEI: Legitimidade e Poder no IV Concílio de Toledo na Hispania Visigoda (Século VII) Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras de Assis, para a obtenção do título de Mestre em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade) Orientador (a): Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES). Código de Financiamento 001. ASSIS 2022 Aos meus pais e ao meu irmão, a base de todas as minhas realizações. AGRADECIMENTOS Desenvolver uma dissertação de mestrado sem dúvidas não é uma tarefa simples, mas cabe a mim a dura tarefa de encerrar este ciclo. Anos estudando um determinado assunto me faz questionar quais serão os novos desafios, projetos e aventuras que terei pela frente. Nesse momento de reflexão, aproveito para agradecer quem fez parte da minha trajetória acadêmica e a todos que, de alguma maneira, contribuíram para que essa pesquisa fosse realizada. Ao olhar para trás, lembro-me com carinho dos amigos que fiz durante o período da graduação, das estimulantes aulas que frequentei e do encanto pela História que desenvolvi como aluno na Unesp. Os anos vivendo em Assis proporcionaram não somente momentos de grande aprendizado no âmbito acadêmico, mas de crescimento pessoal. Levarei todas essas experiências comigo para sempre. Isso só foi possível graças aos meus pais, Daniel e Angela, que acreditaram nos meus sonhos e me ajudaram a torná-los realidade. Gostaria de agradecê-los, e ao meu irmão João Vitor, pelo carinho, suporte e por sempre se mostrarem interessados quando eu explicava com entusiasmo o que estava desenvolvendo. Obrigado também por compreenderem minhas ausências devido à pesquisa. A minha namorada, Caroline, pelo carinho, cuidado e pelas inúmeras leituras do meu trabalho, apontando as inconsistências e contribuindo para que eu construísse uma melhor versão do mesmo. Ao amigo Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho pelas aulas, por fomentar meu interesse em História Medieval e pelo auxílio ao elaborar meu projeto de pesquisa. À minha querida orientadora, Dra. Andrea Lúcia Dorini de O. Carvalho Rossi, agradeço pela confiança ao me aceitar como orientando, por estar sempre atenta às minhas necessidades, auxiliando em diversos momentos durante os anos de pesquisa. Sou eternamente grato a você. Ao meu colega de graduação, João Lucas Trescentti por sua amizade, seu apoio desde o período de graduação e pelas inúmeras conversas a respeito do meu trabalho, trocando experiências e partilhando as aflições em relação à vida acadêmica. Aos Drs. Everton Grein e Eduardo Cardoso Daflon por terem lido meu trabalho, apontando as fragilidades e as possibilidades de novas discussões e avanços. À Dra. Juliana Bardella Fiorot e novamente ao Dr. Eduardo Cardoso Daflon, por partilharem diversas fontes e bibliografias que foram fundamentais para a elaboração dessa pesquisa. Vocês foram fundamentais para que eu tivesse acesso aos materiais. Ao Dr. Ronaldo Amaral, agradeço pela participação no exame de qualificação e na defesa, cuja arguição me levou a pensar em diversos aspectos do meu trabalho. Ao querido Dr. Germano Miguel Favaro Esteves, agradeço pela amizade, por me apresentar as fontes conciliares visigodas e pelo incentivo que me deu quando disse que me interessava estudar os visigodos. Agradeço por fazer parte desde o meu primeiro ano de graduação do Núcleo de Estudos Antigos e Medievais (NEAM), grupo que me motivou a seguir com os estudos na área de História Medieval e que já formou inúmeros pesquisadores que me serviram de inspiração. A todas as pessoas mencionadas, o meu muito obrigado e saibam: essa pesquisa não existiria sem a colaboração de vocês. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. (BLOCH, 2001, p. 65) PROENÇA, Vinicius da Silva. GRATIA DEI: Legitimidade e Poder no IV Concílio de Toledo na Hispania Visigoda (Século VII). 2022. 135 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2022. RESUMO Povo belicoso e com uma trajetória marcada por usurpações seguidas de assassinatos, os visigodos se estabeleceram em Hispania no século V, enfrentando ainda no século VII instabilidades políticas advindas do choque de interesses entre os grupos nobiliárquicos, os quais disputavam o posto real. Buscando lançar o olhar sobre essas relações, a proposta de pesquisa analisa a interação entre Igreja e Monarquia na sociedade visigoda, haja vista que a instituição religiosa se tornou o pilar da realeza a partir da conversão oficial ao catolicismo em 589, tendo adquirido também funções políticas. Nesse sentido, o cerne da investigação reside em se aproximar do contexto em que, contando com o apoio da instituição religiosa sob a liderança de Isidoro de Sevilha, Sisenando (631-636) tomou o poder destronando Suintila (621- 631). Por meio da Análise do Discurso, buscou-se lançar luz sobre as atas do IV Concílio de Toledo em 633, reunião na qual Sisenando foi legitimado ao mesmo tempo em que se difamou o destronado. Assim, a metodologia utilizada ajudou a compreender os mecanismos adotados pela Igreja para validar a insurreição, além de analisar as discrepâncias no discurso isidoriano acerca do destituído Suintila. Ao fim, verificou-se em reinados posteriores ao concílio toledano a efetividade da caracterização do soberano como o “ungido do Senhor”, associação essa que tinha como propósito cessar sublevações futuras entre os godos. Palavras-chave: Poder, Monarquia Visigoda, Usurpação, Igreja Católica, Hispania visigoda. PROENÇA, Vinicius da Silva. GRATIA DEI: Legitimacy and power in the Fourth Council of Toledo in Visigothic Hispania (7th century). 2022. 135 f. Dissertation (Masters in history) – School of Sciences and Languages, São Paulo State University “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2022. ABSTRACT A bellicose people and with a trajectory marked by usurpations followed by assassinations, the Visigoths settled in Hispania in the 5th century, still facing political instabilities in the 7th century arising from the clash of interests between the nobility groups, which disputed the royal post. Seeking to look at these relationships, the research proposal analyzes the interaction between Church and Monarchy in Visigoth society, given that the religious institution became the pillar of royalty from the official conversion to Catholicism in 589, having also acquired political functions. In this sense, the core of the investigation lies in approaching the context in which, with the support of the religious institution under the leadership of Isidore of Seville, Sisenando (631-636) took power by dethroning Suintila (621-631). Through Discourse Analysis, we sought to shed light on the minutes of the Fourth Council of Toledo in 633, a meeting in which Sisenando was legitimized at the same time that the dethroned was defamed. Thus, the methodology used helped to understand the mechanisms adopted by the Church to validate the insurrection, in addition to analyzing the discrepancies in the Isidorian discourse about the destitute Suintila. In the end, in reigns after the Toledan council, the effectiveness of the characterization of the sovereign as the “anointed of the Lord” was verified, an association that was intended to stop future uprisings among the Goths. Keywords: Power, Visigothic Monarchy, Usurpation, Catholic Church, Visigothic Hispania. LISTA DE ABREVIATURAS Bicl. Chron. JOÃO DE BÍCLARO. Chronicon. Ed. crítica de J. Campos. Juan de Bíclaro, obispo de Gerona. Su vida y su obra. Madrid: CSIC, 1960. Braul. Epi. BRAULIO DE SARAGOÇA. Epistolae. Ed. bilingüe (Latim-Espanhol) de L. Riesco Terrero. Serie Filosofía y Letras 31. Sevilla, Publicaciones de la Universidad de Sevilla, 1975. Concílio. Cânone. CONCILIOS VISIGÓTICOS E HISPANO-ROMANOS. Ed. bilingüe (Latim-Espanhol) de J. Vives. Barcelona-Madrid: CSIC, 1963. Cod. Eur. D’ORS, Alvaro (Org.). Estudios Visigoticos II – El Codigo de Eurico. Madrid/Roma: CISC, 1960. Chron. Moz. The Chronicle of 754. In: WOLF, Kenneth Baxter. (Org.). Conquerors and Chroniclers of Early Medieval Spain. Liverpool: Liverpool University Press, 1990, p. 91- 128. De Correc. Rusti. MARTIN DE BRAGA: Obras completas. Edición castellana de Ursicino Domínguez del Val. Madrid: Fundación Universitaria Española, 1990. Fred. Chron. FREDEGÁRIO. Chronica. Edição de J. M. Wallace-Hadrill. The fourth book of the Chronicles of Fredegar with its continuations. New York: Thomas Nelson and Sons, 1960. Hist. Adv. Pag. ORÓSIO. Historias. Trad. Eustaquio Sánchez Salor. Madrid: Editorial Gredos, 1982, 2 v. Hist. Franc. GREGORIO DE TOURS, Historias. Edición y Traducción de P. Herrera Roldán, Cáceres, Tempus Werrae I, Universidad de Extremadura, 2013. Hyda. Chron. IDÁCIO. A Crónica de Idácio de Limia: bispo de Chaves. Versão e anotações de José Antonio López Silva. Ourense: Deputación Provincial de Ourense, 2004. Ild. Tol. De vir. Ill. ILDEFONSO DE TOLEDO. De viris Illustribus. Edição de Carmen Codoñer Merino. El De Viris Illustribus de Ildefonso de Toledo. Estudio y edición crítica. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1972. Iord. Get. JORDANES. The Gothic History of Jordanes in English version with an Introduction and a Commentary by Charles Christopher Mierow. Princeton and Oxford: Princeton University Press, Humphrey Milford e Oxford University Press, 1915. Iul. Tol. Hist. Wam. DÍAZ Y DÍAZ, Pedro Rafael. Julián de Toledo: Historia del Rey Wamba. Traducción y notas. Florentina Iliberritana: Revista de estudios de antigüedad clásica, n. 1, 1990. Isid. Etym. ISIDORO DE SEVILHA. Etymologiarum. Edición de Lindsay. Edición bilingüe (latim-espanhol) de J. Reta e M.A.M Casquero, con introducción de Manuel C. Diaz e Diaz. Madrid: BAC, 2004, 2V. Isid. Hist. Goth. ISIDORO DE SEVILHA. Historia Gothorum, Vandalorum et Sueborum. Ed Bilingüe (latim-espanhol) de C. Rodríguez Alonso. León, Centro de Estudios e Investigación “San Isidoro”, 1975. Isid. De vir. Ill. ISIDORO DE SEVILHA. De Viris Illustribus. Edição de C. Codoñer Merino, C. El De Viris Illustribus de Isidoro de Sevilla. Estudio y Edición Crítica. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1964. Isid. Sent. ISIDORO DE SEVILHA. Sententiarum. Ed. bilingüe (Latim-Espanhol) de J. Campos e I. Roca. Santos Padres Españoles. 2v. Madrid: BAC, 1971. vol. 2, pp. 226-525. Isid. Chron. MARTÍN, Jose Carlos. La Crónica Universal de Isidoro de Sevilla: circunstancias históricas e ideológicas de su composición y traducción de la misma. Ibéria, La Rioja, n. 4, p. 199-236, 2001. Lean. Reg. SAN LEANDRO. Regula. Ed. bilingüe (Latim-Espanhol) de J. Campos e I. Roca. Santos Padres Españoles. Madrid: BAC, 1971. p. 21-76. Liv. Cap. Vers. BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém - Nova edição, rev. e ampl. São Paulo: Paulus, 2004. LV. LEX VISIGOTHORUM. Ed. K. Zeumer MGH.Leges I.1. Hannover-Lipizig: Impensis Bibliopolii Hahniani, 1902. PL. MIGNE, Jacques Paul. Patrologia Latina. 221 v. Paris: 1844-1864 (reimp. Turnholt: Brepols). Tac. Germ. TACITO. Agricola and Germany. Trad. Anthony R. Birley. Oxford: Oxford University Press, 1999. VSPE. VIDA DE LOS SANTOS PADRES DE MÉRIDA. ed. Isabel Velázquez. Madrid: Editorial Trotta, 2008. SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS ....................................................................... 12 CAPÍTULO I – MONARQUIA E IGREJA NO REINO VISIGODO DE TOLEDO............................................................................................................ 23 1. A MONARQUIA NO REINO VISIGODO CATÓLICO DE TOLEDO: DE RECAREDO A SISENANDO....................................................... 24 2. A IGREJA CATÓLICA VISIGODA: DE RECAREDO A SISENANDO......................................................................................... 