0 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES DE SÃO PAULO Programa de Pós-Graduação em Música DÉBORAH WANDERLEY DOS SANTOS ABORDAGENS DE ENSINO DE VIOLINO: UM PANORAMA HISTÓRICO São Paulo 2019 DÉBORAH WANDERLEY DOS SANTOS ABORDAGENS DE ENSINO DE VIOLINO: UM PANORAMA HISTÓRICO Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Música. Área de concentração: Interpretação/Teoria e Composição. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Lobo Kubala São Paulo 2019 Ficha catalográfica Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP S237a Santos, Déborah Wanderley dos, 1985- Abordagens de ensino de violino : um panorama histórico / Déborah Wanderley dos Santos. - São Paulo, 2019. 97 f. : il. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Lobo Kubala Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Violino - Instrução e estudo. 2. Musica - Instrução e estudo. 3. Música - Execução. 4. Prática interpretativa (Música). I. Kubala, Ricardo Lobo. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 787.2 (Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666) DÉBORAH WANDERLEY DOS SANTOS ABORDAGENS DE ENSINO DE VIOLINO: UM PANORAMA HISTÓRICO Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Música. BANCA EXAMINADORA: __________________________ Prof. Dr. Ricardo Lobo Kubala UNESP - Orientador _____________________________ Prof. Dr. Emerson Luiz de Biaggi UNICAMP _______________________________ Prof. Dr. Esdras Rodrigues UNESP São Paulo, 29 de junho de 2018 AGRADECIMENTOS À minha querida mãe, que mesmo ante a todas as dificuldades que a vida lhe trouxe, batalhou tanto por minha educação. Ao meu saudoso pai, que partiu cedo, mas deixou de herança o gosto insaciável pelos livros e amor pela música. Às minhas amadas irmãs, com quem compartilhei as aventuras da infância e que até hoje me ensinam tanto através de seus exemplos. Ao meu brilhante orientador, Ricardo Kubala, pelos valiosos ensinamentos. À minha professora de violino, Patrícia Machado Mello, que foi como uma segunda mãe e me deu as bases da técnica, respeito e devoção ao violino. Ao meu professor Marcello Guerchfeld e à generosa família Capparelli Gerling que me permitiram alçar novos voos. Ao professor e mentor Richard Young, que me deu oportunidades que transformaram minha vida e minha música. À todos os professores e colegas da Escola de Música de Brasília, onde aprendi a sonhar e batalhar. A todos meus amadinhos alunos, que me fizeram reaprender, reconstruir, questionar, refletir, chorar, sorrir, crescer. Em especial as crianças do YOURS Project Chicago, que tanto me emocionam com seus exemplos de perseverança. Aos meus colegas da OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), com quem desfruto do imenso privilégio diário de submergir na música, e que me desafiam e inspiram na busca pelo aprimoramento. Em especial meu querido spalla, mentor e amigo, Emmanuele Baldini. “Mais poderoso é aquele que é senhor de si mesmo.” (Lucius Annaeus Seneca) RESUMO Este trabalho apresenta um panorama histórico do desenvolvimento dos meios de ensino de violino, buscando contextualizá-los historicamente e investigá-los por meio de abordagem de caráter interdisciplinar, que procurou suporte, entre outras áreas, na ciência da expertise. Dessa forma, objetivou-se contribuir para a discussão acerca de práticas de ensino atuais. No primeiro capítulo apresentamos metodologias de dois ospedali italianos – instituições precursoras ao conservatório onde ocorria a internação e educação da juventude em situação de vulnerabilidade social. No segundo capítulo, disserta-se sobre a ascensão da música instrumental nos séculos XVI e XVII, o surgimento de uma literatura voltada uma metodização progressiva do estudo do violino e o legado de mestres do Barroco como Arcangelo Corelli e Giuseppe Tartini. Discorre-se, então, sobre aspectos pedagógicos envolvidos no sistema mestre/aprendiz. No terceiro capítulo, investiga-se o advento do Conservatório de Paris e suas consequências para o ensino musical. O quarto e último capítulo tem enfoque na produção dos séculos XX e XXI, quando pedagogos como Leopold Auer, Otakar Sevcik, Carl Flesh, Ivan Galamian e Simon Fischer desenvolveram metodologias caracterizados por viés marcantemente analítico e cognitivista. Verificou-se, ao longo da história das práticas de ensino de violino, uma constante – e crescente – preocupação no que se relaciona à qualidade do estudo do instrumento. Concluiu-se que, independentemente da metodologia utilizada, práticas de ensino eficientes tendem a cultivar, no aluno, uma autonomia fundamentada na capacidade de auto melhoramento. O presente trabalho é voltado para instrumentistas e, de forma mais ampla, para todos aqueles que tenham interesse pela área de pedagogia da performance musical. Palavras-chave: História do ensino de violino. Performance de violino. Pedagogia da performance musical. Técnicas de ensino de violino. ABSTRACT This work presents a historic panorama of the development of the methods of violin study, seeking to contextualize them historically and research them through an approach of interdisciplinary character, which sought support, among other areas, in the science of expertise. Thus, the aim is to contribute to the discussion about current teaching practices. In the first chapter we present methodologies from two Italian ospedali – precursory institutions to the conservatory where the lodging and education of youth in situations of social vulnerability occurred. In the second chapter, we discuss the rise of instrumental music in the 16th and 17th centuries, the emergence of literature aimed at a progressive method of studying the violin and the legacy of Baroque masters such as Arcangelo Corelli and Giuseppe Tartini. We then discuss pedagogical aspects involved in the master/apprentice system. In the third chapter, we investigate the advent of the Paris Conservatory and its consequences for musical education. The fourth and final chapter focuses on 20th and 21st century production, when pedagogues such as Leopold Auer, Otakar Sevcik, Carl Flesh, Ivan Galamian, and Simon Fischer developed methodologies characterized by substantial analytical and cognitive perpectives. Throughout the history of violin teaching practices, there has been a constant – and growing – concern regarding the quality of the study of the instrument. It was concluded that, regardless of the methodology used, efficient teaching practices tend to cultivate, in the student, an autonomy based on the capacity for self- improvement. The present work is aimed at instrumentalists and, more broadly, for all those interested in the area of pedagogy of musical performance. Key-words: Violin teaching. Violin history. Violin performance. Violin practicing techniques. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10 1 O DESPERTAR DE UM INSTRUMENTO: O VIOLINISTA NA RENASCENÇA ITALIANA .............................................................................................................................. 16 1.1 OS OSPEDALI ITALIANOS DO SÉCULO XVI: A FORMAÇÃO MUSICAL COMO MEIO DE DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO E INTEGRAÇÃO SOCIAL ...... 17 1.1.1 As Escolas de Composição de Nápoles ......................................................................... 17 1.1.2 A formação das Instrumentistas de Veneza ................................................................ 18 1.1.3 O Ambiente Pedagógico dos Ospedali .......................................................................... 19 1.1.3.1 O “efeito protégé”: entendendo as transformações no aluno-instrutor. ....................... 20 2 A ASCENSÃO DO VIOLINO NO SÉCULO XVII E O INÍCIO DA METODIZAÇÃO DE ENSINO ............................................................................................................................ 24 2.1 "AYERS FOR THE VIOLIN”: O INÍCIO DA METODIZAÇÃO PROGRESSIVA DE VIOLINO .................................................................................................................................. 24 2.2 SÉCULO XVIII E A FORMAÇÃO DAS PRIMEIRAS ESCOLAS DE VIOLINO ......... 29 2.2.1 Arcangelo Corelli e a primeira grande escola de violino ........................................... 30 2.2.2 Giuseppe Tartini e a evolução das técnicas de arco ................................................... 32 2.2.3 Carta de Tartini à Maddaglena Lombardini: instruções para uma rotina diária de estudo. ...................................................................................................................................... 32 2.2.3.1 Elementos para organização de uma rotina de estudo eficiente ................................... 34 2.2.3.2 Técnicas de estudo delineadas na carta de Tartini. ....................................................... 37 2.2.3.2.1 Estudo intercalado ..................................................................................................... 37 2.2.3.2.2 Modelos Conceituais ................................................................................................. 37 2.2.3.2.3 Cultivo da Motivação ................................................................................................ 38 2.2.3.2.4 Segmentação .............................................................................................................. 39 2.2.3.2.5 Progressão nivelada ................................................................................................... 39 2.2.3.2.6 Variações: o gerenciamento da automatização .......................................................... 41 2.2.3.3 O Verdadeiro Estudo "Diligente" ................................................................................. 42 2.4 TRATADOS DO SÉCULO XVIII: O LEGADO DOS GRANDES MESTRES DE VIOLINO .................................................................................................................................. 42 2.4.1 O sistema mestre/aprendiz: aprimoramento mútuo .................................................. 45 2.4.2 A improvisação no ensino do violino ............................................................................ 46 3 SÉCULO XIX E O CONSERVATÓRIO DE PARIS: UMA REVOLUÇÃO NO ENSINO DE INSTRUMENTO ............................................................................................. 49 3.1 O PRIMEIRO MÉTODO DE VIOLINO DO CONSERVATÓRIO .................................. 49 3.1.1 Uma escola em comum, métodos de ensino individuais ............................................. 50 3.1.2 O paradoxo da cristalização do ensino ........................................................................ 53 4 BREVE PANORAMA DE METODOLOGIAS DA ERA POSTERIOR AO ADVENTO DO CONSERVATÓRIO .................................................................................. 58 4.1 SEVCIK E AS ESCOLAS ANALÍTICAS DE VIOLINO ................................................ 58 4.2 SÉCULO XX E O "VIOLINISTA PENSANTE”: ABORDAGENS COGNITIVISTAS DE ENSINO/APRENDIZAGEM DE VIOLINO ..................................................................... 61 4.2.1 Leopold Auer, Carl Flesch e uma discussão sobre talento ........................................ 65 4.2.2 Ivan Galamian: o constante engajamento cognitivo através das variações de arcadas, ritmos e dedilhados .................................................................................................. 70 4.2.3 Simon Fischer: a experimentação como base para a prática deliberada de violino 75 4.2.3.1 A aula da afinação ........................................................................................................ 78 4.2.3.2 Estruturando o estudo ................................................................................................... 