Rio Claro 2019 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS - RIO CLARO ECOLOGIA AUGUSTO CESAR ALVES LEANDRO ETNOBOTÂNICA EM TERREIROS DE CANDOMBLÉ: PLANTAS, MITOS E RITOS AUGUSTO CESAR ALVES LEANDRO ETNOBOTÂNICA EM TERREIROS DE CANDOMBLÉ: PLANTAS, MITOS E RITOS Orientadora: Márcia Reami Pechula Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - Câmpus de Rio Claro, para obtenção do grau de Ecólogo. Rio Claro 2019 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Instituto de Biociências, Rio Claro. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. 1. Etnobotânica. 2. Ecologia Humana. 3. Plantas Medicinais. 4. Candomblé. I. Título. Leandro, Augusto Cesar Alves Etnobotânica em terreiros de Candomblé : plantas, mitos e ritos / Augusto Cesar Alves Leandro. -- Rio Claro, 2019 35 p. Trabalho de conclusão de curso ( - ) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências, Rio Claro Orientadora: Márcia Reami Pechula L437e Dedico esse trabalho à minha família, aos meus amigos e, principalmente, aos meus ancestrais. AGRADECIMENTOS Antes de começar a agradecer, não posso me esquecer dos muitos que tentaram e não tiveram a oportunidade que hoje tenho. Aos meus ancestrais, povo preto e escravizado, que sempre lutaram para um mundo digno e para sua liberdade de expressão, de viver, de ir e vir. Agradeço à minha mãe, Lucimara do Carmo, à minha avó Maria das Dores e à minha tia Inamara Aparecida (hoje não mais presentes no mundo físico), por terem sido grandes mulheres; guerreiras, destemidas, mesmo com a vida sofrida, o sorriso não lhes faltava no rosto. À elas, minha maior gratidão, pelo amor e dedicação; por nunca me deixarem desistir de mim e do meu potencial. Por acreditarem que eu poderia estar onde estou e que venceria todas as batalhas da vida. À minha irmã Adnã, minhas primas (irmãs de coração e criação) Inara e Iná Delaci, por estarem juntas comigo em todos os momentos, sendo meus alicerces e fortaleza, por serem o reflexo do amor de nossas mães e avó, e pela singularidade de cada uma e pela união que temos. À minha prima Geissa, por sempre acreditar em mim. Ao Kauê, por ser amigo e irmão, estar junto desde o berço em toda essa jornada. Ao Ilê Iyá Omi Asé Oiyá Bocossun e ao Asé Adelode, por me mostrarem o que é ancestralidade, me formarem o homem e zelador espiritual que sou hoje, acreditando que o sagrado vindo da mãe África é vivo e belo em seus mínimos detalhes. Com toda a riqueza, com todos os Orixás e entidades, com a beleza na humildade de cada ser e ação, adupé! Gratidão aos meus amigos, companheiros de caminhada, que desde a infância estiveram presentes; saibam que são de grande importância para mim. Aos amigos que a universidade me trouxe, por me orientarem e auxiliarem nessa jordada. Ao Vinícius (Fiuk), Loris (Camila), Terts (Túlio), Stitch (Karen), Erre dois (Júlia), Alergia (Rayane), Preguiça (Gabriel), Moranguinho (Carol), Papete (Guilherme), Chuck (Laura), pelo jeito único de cada um, pelos ensinamentos e vivências, brigas e choros. O crescimento que tivemos juntos para hoje sermos quem somos, e principalmente, quem eu sou, devo a cada um de vocês e a todos que estiveram nessa caminhada comigo. Cada um sabe o carinho e a admiração que tenho e o lugar que ocupam. Obrigado. Vocês são imprescindíveis em minha vida. À toda Ecologia e à Eco 13, dedico. Agradeço de forma geral a todos os professores, que nunca desistiram do meu potencial e que me fizeram enxergar que eu era capaz, não me deixando desistir do sonho de ter o meu