35 3. PAGANISMO NO REINO VISIGODO DE TOLEDO.................... 44 CAPÍTULO II – ARISTOCRACIA E SUCESSÃO AO TRONO NO REINO VISIGODO........................................................................................................ 53 1. DE MORBO GOTHORUM: SUCESSÃO REAL NA MONARQUIA VISIGODA.............................................................................................. 54 2. ARISTOCRACIA HISPANO-ROMANA NO REINO DE TOLEDO................................................................................................. 66 3. LEGITIMIDADE REAL E A TEORIA POLÍTICA DE ISIDORO DE SEVILHA................................................................................................ 72 CAPÍTULO III – PODER E USURPAÇÃO NO REINO VISIGODO: O IV CONCÍLIO DE TOLEDO................................................................................ 80 1. A ANÁLISE DO DISCURSO COMO MÉTODO DE INVESTIGAÇÃO.................................................................................. 81 2. A JUSTIFICAÇÃO DE SISENANDO: O IV CONCÍLIO DE TOLEDO................................................................................................. 87 3. PROGNOSTICUM FUTURI: OS ANOS POSTERIORES AO IV CONCÍLIO DE TOLEDO.................................................................... 97 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................... 107 REFERÊNCIAS ........................................................................................... 110 ANEXOS ....................................................................................................... 121 12 CONSIDERAÇÕES INICIAIS O período histórico do recorte temporal da investigação aqui desenvolvida é distante da nossa realidade, o que exigiu do pesquisador fino cuidado na busca por interpretar as fontes de épocas tão longínquas, embora essa seja prática comum a historiadores de diversas especialidades. A distância temporal, no entanto, não pode ser considerada um componente que desestimulasse levar adiante essa investigação, mas, ao contrário, foi justamente o que despertou a curiosidade de lançar o olhar sobre personagens, modos de vida e crenças que permearam aquela sociedade, cujas práticas sociais e políticas eram diferentes da contemporaneidade, ainda que em nossa época resistam experiências de poder e dominação de instituições políticas e religiosas que apresentam traços similares aos praticados por aqueles grupos que analisamos. Assim, conforme esclareceu Jean Starobinski, a escolha de um objeto de pesquisa não é inocente, pois está intimamente ligada aos problemas da atualidade.1 O período denominado Antiguidade Tardia2, ou Primeira Idade Média,3 foi marcado pela instalação dos povos bárbaros4 e a expansão do cristianismo no Ocidente, estendendo-se até o século VIII. Conforme salientou Peter Brown, tal época requer do historiador, um olhar atento para as “[...] mudanças e a continuidade no característico mundo que cerca o Mediterrâneo.”5. Se aproximar de um período distante demanda do investigador um certo afastamento de sua própria realidade, movimento que permite adentrar em contextos diversos tomando o cuidado 1 STAROBINSKI, Jean. A literatura: O texto e seu intérprete. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (org.). História: novas abordagens. Tradução. Henrique Mesquita. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976, p. 132. 2 BROWN, Peter. O Fim do Mundo Clássico. De Marco Aurélio à Maomé. Lisboa: Verbo, 1972; MARROU, Henri-Irenée. Decadência Romana ou Antiguidade Tardia? Lisboa: Aster, 1979; GREIN, Everton. Translatio ad mundus: a transformação do mundo romano e a antiguidade tardia. Elementos teóricos para uma perspectiva historiográfica. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 3, p. 106-22, 2009. 3 FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Brasiliense, 2001; FRANCO JÚNIOR, Hilário. Antiguidade Tardia ou Primeira Idade Média? In: ANDRADE FILHO, Ruy de O. (org). Relações de Poder, educação e Cultura na Antiguidade e Idade Média. Santana do Parnaíba: Solis, 2005, p. 233-42. Paulo Duarte Silva também faz um balanço entre ambas as definições, ressaltando as potencialidades de cada argumento. SILVA, Paulo Duarte. O Debate historiográfico sobre a passagem da Antiguidade à Idade Média: considerações sobre as noções de Antiguidade Tardia e Primeira Idade Média. Signum - Revista da ABREM, v. 14, p. 73-91, 2013. 4 Discussão recorrente na historiografia sobre qual seria a melhor definição para os grupos germânicos que entraram em contato com o Império Romano, utilizamos o termo para designar esses povos como “estrangeiros”, conforme explicitado por Maria Sonsoles Guerras. GUERRAS, Maria Sonsoles. Os Povos Bárbaros. São Paulo: Editora Ática, 1987, p. 5. “Esta concepção foi adotada pelos romanos em relação aos povos estabelecidos fora de suas fronteiras, sejam Estados estruturados na Ásia, como a Pérsia, ou populações menos organizadas na África e Europa, contra as quais era necessário se defender. Portanto, "bárbaros" compreendiam os estrangeiros não- assimilados, os "outros”. ”; AMARAL, Ronaldo. O bárbaro como construto. Uma rediscussão historiográfica das migrações germânicas à luz dos conceitos de cultura, civilização e barbárie. Revista de História Comparada (UFRJ), Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 06-28, 2014. 5 BROWN, op. cit., p. 7. Optamos por operar com o conceito de Antiguidade Tardia. Ver: CARRIÉ, Jean-Michel; ROUSSELLE, Aline. L’Empire Romain en Mutation. Des Sévères à Constantin 192-337. Paris: Éditions Du Seuil, 1999. 13 de não trazer consigo concepções e preconceitos de sua época, pois, como demonstrou Aron Gurevich Em épocas e culturas diferentes, os homens percebem e interpretam o mundo à sua própria maneira e, à sua maneira, organizam suas impressões e seu conhecimento e constroem sua própria visão de mundo historicamente condicionada.6 Embasados nas investigações acerca da religião e monarquia no reino visigodo de Toledo do século VI ao VIII, voltamos nossa atenção para um grupo de fontes, como descrito por Luis A. García Moreno, de natureza literária.7 Dentro desse amplo repertório documental utilizado no estudo da sociedade hispano-visigoda, chamaram-nos a atenção as fontes de caráter legal ou canônico.8 Nosso estudo, desse modo, está voltado às questões relativas ao poder, analisando as interações entre o grupo dirigente godo e a instituição eclesiástica. Nessa pesquisa, foram analisados os concílios toledanos, particularmente o IV Concílio de Toledo de 633, celebração realizada sob a direção de Isidoro de Sevilha durante o reinado de Sisenando, monarca que governou entre os anos de 631 a 636. As atas conciliares visigodas são valiosas ferramentas na busca de melhor entendimento desse contexto, pois através das deliberações canônicas o pesquisador pode explorar além do modo de organização eclesiástico, aspectos políticos que permeavam essas reuniões, haja vista que os concílios toledanos sofreram crescentes politizações por parte dos governantes.9 Nesse sentido, a pesquisa examinou as relações entre Igreja e Monarquia no reino visigodo, especificamente a complexa conjuntura da ascensão de Sisenando e destronamento de Suintila, buscando lançar luz sobre os mecanismos utilizados para justificar tal deposição. Dessa maneira, torna-se indispensável apontar a relevância dos concílios na época estudada. O termo Concilium10, ressaltou Helène Millet, deu origem às palavras “concílio” e “conselho”. Essas reuniões clericais eram organizadas com o intuito de corrigir e normatizar questões relativas ao clero. Tais reuniões aconteciam desde os primórdios da Igreja, haja vista que “No primeiro Concílio de Nicéia (325), vemos que a celebração de assembleias conciliares era considerada um costume.”.11. Nesse sentido, a Igreja valeu-se dessa ferramenta com o 6 GUREVICH, Aron. Categories of Medieval Culture. London and Boston: Routledge and Kegan Paul, 1985, p. 4-5. (Todas as traduções de fontes e bibliografia foram feitas e revisadas por nós). 7 GARCÍA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Madrid: Cátedra, 1989, p. 11. 8 Ibid., p. 13. 9 THOMPSON, Edward A. Los godos en España. Madrid: Alianza editorial, 2014, p. 363. 10 MILLET, Helène. Assembleias. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (org.). Dicionário analítico do Ocidente Medieval. São Paulo: Editora Unesp, 2017. v. 2, p. 115; FRANCO JÚNIOR, op. cit., Idade Média: Nascimento do Ocidente, p. 181. 11 Ibid., p. 107. 14 objetivo de manter a coesão religiosa, afastando possíveis desvios ou “escolhas”12 apontadas pelos líderes da instituição como errôneas. No que se refere ao caso peninsular “A legislação conciliar na Hispânia começa no início do século IV com o sínodo de Ilíberis.”13. Através desse concílio é possível perceber que a cristianização Ibérica teve como principal reduto a região da Bética.14 Cabe evidenciar que antes da conversão oficial do reino visigodo ao catolicismo niceno em 589, essas reuniões tiveram anuência para acontecer principalmente durante o período no qual a Hispania visigoda foi governada por monarcas de origem ostrogoda. Tem-se conhecimento de seis concílios provinciais ocorridos durante esse momento, quando a preocupação foi “[…] regular a disciplina do clero e o cuidado pastoral com os fiéis.”15. Posteriormente à adesão dos godos ao credo niceno, o pesquisador José Orlandis16 observou que os concílios gerais17 toledanos configuravam reuniões de caráter misto, haja vista que assuntos de natureza religiosa e política eram discutidos pelas autoridades eclesiásticas justamente com os soberanos, esses últimos buscavam apoio do grupo clerical em suas atividades. A análise das atas conciliares católicas torna-se vital para a compreensão das estruturas político-sociais na Hispania visigoda na medida em que, a partir do III Concílio de Toledo em 589, o reino visigodo tornou-se oficialmente católico, tendo na religião sua base de suporte e legitimação. Seu auxílio enquanto instrumento legitimador se tornou essencial dado o caráter eletivo que a Monarquia visigoda possuía, o que a tornava propícia para eventuais usurpações, algo recorrente entre os godos. 12 Se faz necessário apontar que a palavra “Heresia”, na sua origem grega, significa “escolha”. Dessa forma, para a Igreja Católica, todas as escolhas divergentes no que se refere à doutrina, são heresias. Isidoro de Sevilha esforçou-se para apresentar a doutrina católica não como uma escolha, mas como a continuação dos ensinamentos dos apóstolos de Cristo, eclipsando assim uma ideia de escolha para o caso católico. Vide: Isid. Etym. VIII, 3, 2- 3. “Assim, heresia é uma palavra grega que tem sua origem na ideia de “escolha”, pela qual cada um, de acordo com seu livre arbítrio, escolhe qual ideologia professar ou seguir. Nós, por outro lado, não podemos elaborar nenhuma crença de acordo com nossos critérios; nem mesmo juntar-se ao que outra pessoa concebeu seguindo suas próprias especulações. Temos como fontes os apóstolos de Deus; e mesmo eles não estabeleceram o que deveriam ensinar de acordo com seus critérios pessoais, mas ensinaram fielmente aos povos a doutrina recebida de Cristo. Então, se um anjo descesse do céu e pregasse uma doutrina diferente para nós, ele seria anátema. ” 13 ORLANDIS, J. & D. RAMOS-LISSÓN. Historia de los Concilios de la España Romana y Visigoda. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 1986, p. 23. 14 Ibid., p. 26. 15 Ibid., p. 24. 16 ORLANDIS, José. Historia del reino visigodo español. Madrid: Rialp, 1988, p. 317; CASTELLANOS, Santiago. Los visigodos. Madrid: Editorial Síntesis, 2018, p. 102. 