80 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 84 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 88 APÊNDICE A - CARTA DE TARTINI À MAGDALENA. FONTE: STRAD, 1891 (GIUSEPPE TARTINI, 2015) ............................................................................................... 94   10 INTRODUÇÃO O desejo de contribuir com a questão da proficiência musical no ensino de violino foi o que me levou à elaboração dessa pesquisa. Em minha experiência como violinista, atuante nas áreas de performance e ensino, pude perceber e vivenciar marcantes dificuldades pedagógicas, oriundas das mais diversas abordagens de ensino-aprendizagem de instrumento (tanto tradicionais como experimentais; individuais ou coletivas). Em termos gerais, percebo a formação do violinista como extremamente dispendiosa, prolongada, árdua e, por vezes, inadequada, uma vez que uma quantidade significativa de alunos deixa instituições de ensino sem formação consolidada ou condizente com os esforços nela empregados. Por diversas vezes observei uma forte discordância entre expectativas de professores, administradores, familiares e alunos, o que, por sua vez, resultava em frustração e improdutividade. No decorrer de diversificadas atuações (consultoria, capacitação pedagógica, visitas, aulas e ensaios, entre outros) em variados programas de ensino (tanto projetos sociais quanto escolas de música e festivais) percebi que, em várias ocasiões, os alunos desenvolviam hábitos danosos relacionados à técnica instrumental, que poderiam acarretar múltiplos problemas, como estagnação de seu desenvolvimento, dores físicas, desmotivação, levando mesmo à desistência. Em outros casos, os jovens instrumentistas não tinham parâmetros para compreender o estágio de seu próprio desenvolvimento, o que resultava em planejamentos de curto, médio e longo prazo por vezes fantasiosos, irrealistas e contraproducentes. Por outro lado, observei que os programas com maiores exigências quanto à proficiência musical eram os que mais se dedicavam também a cultivar comportamentos, atitudes e habilidades (tanto da parte de alunos quanto de professores, familiares e administração) que capacitassem os alunos em aspectos que ultrapassam o âmbito específico das práticas musicais, como disciplina, resiliência, respeito às capacidades e dificuldades individuais e coletivas. Diante dessas constatações, pareceu-me importante entender de maneira mais aprofundada a trajetória histórica das abordagens de ensino do violino, para que, posteriormente, a partir de apreciação mais embasada, eu pudesse refletir sobre os elementos que possam propiciar uma jornada musical bem sucedida a longo prazo, e, ao mesmo tempo, estimular o desenvolvimento integralizado do aluno na condição de ser humano, cidadão e músico. Foi por meio de minha formação musical que encontrei ferramentas e inspiração para superar as dificuldades de minha infância e juventude, quando, por razões financeiras e familiares, poderia ser enquadrada em situação de vulnerabilidade social. Houvesse recebido 11 uma instrução insuficiente, não teria tido a capacitação necessária para ser contemplada com bolsas de estudo, participar de festivais e ingressar em orquestras –oportunidades e conquistas que foram vitais para o meu desenvolvimento pessoal e profissional. Foi por causa dessa experiência transformadora com o ensino-aprendizagem de violino que eu desenvolvi uma paixão pela pedagogia do instrumento, buscando, desde a adolescência, aperfeiçoar-me tanto no ensino como na performance. Apesar de ter lecionado em escolas de música que utilizam a aula individual como principal meio de instrução, adquiri preferência por projetos sociais que empregam, como base de sua filosofia de ensino, metodologias de ensino coletivo. Quando bem sucedidos, esses programas demonstram potencial educativo e transformador extraordinários, razão pela qual, após seguidas visitas à Venezuela para estudar o El Sistema (Sistema Nacional de Orquestras e Coros Infantis e Juvenis da Venezuela, Fundação Musical Simon Bolívar), fundei, seguindo seus moldes, um dos primeiros projetos sociais do tipo nos Estados Unidos. O YOURS Project Chicago1 (Youth Orchestras Urban Rita Simo) foi premiado por diversas instituições e alcançou reconhecida projeção no país, levando-me a participar no Conselho de Desenvolvimento do El Sistema nos Estados Unidos e a colaborações com instituições de atuação internacional, como a Organização dos Estados Americanos, em projetos similares. Os principais motivadores para a elaboração deste trabalho foram, assim, minha vivência com a música enquanto ferramenta de integração e projeção social, minha convicção de que todas as crianças e adolescentes têm direito à educação de melhor qualidade que lhes seja possível oferecer e o entendimento de que a busca pela qualidade musical tem pleno potencial para desenvolver habilidades comportamentais essenciais (como disciplina, resiliência, pensamento crítico e estratégico, autoconfiança, capacidade de autoavaliação, organização, gerenciamento e de trabalhar em equipe, entre outras), que promovem o êxito em qualquer área profissional. O fato de que muitas instituições e projetos de ensino musical não têm ambições profissionalizantes, não os exime de oferecer uma formação musical sólida, que possa impulsionar o crescimento técnico-artístico de seus alunos, permitindo, assim, que cada indivíduo tenha a possibilidade real de decidir entre uma carreira no universo musical ou de apoiar-se nesse crescimento para buscar o futuro que imagina para si. Acredito que, quanto mais elevado o nível técnico-artístico alcançado pelo aluno – contanto que seja mantido o ambiente saudável descrito acima –, maior será o impacto em sua vida presente e futura. Com base nas supracitadas dificuldades pedagógicas encontradas na formação do violinista, verifica-se a necessidade de uma reflexão sobre as abordagens de ensino atuais, 1 Atualmente denominado The People’s Music School Youth Orchestras. 12 embasada nas práticas históricas, sejam elas de natureza individual, coletiva, profissionalizante, socioeducadora e/ou recreativa. Surgiram, então, um conjunto de questões que impulsionaram a presente pesquisa, como: a) ao observar a trajetória da pedagogia do violino, como se deu a evolução dos meios de ensino desse instrumento? b) em quais contextos históricos e sociais surgiram as diferentes abordagens de ensino, e como elas foram influenciadas por tais contextos? c) o enfoque dado aos métodos mais tradicionais de violino é realmente vital para a formação do violinista contemporâneo, e estaríamos utilizando-os da forma mais eficiente? d) o que se pode encontrar na história da pedagogia do violino que contribuiria para embasar a elaboração de ferramentas contemporâneas de ensino mais eficientes? O objetivo central deste estudo não foi investigar detalhes técnicos de diferentes escolas, mas sim apresentar o desenvolvimento histórico das práticas de ensino do violino de forma mais contextualizada, indagando quem eram os alunos e professores, quais os objetivos de formação, quais as necessidades do mercado profissional da época, quais eram os aspectos estilísticos predominantes, e quais foram as abordagens de ensino dos grandes professores de então. Buscou-se entender como as diferentes formas de transmissão de conhecimento podem moldar a própria consciência que os alunos têm em relação a seu desenvolvimento enquanto instrumentistas, e como essa consciência leva a diferentes tipos de comportamentos, hábitos e atitudes que, por sua vez, resultam em distintos níveis de proficiência. Importante suporte foi encontrado, portanto, em textos complementares provenientes de disciplinas como Psicologia, Neurociência, Ciência da Expertise, entre outras. Eles ofereceram uma visão atualizada sobre assuntos que se manifestaram ao longo de centenas de anos de história do ensino do violino. Para guiar a elaboração da pesquisa, foram elencados os seguintes objetivos: a) traçar um panorama histórico, contextualizado e interdisciplinar, da evolução dos meios de ensino de violino, pontuando marcos relevantes de seu desenvolvimento; b) contextualizar historicamente e interdisciplinarmente as diferentes abordagens de ensino de violino; c) propor uma reflexão sobre a utilização atual de métodos e abordagens tradicionais; d) oferecer ferramentas aplicáveis ao cotidiano de instrumentistas atuantes em performance e/ou no ensino do violino; f) apontar práticas históricas de ensino que possam contribuir para embasar e/ou desenvolver abordagens atuais. A elaboração da dissertação partiu da hipótese de que, através de um panorama 13 histórico contextualizado e interdisciplinar sobre a trajetória das abordagens de ensino- aprendizagem de violino, podemos realizar uma reflexão revitalizadora sobre as práticas de ensino atuais. Após levantamento de bibliografia de caráter interdisciplinar, o trabalho foi desenvolvido da seguinte forma: a) elaboração do panorama histórico de práticas de ensino- aprendizagem de violino, pontuando marcos relevantes de seu desenvolvimento; b) contextualização das práticas de ensino-aprendizagem de acordo com seu período estilístico e histórico; c) contextualização interdisciplinar, traçando paralelo dos momentos históricos com pesquisas de aquisição e desenvolvimento de habilidades, entre outros. Durante o processo inicial de levantamento bibliográfico, deu-se prioridade aos próprios materiais relacionados ao ensino do violino, como métodos e tratados sobre técnica. Foi a partir desses documentos que verificamos a necessidade de incluir conteúdos de viés historiográfico, além de expandir o momento histórico a ser estudado, optando-se por abranger e incluir o momento anterior ao advento do conservatório. O que nos intrigou nos textos inicialmente selecionados, foi uma constante referência ao papel do treinamento da mente na formação do violinista. Porém, tendo sido escritos em um período que não dispunha de recursos científicos e acadêmicos para o entendimento mais aprofundado dos processos da aprendizagem, pouco era explicado sobre a tal função. Apesar de se tratar de assunto recorrente entre os mestres de violino, e ser considerada por eles como fator crucial para o desenvolvimento do aluno, os escritos sobre o papel de processos mentais se limitavam a poucas linhas, geralmente na introdução ou em prefácio de métodos. Ampliou-se, então, a pesquisa bibliográfica para a inclusão de matérial interdisciplinar, que foi de grande valia para contextualizar as diversas práticas citadas ao longo do trabalho. O primeiro capítulo foi resultado da busca por textos que elucidassem como era realizada a formação de violinistas na Itália durante o período do Renascimento, berço do instrumento como o conhecemos hoje. Apresentamos uma breve contextualização do surgimento do violino no século XVI e em seguida apresentamos práticas de ensino de dois ospedali (instituições precursores ao conservatório onde ocorria a internação e educação da juventude em situação de vulnerabilidade social). Detivemo-nos particularmente no sistema de ensino no qual alunos assumem responsabilidades como instrutores em sistematização hierárquica, o que impulsiona a transmissão de conhecimento em efeito cascata. O "efeito protégé", subproduto dessa prática, é exposto como poderosa ferramenta de ensino integralizadora de vários aspectos de desenvolvimento psicológico, cognitivo, emocional, de habilidades e de competências. Por oferecer tamanhas possibilidades transformadoras, foi 14 explicado detalhadamente com o auxílio de escritos recentes sobre o tema. No segundo capítulo, disserta-se sobre a ascensão da música instrumental e o surgimento de tratados mais consistentes, não mais direcionados para o mercado amador. A figura de Nicola Matteis foi dominante nas descrições referentes ao século XVII, uma vez que esse violinista criou o primeiro método de estudos progressivos e fez as primeiras sinalizações de preocupação com o aspecto concentração durante o estudo. A segunda parte do capítulo aborda acontecimentos do século XVIII. Arcangelo Corelli é apresentado como fundador da primeira grande escola de violino. Em uma época dominada pela ópera, o violino alcançou posição de destaque, sendo considerado o único instrumento com capacidade de aproximar-se da exuberante expressividade da voz. Paralelamente, a busca por altos níveis de proficiência técnica motivou uma corrida virtuosística que impulsionou o treinamento especializado, resultando no avanço das possibilidades técnicas e expressivas do instrumento. Giuseppe Tartini, representante dessa fase, foi o redator de uma carta instrucional que foi, neste estudo, posta em análise por meio de referências contemporâneas de técnicas de estudo. A terceira seção do capítulo, que apresenta os principais tratados do século XVIII, discorre sobre o sistema de ensino mestre/aprendiz e aponta as mudanças relacionadas ao ensino e prática da improvisação. No terceiro capítulo, apresentamos a fundação do Conservatório de Paris como advento revolucionário no ensino musical. Nessa instituição foram desenvolvidas, como resultado de uma ação do Estado, abordagens que visavam a padronização e difusão de uma formação acessível e democrática. Esta pesquisa buscou desenvolver uma reflexão sobre possíveis discrepâncias entre as práticas dinâmicas do conservatório e a forma com que seu legado metodológico vem sendo aplicado em diversas instituições. O quarto e último capítulo aborda metodologias desenvolvidas após o advento do Conservatório de Paris. Iniciamos pelas escolas que primavam pela análise da mecânica envolvida no ato de tocar, que alcançaram seu auge com os escritos de Otakar Sevcik. Partimos, então, para autores do século XX, quando o ideal de que a técnica deve ser treinada a partir dos processos cognitivos ganhou impulso. Violinistas como Leopold Auer (1845- 1930), Demetrius Constantine Dounis (1886-1954) e Carl Flesch (1873-1944) atuaram principalmente na primeira metade do século, tendo sido enfáticos sobre a importância do estudo organizado e consciente de violino – assunto que levou a uma reflexão sobre a concepção do talento e suas possíveis ramificações nas práticas de ensino. Através do trabalho de Ivan Galamian, escrito durante a segunda metade do século XX, expusemos uma metodologia que oferece vasto material que pode ser usado pelo 15 instrumentista para desenvolver seu engajamento cognitivo por meio de sessões de estudo de escalas e arpejos, cuja prática destina-se ao controle dos processos mentais que antecedem e controlam os movimentos físico-motores. Em seguida, apresentamos o violinista australiano contemporâneo, Simon Fischer, expoente de uma metodologia que utiliza a experimentação e investigação multiangular do instrumento como forma de possibilitar maior protagonismo por parte do instrumentista no processo de desenvolvimento de suas competências e habilidades, ideia que se alinha com conceitos contidos no termo "prática deliberada". Para apresentar o assunto “prática deliberada”, que trata de conjunto de ações voltadas para extrair o máximo de eficiência dos esforços de aprimoramento, entremeamos no texto ideias de Anders Ericsson, psicólogo que cunhou o termo. O capítulo se encerra com uma breve explanação de outras técnicas de estudo que auxiliam no desenvolvimento da autonomia e eficiência. 16 1 O DESPERTAR DE UM INSTRUMENTO: O VIOLINISTA NA RENASCENÇA ITALIANA Estima-se que a família do violino tenha surgido em torno de 1495-1505 na Itália renascentista (DEVERICH, 2006; p. 4), quando a crescente movimentação cultural, aliada à uma expressiva expansão econômica, deu vida a um mercado musical sem precedentes (DILWORTH, 2008, p. 9). Para atender à nova demanda, fabricantes de alaúdes e gambas passaram a produzir conjuntos de um mesmo tipo de instrumento com variedades de tamanho, registro e afinação, que formariam os consorts (BENNET, 2007, p. 30). Criaram-se, assim, novos instrumentos de arco que, devido a suas características estruturais, permitiam a exploração de uma gama de possibilidades timbrísticas inéditas (DILWORTH, 2008, p. 8-9). Instrumentos e instrutores de música tornaram-se cada vez mais acessíveis economicamente. Com a notação musical mais evoluída, houve uma reestruturação no ensino de música que acompanhou o desenvolvimento dos próprios padrões de alfabetização, inserindo a leitura e escrita musical no espectro ampliado de possibilidade educacionais vivenciadas no século XVI (DEVERICH, 2006, p. 8). Compositores demonstravam cada vez mais interesse em escrever para grupos instrumentais, até então considerados menos importantes que conjuntos vocais (BENNET, 2007, p. 29). Crescia o mercado editorial, então direcionado ao latente público amador, que passou a consumir tratados instrumentais e partituras didático-recreativas para os novos consorts de cordas (DEVERICH, 2006, p. 8). Os livros didáticos, quase sempre voltados à amadores, continham informações básicas para a execução de diferentes instrumentos em um só volume. Essas obras, porém, não apresentavam conteúdo que possibilitasse o aprendizado autônomo, e continuavam, assim, a demandar auxílio de um instrutor (STOWELL 2008, p. 224). No ensino do violino, a prática mais comum era a transmissão oral do conhecimento, institucionalizada na interação entre mestre/aprendiz, tanto no âmbito amador quanto profissional (SANTOS, 2001, p. 26). Através do ensino familiar, privado ou de cooperativas, as informações não escritas tornavam-se verdadeiro patrimônio intelectual, em processo em que o mais experiente passava o conhecimento para o mais novo de forma pessoal e direta. Grande parte da formação profissional acontecia também em instituições de acolhimento da juventude, que foram se expandindo e deram origem a organizações de ensino precursoras aos conservatórios de música. 17 1.1 OS OSPEDALI ITALIANOS DO SÉCULO XVI: A FORMAÇÃO MUSICAL COMO MEIO DE DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO E INTEGRAÇÃO SOCIAL Devido à crescente população de jovens e crianças em situação de vulnerabilidade social, cidades italianas estabeleceram instituições de acolhimento e assistência conhecidas como ospedali. Financiados pelo Estado2 e administrados pela Igreja (CORONA, 2008), esses verdadeiros precursores do conservatório desempenharam um importante papel socioeducativo, oferecendo intenso treinamento musical para que órfãos e outros tutelados do estado fossem preparados para uma vida socioeconomicamente ativa (ANDREW APPEL [2013-16]). O ofício musical foi empregado como ferramenta de inclusão social primeiramente por razões financeiras; além do treinamento pouco dispendioso (quando comparado à formação para outros serviços gerais), a Igreja, enquanto mantenedora dos ospedali, poderia empregar seus próprios alunos em serviços religiosos. As chances de sucesso profissional eram imensas, uma vez que o mercado musical renascentista era vibrante e crescente3. Nesse período, a música fazia parte essencial da vida civil, religiosa e política. Durante os séculos XVI a XVIII, os mais renomados ospedali masculinos foram os de Nápoles, formadores de alguns dos compositores mais famosos da Europa. Já o consagrado Pio Ospedale della Pietà em Veneza, foi responsável pela formação de orquestras e coros femininos de marcante projeção pelo continente. O corpo docente de ambas as instituições contava com músicos aclamados, o que, inclusive, atraía alunos4 (alguns pagantes) que se uniam ao corpo discente residente à procura de treinamento musical avançado. A influência dessas instituições era imensa e repercutia em toda a Europa, de maneira que as cortes mais ricas buscavam músicos nelas graduados (GJERDINGEN, 2009)5. 1.1.1 As Escolas de Composição de Nápoles Gjerdingen (2009, p. 7-10) relata que o ensino básico de música nos ospedali de Nápoles era organizado em vários estágios, todos estruturados mediante a utilização de modelos técnicos para imitação, que abordavam desde pequenos elementos de uma 2 A Igreja também recebia fundos provenientes de arrecadações e doações (CORONA, 2008). 3 Para fins explicativos, exemplifica-se que a cidade de Nápoles contabilizava mais de três mil igrejas, cada uma com seus próprios músicos empregados (EIGHTEENTH CENTURY MUSIC, 2014). 4 Segundo Gjerdingen (2009, p. 22), os conservatórios de Nápoles teriam alcançado tanto êxito em seu treinamento de compositores, que teriam atraído alunos de locais longínquos como Rússia e México. 5 Músicos de todas as partes dedicavam-se com afinco a dominar o, como ficou conhecido, Estilo Galante Napolitano. Compositores como J. S. Bach, Joseph Haydn e Amadeus Mozart são exemplos de compositores que incorporaram certos aspectos estilísticos advindos dessa tradição (GJERDINGEN, 2009, p. X). 18 composição, até questões do projeto como um todo. Após dominá-los, o aluno fazia a aplicação dessas técnicas em suas próprias composições, seguindo, porém, os padrões estilísticos estabelecidos. Para o jovem aprendiz, o primeiro passo ocorria por volta dos sete anos de idade e consistia em aprender os rudimentos das escalas, intervalos e pequenas figuras melódicas. Durante o próximo estágio, desenvolvia-se a habilidade de combinar tais elementos em breves contrapontos. Então, o aluno aprendia a utilizar baixo figurado, dissonâncias, modulações e sequências harmônicas padronizadas. Mediante o emprego do conjunto de padrões do regole – livro de regras utilizado por professores napolitanos – os alunos compunham pequenas peças onde praticavam o encadeamento de seus conhecimentos musicais. O estudo de fraseologia era realizado através de três práticas, sendo a primeira o solfeggi (ornar melodias acompanhadas de baixo figurado6); a segunda, o intavolature (compor obras para teclado com textura a duas vozes); e, a terceira, o partimenti (completar composições, geralmente escritas na clave de fá, com linha adicional, acompanhamento de acordes ou estruturas de fuga). 1.1.2 A formação das Instrumentistas de Veneza O Pio Ospedale della Pietà, abrigo de meninas abandonadas e/ou órfãs, foi um dos mais extraordinários ospedali italianos. O intenso treinamento musical realizado em ambiente monasterial – onde disciplina, tempo e recursos eram abundantes – resultaram na formação de excelentes musicistas que integravam o coro e a orquestra do Pietà, cuja fama se espalhou internacionalmente devido a sua altíssima proficiência musical, descrita em relatos de época. As habilidosas moças atraíam público diverso, doações financeiras e a atenção de abastados membros da sociedade. As tutoradas do ospedale Pietà eram educadas de acordo com vasto e exigente currículo – o ensino de música era apenas um dos componentes. As alunas que se destacavam musicalmente recebiam treinamento intensivo e a insígnia especial de “figlia del coro”7, o que lhes garantia um honorário. O treinamento incluía, diariamente, estudos vocais, aulas de vários instrumentos, leitura à primeira vista e percepção musical, além de classes avançadas em performance, escrita e composição (CURCIO, 2011, p. 4). Segundo Curcio (2011, p. 8-9), a atividade musical oferecia, inclusive, oportunidades de vivências fora dos ospedali. Por meio do apadrinhamento individual, jovens, antes à beira da marginalidade 6 Acredita-se que o aluno cantava melodias enquanto o professor tocava o baixo figurado (GJERDINGEN, 2009, p. 10). 7 Filha do coro (tradução nossa). 