17 Segundo Thompson, a documentação não se refere aos concílios como nacionais, mas sim, gerais ou universais. Vide: THOMPSON, op. cit., p. 358. 15 Como afirmou Orlandis,18 o modelo de organização monárquico já era conhecido pelos godos desde tempos de Alarico I. Dessa forma, durante o estabelecimento dos visigodos em território peninsular, esse sistema de governo se encontrava instituído. Contudo, as dificuldades referentes à legitimação foram um problema para os governantes godos desde períodos anteriores à adesão ao credo niceno. Sendo usado para tentar solucionar esse problema de instabilidade política, a partir da conversão oficial do reino, verifica-se um “[...] processo de estruturação da instituição real por meio da atribuição de um carisma sagrado à pessoa do monarca.”19. Dessa maneira, o monarca passou a adquirir a salvaguarda de Deus, haja vista que o governante se tornou um “escolhido do Senhor” na Terra. Ruy de Oliveira Andrade Filho observou que “No texto de sua Historia dos Godos, Isidoro reconheceria a escolha do monarca através da Gratia Dei.”20. Nesse sentido, a graça divina fazia do rei um indivíduo sagrado,21, alguém cuja integridade não poderia sofrer nenhuma forma de violação por se tratar de um rex imago dei22, ou seja, um rei a imagem de Deus. Dessa forma, “Era necessário respeitar a organização da sociedade pretendida por Deus e essa organização estava de acordo com o princípio da hierarquia.”23 As bases da concepção de realeza na Idade Média foram extraídas do cristianismo, sendo a bíblia é o material ideológico da Idade Média, uma vez que “Os reis da história medieval são cópias dos reis do Antigo Testamento.”24. Além da figura do rei na Monarquia visigótica, outro grupo que possuiu relevância na conjuntura política foram os sacerdotes da Igreja. Os bispos católicos gozavam de amplo poder político no cenário hispano-visigodo, haja vista que muitos membros da instituição religiosa faziam parte das aristocracias locais. Santiago Castellanos salientou que a influência dos clérigos remonta aos séculos IV e V, momento em que esses religiosos possuíam em suas regiões prestígio, poder político, econômico e administrativo.25 Dessa forma, as autoridades religiosas no reino visigodo se tornam objeto de estudo à medida que sua influência nos rumos da política pôde ser observada durante todo o período visigótico. 18 Ibid., p. 151. 19 Ibid., p. 152. 20 ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Imagem e Reflexo: Religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (Séculos VI e VII). São Paulo: Edusp, 2012, p. 25. 21 SCHMITT, Jean Claude. Deus. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (org.). Dicionário analítico do Ocidente Medieval. São Paulo: Editora Unesp, 2017. v. 2, p. 341. 22 LE GOFF, Jacques. Rei. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (org.). Dicionário analítico do Ocidente Medieval. São Paulo: Editora Unesp, 2017. v. 2, p. 442. 23 LE GOFF, Jacques. O Homem Medieval. Lisboa, Presença, 1989, p. 29. 24 LE GOFF, Jacques, op. cit., 2017, p. 442. 25 CASTELLANOS, Santiago. Los godos y la Cruz. Madrid: Alianza, 2007, p. 122. 16 Exemplos célebres dessa afirmação foram os irmãos Leandro e Isidoro de Sevilha, que tiveram um papel político ativo em seus determinados contextos, sendo Leandro de Sevilha fundamental na consolidação do catolicismo como religião oficial entre os godos, enquanto que Isidoro, seu irmão mais novo, figurou como um notório prelado do século VII, tendo lançado as bases da doutrina política no interior do reino. Como esclareceu Everton Grein a respeito de Isidoro: “Sua reflexão política partiu dos próprios Concílios de Toledo- fundamentalmente do IV Concílio de Toledo presidido por ele mesmo no ano de 633- onde se projetaram as bases de uma forte e complexa teoria política.”26. As concepções de realeza e legitimidade na obra de Isidoro podem ser vislumbradas em seus escritos anteriores ao IV Concílio, em que o bispo começou a delinear as bases do que se tornou a teoria política da Hispania visigoda do século VII. Em suas Sentenças e Etimologias, o pesquisador pode encontrar elementos que inspiraram o discurso visualizado nas atas conciliares presididas pelo hispalense. Sua proximidade com a Monarquia também pode ser constatada desde a época de seu irmão, Leandro, bispo sevilhano que presidiu o III Concílio de Toledo, reunião que oficializou o catolicismo niceno como religião goda. Isidoro, como bispo, foi contemporâneo dos reinados de Recaredo a Sisenando “[...] o que lhe vale um largo conhecimento acerca da realeza, seus erros e acertos.”27. Dessa maneira, a pesquisa analisou como Sisenando conseguiu usurpar o trono e ainda ser legitimado pela instituição religiosa, bem como o papel que tiveram nessa conjuntura os clérigos e, particularmente, Isidoro de Sevilha. Teria se efetivado a construção da imagem do monarca ungido após o IV Concílio de Toledo? Era possível justificar uma usurpação? Como se deu a justificação de Sisenando? Quais foram os mecanismos para tal empreitada? Essas são algumas das questões que essa investigação pretendeu responder. Procedimentos Teórico-Metodológicos Em relação aos aspectos teóricos, essa pesquisa teve como orientação a Nova História Política nos termos propostos pelo historiador Jacques Julliard ao apontar que “A história política, como a sociologia política, tem necessidade de uma problemática: de uma maneira cada vez mais sistemática, a história política de amanhã será o estudo do poder e de sua 26 GREIN, Everton. De Leandro de Sevilha a Taio de Zaragoza: um estudo sobre a praxiologia política no Reino Visigodo de Toledo (séculos VI-VII). Curitiba: Editora CRV, 2019, p. 94. 27 Ibid., p. 95. 17 repartição.”28. Nesse sentido, o historiador do político tem como elemento basilar em sua investigação a questão do poder, sua natureza e seus modos de repartição. Possuindo um caráter imperativo, o poder pode ser exercido através do medo e da força. De acordo com o florentino Nicolau Maquiavel “Convém, pois, providenciar para que, quando não acreditarem mais, se possa fazê-los crer à força.”29 Dessa forma, o poder político, embora uma construção abstrata, “[...] é também a coisa mais concreta com que todos se deparam na vida, algo que interfere na sua atividade profissional ou se imiscui na sua vida privada.”30 Assim, conforme salientou Roberto Machado, “Rigorosamente falando, o poder não existe; existem práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona.”31. Em relação aos acontecimentos políticos, acreditamos que o imaginário32 desempenha uma função relevante em sua constituição, haja vista que os fatos são gestados com base na concepção que se tem da realidade vivida. Dessa maneira, o estudo desses determinados eventos são, em certa medida, a busca por se aproximar do imaginário que ajudou a construir essas conjunturas. O estudo do político só torna-se exequível à medida que o historiador lança-se na Longa duração33, ao abandonar o fôlego curto da história política tradicional “O historiador político era até aqui um corredor de 100 metros. Ser-lhe-á necessário agora treinar para 1500, talvez 28 JULLIARD, Jacques. A política. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (org.). História: novas abordagens. 4. ed. Tradução Henrique Mesquita. Rio de Janeiro: F. Alves, 1995, p. 190; PRATA, Rafael Costa. A Nova História Política e a Idade Média: diálogos, caminhos traçados e possibilidades de estudo da esfera do Poder. Em Tempo de Histórias, [S. l.], v. 1, n. 33, p. 76–89, 2019, p. 80. “Seguramente, a principal contribuição oferecida por essas áreas do conhecimento humano a chamada Nova História Política se realizou na transmissão de um novo conceito de poder, muito mais amplo e profundo do que a antiga noção operada. O poder deixa de ser visto como uma manifestação exclusiva e oriunda somente do Estado, para ser compreendido como uma parte dispersa, integrante e componente de todo o tecido social, rompendo-se assim definitivamente com uma antiga visão monolítica e estatal do poder. ” 29 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 4. ed. São Paulo: Edipro, 2015, p. 28. 30 RÉMOND, René. Do político. In: RÉMOND, René. (org.). Por uma história política. Tradução Dora Rocha. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 442: GOMES, Angela de Castro. História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas Reflexões. In: SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (Orgs.). Culturas Políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 30-1. “O conceito de política foi, portanto, ampliado, constituindo-se em instância autônoma e estratégica para a compreensão da realidade social, até porque a ideia é a de que as relações de poder são intrínsecas às relações sociais. [...] Quanto ao poder, inclusive o poder do Estado, não se trata mais de pensá- lo apenas como força, coerção ou manipulação, mas igualmente como legitimidade, adesão e negociação. ” 31 MACHADO, Roberto. Introdução. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 25. ed. São Paulo: Graal, 2012, p. 17; ANGELI, Douglas Souza; SIMÕES, Rodrigo Lemos. A Nova História Política e a questão das fontes históricas. Revista Cippus - UNILASALLE, Canoas, v.1, n.2, p. 112-129, 2012, p. 115. “[...] Foucault substitui a ideia de poder (“o Poder”) enquanto conjunto de instituições e aparelhos de Estado pelo conceito de relações de poder, dizendo que o poder está em toda a parte[...]. ” 32 FRANCO JÚNIOR, Hilário, op. cit., 2001, p. 183. “conjunto de imagens, verbais e visuais, que uma sociedade ou um segmento social constrói com o material cultural disponível para expressar sua psicologia coletiva. Logo, todo imaginário é histórico, coletivo, plural, simbólico e catártico. ” 33 BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 8. 18 para 5 mil metros.”34. Nesse sentido, o pesquisador além de se ater às mudanças, deve observar as permanências, procurando lançar luz sobre os eventos que continuam a ocorrer de maneira similar, buscando analisar os mecanismos que permitem sua longevidade. Por mais renovada que seja a história política, salientou Le Goff, a mesma “[...] não pode ter pretensões de autonomia. Na hora do pluridisciplinar, o enclausuramento no interior de uma única ciência é particularmente insustentável.”35. Assim, se faz necessário reivindicar a aproximação proposta pela École des Annales com as demais ciências sociais. Nessa pesquisa, os diálogos estabelecidos com a linguística foram essenciais para elaborar um procedimento metodológico capaz de lançar luz sobre as relações de poder no reino visigodo. Ao discorrer sobre os pressupostos metodológicos, faz-se necessário salientar que, de acordo com Michel de Certeau: Toda pesquisa historiográfica articula-se com um lugar de produção socioeconômico, político e cultural. [...] Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade. É em função desse lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam.36 Nesse sentido, a pesquisa volta-se à análise das atas conciliares toledanas produzidas no século VII, tendo como eixo central o IV Concílio de Toledo cujo exame pretendeu apreender as relações de poder entre Monarquia e Igreja, bem como os mecanismos utilizados para legitimar o usurpador Sisenando que contou com o aval da instituição religiosa. Dessa maneira, verifica-se que “As instituições políticas utilizam as instituições religiosas, infiltram nelas seus critérios, dominam-nas com sua proteção, destinam-nas aos seus objetivos.”37. Contudo, essa relação não é unilateral, pois a religião também se utilizou das entidades políticas com o objetivo de obter poder e privilégios. Assim, pode-se denominar essa relação como simbiótica, pois ambas se beneficiam dessa interação, porém, de formas distintas. Aline Coutrot destacou o fato de que a religião faz parte do tecido político e que “Historiadores e sociólogos estabeleceram correlações bastante estreitas entre prática religiosa e atitudes políticas.”38 Dessa maneira, o estudo das conexões entre ambas as entidades é fundamental para que o pesquisador compreenda as formas de organização de cada sociedade. 