19 social, ganhavam não somente visibilidade positiva, mas também conexões pessoais e apoio de influentes membros da sociedade. Em sua estrutura administrativa, o Pietà valorizava o trabalho feminino, buscando cultivar aspectos como liderança e o desenvolvimento intelectual de suas alunas e funcionárias. Ao oferecer a combinação de boa formação educacional aliada a oportunidades de trabalho, a instituição criou possibilidades de independência financeira (cuja maioria das mulheres dentro da realidade da Veneza do século XVI não possuía), impulsionando, portanto, o desenvolvimento socioeconômico de suas pupilas (CURCIO, 2011, p. 7). Autoras como Curcio (2011, p. 5) apresentam argumentos de que o ospedale Pietà contribuiu para avanço da igualdade de gêneros, empoderamento feminino e maior flexibilização de convenções sociais. É importante ressaltar que a excelência musical obtida por essa instituição foi um dos fatores mais importantes em meio a um processo de significativo confronto a paradigmas vigentes. Essas mulheres, por exemplo, conseguiram realizar apresentações sem que ocorresse a usual censura destinada a instrumentistas do sexo feminino, que, para atender a certas imposições sociais restritivas, alegadamente relacionadas à noção de decoro, eram desencorajadas de realizar atividades públicas. Até mesmo a Igreja, que permitia somente a participação masculina durante a liturgia, abria exceções para as apresentações dos grupos do Pietà. 1.1.3 O Ambiente Pedagógico dos Ospedali Nos ospedali de Nápoles e de Veneza, o aprendizado era cultivado em ambiente diferente daquele encontrado na então dominante relação mestre/aprendiz. Em vez de receber a instrução de um único mestre, os aprendizes eram ensinados por uma equipe de músicos aclamados, que, além de transmitir ensinamentos nos mais altos padrões de qualidade musical, propiciava o convívio direto dos pupilos com profissionais atuantes no mercado. Nesse ambiente dinâmico e cooperativo, os alunos não eram recipientes passivos de informação; o conhecimento era compartilhado, expandido e modificado em colaborações entre colegas dos mais diferentes níveis de habilidades, formando uma corrente de crescimento mútuo. No Pietà, por exemplo, os professores, por serem homens, tinham acesso restrito ao edifício, fazendo com que o número de aulas e ensaios liderados por eles fosse extremamente limitado. Para lidar com a situação, os mestres e assistentes eram responsáveis por organizar e supervisionar uma intrincada rede hierárquica de colaboração entre as alunas. Coro e orquestra eram divididos em diversas agrupações, de modo que cada aluna, a partir do 20 nível que poderia ser denominado de "iniciante-avançado"8, recebia seu próprio grupo de pupilas, enquanto seguia participando na condição de aprendiz em outro grupo liderado por uma aluna-instrutora de nível mais elevado. Com exceção das absolutamente iniciantes, todas as alunas exerciam paralelamente o papel de aluna-instrutora (CORONA, 2008). 1.1.3.1 O “efeito protégé”: entendendo as transformações no aluno-instrutor. Com o intuito de investigar os possíveis benefícios de práticas colaborativas de ensino, faremos uma breve exposição do estudo "Agentes ensináveis e o efeito protégé"9 (CHASE et al., 2009), em que os autores buscam apresentar fenômeno psicológico que sugere que "alunos se esforçam mais para aprender em benefício de seus protégés do que o fazem por interesse próprio”10 (CHASE et al., 2009, p. 2). No referido estudo, experimentos foram realizados com alunos do ensino médio através do software "Betty’s Brain" (Cérebro de Betty), que possibilita criação de um personagem, por meio do qual se simulam processos de ensino/aprendizagem, permitindo o registro e contabilização de comportamentos, aspectos sociais e emocionais neles contidos. Foi pedido a todos os alunos que utilizassem o mesmo software a fim de cumprir atividades sobre determinado conteúdo. Porém, a seguinte distinção foi feita: o grupo A o fazia de forma tradicional, em que a resultante de sua aprendizagem e sucesso de suas atividades seria apenas para benefício próprio, enquanto o grupo B realizava as mesma atividades em prol de preparar-se para, com o conhecimento adquirido, instruir personagens (criados no software) para um jogo de perguntas e repostas contra os de seus colegas. Constatou-se que o grupo B, supostamente por ter sido incumbido da responsabilidade de transmitir conhecimentos, esforçou-se consideravelmente mais do que o grupo A. Esse fenômeno, em que uma pessoa dá maior ênfase em seu próprio aprendizado para que uma segunda parte seja futuramente beneficiada, foi cunhado, pelos próprios autores do estudo, de "efeito protégé". A pesquisa mostrou que, provavelmente devido a uma sutil mudança de consciência sobre a importância e utilidade de seu próprio aprendizado, alunos-instrutores passaram quase o dobro do tempo engajados em atividades voltadas para a aquisição de conhecimentos (CHASE et al., 2009, p. 10). A própria preparação para atuação docente levaria indivíduos a reorganizarem seus 8 Podemos perceber que bastava que a aluna tivesse o mínimo de experiência para começar a passá-la adiante. A descrição do nível iniciante-avançado sugere a existência de diversos graus de competência constantemente monitorados e avaliados (CORONA, 2008). 9 No original: Teachable Agents and the Protégé Effect (tradução nossa). 10 No original: pride and satisfaction that is derived from someone else's accomplishment (tradução nossa). 21 conhecimentos a fim de transmiti-los de forma mais coerente, passando por um processo de autoavaliação que favorece o aprofundamento no conteúdo, desenvolvimento de maior capacidade de recordação e, ainda, identificação e remediação de possíveis falhas no próprio aprendizado (PAUL, 2011). Ocorrem também benefícios de ordem emocional, já que a mera expectativa do encontro com o protégé é suficiente para aumentar os níveis de euforia e ativar as áreas de recompensa no cérebro que, por sua vez, ativam a liberação de hormônios importantes para a assimilação e fixação de conteúdo. Nesse contexto, as atividades de aprendizagem deixam de ser percebidas como individuais (aprender sozinho e para benefício próprio), e passam a ser entendidas como espaço de interação social (aprender com e para o outro), mesmo quando executadas individualmente (CHASE et al., 2009, p. 13). Uma vez iniciado o processo de ensino, a interação entre o aluno-instrutor e seu protégé resulta em novas formas de pensar, perceber e racionalizar o conteúdo – condições que aprofundam os conhecimentos de ambas as partes envolvidas. Além disso, a atividade cria um espaço onde a atribuição dos êxitos e falhas são compartilhados, o que pode desencadear dois fenômenos fisio-psicológicos: a) sentimentos de "orgulho e satisfação derivados do sucesso de outrem”11 (CHASE et al., 2009, p. 13); b) esmorecimento de emoções negativas comumente associadas ao erro através do compartilhamento da frustração, no caso de insucesso, ajudando o aluno-instrutor a lidar com suas próprias dificuldades e inseguranças. É comum que, em situações de exposição, alunos com percepção negativa de suas habilidades e capacidades tenham atitudes de autossabotagem, evitando exercícios complexos ou desistindo facilmente deles. Esse comportamento é, muitas vezes, fundamentado na crença de que habilidades e conhecimentos são derivados de uma incapacidade inata, imutável e invariavelmente conectada à sua própria percepção de identidade (CHASE et al., 2009, p. 35). Um dos maiores benefícios da colaboração instrutiva entre alunos é a desconstrução dessa percepção negativa através da conscientização de que habilidades e conhecimentos podem ser adquiridos por meio de atividades de aprendizagem (CHASE et al., 2009, p. 34). Imbuídos de uma nova motivação ao enxergar-se capaz de progredir, tanto os alunos de baixa quanto de alta performance inicial adotam padrões de comportamento altamente produtivos. Possivelmente esse efeito está relacionado ao fato de que, ao lecionar, as falhas e erros passam a ser percebidos no ato de ensinar e não na capacidade de aprender, criando um mecanismo de autoavaliação que potencializa a percepção das próprias habilidades como 11 No original: pride and satisfaction that is derived from someone else's accomplishment (tradução nossa). 22 passíveis de aprimoramento (CHASE et al., 2009, p. 25). Medições fisiológicas realizadas no estudo de CHASE (2009, p. 13) mostraram maiores níveis de entusiasmo no grupo de alunos-instrutores, indicando que essa técnica é altamente motivadora. O engajamento emocional dos alunos foi medido através da codificação e análise de suas verbalizações espontâneas, sendo classificadas como positivas as palavras que denotavam alegria, entusiasmo, esperança e alívio (por exemplo, "Que legal!" "Isso tá divertido", "Ai, que alívio"). Similarmente, foram classificadas como negativas as expressões que denotavam emoções como raiva, irritação, pena ou tristeza ("Tadinho dele", "Eu não sou um bom professor", "Ops"). No grupo de alunos-instrutores houve maior resposta emocional às falhas (sugerindo alta sensação de responsabilidade pelo protégé), e verificaram-se comportamentos mais expressivos direcionados para o aperfeiçoamento no conteúdo – 100% dos alunos-instrutores escolheram revisar o material e passaram três vezes mais tempo na atividade do que o grupo de alunos-não instrutores, em que 64% dos alunos elegeu realizar a revisão (CHASE et al., 2009, p. 28). É possível que alunos-instrutores reconhecessem a conexão direta entre suas habilidades e a evolução do protégé, sendo acometidos por senso de responsabilidade, que pôde ser observado pelas várias ocasiões em que expressaram arrependimento por não terem ensinado bem o suficiente. A motivação em passar tanto tempo realizando a revisão não parecia ser para benefício próprio, mas por uma vontade de ensinar melhor (CHASE et al., 2009, p. 32). Contudo, o crescimento individual foi mais acentuado no grupo de alunos-instrutores, que obtiveram resultados melhores quando confrontados com problemas complexos, alcançaram melhores notas em testes (CHASE et al., 2009, p. 20), tiveram maior facilidade para transferir o conhecimento adquirido para situações similares (CHASE et al., 2009, p. 13) e foram mais eficientes em identificar, analisar e remediar erros (CHASE et al., 2009, p. 8). É interessante observar que os alunos com menores índices de aprendizagem foram os que mais evoluíram ao serem incumbidos de instruir protégés (CHASE et al., 2009, p. 2). O progresso do grupo de alunos-instrutores de baixo rendimento foi duas vezes maior quando comparado o grupo de alunos não instrutores de baixo rendimento no primeiro dia de atividades, e três vezes maior no segundo dia (CHASE et al., 2009, p. 2). Diante desses dados, pode-se afirmar que todos os integrantes de uma classe devem ser envolvidos em atividades de ensino, pois essa prática auxilia no desenvolvimento integralizado do indivíduo, promovendo a autonomia, iniciativa e liderança. Nessa abordagem, o professor oferece ferramentas e fomenta oportunidades para que os próprios alunos assumam responsabilidades e funções centrais no processo de construção do 23 conhecimento comum, potencializando o desenvolvimento da autoestima, senso de dignidade, capacidades intelectuais, comprometimento, motivação, determinação, solidariedade e empatia. 24 2 A ASCENSÃO DO VIOLINO NO SÉCULO XVII E O INÍCIO DA METODIZAÇÃO DE ENSINO A ascensão da ópera italiana no século XVII resultou em marcante aumento da popularidade do violino, que passou a ser considerado o único instrumento plenamente capaz de equiparar-se à voz no contexto dessa nova estética musical, caracterizada por exuberante virtuosidade, extrema expressividade e abundantes efeitos dramáticos (MCVEIGH, 2008, p. 46). Com suas possibilidades expressivas ampliadas, o instrumento conquistou destaque em elaboradas obras escritas para violino solo ou solista, libertando-se de desempenhar papel meramente coadjuvante. O violino continuou conquistando público amador, que buscava material cada vez mais específico para a aprendizagem do instrumento. As publicações instrucionais abandonaram, assim, o estilo generalizado dos tratados (que abordavam vários instrumentos) e passaram a ser guias, por assim dizer, no estilo "faça você mesmo" – fascículos contendo instruções relacionadas a aspectos rudimentares da técnica instrumental e execução de repertório simples (DEVERICH, 2006; p. 9-10). 