34 JULLIARD, op. cit., p. 186. 35 LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Editora Estampa, 1994, p. 367. 36 DE CERTEAU, Michel. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 47. 37 Ibid., p. 164. 38 COUTROT, Aline. Religião e política. In: RÉMOND, René. (org.). Por uma história política. Tradução Dora Rocha. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 336; CAPELATO, Maria Helena Rolim. História política. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 17, 1996, p. 163. Segundo Capelato, a renovação da História Política “[...] permite tecer as tramas mais complexas e nuançadas das lutas políticas. ” 19 Como os acontecimentos são gestados pelo imaginário, se faz relevante definir as funções do mesmo, tendo como referência os estudos de Bronislaw Baczko. Segundo o autor “[...] é, pois, uma peça efetiva e eficaz do dispositivo de controlo da vida colectiva e, em especial, do exercício da autoridade e do poder. Ao mesmo tempo, ele torna-se o lugar e o objecto dos conflitos sociais.”39. Dessa forma, o imaginário, em termos políticos, está intrinsecamente relacionado com a legitimidade do poder. Na perspectiva do historiador polonês, Os antropólogos e os sociólogos, os historiadores e os psicólogos começaram a reconhecer, senão a descobrir, as funções múltiplas e complexas que competem ao imaginário na vida colectiva e, em especial, no exercício do poder.40 Nesse sentido, a pesquisa teve como preocupação investigar os meios de legitimação do poder monárquico. Para isso, o imaginário social como aspecto do político foi relevante para compreendemos como aconteciam os processos de legalização do poder, justificação essa que perpassava pelos símbolos de autoridade, nesse caso, os cânones conciliares, a bíblia e a atuação dos clérigos influentes. Com relação aos bens simbólicos e seu controle, Baczko ressaltou que Os bens simbólicos, que qualquer sociedade fabrica, nada têm de irrisório e não existem, efectivamente, em quantidade ilimitada. Alguns deles são particularmente raros e preciosos. A prova disso é que constituem o objecto de lutas e conflitos encarniçados e que qualquer poder impõe uma hierarquia entre eles, procurando monopolizar certas categorias de símbolos e controlar as outras.41 Com base nessa afirmativa, notou-se que os bens simbólicos no interior de uma determinada sociedade são objetos de disputa, haja vista seu caráter limitado. No caso visigodo, verificou-se que a busca pelo poder fornecido pela Igreja fez-se imprescindível para monarcas cuja posição política encontrava-se fragilizada, como foi o caso de Sisenando. Além disso, Jacques Le Goff chamou-nos a atenção para o duplo caráter do cristianismo. Mais do que uma religião é também uma ideologia, servindo durante a época medieval para justificar determinados contextos.42 Nesse sentido, o conceito de ideologia foi imprescindível para compreender as relações entre Monarquia e Igreja durante a época medieval. Contudo, tal expressão possui variadas definições. Assim, optamos pela proposição de Georges Duby: “A ideologia, sabemo-lo bem, 39 BACZKO, Bronislaw. A imaginação social In: Leach, Edmund et Alii. Anthropos-Homem. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985, p. 310. 40 Ibid., p. 297. 41 Ibid., p. 299. 42 LE GOFF, Jacques, op. cit., 1994, p. 38. 20 não é reflexo do vivido, mas um projecto de agir sobre ele.”43. O historiador francês também salientou que esses sistemas de ideias são [...] utopias justificadoras, tranquilizadoras que são as ideologias, imagens ou antes conjuntos de imagens imbricadas, que não são um reflexo do corpo social, mas que, sobre ele projetadas, pretenderiam corrigir suas imperfeições, orientar a caminhada num determinado sentido, e que por isto estão ao mesmo tempo próximas e distantes da realidade sensível.44 Baseado nos estudos que relacionam os discursos e as ideologias, chegamos às proposições de Helena H. Nagamine Brandão, quem acentua que “O discurso é uma das instâncias em que a materialidade ideológica se concretiza, isto é, é um dos aspectos materiais da “existência material” das ideologias.”45 Segundo José D’Assunção Barros, os textos eram utilizados por alguns historiadores do século XIX com o objetivo de extrair “provas” ou “verdades”, não enxergando que tais documentos constituíam discursos. Nesse sentido, o autor evidenciou que as fontes textuais também devem ser analisadas na sua relação com outros escritos, além de atentar-se ao contexto em que foram produzidas.46 Desse modo, acreditamos que o aparato que melhor se adequou às nossas ambições foi a Análise do Discurso de matriz francesa, sendo um dos representantes Michel Foucault. O filósofo escreveu acerca da natureza do discurso e concluiu que [...] o discurso – como a psicanálise nos mostrou- não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto de desejo; e visto que – isto a história não cessa de nos ensinar- o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nós queremos apoderar.47 Dessa maneira, os discursos são sistemas de dominação cujos atores políticos têm por objetivo se apropriar com o intuito de buscar um possível resguardo e reconhecimento. Vale destacar que os emissores desse discurso são relevantes para que se possa aferir o nível de legitimidade dessa produção, já que “[...] a atribuição a um autor era, na Idade Média, indispensável, pois era um indicador de verdade.”48. Entendemos que os discursos produzidos pelo segmento eclesiástico na Hispania visigoda, independentemente de sua natureza, tiveram como objetivo normatizar um padrão de 43 DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982, p. 21. 44 DUBY, Georges. A História Continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Ed. UFRJ, 1993, p. 113. 45 BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. 2. ed. rev. Campinas: Editora Unicamp, 2004, p. 46. 46 BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p. 134-7. 47 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 24. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014, p. 10. 48 Ibid., p. 26. 21 comportamento no interior dessa sociedade, sendo a sacralização da pessoa do rei um elemento que deveria contribuir para o fim dos atentados contra a figura do monarca. Essas produções discursivas do segmento eclesiástico, como afirmou Leila Rodrigues da Silva são [...] resultado das reflexões e ações das autoridades eclesiásticas, composta de materiais como atas conciliares, sermões, cartas, obras moralizantes, regras monásticas e hagiografias, revelava nuanças do processo de afirmação da ideologia cristã nos reinos constituídos, ao que se vinculou a indicação de um conjunto de normas de comportamento às populações cristãs.49 Sendo assim, utilizou-se a referida metodologia na análise do IV Concílio de Toledo com o propósito de lançar luz sobre os mecanismos utilizados por Isidoro de Sevilha, então dirigente da reunião, para legitimar a usurpação de Sisenando, bem como desvalorizar o governante deposto, Suintila. Buscou-se também perceber as implicações desse concílio em períodos posteriores para que se pudesse aferir qual foi a capacidade de penetração desse discurso em momentos consecutivos a sua celebração. O estudo e análise dessa conjuntura só se tornou exequível à medida que utilizamos fontes complementares e bibliografia especializada. Pensando nisso, essa investigação teve como corpus documental epístolas, sermões, hagiografias, crônicas e documentos legislativos, além das obras de Isidoro de Sevilha que possibilitaram uma melhor compreensão do contexto estudado, assim como nos permitiu perscrutar os fundamentos do pensamento isidoriano. Estrutura da dissertação Em relação à estrutura do trabalho, o primeiro capítulo apresenta as transformações políticas que ocorreram no reino visigodo após a adesão ao catolicismo niceno. Dessa maneira, a primeira parte apresentou as relações entre Monarquia e Igreja e suas imbricações, tendo em vista que a instituição religiosa passou a ser o fundamento ideológico da monarquia goda. Com isso, traçamos as nuances dessa relação nos governos de Recaredo, primeiro monarca católico, até Sisenando, foco central de nossa investigação. Além disso, procurou-se evidenciar as permanências de práticas pagãs no interior do reino após a conversão oficial em 589, algo patente na legislação conciliar que procurou eliminar esses desvios. O segundo capítulo teve como objetivo escrutinar o Morbo Gothorum, costume godo de dar morte aos seus reis. Desse modo, o fenômeno visigodo foi analisado sob a ótica da longa 49 SILVA, Leila Rodrigues da. O discurso eclesiástico e a marginalidade: considerações sobre normas de conduta cristã nos Synonymorum libri duo e Sententiarum libri de Isidoro de Sevilha. OLIVEIRA, Terezinha; VISALI, Angelita (orgs.). Cultura e Educação: ética e ação política na Antiguidade e na Idade Média. Vitória da Conquista: EUSB, 2007, p. 312. 22 duração, haja vista que sua ocorrência pôde ser verificada desde os primórdios da história visigótica. A questão do caráter eletivo da Monarquia também foi foco de análise neste capítulo, complementando assim as questões relacionadas aos regicídios. Ainda nessa parte, esclarecemos que a ascensão a monarquia visigoda só era possível aos godos de origem, excluindo os hispano-romanos de tal posto. Contudo, procuramos evidenciar que o meio religioso foi uma via de acesso aos hispano- romanos para obter poder político, haja vista que as autoridades religiosas estavam pari passu com a aristocracia visigoda. Ao final do segundo capítulo, ressaltamos a relevância de Isidoro de Sevilha para o contexto analisado, pois o prelado teve participação especial na formulação de uma concepção de realeza no século VII. No último capítulo, apresentamos a Análise do Discurso como método de investigação, procurando definir melhor seus conceitos e formas de utilização. Ainda nessa parte, abordamos a justificação de Sisenando, buscando elucidar os mecanismos de legitimação empregados por Isidoro para legitimar Sisenando, ao passo que desqualificou Suintila. Por fim, procuramos fazer alguns apontamentos em relação a efetividade dessa construção discursiva sobre a figura do rei “ungido do Senhor” nos períodos posteriores ao governo de Sisenando. 