2.1 "AYERS FOR THE VIOLIN”: O INÍCIO DA METODIZAÇÃO PROGRESSIVA DE VIOLINO Um dos primeiros violinistas a incorporar aspectos pedagógicos mais elaborados em suas publicações foi o violinista Nicola Matteis (1670-1713), conhecido por ter levado a tradição italiana do violino à Inglaterra (DEVERICH, 2006, p. 9). Sua série "Ayers for the Violin" foi organizada em fascículos que, pela primeira vez, são apresentados em ordem crescente de dificuldade, em que se verifica o acréscimo gradual de cordas duplas, ritmos mais complexos e golpes de arco. Uma breve análise do primeiro prelúdio de cada volume poderá exemplificar essas questões. O primeiro Prelúdio (Figura 1) apresenta ritmos e articulações simples, com ocorrência de poucas ligaduras e nenhuma corda dupla. Apesar das constantes trocas de corda, sua execução é relativamente descomplicada. 25 Figura 1: Prelúdio do "Ayers for the Violin - The First Part" Fonte: Matteis (1676a) Podemos observar aumento de dificuldade no Prelúdio do livro 2 (Figura 2). Matteis utiliza mais indicações de ligadura e, por serem empregados saltos distantes, as mudanças de corda exigem maior destreza técnica. A execução de um acorde é demandada pela primeira vez. O aspecto ritmo, contudo, continua pouco explorado, com a utilização quase exclusiva de colcheias. Figura 2: Prelúdio do "Ayers for the Violin - The Second Part" Fonte: Matteis (1676b) O Prelúdio do terceiro livro (Figura 3) avança mais um passo em termos de dificuldade. A indicação inicial de andamento – Presto – alia-se ao aumento de variedade de figuras rítmicas. Modulações conferem maior movimentação harmônica à peça e o Adagio final sugere o emprego de improvisação. 26 Figura 3: Prelúdio da parte 3 do "Ayers for the Violin - The Third and Fourth Parts" Fonte: Matteis (1685) O último Prelúdio da coleção (Figura 4) avança sobretudo no aspecto articulação. Saltos ascendentes combinam-se com rápidas escalas descendentes, apresentadas com variadas articulações: separadas, ligadas e ligaduras com ponto. Figura 4: Prelúdio da parte 3 do "Ayers for the Violin - The Third and Fourth Parts" Fonte: Matteis (1685) A forma com que Matteis organizou suas Ayres fez dessa série uma precursora dos métodos de ètudes progressivos, norteando o caminho para materiais didáticos que visavam o desenvolvimento de habilidades, a fim de que instrumentistas pudessem alcançar níveis de proficiência mais elevados (DEVERICH, 2006; p. 10). 27 É interessante observar a recomendação de Matteis sobre a utilização do método, presente na carta aos leitores do primeiro fascículo de "Ayers for the Violin" ao (Figura 5), em que aconselha uma "leitura atenta"12 para que a utilização do material seja proveitosa. O comentário sugere uma relação causal entre o estudo realizado de forma concentrada e a eficácia do método, tema que viria a ser cada vez mais presente nas metodologias de violino. Figura 5: Carta aos leitores no "Ayers for the Violin - The First Part" Legenda: Para o Leitor / Para a utilização por pessoas particulares, e para o serviço dos amantes da música, eu publico essas composições (como são), esperando que meus nobres amigos as aceitem em sinal de reconhecimento [por parte do conhecimento], e que o restante do mundo não se arrependa após cuidadosa leitura. Fonte: Matteis (1676) A folha de rosto do terceiro volume (Figura 6) é mais explícita em sua intenção didática, por meio do emprego da expressão "para o melhoramento da mão"13. Esse é um dos exemplos mais antigos de uma série de obras compostas deliberadamente para auxiliar no desenvolvimento da proficiência técnica do violinista em fase de formação: 12 No original: perusal. 13 No original: For the Emproving of the hand. 28 Figura 6: Folha de rosto de "Ayers for the Violin - The Third and Fourth Parts" Legenda: Áreas para o violino / que são / Prelúdios, Fugas, Allemandes, Sarabandas, Courantes, Gigas, divisões difíceis assim como outras passagens, introduções e fugas, cordas simples e duplas, com divisões um pouco mais artificiais / para o desenvolvimento da mão, com base de gamba e cravo. As terceira e quarta partes, composto por Nicola Matteis (grifo nosso). Fonte: Matteis (1685) Não por coincidência, esse volume recebe uma tabela de sinais (Figura 7) similares àquelas que acompanhariam livros de técnica até os dias atuais: Figura 7: Tabela de símbolos de "Ayers for the Violin - The Third and Fourth parts" Fonte: Matteis (1685) 29 Nicolas Matteis influenciou a trajetória do violino não somente com seus escritos, mas, assim como outros violinistas italianos, com o brilhantismo de sua performance virtuosística, que alavancou uma ascensão vertiginosa no nível de habilidade esperada de violinistas em todo o continente europeu. Segundo McVeigh, (2008, p. 48), muitos virtuosi foram contratados por cortes reais europeias, espalhando o ideal do virtuose e estabelecendo o treinamento italiano como referência. O nível de habilidades entre amadores e profissionais foi se distanciando, e uma verdadeira disputa pelos níveis mais altos de virtuosismo seguiria ao longo dos séculos, influenciando uma prática instrumental cada vez mais especializada. 2.2 SÉCULO XVIII E A FORMAÇÃO DAS PRIMEIRAS ESCOLAS DE VIOLINO Durante o século XVIII, o ideal da virtuosidade italiana espalhou-se pela Europa de forma tão intensa que até mesmo países que preservavam estilos mais sóbrios, como Inglaterra e França, sucumbiram à nova tendência estética. Por meio dessa propagação de virtuosi, o violino ganhou enorme prestígio, influenciando o curso da história musical ocidental. A família dos violinos passou a formar a base da orquestra e violinistas começaram a disputar sua liderança com músicos de instrumentos de teclado, que tradicionalmente exerciam a função de regente (MCVEIGH, 2008, p. 46-47). A música instrumental seguia ganhando força e passava a ser mais valorizada enquanto arte. Os ospedali italianos tinham-se transformado em verdadeiras escolas de música de ensino profissionalizante e o ensino de música nas escolas era retomado com novas propostas sistematizadas, desenvolvidas por filósofos e estudiosos (FONTERRADA, 2008, p. 58-61). O ensino oral, com seu caráter inerentemente exclusivista, tornou-se antiquado em um mundo cada vez mais influenciado por movimentos como o Enciclopedismo e o Iluminismo, que buscavam a organização e a democratização do saber gerado pela ciência. Assim como ocorria em outras áreas de conhecimento humano, os ensinamentos de grandes mestres de violino tomavam forma escrita com maior frequência e riqueza de detalhes, propiciando sua disseminação para um público menos restrito. O mercado de obras didáticas passou a oferecer inúmeras publicações de conteúdo mais elaborado e organizado, que visavam o desenvolvimento técnico-artístico do instrumentista desde o nível iniciante até sua formação virtuosística (STOWELL, 2008, p. 225). Foi durante esse período que se iniciou a consolidação de tradição de ensino de violino, tendo sido Arcangelo Corelli (1653-1713) o responsável pelo surgimento do que seria a primeira grande escola de violino (BACHMANN, 30 2008, p. 158). 2.2.1 Arcangelo Corelli e a primeira grande escola de violino Arcangelo Corelli (1653-1713), nascido em Bolonha, deixou um importante legado em todas áreas em que atuava. Enquanto violinista, foi idolatrado pelo público de forma tão intensa, que sua fama ajudou a fomentar o interesse amador pelo instrumento (STOEVING, 1920? p. 171). Como compositor, Corelli foi responsável pela difusão de certos padrões estilísticos da música de câmara praticada no barroco tardio, em que se ressalte o gênero concerto grosso. Suas produções eram inovadoras e foram extremamente populares em seu tempo (SARTORIUS, 2016), com destaque para suas Sonatas Op. 5 para violino e cravo, que estão entre as mais influentes do repertório de violino. O potencial pedagógico de suas obras resultou em benefícios imensuráveis; seus ensinamentos se espalharam pelo mundo ao longo de gerações, resultando em uma verdadeira linhagem de violinistas, exercendo influência até os dias atuais (STOEVING, 1920, p. 169). Autores como Bachmann (2008, p. 158) exaltam o legado pedagógico do mestre: "existe apenas uma arte, ou escola de violino, e essa é a escola italiana fundada por Arcangelo Corelli, da qual se derivam todas as outras escolas”14. De fato, uma legião de violinistas formados sob a influência de Corelli espalhou-se pelo continente europeu durante o século XVIII, levando consigo os ensinamentos do mestre, dos quais nenhum violinista está isento (MCVEIGH, 2008, p. 50). Um dos pioneiros em organizar elementos básicos da técnica de violino (SARTORIUS, 2016), Corelli foi provavelmente o primeiro professor a ganhar fama internacional, recebendo alunos de países como Alemanha e França (STOEVING, 1920, p. 172). Como resultado de tamanha veneração, foi com ele que nasceu o fenômeno de estabelecer-se, por assim dizer, um "pedigree" do violinista por meio de uma cronologia professor-aluno, que traça conexões de maneira similar a árvores genealógicas15. Como usual no século XVIII, Corelli era empregado por instituições eclesiásticas e patronos particulares, razão pela qual as igrejas e residências de aristocratas eram os locais mais comuns para suas apresentações (WAGNER 2015, p. 11). Amplamente respeitado em sua atuação como regente, Corelli liderava grupos de formação variada, desde conjuntos de câmara até grandiosas orquestras de 150 músicos (MCVEIGH, 2008, p. 53). O maestro era 14 No original: There is but one art, or school of violin playing, and that is the Italian school founded by Arcangelo Corelli, and from which all other schools are derived (tradução nossa). 15 Esse costume resultou ser de grande valia, auxiliando musicólogos no estudo da origem das diferentes escolas de violino, nomeadas de acordo com sua região de origem (WAGNER, 2015, p. 11). 31 conhecido no meio musical por sua exigência em manter arcadas uniformes (MCVEIGH, 2008, p. 50), característica que pode ter contribuído para a coesão e excelência camerística de suas performances. O compositor George Muffat assim descreveu uma apresentação de Corelli: "[as obras foram] lindamente executadas, na mais alta precisão, por um grande número de instrumentistas”16 (MCVEIGH, 2008, p. 53). A atenção dirigida à uniformidade de arcadas refletia provavelmente uma consciência mais abrangente acerca da técnica de arco. Pode-se perceber essa preocupação na escrita da Sonata Op. 5 no. 12, a famosa “La Folia”, em que podemos observar uma das características pedagógicas da tradição de ensino oral: a elaboração de múltiplos desafios técnicos em forma de variações sobre um tema (KOLNEDER, 1998, p. 348). A influência das Sonatas Op. 5 de Corelli é marcante, tanto no âmbito composicional como no pedagógico. Nenhuma outra obra obteve sucesso comparável no século XVIII, tendo sido publicada em Amsterdam, Bolonha, Florença, Londres, Madri, Milão, Nápoles, Paris, Roma, Rouen e Veneza. Zaslaw (1996, p. 95) classifica a utilização pedagógica das Sonatas Op. 5 em três categorias: a) utilização para aprimoramento técnico-artístico; b) modelo composicional para prática da composição; c) base para improvisação e prática de ornamentação. Trabalhos baseados nas sonatas de Corelli foram publicados, entre outros, por compositores como Francesco Maria Veracini (1690 - 1768), um dos violinistas italianos mais proeminentes do século XVIII, que escreveu 2 ciclos de 12 Sonatas – Op. 1 e as 12 Sonatas Acadêmicas Op. 2, além das "Dissertazioni sopra l'Opera Quinta del Corelli", onde expande e elabora as Sonatas Op. 5. Veracini, que acabaria por se tornar diretor da Academia Veneziana de Música, foi participante de um evento interessante que fortuitamente resultaria não somente na criação de mais uma obra pedagógica baseada nas Sonatas Op. 5 de Corelli, mas em uma mudança importantíssima no que concerne tanto à concepção da técnica quanto à própria estrutura física do arco. O evento ocorreu em um dos vários torneios de violinistas, espécie de competição usual à época, comumente realizada em igrejas. Diz-se que Giuseppe Tartini ficou tão impressionado com a superioridade de Veracini que, após enfrentá-lo e ter sido derrotado, retirou-se, decidindo mudar-se para a cidade de Ancona com o intuito de realizar um estudo profundo sobre a utilização do arco (STOEVING, 1920?, p. 176). 16 No original: beautifully performed with the utmost accuracy by a great number of instrumental players (tradução nossa). 32 2.2.2 Giuseppe Tartini e a evolução das técnicas de arco Após anos de estudo, Tartini voltou a apresentar-se em público, utilizando um arco mais longo, cordas mais grossas e com novo estilo de tocar, em que se valorizava ainda mais o potencial de exploração do cantábile no violino. Os princípios por ele delineados serviram como base para a evolução da técnica de arco do violino, e foram registrados em sua obra L'arte dell'arco17, compêndio de 38 variações18 sobre o tema da gavotte da Sonata Op. 5 no. 10 de Corelli (ALMOND, 2016). O título da obra reflete parcialmente os assuntos abordados, que incluem trinado, cordas duplas, arpejos, entre outros. Ao difundir seus ensinamentos, o mestre construiu proeminente carreira como professor, atraindo alunos de diversos países. Seu método sistemático de ensino era centrado em clareza de execução, precisão de afinação, beleza sonora e busca por realização de nuances expressivas (ALMOND, 2016). 2.2.3 Carta de Tartini à Maddaglena Lombardini: instruções para uma rotina diária de estudo. A carta de Tartini à sua protégée, Maddaglena Lobardini19, é um documento singular na história do ensino do violino, que, por seu caráter pessoal, permitiu registros de certos procedimentos pedagógicos que não caberiam em tratados expositivos da época. O mestre documenta e expõe sua didática mediante instruções sobre a prática diária do violino, para a qual identifica tópicos técnicos, propõe exercícios, oferece exemplos e conselhos, além de detalhar procedimentos para o estudo eficiente. Com o intuito de investigar esses aspectos, será realizada contextualização da carta utilizando-se de referências atuais sobre pedagogia e práticas de estudo. A carta é apresentada integralmente em sua versão em português20 no Quadro 1, que se segue21: 17 Publicado em Paris em 1758. 18 A edição com 50 variações, mais conhecida atualmente, foi publicada 12 anos após sua morte (KOLNEDER, 1998, p. 348). 19 Ao conhecer Maddaglena, aluna do Ospedali dei Mendicanti, Tartini ficou tão impressionado que passou a apoiá-la, inclusive no custeio de sua formação musical. Ela tornou-se uma das poucas mulheres europeias a alcançar sucesso como concertista e compositora durante o século XVIII (VIOLIN VIRTUOSAS, 2016). 20 Tradução nossa. 21 A versão em inglês encontra-se no Anexo 1. 33 Quadro 1: Carta de Giuseppe Tartini à Maddaglena Lombardi CARTA DE TARTINI À MADDAGLENA LOMBARDI Minha estimadíssima senhora Maddaglena: me encontrando finalmente desvinculado do pesado compromisso que há tanto tempo me impediu de cumprir a minha promessa – uma promessa que foi feita com tal sinceridade que minha falta de pontualidade não poderia deixar de me afligir – vou começar as instruções que você deseja de mim por carta; e se eu não me explicar com suficiente clareza, eu imploro que você me diga suas dúvidas e dificuldades ao me escrever, o que não devo deixar de responder em uma carta futura. Sua prática e seu estudo devem, no momento, restringir-se principalmente ao uso e ao poder do arco, para que você se faça mestra na execução e expressão de tudo que pode ser tocado ou cantado, dentro das possibilidades e capacidades do seu instrumento. Seu primeiro estudo, deve, portanto, ser a verdadeira maneira de segurar, equilibrar e pressionar o arco levemente, porém firmemente sobre as cordas, de maneira que pareça respirar o primeiro som que ele produzir, devendo, este, decorrer do atrito com a corda, e não de uma maneira percutida, como por um golpe dado por martelo sobre ela. Para isso, deve-se colocar o arco levemente sobre as cordas no primeiro contato, pressionando suavemente, o que, se feito gradualmente, dificilmente resultará em força excessiva, pois, se o tom começar com delicadeza, há pouco perigo de torná-lo ríspido ou áspero depois. Nesse primeiro contato e maneira delicada de começar um som, você deve se tornar exímia em todas as situações e partes do arco, tanto no meio como nas extremidades; movendo-o para baixo e para cima. Para unir todos esses exercícios em uma lição, meu conselho é que você primeiro se esmere em obter um crescendo na corda solta. Por exemplo, na a segunda corda (corda lá), comece pianíssimo e aumente o som gradualmente até o fortíssimo; e este estudo deve ser feito durante uma hora por dia, embora em momentos diferentes, um pouco pela manhã e um pouco à noite; tendo constantemente em mente que esse, dentre todos, é o mais difícil e essencial para tocar bem o violino. Quando você for mestra nessa habilidade pertencente ao bom intérprete, um crescendo será muito fácil para você; começando com a mais minúscula suavidade e aumentando o som ao seu grau mais forte, então diminuindo-o para o mesmo ponto de suavidade com o qual você começou sendo tudo isso na mesma arcada. Todo o grau de pressão sobre a corda, cuja expressão de uma nota ou passagem possa exigir, será, por esses meios, fácil e seguro, e você poderá executar com seu arco o que quiser. Depois disso, para adquirir aquele saltado leve, partindo do pulso, quando surgir a velocidade de arco, será melhor você praticar todos os dias um dos Allegros, dos quais existem três, em solos de Corelli, que se movem completamente em semicolcheias. Ao tocar o primeiro, em ré, você deve acelerar um pouco a cada vez, até chegar ao maior grau de velocidade possível; mas duas precauções são necessárias nesse exercício: a primeira é que você toque em staccato, isto é, separado e destacado, com pouco espaço entre cada duas notas, pois elas devem ser tocadas como se houvesse um descanso após cada nota. A segunda precaução é que você toque com a ponta do arco; e quando isso se tornar fácil para você, que você use essa parte do arco que está entre a ponta e o meio; e quando você for igualmente mestra desta parte desta parte do arco, que você pratique da mesma maneira no meio do arco; e acima de tudo, você deve se lembrar, nesses estudos, de começar os Allegros ou grupetos às vezes com o arco para cima, e às vezes com o arco para baixo, cuidadosamente evitando o hábito de constantemente praticar de uma só forma. Para adquirir maior facilidade na execução de passagens rápidas de uma forma leve e precisa, será de grande valia para você acostumar-se a saltar uma corda entre duas notas em sequência. Toque tantas sequências de forma improvisada quanto possível, em todas as tonalidades, o que será tanto útil quanto necessário. No que diz respeito ao espelho ou à movimentação da mão esquerda, eu tenho uma veemente recomendação para você, que será suficiente para tudo, que é pegar uma partitura de violino, seja de primeiro ou de segundo, ou um concerto, sonata ou canção, ou qualquer coisa que servirá para o propósito, e tocar na meia posição22, ou seja, com o primeiro dedo sobre o sol na primeira corda (corda 22 O que seria equivalente à segunda posição no sistema atual. 34 mi), e constantemente mantendo essa posição, tocando toda a peça sem mover a mão da posição, a menos que o lá na quarta corda, ou corda sol, seja pedido; mas nesse caso você deve voltar novamente para a meia posição, sem nunca mover a mão para a posição natural. Essa prática pode ser continuada até que você possa executar tudo sobre a posição inteira23 com tanta facilidade quanto quando a mão está em sua situação natural; e, quando estiver segura nisso, avance para a dupla posição24 com o primeiro dedo sobre a nota si na primeira corda; e, quando se sentir firme, passe para a próxima posição, fazendo dó com o primeiro dedo na corda mi, e, de fato, esta é uma escala na qual, quando você estiver firme nela, pode ser dizer ser mestra do espelho. Este estudo é tão necessário que eu fervorosamente recomendo sua atenção. Passo agora para a terceira parte essencial de um bom intérprete no violino, que é produzir um bom trinado, e eu faria você praticar lentamente, moderadamente, e velozmente; isto é, com as duas notas se sucedendo nesses três estágios - adágio, andante e presto; e na prática você tem ótima empregabilidade para esses diferentes tipos de trinados, pois a mesma oscilação não servirá com igual propriedade para um movimento lento como para um rápido; mas para adquirir ambos de uma só vez com o mesmo trabalho, comece com uma corda solta – a primeira ou a segunda serão igualmente úteis –, sustente a nota em um crescendo e comece o trinado bem devagar, aumentando sua velocidade, em gradações quase imperceptíveis, até que se torne rápido. Mas você não deve se mover abruptamente de semicolcheias para fusas, e daí para o próximo nível, dobrando a velocidade do trinado de uma vez, o que seria um salto, não uma gradação; contudo você pode imaginar estágios intermediários entre semicolcheias e fusas, mais rápidas que a primeira e mais lentas que a segunda figura; você deve, portanto, aumentar a velocidade nos mesmos moldes na prática de trinado como a dinâmica na prática de crescendo. Você deve preservar de forma atenciosa e assídua a prática desse embelezamento e começar com uma corda solta sobre a qual, se você for capaz de fazer um bom trinado com o primeiro dedo, você irá com uma maior facilidade adquirir um com o segundo, terceiro e quarto dedo, ou dedo mínimo, que você deve praticar de maneira especial, uma vez que ele é mais fraco do que seus similares. De momento, não devo apresentar outros estudos para você; o que eu disse é mais do que suficiente se a sua diligência for compatível com a minha aspiração para o seu progresso. Espero que você me informe com sinceridade se eu me expliquei claramente até agora, e que você aceite os meus cumprimentos, implorando, também, que você os apresente à Priora, à Sra. Teresa e à Sra. Chiara, às quais tenho sincera consideração, e, acredite em mim, grande carinho. Seu obediente e mais humilde servo, Giuseppe Tartini Fonte: Tartini (1913) 2.2.3.1 Elementos para organização de uma rotina de estudo eficiente O tema central da carta é o estabelecimento de uma rotina diária e produtiva de estudo de violino. De forma minuciosa, Tartini estabelece objetivos gerais e específicos para esse fim, delineia várias técnicas de estudo e enfatiza a importância da assiduidade. Percebe-se a organização de um regime de estudo baseado em análise previamente realizada sobre particularidades do instrumento, em que se definem os seguintes componentes técnicos prioritários: 23 O que seria equivalente à terceira posição no sistema atual. 24 Equivalente à quarta posição no sistema atual. 