23 CAPÍTULO I MONARQUIA E IGREJA NO REINO VISIGODO DE TOLEDO 24 1. A MONARQUIA NO REINO VISIGODO CATÓLICO DE TOLEDO: DE RECAREDO A SISENANDO O início do estabelecimento dos visigodos na parte ocidental do Império Romano, particularmente na Aquitânia II, ocorreu em princípios do século V. Desde a concessão do foedus50 em 416, por parte do Império em favor de Valia (415-418), os godos passaram a se organizar no interior da região gálica. Com o fim do reino de Tolosano em 507, os visigodos passaram a se estabelecer em território peninsular, local onde a Monarquia goda gozou de maior longevidade. Ao se estabelecerem em Hispania, os godos passaram por um período de instabilidade política, haja vista que os anos posteriores foram marcados por assassinatos e revoltas contra o poder monárquico. Somente no governo Leovigildo (569-586) os godos se organizaram de maneira a ter uma maior coesão. A historiadora Maria del Rosário Valverde Castro51 chamou atenção para o fato de que as fontes hispanas e francas, a partir de Leovigildo e Recaredo, abandonaram a antiga denominação de rex Gothorum para se referir ao monarca, por se tratar de uma designação étnica, não abarcando todos os povos residentes na península. A contar de Leovigildo, os documentos referem-se ao rei como rex Hispaniae, o que evidencia que os monarcas passaram a exercer domínio sobre todo o território e povos submetidos aos godos. Estabelecido em Toledo, capital e residência permanente do rei desde o século VI, Leovigildo controlou quase todo o território peninsular. Sucessor e promotor da conversão oficial ao catolicismo, Recaredo, consolidou o credo niceno no interior do reino gótico após longo embate contra as resistências arianas. Além disso, foi a partir desse reinado que as relações entre ambas as instituições se tornaram cada vez mais aparentes. Como observou Ruy Andrade Filho: “A partir da conversão de Recaredo, em fins do século VI, o catolicismo transformou-se no fundamento ideológico da sociedade do reino visigodo.”52. No plano político, Castellanos53 salientou o fato de que a família de Recaredo tinha origem na região da Gália Narbonense, área sob domínio godo, mas que era localizada em território gálico e que sempre gozou de ampla notoriedade no cenário político gótico. Contudo, tal distanciamento da aristocracia peninsular fez com que Leovigildo, na busca de ampliar sua base aliada, se casasse com Gosvinta, mulher do antigo governante Atanagildo (551-567) e 50 ORLANDIS, op. cit., p. 27. 51 VALVERDE CASTRO, María. Ideología, Simbolismo y ejercicio del poder real en la Monarquía visigoda: un proceso de cambio. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2000, p. 160. 52 ANDRADE FILHO, op. cit., p. 61. 53 CASTELLANOS, op. cit., 2007, p. 80 e 149. 25 personagem influente entre a aristocracia goda. Assim, o monarca e posteriormente seu filho Recaredo, por meio de uma aliança com a viúva, obtiveram apoio dessa outra parcela da nobreza, constituindo ampla influência e adquirindo governabilidade sobre o território peninsular. Além disso, o governo de Leovigildo destacou-se no âmbito militar por ampliar o reino com a guerra, relatou Isidoro de Sevilha.54 Foi durante o reinado do monarca que os Suevos foram anexados ao reino godo, dando fim à sua história enquanto reino independente da Galiza. Castellanos ainda atestou que Recaredo participou ativamente da política do reino desde 573, tendo obtido importantes vitórias militares ainda durante o governo de seu pai. Nesse sentido, o monarca pode ser enxergado como um continuador da política expansionista e belicosa de seu predecessor, algo que a Igreja esforçou-se em eclipsar ao valorizar apenas seu papel como promotor da conversão dos godos ao catolicismo.55 Isidoro de Sevilha destacou os êxitos militares de Recaredo56, quem escolheu o duque Cláudio para liderar a ofensiva contra os francos, inimigos endêmicos dos visigodos. As fontes francas também abordam a contenda. Gregório de Tours, em suas Historias57 atribuiu a vitória dos inimigos ao fato de os francos estarem desprevenidos, o que teria facilitado o êxito dos godos. Além dos conflitos militares com os francos de Gontrán, o soberano teve de lidar com resistências internas, sublevações que contaram com a participação dos setores eclesiásticos arianos, como os bispos Sunna, Segga, Uldila e setores da nobreza goda como Gosvinta e Witerico.58 Contudo, a questão fulcral no reinado de Recaredo foi o aspecto religioso. Convertido ao catolicismo no ano de 587 sob a influência do bispo sevilhano Leandro, o monarca enxergou no credo niceno o caminho para a unificação religiosa do reino. Leovigildo havia tentado tal manobra anos antes através do arianismo, mas sem êxito. Assim, no ano de 589, Recaredo convocou o III Concílio de Toledo com o propósito de estabelecer a religião católica como oficial, procurando findar os atritos religiosos no interior do reino. Vale ressaltar 54 Isid. Hist. Goth. 49. (Versão breve) “[...] Leovigildo, uma vez chegado ao reino de Espanha e Gália, considerando perigosa a ociosidade, decidiu alargar este reino com a guerra. ” 55 CASTELLANOS, op. cit., 2007, p. 107-139 passim. 56 Isid. Hist. Goth. 54. (Versão breve). “Ele também foi bastante ilustre e notável na glória da guerra. Ele conseguiu, com efeito, um triunfo glorioso sobre quase sessenta mil soldados francos, que estavam invadindo a Gália, enviando o duque Cláudio contra eles. ” 57 Hist. Franc. IX, 31. “E quando estes caíram sobre eles [os francos], eles os encontraram comendo e despreparados [...]”. 58 PRATA, Rafael Costa. In armorum artibus spectabiles satis sunt: Relações político-militares e poder monárquico na trajetória visigoda durante a Antiguidade Tardia (332-711). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2016, p. 352. 26 que a questão religiosa, anteriormente à conversão ao catolicismo, era enxergada como elemento diferenciador entre hispano-romanos e godos, afirmou Thompson.59 Logo após o falecimento de Recaredo em 601, Liuva II ascendeu ao trono visigodo. Em seu breve reinado à frente dos godos, o jovem filho do promotor da conversão oficial ao catolicismo pareceu ter sido bem-visto aos olhos do bispo Isidoro.60 Entretanto, o sevilhano pareceu querer destacar, na mesma passagem, o caráter não nobre da mãe de Liuva II como um fator que poderia ter contribuído para sua instabilidade enquanto monarca. Somado o caráter não nobre de sua mãe com a pouca experiência do jovem de aproximadamente 20 anos, Liuva II foi deposto no ano de 603 por uma revolta liderada por Witerico (603-610), membro da nobreza visigoda. Findou-se assim um período marcado por uma sucessão hereditária, haja vista que desde Liuva I, irmão de Leovigildo, o governo dos godos se encontrou sob domínio de uma única família. Tendo ascendido ao trono, Witerico foi descrito por Isidoro de Sevilha como um homem de armas. No entanto, como apontou o hispalense, o monarca não conheceu a vitória.61 Nesse sentido, a historiografia corrobora em apontar a afeição do monarca para a guerra, mas salienta que Witerico lutou frequentemente e energicamente contra os bizantinos, no sul do país, mas pessoalmente teve pouco êxito. Seus generais conseguiram reconquistar a insignificante cidade de Gisgonza (Sagontia) e capturar nela algumas tropas bizantinas.62 Dessa forma, como explicou García Moreno, Witerico teria apenas procurado conservar as conquistas adquiridas durante o reinado de Recaredo, principalmente na conturbada região da Septmania, sítio fronteiriço ao reino dos francos. O pesquisador espanhol ainda descreveu a política matrimonial intentada pelo monarca com a corte Burgúndia, procurando casar sua filha, Ermenberga, com Teodorico II de Borgonha.63 Porém, o projeto de casamento foi mal logrado, devido à influência de Brunequilda,64 que convencera Teodorico a não constituir alianças. 59 THOMPSON, op. cit., p. 144. 60 Isid. Hist. Goth. 57. (Versão breve). “[...] depois de Recaredo seu filho Liuva tomou o cetro do reino por dois anos, filho de mãe não nobre, mas certamente notável pela qualidade de suas virtudes. ” 61 Isid. Hist. Goth. 58. (Versão breve). “Ele era verdadeiramente um homem valente na arte das armas, mas não conheceu a vitória. ” 62 THOMPSON, op. cit., p. 209. 63 GARCÍA MORENO, op. cit., p. 144-5. 64 Filha de Atanagildo e Gosvinta, Brunequilda foi uma princesa visigoda cuja a relevância política se fez notar. Mãe de Ingundis, mulher de Hermenegildo, sua relação com a família de Recaredo era estreita, o que fazia de Witerico um personagem hostil dado o fato de que esse monarca participou do assassinato do filho de Recaredo, Liuva II. 27 No aspecto religioso, Witerico apareceu atrelado ao grupo ariano. Sua participação na conspiração dos resistentes arianos contra Recaredo pode ser verificada na Vida dos Santos Padres de Mérida.65 Contudo, os historiadores ainda se questionam sobre o caráter anticatólico de seu governo. Enquanto García Moreno66 afirmou a tentativa do soberano de retornar ao arianismo, Thompson,67 por sua vez, reiterou que as fontes não fornecem elementos que comprovem tal intento. Porém, o historiador britânico ressaltou que essa questão vem sendo revisitada pela historiografia, cuja aspiração é levantar hipóteses sobre Witerico ter colocado em prática tal objetivo, mas sem êxito. Isidoro de Sevilha, ao discorrer sobre a vida de Witerico, escreveu que este teria cometido muitas ações ilícitas na vida, além de ter vivido pela espada, motivo pelo qual morreu pela mesma.68 Pode-se verificar no discurso do bispo sevilhano uma alusão ao texto bíblico do evangelho de Mateus, em que Jesus ordenou a Pedro que baixasse sua espada, pois os que se usam da espada, também morreriam por ela.69 O hispalense também desenvolveu uma ideia semelhante em suas Etimologias acerca da ambiguidade do mal. Para o prelado “O mal que se faz é um pecado, mas o que sofre é um castigo.”70. Nesse sentido, os monarcas que tivessem semeado o mal de alguma maneira iriam recebê-lo como punição em momentos posteriores. Conforme relatou Isidoro, Witerico foi assassinado em 610 quando participava de um banquete, momento em que foi traído por seus próprios partidários. Gundemaro (610-612), ex- governador da província Narbonense, foi eleito soberano provavelmente com o apoio da aristocracia que traiu o rei anterior.71 No plano político, o novo monarca permaneceu em atrito levado adiante em duas frentes: com os francos da Gália e bizantinos ao sul da província Cartaginense, região que era controlada pelos imperiais desde seu estabelecimento no governo de Atanagildo. Em relação à política contrária à ocupação bizantina, é possível encontrar no sínodo produzido em 610 em Toledo, capital real, a preocupação com a indivisibilidade da província 65 VSPE, 5, XI, 9-10. “Então, em seguida, o governador Cláudio com uma grande multidão foi à casa do bispo ariano Sunna e da mesma forma soube desse bispo herege que ele não tinha opinião sobre essas coisas e o entregou ao santo bispo Masona para ser fortemente custodiado. E da mesma forma, ele colocou todos os seus cúmplices sob sua custódia, mas Witerico, que havia revelado os planos do infame, foi liberado. ” 66 GARCÍA MORENO, op. cit., p. 145. 67 THOMPSON, op. cit., p. 208. 68 Isid. Hist. Goth. 58. (Versão breve). 69 Mateus 26: 51-2. “E eis que um dos que estavam com Jesus, estendendo a mão, desembainhou a espada e, ferindo o servo do Sumo Sacerdote, decepou-lhe a orelha. Mas Jesus lhe disse: “Guarda tua espada no seu lugar, pois todos os que pegam a espada pela espada perecerão. ” 70 Isid. Etym. V, 27, 1. 71 THOMPSON, op. cit., p. 210. 28 Cartaginense, não reconhecendo a autoridade dos imperiais sob a região. Sendo assim, o sínodo esclareceu: E por se tratar de uma e mesma província, decretamos que assim como as províncias Bética, Lusitana ou Terraconense, e as demais que pertencem à jurisdição do nosso reino, segundo os antigos decretos dos Padres, sabe-se que cada uma tem o seu metropolitano, da mesma forma, a província cartaginesa se venerará a si mesma e ao único primado, que é apontado pela antiga autoridade conciliar, que terá a maior honra entre todos os bispos coprovinciais.72 Nesse sentido, os clérigos ressaltaram o caráter indivisível da província, assim como apontaram que o reino visigodo era governado pela mão de Deus.73 Desse modo, os religiosos visavam legitimar a autoridade monárquica e religiosa sobre todas as províncias de Hispania. Isidoro de Sevilha também firmou as atas do concílio, tendo salientado que em visita ao rei soube da reunião e teria se juntado aos religiosos. Contudo, García Moreno ressaltou a possibilidade de Isidoro ter redigido as atas dessa reunião.74 Em relação à Gália merovíngia, “[...] Gundemaro continuou com a política de amizade com Teudeberto de Austrasia e Clotário II de Neustria, assim como a hostilidade com Brunequilda e Teodorico II de Burgúndia.”75. O monarca também combateu os vascos, escreveu Isidoro. Entretanto, o soberano se destacou em relação ao governante anterior no aspecto religioso. O historiador inglês Roger Collins realçou a mudança ocorrida no sínodo de Toledo que “[...] fez com que a até então quase desconhecida igreja de Toledo se tornasse a sede do primado dos cartagineses, formalizando assim a estreita relação que se desenvolveria entre os bispos da capital e os reis a quem serviam.”.76 Vale ressaltar que essa celebração religiosa católica ocorrida em 610 foi a primeira que temos registro desde a época de Recaredo, o que corrobora com a ideia de que durante o reinado de Witerico o clero católico teve sua liberdade religiosa reduzida pelo monarca. Gundemaro faleceu de causas naturais em 612, e, após seu falecimento, a aristocracia elegeu Sisebuto (612-621) como o novo soberano dos godos. Como caracterizou Germano Miguel F. Esteves, “Diferentemente de seus predecessores, Sisebuto havia sido educado mais como romano que como godo. Falava e escrevia latim e tinha fama de bom católico, piedoso e 72 Toledo, 610, p. 405. Referenciamos essa reunião de maneira diferente, pois na tradução elaborada por J. Vives, o sínodo aparece entre o XII Concílio de Toledo. Dessa forma, optamos por colocar somente nesse sínodo o local, ano e página. 73 Toledo, 610, p. 406. “Nós, portanto, organizando tais coisas nas igrejas de Deus, cremos fielmente que nosso reino temporal é governado pela mão de Deus [...].” 74 GARCÍA MORENO, op. cit., p. 146. 75 Ibid., p. 146. 76 COLLINS, Roger. La España Visigoda 409-711. Barcelona: Crítica. 2005, p. 73. 29 também erudito.”77. O bispo hispalense teceu elogios ao monarca ao escrever que Sisebuto teria sido “[...] bastante instruído em conhecimentos literários.”78. Todavia, a menção mais contundente feita por Isidoro sobre o monarca refere-se ao aspecto religioso. Monarca reconhecidamente católico, Sisebuto destacou-se pelo caráter antijudaico de seu governo, tendo sido alvo de críticas pelas conversões forçosas ao catolicismo promovidas durante seu reinado. Embora Isidoro não tenha aprovado as atitudes do soberano em relação a sua política antijudaica, não sabemos se sua insatisfação foi expressa durante o ocorrido.79 O bispo sevilhano manteve relações próximas com Sisebuto, tendo o prelado dedicado a primeira redação de suas Etimologias ao governante. Seu escrito intitulado De natura rerum foi encomendado pelo monarca, algo que demonstra a íntima relação entre ambos. Além das conversões forçosas ao credo niceno, durante seu reinado o monarca promulgou leis restritivas contra a população judaica. No Liber Iudiciorum80, há normativas assegurando que nenhum cristão poderia estar sujeito a qualquer tipo de relação de dependência com os judeus, algo que ameaçava os interesses desse grupo. O pesquisador Sérgio Feldman, especialista na questão judaica no reino visigodo, afirmou que “Podemos perceber que o objetivo proposto por Sisebuto era o de acabar com o proselitismo judaico, defendendo, na sua função de rei cristão, a integridade e a unidade do reino, admitindo a inoperância da legislação restritiva anterior.”81 Ainda em relação às motivações religiosas, Germano Esteves apontou que “[...] o rei Sisebuto ao redigir a Vita Desiderii buscava alavancar ainda mais sua figura de bom monarca, piedoso, justo e cristão.”82 Tal hagiografia, analisou o autor, teve como um de seus objetivos propagar a imagem do soberano como um rei cristão cujas ações visavam proteger e expandir o credo niceno no interior do reino. Em relação à política exterior, Sisebuto organizou campanhas militares ao norte e sul da Hispania. Ao Norte “[...] os asturianos se rebelaram e foram esmagados por Requila, general 77 ESTEVES, Germano M. F. O Espelho de Sisebuto: Religiosidade e Monarquia na Vita Desiderii. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista. Assis, 2011, p. 34. 78 Isid. Hist. Goth. 60. (Versão breve). 79 COLLINS, op. cit., p. 86. 80 LV, XII, 2, 14. “Por esta razão, decretamos que por meio desta lei que deve ser válida para sempre e a deixamos instituída para tempos futuros, juntamente com todos os cargos do palácio, por esta sanção sagrada a nenhum hebreu é permitido, desde o primeiro ano de nosso feliz reinado que tenha sob seu patrocínio ou a seu serviço qualquer homem livre ou qualquer servo que seja cristão [...]. ” 81 FELDMAN, Sérgio Alberto. Perspectivas da unidade político-religiosa no reino hispano visigodo de Toledo: As obras de Isidoro de Sevilha e a questão judaica. Tese (Doutorado em História) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 2004, p. 91. 82 ESTEVES, op. cit., p. 147. 30 de Sisebuto. Os generais do rei, um dos quais era Suintila, dominaram também os rocones, refugiados em suas montanhas.”83 Ao Sul realizaram-se campanhas contra o poderio bizantino na península. “Duas sucessivas campanhas dirigidas pessoalmente por Sisebuto, mas em que o duque Suintila também interveio resultaram decisivas para o destino da província imperial na península [...].”84 Dessa forma, o reinado do monarca teve êxitos militares superiores ao seu predecessor, tendo conquistado grande parte do domínio imperial em território hispânico, chegando a quase concluir a expulsão dos bizantinos na península, algo que se efetivou sob a égide de Suintila (621-631). A conquista de grande parte do território bizantino na península pode ser explicada pela conjuntura oriental, cujos conflitos fizeram com que as tropas bizantinas precisassem concentrar forças no oriente, dando margem para possíveis perdas em territórios longínquos.85 Sisebuto faleceu em 621, porém, as causas de sua morte são dúbias. Outro óbito suspeito foi o de Recaredo II, filho do monarca cuja associação ao trono pode ter ocorrido pouco antes da morte do soberano.86 Seu reinado durou apenas dias, escreveu Isidoro. Quem assumiu a governança dos godos foi Suintila87, duque provincial e general do monarca anterior. Os dux provinciae eram responsáveis pelo exército e pela segurança do reino. Dessa forma, o posto de chefe militar legava ao indivíduo o controle bélico da região. Além disso, tais duques passaram a adquirir funções civis, permitindo com que exercessem ainda mais influência regional.88 No plano militar, os primeiros anos do monarca marcaram o apogeu do domínio godo sobre a península, tendo conquistado o último reduto imperial em Hispania. Isidoro de Sevilha salientou que este teria alcançado “[...] por seu feliz êxito a glória de um triunfo superior aos dos demais reis, já que foi o primeiro que obteve o poder monárquico sobre toda a Spania península, feito que não ocorreu com nenhum príncipe anterior.”89 García Moreno salientou que [...] o monarca visigodo soube aproveitar a melhor ocasião para desferir o golpe de misericórdia na experiência bizantina em Espanha[sic]: quando o imperador Heraclio se encontrava em um momento crucial de sua titânica luta contra os sassânidas Cosroes II e o Exarcado da Itália estava passando por enormes dificuldades frente as renascidas agressões lombardas, enquanto na África a duras penas podia conter a progressão berbere cada vez mais perigosa.90 83 THOMPSON, op. cit. p. 213. 84 ORLANDIS, op. cit., p. 106. 85 GARCÍA MORENO, op. cit., p. 148-9. 86 Ibid., p. 153. 87GARCÍA MORENO, Luis. A. Prosopografía del Reino Visigodo de Toledo. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1974, p. 76. 88 GARCÍA MORENO, Luis A., op. cit., 1989, p. 333. 89 Isid. Hist. Goth. 62. (Versão longa). 90 GARCÍA MORENO, Luis A., op. cit., 1989, p. 154. Divergimos dos autores que utilizam a palavra “Espanha” para referir-se à região da Península Ibérica no período visigótico, pois, conforme esclareceu Santiago Castellanos tal intento de estabelecer uma continuidade entre a época visigoda e a Espanha atual foi fruto do nacionalismo 31 Nesse sentido, Suintila teria apenas finalizado as conquistas iniciadas durante o governo do monarca anterior, tendo aproveitado a fragilidade do governo bizantino. Entretanto, a metade final de seu reinado é o período que desperta maior espanto. Mesmo com os êxitos militares, Suintila acabou por ser destronado em 631. Embora as motivações sejam nebulosas, García Moreno91 ressaltou que o fato de o governante ter associado seu filho, Recimero, ao trono poderia ter desagradado a nobreza visigoda, algo semelhante ao que teria acontecido anos antes com Sisebuto. Contudo, somente a associação ao trono não explicaria tal conjura. Suintila foi considerado por Isidoro de Sevilha como um bom rei. Em sua Historia, escrita durante o governo do monarca, o prelado teceu elogios ao soberano. Como demonstrou a historiadora Pâmela Michelette: Percebemos que uma personalidade tocou Isidoro, o rei Suintila. Para este governante, o sevilhano não poupou elogios possuindo, aos olhos do prelado, tantas qualidades que se somarmos foram mais em quantidade que as elencadas a qualquer outro rei.92 O bispo sevilhano também ressaltou o caráter militar de Suintila como algo positivo, diferentemente do que fizera com Leovigildo. Ademais, o fato de o soberano ter expulsado os bizantinos da província cartaginense contribuiu para a criação de uma boa imagem do monarca junto à Isidoro.93 Quanto ao filho de Suintila, Recimero, o bispo hispalense foi simpático à sua associação ao trono. Isidoro escreveu que O filho de Suintila, Recimero, associado por ele ao trono, compartilha da alegria desse mesmo trono. Em sua infância ressalta de tal maneira o brilho de sua índole sagrada, que se prefigura nele, em suas qualidades e em seu rosto, o retrato das virtudes paternas. Por ele se há de interceder prante aquele que rege o céu e o gênero humano para que, do mesmo modo que agora está associado ao trono pátrio, assim também depois de um longo mandato de seu pai seja digno da sucessão ao reino.94 Contudo, se faz necessário ponderar que tais escritos, pela própria natureza da obra e por serem redigidos ainda sob o reinado de Suintila, possuem um caráter laudatório marcante, o que não quer dizer que tais impressões não refletissem a verdadeira opinião do prelado sobre o monarca. Isidoro ainda descreveu algumas das qualidades do rei: exacerbado do regime totalitário franquista do século XX. Ver: CASTELLANOS, Santiago., op. cit., 2007, p. 351- 352. Dessa maneira, utilizamos a expressão Hispania ou Spania para denominar a antiga província romana que passou ao domínio godo. 91 Ibid., p. 155. 92 MICHELETTE, Pâmela Torres. A concepção de Realeza Católica Visigoda e as ideias políticas de Isidoro de Sevilha. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2012, p. 142. 93 Se faz necessário ressaltar que a família de Isidoro de Sevilha, originalmente da província cartaginense, teria migrado para a Bética na intenção de fugir do jugo bizantino sobre a localidade. Nesse sentido, o bispo hispalense não enxergava com bons olhos a fixação dos bizantinos em território peninsular. 94 Isid. Hist. Goth. 65. (Versão longa). 