35 a) domínio do arco e suas possibilidades expressivas; b) domínio das posições da mão esquerda no espelho; c) trinados em diferentes velocidades. O grande interesse de Tartini pelo uso do arco fica evidente já nas primeiras instruções da carta, em que estabelece o domínio de seu uso como fator primordial na elaboração da rotina de estudo: Sua prática e estudo principal devem, no momento, se ater ao uso e ao poder do arco, para que você se faça mestra na execução e expressão de tudo que pode ser tocado ou cantado, dentro das possibilidades e capacidades do seu instrumento (TARTINI, 1913, p. 11, tradução nossa). Ao estabelecer a relação causal entre o domínio do arco e a maestria da execução expressiva, Tartini aproxima-se de uma concepção técnico-artística explicada por Klickstein (2009, p. 94, tradução nossa) em que a "técnica representa a interface entre imaginação e criação”25. O desenvolvimento de habilidades técnicas é necessário para preencher o vão entre a concepção musical e o que de fato o instrumentista é capaz de expressar. Técnica, portanto, seria um conjunto de habilidades empregadas como ferramentas para a execução de ideias musicais. Ao elaborar o plano de estudo de Maddaglena, Tartini conecta os exercícios técnicos com propósitos artísticos, com o intuito de levar a aluna cada vez mais perto do pleno potencial expressivo do instrumento. O material de estudo foi dividido em blocos elaborados de acordo com uma hierarquia de objetivos delineada por Tartini ao longo da carta, objetivos esses que podem ser classificados como segue: a) objetivos de longo prazo: - "faça-se mestra na execução e expressividade em tudo que possa ser tocado e cantado26; - "executar com o arco tudo que se deseje”27; b) objetivos intermediários: - domínio da produção de som e dinâmicas; - Agilidade; - agilidade em mudança e salto de corda; - dominar as posições da mão sob o espelho; 25 No original: Technique represents the interface between imagination and creation. 26 No original: in order to make yourself mistress in the execution and expression of whatever can be played or sung, 27 No original: To execute with your body whatever you wish. 36 - realizar trinados em diferentes velocidades. Os princípios que regem a organização da carta de Tartini são compatíveis com aqueles apresentados por estudiosos da ciência da expertise28 como Ericsson e Pool (2016, p. 15), segundo os quais o estabelecimento de uma rotina de estudo eficiente requer objetivos claramente delineados, de forma condizente com expectativas e possibilidades de progresso. Os objetivos gerais e de longo prazo devem dividir-se em uma série de objetivos específicos mais imediatos e facilmente alcançáveis, que servirão como base referencial para observação da qualidade do estudo. A subdivisão de objetivos de acordo com grau de complexidade facilita a organização de ações e estratégias específicas para cada estágio de desenvolvimento, que, ao final, leva à consolidação do objetivo principal. Podemos observar tais itens, quando Tartini: a) estabelece o objetivo geral: "fazer-se mestra na execução e expressividade em tudo que possa ser tocado e cantado”; b) propõe observância das reais possibilidades: "de acordo com a abrangência e alcance de seu instrumento”; c) propõe uma ação específica: "Sua prática e seu estudo devem, no momento, restringir-se principalmente ao uso e ao poder do arco". Após estabelecidos os objetivos e desenvolvidas as estratégias, observamos, por parte de Tartini (1913), a utilização de práticas didáticas similares às delineadas por Coyle (2010, p.216), abaixo, que podem potencializar o aproveitamento do aluno: a) manter clareza de objetivos, como no seguinte trecho: "nesse primeiro contato e maneira delicada de começar um som, você deve se tornar exímia em todas as situações e partes do arco, tanto no meio como nas extremidades"; b) utilizar analogias para exemplificar objetivos, como em: "de maneira que pareça respirar o primeiro som que ele produzir"; c) ser específico nas instruções, “isso depende de colocar o arco levemente sobre as cordas no primeiro contato, e em pressioná-lo suavemente, o que, se feito gradualmente, dificilmente terá força excessiva, porque se o tom começar com delicadeza, há pouco perigo de torná-lo ríspido ou áspero depois”; d) busca motivar o aluno: "você poderá executar com seu arco o que quiser." 28 Vide introdução. 37 2.2.3.2 Técnicas de estudo delineadas na carta de Tartini. Tartini aborda o material de forma sistemática, recomendando diversas técnicas de estudo, como a prática intercalada, a utilização de modelos conceituais, a segmentação, a progressão nivelada e o emprego de variações. Ao instruir sua aluna nos mecanismos de uma prática eficiente, Tartini auxilia na prevenção de uma forma errática de estudar, hábito que, uma vez estabelecido, pode levar a baixo rendimento, excesso de estudo e lesões, além da gradativa perda de interesse e motivação (KLICKSTEIN, 2009, p. 11). O auxílio do professor é crucial para que alunos aprimorem suas técnicas de estudo, já que parte significativa deles não tem, em seus primeiros anos de desenvolvimento, as competências necessárias para praticar eficientemente de forma autônoma (MCPHERSON; RENWICK, 2000, p. 5). Abaixo, faremos uma análise das técnicas de estudo abordadas por Tartini (1913). 2.2.3.2.1 Estudo intercalado Tartini (1913) instrui Maddaglena a praticar um dos exercícios de forma intercalada: "este estudo deve ser feito durante uma hora por dia, embora em momentos diferentes, um pouco pela manhã e um pouco à noite". A prática intercalada apresenta vários benefícios, pois evita o cansaço excessivo, estimula a aprendizagem profunda em cada sessão (KLICKSTEIN, 2009, p. 7-11), além de potencializar a resolução de problemas de forma criativa – pois ao abordar diversos problemas similares ao longo do dia, o praticante poderá revisitá-los sob nova perspectiva (KOCH, 2013). 2.2.3.2.2 Modelos Conceituais Ao utilizar referências sonoras para guiar o desenvolvimento da empunhadura do arco (resguardando-se de estabelecer posicionamento exatos de dedos), Tartini faz uso da elaboração de modelos conceituais sonoros, em que induz à mentalização do som antes de sua execução: Seu primeiro estudo, portanto, deve ser a verdadeira maneira de segurar, equilibrar e pressionar o arco levemente, mas firmemente sobre as cordas, de maneira que pareça respirar o primeiro som que ele produzir, que deve decorrer do atrito da corda, e não de uma maneira percutida, como por um golpe dado por martelo sobre ela (TARTINI, 1913, grifo nosso). A modelo conceitual é uma "ferramenta fundamental para aprendizagem, 38 memorização e performance musical”29 (KLICKSTEIN, 2009, p. 34, tradução nossa) – em que um modelo (seja ele sonoro, físico ou emocional) é previamente estabelecido na imaginação, servindo como guia para o estudo, que deve, naturalmente, almejar sua reprodução (KLICKSTEIN, 2009, 43). No caso exemplificado, a aluna deveria realizar experimentos para encontrar a maneira própria de segurar o arco, de forma que a execução produza o som imaginado. Essa técnica de estudo promove o estabelecimento de modelos que poderão ser reutilizados por instrumentistas em situações similares, fazendo com que o desenvolvimento de habilidades e a elaboração de modelos conceituais sejam dependentes entre si. O estudo eficiente produz modelos conceituais cada vez mais acurados, ao passo que o processo de autoavaliação – vital para que se realizem os ajustes que levam ao progresso – depende da qualidade e quantidade dos modelos conceituais daquele que estuda. Habilidades técnicas e modelos conceituais devem, portanto, evoluir paralelamente (ERICSSON; POOL, 2016, p. 99). 2.2.3.2.3 Cultivo da Motivação Provavelmente, com a intenção de manter sua aluna motivada durante a rotina diária, Tartini enfatiza a importância do estudo da empunhadura do arco e da produção de som: "tendo constantemente em mente que esse, dentre todos, é o mais difícil e essencial para tocar bem o violino” (TARTINI, 1913). Observa-se que Tartini constrói a frase cuidadosamente, pois, ao ressaltar a dificuldade do exercício (“dentre todos, é o mais difícil”), imediatamente identifica seu enorme benefício (“essencial para tocar bem o violino”). Esse tipo de interação psicológica e motivacional entre professor e aluno é mais um exemplo de explanação que não se encontra normalmente em material de instrução formal, sendo as questões ligadas à motivação relegadas a outras fontes. Contudo, despertar e manter o interesse do aluno são vitais para o aprimoramento, uma vez que, segundo Koch (2013), são aqueles genuinamente engajados que conseguem usufruir plenamente dos benefícios das técnicas de ensino- aprendizagem. Observamos que Tartini auxilia sua aluna a cultivar essa atitude positiva em relação aos pequenos e grandes desafios técnicos, fornecendo, ainda, diretrizes para um estudo investigativo em que a própria aluna deve encontrar soluções, sendo esse um dos principais hábitos comportamentais para obtenção de êxito a longo prazo no aprimoramento musical (KLICKSTEIN, 2009; p. 23). 29 No original: fundamental tool for learning, memorizing, and performing music. 39 2.2.3.2.4 Segmentação Tartini faz amplo uso de segmentações ao elaborar os exercícios propostos a Maddaglena. Essa técnica de estudo consiste em: a) decompor habilidades em suas partes constituintes; b) trabalhar cada uma dessas partes separadamente; c) interligá-las progressivamente em agrupamentos cada vez maiores, culminando em consolidação (COYLE, 2010, p. 102). Segmentar o estudo em porções menores pode facilitar a organização e impulsionar a aprendizagem, pois traz benefícios que inclui evitar sensações de sobrecarga, facilitar a identificação e resolução de dificuldades, auxiliar no monitoramento do progresso, impulsionar a motivação, aumentar a concentração e diminuir a ansiedade de performance (LUDOVICO; MANGIONE, 2014, p. 45-48). Assim, o processo de estudo por segmentação auxilia a formar alicerces técnicos fundamentais (COYLE, 2010, p. 224), que, quando dominados e consolidados, aproximam o instrumentista de seu desempenho ideal. Os exercícios propostos por Tartini, por exemplo, levariam ao domínio do som através de habilidades a serem desenvolvidas individualmente, mas que, contudo, integram o mesmo conjunto de competências necessário para o emprego da expressividade no uso do arco: empunhadura, controle, equilíbrio, controle do início da nota em pianíssimo, variáveis de dinâmicas e arcadas. Ao segmentar os elementos técnicos de uma habilidade específica e estudá-los individualmente, pode-se acelerar o processo de aprimoramento de forma significativa (COYLE, 2010, p. 41). 2.2.3.2.5 Progressão nivelada As instruções de Tartini em estudos para aquisição de velocidade (tanto da mão esquerda como da direita) estão em perfeito alinhamento com a moderna técnica de nivelamento progressivo, descrita por Klickstein (2009; p. 73) como valiosa técnica de estudo, que alia ganhos cognitivos a aspetos motivacionais, evitando, assim o confronto com desafios que possam ser entendidos pelo aluno como intransponíveis. O fato de se lidar com componentes da técnica instrumental de forma progressiva, pode resultar em sensação de aumento de confiança por causa da somatória de pequenas conquistas.(KLICKSTEIN, 2009, p. 107), o que possivelmente estimularia o desejo de trabalhar na elaboração de estratégias de estudo cada vez mais eficientes, além de impulsionar a perseverança em momentos de frustração (LUDOVICO; MANGIONE, 2014). A técnica é mais eficiente quando a atenção do aluno é redirecionada para um novo objetivo imediatamente após ele ter alcançado algum 40 êxito, mesmo que aparentemente pequeno (COYLE, 2010, p. 217). É assim que Tartini (1913) propõe o desenvolvimento de aspectos relacionados à agilidade de mão esquerda no exercício de trinado: "comece o trinado bem devagar, aumentando sua velocidade, em gradações quase imperceptíveis, até que se torne rápido, da seguinte forma” (Figura 8): Figura 8: Exercício de agilidade Fonte: Tartini (1913, p. 23) Tartini (1913) enfatiza questões da progressão nivelada: Mas você não deve se mover abruptamente de semicolcheias para fusas, e daí para o próximo nível, dobrando a velocidade do trinado de uma vez, o que seria um salto, não uma graduação; contudo você pode imaginar estágios intermediários entre semicolcheias e fusas, mais rápidas que a primeira e mais lentas que a segunda figura; você deve, portanto, aumentar a velocidade nos mesmos moldes na prática de trinado como a dinâmica na prática de crescendo. Durante a utilização dessa técnica, o esforço cognitivo inicial é sentido de maneira mais significativa a cada novo patamar de dificuldade, e diminui à medida que o progresso acontece. Para que se obtenham os resultados esperados, é necessário que o estudo se realize de forma organizada, de tal forma que os objetivos de cada estágio sejam estabelecidos em conjunção com estratégias de progresso e constante monitoramento da performance (ERICSSON; POOL, 2016, p. 22). Patamares graduais de dificuldade auxiliam no desenvolvimento do controle de movimentos, propiciando o aumento da qualidade de execução à medida que se adquire fluência (KLICKSTEIN, 2009, p. 73). Contudo, ao repetir o mesmo conteúdo, ainda que em patamares diferentes, é preciso dar a devida atenção ao processo de automatização, pois, ao mesmo tempo que pode trazer o benefício da fluidez, sucita perda de engajamento cognitivo durante o estudo. É através desse processo que a percepção de facilidade na execução é formada (COYLE, 2010, p. 49), uma vez que, quanto mais automatizada a habilidade, menor o esforço cognitivo necessário para sua manifestação. Aspectos como automatização e fluência estão intimamente conectados, coexistindo quando o instrumentista alcança a eficiência de pensamento e ação necessária para uma performance livre de tensões e outros possíveis entraves (KLICKSTEIN, 2009, p. 95-96). A automatização é uma capacidade neurológica adquirida ao longo da evolução 41 natural, por meio da qual o cérebro utiliza de processamento subconsciente para seu funcionamento. O processo economiza energia e libera recursos cognitivos que podem ser utilizados na aquisição de novos conhecimentos. Porém, deve-se estar ciente de que as habilidades, uma vez automatizadas, se deterioram gradualmente na ausência de esforços deliberados para seu aprimoramento (ERICSSON; POOL, 2016, p. 13). Esse fenômeno sugere que as habilidades estão em constante progresso ou constante regresso, requerendo, portanto, manutenção por uso regular (KLICKSTEIN, 2009, p. 95). No estudo do violino, a situação se agrava, porque as habilidades são interconectadas e expandidas à partir de competências previamente estabelecidas, o que revela a extrema importância de constantemente revisitar certos fundamentos e de entender onde técnicas recém-assimiladas se alicerçam. Por isso, o estudo de manutenção e aprimoramento de habilidades deve ser realizado de forma cíclica e não linear, em que cada sessão de estudo integre a revisão de múltiplas técnicas (KLICKSTEIN, 2009, p. 95). 2.2.3.2.6 Variações: o gerenciamento da automatização Ao orientar Maddaglena sobre como realizar repetições, Tartini (1913, p. 17) aconselha a, “acima de tudo”, evitar o hábito de tocar sempre da mesma forma: toque com a ponta do arco; e quando isso se tornar fácil para você, que você use essa parte do arco que está entre a ponta e o meio; e quando você for igualmente mestra desta parte desta parte do arco, que você pratique da mesma maneira no meio do arco; e acima de tudo, você deve se lembrar nesses estudos de começar os Allegros ou grupetos às vezes com o arco para cima, e às vezes com o arco para baixo, cuidadosamente evitando o hábito de constantemente praticar de uma só forma. Pode-se especular que o mestre estava ciente de que, apesar das repetições estarem no cerne do assunto estudo do violino, é necessário gerenciá-las cuidadosamente a fim de evitar que ocorra desvio de atenção. Repetições sem engajamento mental podem causar, além de baixo rendimento, uma série de problemas de execução, já que erros podem passar despercebidos e, assim, virem a fortalecer padrões neurais conflitantes com os objetivos finais do instrumentista. Uma vez estabelecidos, esses padrões neurais irão demandar esforço relativamente maior para serem corrigidos (KLICKSTEIN, 2009, p. 52). A capacidade de autoavaliar-se, e de, portanto, monitorar, reagir, modificar e adaptar a própria performance durante o estudo, é um dos principais fatores para o desenvolvimento de habilidades. Para que isso ocorra, é necessário que o instrumentista se mantenha altamente concentrado durante o estudo (MCPHERSON; RENWICK, 2000; p. 6). O uso de variações é uma forma de evitar a 42 estagnação de uma habilidade que se pretende desenvolver, uma vez que acrescenta alterações e dificuldades sutis, que impulsionam, por sua vez, a manutenção do engajamento cognitivo (ERICSSON; POOL, 2016, p. 12). Durante o emprego de variações, o indivíduo deve buscar, constantemente, o ponto de equilíbrio entre a habilidade já conquistada e novos desafios (ERICSSON; POOL, 2016, p. 29). 2.2.3.3 O Verdadeiro Estudo "Diligente" Para finalizar a carta, Tartini (1913) mais uma vez retorna à importância do estudo: “não devo apresentar outros estudos para você; o que eu já disse é mais do que suficiente se a sua diligência for compatível com a minha aspiração para o seu progresso”. Pode-se observar a relação de causalidade entre os trechos “o que eu já disse é mais do que suficiente" e "se a sua diligência for compatível com a minha aspiração”. O trabalho que a aluna deve realizar durante seu estudo definirá seu progresso, não o material de estudo em si, ou meramente a realização das instruções de seu professor. O estudo individual, que a princípio pode parecer algo simples, intuitivo e unicamente dependente de disciplina e diligência, possui aspectos mais complexos. Para aumentar suas habilidades em um instrumento musical, alunos precisam aprender e cultivar uma variedade de comportamentos, técnicas e atitudes mentais (incluindo organização, planejamento, adoção de estratégias, automonitoramento, adequação e desenvoltura), que fornecerá condições para, inclusive, quando necessário, buscar orientação. A prática eficiente é, por si só, uma habilidade que deve ser cultivada, regulada e monitorada. Diligência é, certamente, um de seus componentes, porém não o único. Nas palavras de Ericsson e Pool (2016, p. xxi, tradução nossa): A impressão de que a força de vontade e trabalho árduo levarão ao aprimoramento da performance [...] é equivocada. A forma correta de estudar, quando realizada por período suficiente, leva ao progresso.30 2.4 TRATADOS DO SÉCULO XVIII: O LEGADO DOS GRANDES MESTRES DE VIOLINO Os escritos de Tartini foram extremamente influentes, tendo sido incorporados, entre outros, no famoso tratado Violinschule (Escola de Violino) de Leopold Mozart (1719 – 1787) (STOWELL, 2008, p. 224). Essa obra, que foi o primeiro tratado de violino publicado escrito 30 No original: the impression that heartfelt desire and hard work alone will lead to improved performance [...] is wrong. The right sort of practice carried out over a sufficient period of time leads to improvement. 43 em alemão, foi criada com a finalidade de auxiliar professores e alunos em procedimentos e conhecimentos básicos do instrumento (SANTOS, 2011, p.51). Mozart coloca as questões pedagógicas no cerne de seu tratado, demonstrando preocupação tanto com a apresentação de didática adequada quanto com a conduta do aluno, em clara intenção de contribuir para o aprimoramento do ensino do violino (SANTOS, 2011, p. 50). Sua motivação, que se verifica no prefácio, parece ter sido a frustração com a qualidade do ensino em Salzburg: Eu sempre me perguntei por que nunca foi publicado um guia para tão popular e, para a grande parte das músicas, tão indispensável instrumento como o violino, já que uma boa fundação, e, em particular, algumas regras para arcadas especiais, conjuntamente com bom gosto, se fazem há muito tempo necessários. Eu sempre me sentia triste quando encontrava pupilos tão pessimamente ensinados; levando não somente que eu tivesse que os fazer reiniciar desde o início, mas também tendo que enfrentar processos dolorosos para erradicar defeitos que haviam sido ensinados, ou, no mínimo, ignorados31 (MOZART, 1985, p. 7, tradução nossa). Com numerosas e detalhadas instruções para a realização de ornamentos, articulações, ritmos e arcadas, Mozart expõe sua visão sobre aspectos da estética musical do século XVIII, defendendo uma performance musical caracterizada por consistência técnica e o refinamento estético. Seu tratado alcançou rápido e duradouro sucesso, sendo imediatamente traduzido para holandês e francês, além de inúmeras traduções posteriores para outras línguas (REEL, 2016). McVeigh (2008, p. 56) acredita ser esse o material de cunho didático mais completo do século XVIII. Já Kolneder (1998, p. 349) elege o tratado de Francesco Geminiani (1687 – 1762) em primeiro lugar, seguido do livro de Leopold Mozart. Em terceiro lugar viria o método do violinista francês Joseph-Barnabé Saint-Sevin dit L'Abbé le Fils (1727 – 1803). Sem entrar nesse mérito, a trajetória dessas três obras ilustra a marcante expansão na produção de material didático voltados para formação mais meticulosa no violino. Geminiani é representante da assim chamada escola italiana, fundada por Corelli, que se espalhou por meio da disseminação de virtuosi italianos pela Europa, sendo agregada por outras escolas. A publicação de L'Abbè, por sua vez, representa um marco do fim da hegemonia italiana e a ascensão de Paris como centro de excelência na formação do violino. Trata-se de uma obra que proporciona uma coletânea abrangente de aspectos técnicos desenvolvidos até meados do século XVIII, cobrindo desde a execução de harmônicos naturais e artificiais até golpes de arco mais modernos (KOLNEDER, 1998, p. 351). A Arte de Tocar Violino (1751), de Francesco Geminiani, foi o primeiro tratado 31 No original: I often wondered greatly that nothing had been published as a guide to so popular and, for the greater part of music, so indispensable an instrument as the violin, in view of the fact that a sound foundation, and in particular some rules for special bowings, coupled with good taste, have long been needed. I was often sad when I found that pupils had been so badly taught; that not only had I to set them back to the beginning, but that great pains had to be taken to eradicate the faults which had been taught, or at best had been overlooked. 44 voltado para violinistas profissionais e avançados. Virtuoso, professor e compositor, Geminiani estabeleceu-se em Londres em 1714, onde expandiu sua carreira, tornando-se um dos violinistas mais aclamados de seu tempo (MCVEIGH, 2008, p. 55). Seu livro, repleto de instruções que lidam com amplo espectro de problemas técnicos, conquistou extenso público, influenciando, inclusive, outros autores de materiais didáticos para violino (SUNDAY, 2011). Um dos princípios que guiavam sua pedagogia era a ideia de que a técnica é inseparável da expressividade. Assim como seus predecessores italianos, Geminiani utilizava o canto e a voz humana como modelos de ideal musical. O desenvolvimento técnico significava, acima de tudo, adquirir habilidades expressivas por meio de controle de dinâmica, ornamentos e vibrato empregado de forma contínua32 (SUNDAY, 2011, p. 4). No tratado constam, também, instruções relacionadas a postura, cordas duplas e estudos rítmicos. Inovações ligadas a Geminiani incluem o emprego de extensão e mudança de posição por substituição dos dedos da mão esquerda (Figura 9) e de dedilhados cromáticos (Figura 10), em que se utilizam os quatro dedos posicionados consecutivamente (SUNDAY, 2011). Figura 9: Exercício de extensão e substituição de Geminiani Fonte: Kolneder (1998, p. 344) Figura 10: Escala cromática de Geminiani Fonte: Kolneder (1998, p. 344) Ao ensinar o posicionamento dos dedos da mão esquerda, Geminiani aconselhava a utilização de marcações utilizadas como guia visual. Diversas vezes, separava o estudo de aspectos pertinentes à mão esquerda daqueles da mão direita, evitando, assim, sobreposição 32 Uma das principais diferenças entre a escola de Leopold Mozart e a de Geminiani é a recomendação de utilização do vibrato contínuo; Mozart era contrário a essa prática, restringindo o uso do vibrato a resoluções harmônicas (SUNDAY, 2011). 45 de dificuldades. Sua abordagem metódica e analítica influenciou gerações futuras de professor