32 Além desses motivos de louvor à glória militar de Suintila, teria este rei muitas virtudes próprias da majestade real: fidelidade, prudência, habilidade, exame extremado dos juízos, atenção primordial ao governo do reino, munificência para com todos, generosidade para com os pobres e necessitados, pronta disposição para o perdão; tanto, que mereceu ser chamado não só príncipe dos povos, senão também pai dos pobres.95 Todavia, a caracterização de Suintila pelo prelado pareceu sofrer uma profunda alteração no IV Concílio de Toledo, reunião convocada pelo usurpador Sisenando. O monarca teria usurpado o poder em 631, sendo a reunião conciliar celebrada somente dois anos depois. De acordo com Abilio Barbero de Aguilera [...] se Sisenando conseguiu vencer Suintila e foi elevado ao reino pelos godos no ano de 631, não parece que sua completa legitimação ocorrera até dois anos depois, em 633, durante o IV Concílio de Toledo, e em circunstâncias que podemos qualificar como extraordinárias.96 Vale ressaltar o hiato entre a ocupação do posto de rei dos godos por Sisenando e a celebração da reunião em 633. As fontes conciliares também informam sobre Geila, irmão de Suintila que teria passado ao lado dos conjurados, traindo seu irmão e rei. O concílio deliberou que Do mesmo modo, igual aos anteriores, temos por bem separar do seio do povo e da nossa comunhão juntamente com sua esposa a Geila, irmão do referido Suintila, tanto pelo sangue quanto por seus crimes, o qual nem sequer foi fiel ao laço fraternal, nem conservou a fidelidade prometida ao gloriosíssimo nosso senhor, e não poderão ser- lhes restituídos os bens que perderam, e que haviam adquirido iniquamente, excetuando aqueles que alcançarem pela piedade do nosso clementíssimo príncipe, a graça do qual enriquece com prêmios e presentes aos bons e não exclui os maus de sua beneficência.97 O pesquisador Renan Frighetto, ao analisar a alteração de sentido no emprego da palavra barbárie/bárbaro no reino visigodo do século VII apontou que “[...] foi exatamente no cânone 75 do IV Concílio de Toledo de 633, presidido pelo hispalense, que o pensamento isidoriano vinculou a ideia de tirania como sinônimo de barbárie.”98 Nesse sentido, o indivíduo que atentava contra o governante gerava a instabilidade do reino, incorrendo no crime de infidelitas.99 Além do caso de Geila, relatado no IV Concílio, as fontes numismáticas informam acerca de Iudila, que teria controlado a região sudoeste da península entre 631-33. De acordo 95 Isid. Hist. Goth. 64. (Versão longa). 96 BARBERO DE AGUILERA, A. La sociedad visigoda y su entorno histórico. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 1992, p. 24. 97 4 Toledo, 75. 98 FRIGHETTO, R. Infidelidade e barbárie na Hispania visigoda. Gerión, v.20, n.1, (2002) p. 503-4. 99 Ibid., p. 502. 33 com Everton Grein, não há nenhum registro de uma tomada de poder por Iudila. “É provável que ele fosse um nobre do sul partidário de Suintila, que após a deposição deste por Sisenando se declara rei no sul Peninsular por volta de 631.”100 Apenas duas moedas cunhadas sob o governo de Iudila foram encontradas, sendo uma na região de Ilíberis e a segunda em Mérida.101 De acordo com Thompson, o concílio toledano ocorreria em 632. Porém, a rebelião de Iudila teria adiado a celebração religiosa.102 O atraso na reunião conciliar também pode ser verificado através das cartas trocadas entre Bráulio de Saragoça e Isidoro de Sevilha. Em resposta a Bráulio acerca da versão das Etimologias, obra prometida ao prelado, o hispalense salientou ter recebido sua carta em Toledo, viagem motivada pela celebração do concílio, evento que foi postergado por ordem de Sisenando, quem aconselhou Isidoro a retornar para Sevilha.103 Com base na epístola, nota-se que Sisenando ainda não possuía amplo domínio do território godo, adiando, assim, sua legitimação através do concílio. Em carta de 632 endereçada a Florídio, Bráulio mencionou estar inquieto em meio a conjuntura, além de relatar que suas ocupações estavam absorvendo seu tempo, razão pela qual demorou a escrever. Na mesma correspondência, Bráulio expressou que o contexto político não parecia ser favorável a opiniões contrárias, descrevendo que lhe era conveniente se calar ao invés de falar.104 Controladas as revoltas, Sisenando (631-636) passou a dirigir todas as regiões sob domínio dos godos. De acordo com a Crônica atribuída a Fredegário, Sisenando aproveitou o descontentamento da nobreza com o governante, pois “Suintila era muito duro com seus seguidores e era odiado por todos[sic] os magnatas de seu reino.”105. Contudo, as informações contidas na crônica possuem algumas inconsistências, uma vez que a fonte de origem franca foi redigida em períodos posteriores ao ocorrido e por alguém cujo conhecimento sobre o sucedido advém de relatos, não tendo participado ou presenciado a 100 GREIN, Everton. De Confugientibus ad Hostes: um estudo sobre a infidelidade, usurpação e tirania na Hispânia Visigoda (século VII). Dissertação (Mestrado em História) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 2009, p. 160-1. 101 PLIEGO VÁZQUEZ, Ruth. La Moneda Visigoda. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2009, p. 121 e 124. 102 THOMPSON, op. cit., p. 230. Corrobora com a análise de Thompson a especialista em numismática. Vide: PLIEGO VÁZQUEZ, op. cit., p. 229. 103 Braul. Epi. 6. “A carta de tua santidade recebi na cidade de Toledo. Me coloquei a caminho pela razão do concílio embora uma ordem do príncipe me aconselhava a voltar, quando já estava a caminho, preferi, porém, já que estava mais perto de Toledo do que de Sevilha, não interromper minha viagem. ” 104 Braul. Epi. 12. “Querido filho, confesso honestamente que recebi sua carta, quando cuidados perturbadores e muitas ocupações me absorviam [...] Chegaram tempos muito difíceis em que é melhor para mim ficar calado do que falar [...].” 105 Fred. Chron. IV, 73. 34 conjuntura visigoda. Nesse sentido, se faz necessário ponderar as informações, bem como confrontá-las com a historiografia. Líder de uma revolta na região norte da Península Ibérica, as informações sobre Sisenando são escassas. Isso acontece devido à lacuna documental que abarca o governo do monarca. No momento em que Isidoro já terminara sua Historia dos Godos, as informações sobre o soberano advêm majoritariamente das atas conciliares e da crônica fredegária franca. Em relação a Sisenando e suas relações familiares, Mário Jorge da Motta Bastos considerou que o soberano teria sido duque da Septmania, procedendo de uma parentela abastada de origem goda e possuindo três membros de sua família vinculados ao clero. Sclua e Pedro foram, respectivamente, bispos de Narbona e Béziers, além de Frutuoso de Braga cujo pai havia sido duque provincial na região da Gallaecia. 106 De acordo com o pesquisador, o monarca teria advindo da mesma região que a família de Recaredo, corroborando assim para a afirmativa de que a região possuía relevância política no cenário visigótico. Os dois membros supracitados estiveram presentes na celebração do IV Concílio de Toledo, tendo ambos assinado as atas da reunião. García Moreno explicou que ambos os parentes de Sisenando teriam se tornado bispos muito antes do concílio, o que elimina a possibilidade de os mesmos terem adquirido tal posição sob a égide do monarca.107 Contudo, isso não significou que a relação de parentesco e a região de origem deles não tenha sido um fator de apoio ao governante. Segundo Ronaldo Amaral, para a nobreza visigoda, possuir um cargo episcopal significava a ampliação de sua influência política e social, pois os prelados exerciam grande autoridade nas questões relativas ao reino. Assim, ao assumir tal posto, especialmente se fosse em alguma diocese relevante ao contexto geral, proporcionava ao indivíduo a possibilidade de alargar sua zona de ingerência, além de estar apto a participar da eleição régia.108 Sisenando se utilizou do IV Concílio de Toledo como um instrumento de legitimação de seu governo, período que se estendeu até 636, ano de sua morte. Os mecanismos utilizados para sua legitimação foram analisados nesse trabalho. 106 BASTOS, Mário Jorge da M. Religião e hegemonia aristocrática na Península Ibérica (séculos IV-VIII). Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo. 2002, p. 109. 107 GARCÍA MORENO, Luis A., op. cit., 1974, p. 188 e 191. 108 AMARAL, Ronaldo. A santidade habita o deserto: A hagiografia à luz do imaginário social. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 277. 35 2. A IGREJA CATÓLICA VISIGODA: DE RECAREDO A SISENANDO Anteriormente ao reinado de Recaredo, Leovigildo procurou resolver a divergência religiosa presente em Hispania através do arianismo, que “[...] pertencia a Gothia, e o catolicismo a Romania [...].”109. Nesse sentido, ainda enxergando a vertente ariana como a única religião goda, o monarca procurou solucionar o embate por meio desta crença. Contudo, o soberano deparou-se com resistências católicas ao seu projeto religioso, objeções advindas também de visigodos católicos. Esses godos, pelo fato de ocuparem posições destacadas no clero e por conta de sua origem étnica, tornaram-se alvos de Leovigildo que procurou convertê-los ao arianismo com o objetivo de contar com a influência que tais prelados possuíam. Por volta do ano 580, Leovigildo procurou atrair clérigos católicos por meio de uma celebração conciliar ariana, mas teve pouco êxito. Segundo Teodoro G. González, o governante “Obteve um relativo sucesso, já que alguns católicos, incluindo o bispo de Saragoça, Vicente, se converteram ao arianismo.”110. No entanto, o autor apontou que Leovigildo fracassou em trazer para seu lado os bispos mais proeminentes do reino visigodo no período: Masona e Leandro.111 Em relação ao primeiro, o hagiógrafo da Vida de los Santos Padres de Mérida nos informou que o rei constantemente tentava coagir Masona, godo e notável prelado na região de Mérida, a abandonar o credo niceno e passar ao lado ariano, se unindo ao soberano.112 A fonte também mencionou a nomeação de Sunna, bispo ariano que foi designado por Leovigildo para ocupar o posto de Masona em Mérida. Ademais, o soberano transferiu o controle de algumas basílicas católicas ao domínio do bispo ariano, assim como os privilégios que as igrejas possuíam.113 Entretanto, o monarca não 109 KING, Peter D. Derecho y sociedad en el reino visigodo. Madrid: Alianza Editorial, 1981, p. 24. 110 GARCIA GONZÁLEZ, Teodoro. Desde la conversión de Recaredo hasta la invasión árabe. In: Historia de La Iglesia em España: La Iglesia em la España Visigoda (Siglos I-VIII). VILLOSLADA, R. García (Dir). Madrid. Biblioteca de Autores Cristianos, 1979, p. 402. 111 Ibid., p. 402. 112 VSPE, 5, IV, 2-3. “Consequentemente, aconteceu que essa fama, por meio de boatos, chegou aos ouvidos do muito implacável e muito cruel Leovigildo, rei dos visigodos, e que o monstruoso dragão de sua inveja, sempre ciumento de boas ações, incitado por picadas afiadas, como uma víbora o veneno mordeu a alma deste príncipe e a poção venenosa penetrou em suas entranhas. Armado assim pelo conselho diabólico, devido ao gole da bebida letal, com o aguilhão da inveja, ordenou ao supracitado homem santo [Masona], por meio de legados que iam e vinham repetidamente, que, abandonando sua fé católica, convertido à heresia ariana junto com todas as pessoas unidas a ele. ” 113 VSPE, 5, V, 2-4. “Assim, um pernicioso defensor da depravação da heresia ariana, cujo nome era Sunna, ele estabeleceu como bispo da facção ariana na mesma cidade com a intenção tanto de incitar uma sedição amarga quanto de perturbar o santíssimo homem [Masona] e todas as pessoas; um homem, em suma, um defensor do dogma perverso, um homem medonho de aparência muito repugnante, carranca, olhos atrozes, olhar odioso e 36 obteve êxito em recrutar Masona, exilando o bispo católico em virtude da sua recusa em passar para o clero ariano. No caso do bispo sevilhano hispano-romano, Leandro, a situação fora diferente. O hispalense possuía amplo prestígio na região da Bética, sítio que estava sob controle de Hermenegildo, filho de Leovigildo, que participava do governo como consorte regni. Foi durante esse período que Hermenegildo teria aderido ao credo niceno influenciado pelo bispo e por sua esposa, a princesa Ingundis.114 Ao se rebelar contra Leovigildo, acontecimento denominado por João de Bíclaro como domestica rixa115, o príncipe tentou separar-se do governo de seu pai, mas não foi bem sucedido. Isidoro de Sevilha116 comentou o embate entre pai e filho, porém, não relatou a participação de seu irmão no ocorrido. O partidário de Hermenegildo, Leandro, influenciou também a conversão de Recaredo ao credo niceno. Nesse sentido, “Leandro de Sevilha deve ser apontado não apenas como o artífice e articulador de todo o processo de conversão do Reino Visigodo, mas também como o grande promotor da cristandade hispânica.”117. Após a morte de Leovigildo, Recaredo foi quem assumiu o governo dos godos. Ainda ariano, o monarca se converteu ao catolicismo em 587. Todavia, a política religiosa só foi resolvida dois anos depois. Segundo Eleonora Dell’Elicine “A aliança recém-inaugurada garantiu a esta facção da Igreja o controle direto sobre os mecanismos de circulação não só de discursos, mas dos signos em geral.”118. Nesse sentido, explicitou Baczko que Exercer um poder simbólico não consiste meramente em acrescentar o ilusório a uma potência “real”, mas sim em duplicar e reforçar a dominação efetiva pela apropriação dos símbolos e garantir a obediência pela conjugação das relações de sentido e poderio.119 andar aterrador. [...] Este citado instigador da heresia, ao chegar à cidade de Mérida, usurpa, por ordem régia, algumas basílicas com todos os seus privilégios [...].” 114 Filha de Sigeberto I e Brunequilda, Ingundis era uma princesa franca católica esposa de Hermenegildo e neta de Atanagildo e Gosvinta. 115 Bicl. Chron. 190. “Enquanto Leovigildo reina em paz tranquila, uma disputa familiar perturba a segurança dos adversários. Pois no mesmo ano seu filho Hermenegildo, assumindo a tirania por causa da facção da rainha Gosvinta, tendo se rebelado, trancou-se em Sevilha, e fez com que as outras cidades e castelos se rebelassem com ele contra seu pai. ” Vale ressaltar que o biclarense, de origem goda, também foi alvo de Leovigildo, sendo exilado em Barcelona por não aderir ao projeto ariano do monarca. 116 Isid. Hist. Goth. 49. (Versão breve). “Venceu seu filho Hermenegildo após submetê-lo a um cerco, o qual tentou usurpar o reino. ” 117 GREIN, Everton, op. cit., 2019, p. 83. 118 DELL’ELCINE, Eleonora. En el principio fue el Verbo: políticas del signo y estrategias del poder eclesiástico en el reino visigodo de Toledo (589-711). Tese (Doutorado em História) - Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires. Buenos Aires, 2007, p. 38-9. 119 BACZKO, op. cit., p. 298-9. 37 Com isso, a Igreja passou a ser o fundamento ideológico do reino, tendo contribuído para a sacralização da figura do monarca e atuando também como legitimadora da autoridade real. Por isso, “Quando a conversão aconteceu em 589, surgiu uma verdadeira societas fidelium Christi, um corpo unitário ligado por uma fé comum e regido por uma cabeça cuja autoridade vinha de Deus.”120. Desse modo, da mesma forma que a cabeça comanda o restante do corpo, o rei era o chefe e comandante da sociedade, tendo o aval divido para exercer essa tarefa.121 Sob a égide de Recaredo, os membros do clero conferiram ao monarca o título de conquistador de novos povos para a Igreja católica, atribuindo ao soberano um caráter evangelístico.122 O gentílico Flavius também apareceu nas atas conciliares a frente do nome de Recaredo, expressão outrora utilizada por imperadores desde o século I e, particularmente, por Constantino no século IV. Não sendo fruto do acaso, o termo que havia sido utilizado pelo imperador que primeiro aderiu ao cristianismo, foi também empregado pelo primeiro rei dos godos a estabelecer o credo niceno como religião oficial.123 Dessa maneira, verificou-se que a adesão oficial à nova fé conferiu ao poder monárquico elementos religiosos que autenticavam a figura do rei como instrumento da vontade de Deus. Sendo assim, os reis passaram a desfrutar dos concílios como forma de legislar, principalmente dos concílios gerais, reuniões em que as autoridades religiosas davam respaldo aos desígnios do rei.124 Contudo, as relações entre ambas as instituições não foram benéficas somente à monarquia, porque a Igreja experimentou profundas alterações na sua forma de participação na sociedade. Um dos exemplos dessa maior ingerência do clero nos assuntos civis foi a lei de Recaredo, que permitia a um bispo nomear o defensor civitatis.125 Com isso, nota-se que os prelados passaram a adquirir poderes exteriores à esfera religiosa. Ao adquirir autoridade no âmbito civil, os clérigos tinham em suas mãos uma arma que poderia frear os abusos de juízes 120 KING, op. cit., p. 155. O termo latino societas fidelium Christi é de Recesvinto e foi extraído da LV, XII, 2, 15. 121 LV, II, 1, 4. “Deus, criador das coisas, ao arranjar a forma do corpo humano, colocou apropriadamente a cabeça no topo e fez com que todas as fibras dos membros saíssem dela; E ordenou que se chamasse cabeça porque nela surgia a origem das outras partes, e nela formava a luz dos olhos, de onde podia ver todos os obstáculos que surgiam, nela também constituía o poder da inteligência, com cuja decisão poderia governar os membros que estão unidos e sujeitos a ele, e sua providência poderia ordená-los. ” 122 ORLANDIS, J. & D. RAMOS-LISSÓN, op. cit., p. 212. 123 CASTELLANOS, op. cit., 2007, p. 29. 124 GARCIA GONZÁLEZ, op. cit., p. 560. 125 LV, XII, 1, 2. “[…] e os defensores (deffensores) mudavam a cada ano, e é indiscutível que por essa causa houve uma perda para nossos povos, por isso mandamos que o cobrador (numerarius) e o defensor (defensor) que foram escolhidos pelos bispos ou pelos povos continuem a cumprir a obrigação (officium) que lhes foi confiada; de tal maneira que, quando for nomeado cobrador ou defensor, este não tenha que dar qualquer recompensa ao juiz, nem este tenha a intenção de receber ou exigir nada.” 38 e outros atrelados ao comando dos assuntos seculares. Recaredo ainda determinou no III Concílio que [...] os juízes dos distritos e os encarregados do patrimônio fiscal por mandado do gloriosíssimo nosso senhor, comparecerão também ao concílio dos bispos na época do outono no dia 1 de novembro, para que aprendam a tratar ao povo piedosa e justamente, sem cobrar deles com benefícios ou impostos supérfluos[...].126 Dessa forma, os religiosos eram o parâmetro de boa conduta no que se refere ao trato para com o povo. Assim, observou González que, por meio do concílio, Recaredo colocou os juízes e cobradores de impostos sob a autoridade do bispo.127 Outra área de atuação dos prelados, o IV Concílio esclareceu que “Muitas vezes os príncipes confiam seus assuntos aos bispos contra alguns réus de lesa majestade [...].”128. Nesse sentido, as autoridades religiosas também detinham o poder de julgar os criminosos que atentavam contra a figura régia, o que evidencia seu prestígio no cenário secular. Além da autoridade civil atribuída aos prelados, os bens da instituição religiosa sofreram incrementos consideráveis. A esse respeito, observou Esteves que É neste momento que nas cidades da península crescem consideravelmente as edificações de cunho religioso, em um processo de cristianização da topografia urbana, que se mostra como reflexo direto da liderança do bispo e da importância do clero em geral.129 Verificou-se então que as posses da instituição religiosa sofreram acréscimos após a conversão ao credo niceno, tendo absorvido para si todos os bens originários da Igreja ariana, como determinou o cânone ao estabelecer que “Por decreto deste concílio fica estabelecido que as igrejas que antes eram arianas e agora são católicas, pertencem com suas coisas ao bispo que corresponde ao território diocesano em que estão construídas.”130 Dessa forma, a Igreja se consolidou como uma grande detentora de bens no reino visigodo, a exemplo de diversos imóveis, terras e servos. Como demonstrou Orlandis, “Os servos representavam uma parcela muito considerável do conjunto da população na España visigoda.”131. Porém, sua heterogeneidade demanda do pesquisador que os casos sejam avaliados de maneira particular, tendo consciência das especificidades presentes no interior desse grupo. Em relação aos servos da Igreja, trabalhadores importantes na manutenção dos bens eclesiásticos, o III concílio determinou 126 3 Toledo, 18. 127 GARCIA GONZÁLEZ, op. cit., p. 521. 128 4 Toledo, 31. 129 ESTEVES, op. cit., p. 39. 130 3 Toledo, 9. 131 ORLANDIS, Jose. La Vida en España en Tiempo de los Godos. Madrid: Ediciones Rialp, 1991, 39. 39 Em relação aos libertos, os bispos de Deus ordenam o seguinte: que se os bispos os libertaram de acordo com o que é ordenado nos cânones antigos, eles deveriam ser livres; mas não se afaste do patrocínio da igreja, tanto eles como seus descendentes. Também aqueles que foram libertados por outros e confiados à igreja, são governados pelo patrocínio do bispo, e o bispo pede ao rei que não sejam cedidos a ninguém.132 Assim, os servos e seus descendentes mantinham-se vinculados à instituição religiosa sob o regime de patrocinium. Essa determinação foi reiterada em 633 com o IV concílio, cuja reunião deliberou que “Os libertos da igreja, porque seu patrão nunca morre, jamais vão se livrar de seu ‘patrocínio’, nem seus descendentes[...].”133. Com isso, a instituição conservava seus servos, pois os mesmos estariam sempre vinculados à Igreja por seu caráter inalienável. Dado o caráter intransferível dos bens da instituição religiosa, a preocupação por parte do clero foi de que tais riquezas não fossem dissipadas, pois como reiterou-se nas atas conciliares Este santo concílio não autoriza nenhum bispo a alienar coisas da igreja, porque isso é proibido nos cânones antigos; mas se eles derem algo que não prejudique gravemente os bens eclesiásticos em auxílio dos monges e igrejas pertencentes às suas dioceses, a doação é válida.134 Segundo Alvaro D’ors, tais determinações já eram empregadas no reino visigodo através de leis civis, pois Eurico (466-484) deliberou algo semelhante em relação aos bens eclesiásticos: “Se algum bispo ou padre quiser dispor das coisas da igreja sem o consentimento de todo o clero, ordenamos que isso não seja válido; A menos que cada clérigo dê seu consentimento, seja uma fazenda ou uma herança.”135. Dessa maneira, o ato de insistir nessa questão pode indicar um não cumprimento efetivo dessas proposições. O parágrafo segundo da mesma lei ainda atesta o direito dos filhos de clérigos sobre os bens de seus pais, mas, impõe algumas restrições. “Da mesma forma, os filhos do clero que possuem terras ou outra coisa por meio da liberalidade da igreja, se se tornaram seculares ou se retiraram do serviço religioso, o perdem[...].”136. Assim, a instituição religiosa sempre procurou não perder os bens adquiridos, procurando artifícios a todo momento para vinculá-los permanentemente ao patrimônio eclesiástico. Além disso, os religiosos não aprovavam ter os bens da instituição controlados por seculares, como informou o concílio sevilhano celebrado em 619 durante a época de Sisebuto: 132 3 Toledo, 6. O termo Obsequium também é recorrente na historiografia para denominar tal relação. 133 4 Toledo, 70. 134 3 Toledo, 3. 135 Cod. Eur. 306. 136 Cod. Eur. 306, parágrafo 2. O termo latino para tal direito é possesio. Vale destacar que essa lei se situa no período ariano visigodo, sendo o casamento ainda permitido a membros do clero, algo que teria se alterado após a adesão ao catolicismo. Vide: 3 Toledo, 5. 40 Na nona sessão, soubemos que alguns de nós, ao contrário do costume eclesiástico, designamo