diploma. Isso foi crucial para que eu chegasse nesse momento e no lugar onde estou. Toda a vivência, saídas de campo e experiências me tornaram a pessoa que sou hoje, portanto, agradeço ao Universo pelo dom da vida. Agbènígi, òromú adìe abìdí sonso Esinsin abèdò kíní-kíní. Òsànyín a rí ibí rí òhún. Bí Elédùmarè. Aláse Ewé. Òsànyín!! Níbo ní Òrúnmìlà nlo tí ko mú Esù dání. Níbo ní Òrúnmìlà nlo tí ko mú Òsànyín dání. Aròní elésè kan sonso. Bàbá ni aláse ewé fún Òrúnmílà àti gbogbo àwon òkànlénigba ìmonlè. Aképè nígbá òrò kò sunwòn. Elésè kan ju elésè méjì lo. A níyí káyé bí Elédùmarè. O gba àse ogun ta gíe-gíe. Aròní elése kan tí o gba olókùnrùn kalè, bí ení gbe omodé. Aro abi-okó gíe-gié Ewé gbogbo kìkì oògùn. Ewé ò !!! Ewé ò!! Ewé ò!! A pè è ní gùsú. O lo jé ní àríwá. A niyi kari aye. À npè o, wá jé wa ooo. Omo awo ní nse oògùn. Òsànyín wá jé wa. Agbénígí, o pintinho que possui cloaca pontuda, a mosca que possui figado de tamanho ínfimo. Ossain, que vê aqui e acolá como Elédùmarè. O portador do axé das folhas. Ossain!!! Para onde vai Orunmilá, que não leve consigo Exú? Para onde vai Orunmilá, que não leve consigo Ossain? O aleijado, que possui uma única perna. O pai, senhor do axé das folhas, perante Orunmilá e as duzentas e uma divindades. Aquele que é chamado quando as coisas não vão bem. Ele, que tem uma única perna, é melhor do que aquele que têm as duas. é respeitado em toda parte assim como Elédùmarè. Com o axé da magia e da medicina, mostra-se com firmeza. O aleijado, que possui uma perna e que ainda assim salva o doente, com a mesma facilidade com que alguém segura um recém-nascido. O aleijado que possui pênis forte. Para ele todas as folhas têm finalidade mágica e medicinal. Ó folha! Ó folha! Ó folha! O chamamos no sul, ele responde no norte. Ele que é louvado e respeitado por toda parte. Seus filhos lhe chamam. Venha nos atender. Ossain, venha nos ouvir! RESUMO O Candomblé, religião afro-brasileira pautada no culto a divindades associadas a fenômenos e elementos da natureza, os Orixás, apresenta diversas crenças e práticas relacionadas ao uso medicinal e ritualístico de plantas, com forte simbolismo a elas intrínseco. Devido a importância da preservação cultural desta, que é uma religião que sofre diversas estigmatizações, bem como do seu papel quanto ao mantenimento e conservação de saberes ligados à natureza, a qual configura eixo central na cosmovisão candomblecista, o presente trabalho objetivou a realização de revisão bibliográfica de autores clássicos e atuais em Ecologia Humana, Etnobotânica e Antropologia Social, cujas pesquisas envolvem o Candomblé e as plantas de importância litúrgica. Palavras-chave: Etnobotânica. Ecologia Humana. Plantas Medicinais. Candomblé. ABSTRACT Candomblé, an Afro-Brazilian religion based on the worship of deities associated with phenomena and elements of nature, the Orixás, presents many beliefs and practices related to the medicinal and ritualistic use of plants, with intrinsic symbolism. Due to the importance of its cultural preservation, which is a religion that suffers several stigmatizations, as well as its role regarding the maintenance and conservation of knowledge related to nature, which configures the central axis in the Candomblecist worldview, the present work aimed to perform a review of authors in Human Ecology, Ethnobotany and Social Anthropology, whose researches involve Candomblé and plants of liturgical importance. Keywords: Ethnobotany. Human Ecology. Medicinal Plants. Candomblé. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 9 2 ETNOBOTÂNICA ENQUANTO ÁREA DE ESTUDO INTERDISCIPLINAR 11 2.1 Histórico da Etnobotânica como ciência 11 2.2 Plantas medicinais 13 2.3 Plantas, comida e liturgia 16 3 A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA: DA CHEGADA AO NOVO MUNDO À ORIGEM DO CANDOMBLÉ 21 4 KOSI EWÉ, KOSI ÒRÌSÀ: A LITURGIA DAS PLANTAS NO RITUAL DE CANDOMBLÉ 25 4.1 Ewé o! Ewé o! O reino Vegetal no Candomblé 25 4.2 A Etnobotânica do Candomblé em terra brasilis: intercâmbios afro-indígenas e a influência na cultura brasileira 27 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 30 REFERÊNCIAS 31 9 1 INTRODUÇÃO Entre usos medicinais e ritualísticos, a relação das populações humanas com as plantas é marcada por forte simbolismo e por diversas crenças e práticas associadas a esses usos. Por conta disso, a pesquisa etnobotânica configura importante ferramenta para a compreensão da relação entre a comunidade e as espécies vegetais de relevância para a mesma, respaldando a conservação e valorização do conhecimento tradicional e dos saberes populares, comumente atrelados a uma difusão majoritariamente oral e a poucos registros documentados pelos sujeitos envolvidos na utilização desse conhecimento (CAMARGO, 2014; CARLESSI, 2016). Pode ser entendida, portanto, como um campo de pesquisa de abordagem interdisciplinar, cujo estudo envolve saberes e conceituações desenvolvidas por populações humanas quanto à flora, compreendendo desde seus sistemas de classificação até usos e finalidades (AMOROZO, 1996; CABALLERO, 1979). Dessa forma, a etnobotânica representa um meio de promover o resgate e a perpetuação de conhecimentos tradicionais referentes às plantas de valor medicinal, nutricional, ritualístico e cultural, bem como de possibilitar que seus usos possam ser respaldados e assimilados pela ciência, garantindo assim seu reconhecimento (AMOROZO, 1996; AMOROZO e GÉLY, 1988) O candomblé é uma religião afro-brasileira de caráter iniciático, com forte valorização do culto à ancestralidade. Caracteriza-se pela devoção aos Orixás, seres divinos associados a elementos da natureza e a fenômenos meteorológicos, cujos mitos e ritos relacionados são transmitidos oralmente, tais quais os valores e costumes que concernem a cada uma das divindades (BAPTISTA, 2008; EVANGELISTA, 2015). Por ter sua doutrina pautada na natureza, na ancestralidade e na tradição oral, o candomblé como objeto de estudo da pesquisa etnobotânica apresenta grande importância e riqueza em conhecimento tradicional. As plantas desempenham dentro e fora do ritual importante papel no cotidiano dos candomblecistas, tendo fins tanto litúrgicos quanto medicinais, como em banhos de ervas, defumações, oferendas, chás, entre outros (TRINDADE et al apud PIRES et al, 2009). Nos próprios rituais de iniciação à religião, as folhas exercem funções essenciais, sendo, antes e durante seu uso, rezadas, cantadas e quinadas, agregando valor simbólico e sacro às mesmas (VERGER, 1981). Ademais, os assentamentos dos Orixás, que representam as divindades no mundo terreno por meio de um espaço físico a elas destinado, são de fundamental importância para o terreiro de candomblé, e muitas vezes tem seus igbas (instrumentos sagrados que simbolizam a ligação entre o terreiro e o meio espiritual onde se encontra o Orixá) compostos e ornamentados com plantas associadas ao Orixá em questão. Um exemplo de planta com 10 múltiplos usos dentro do ritual é o cipó de abre-caminho (Justicia gendarussa Burm. F., Acanthaceae), utilizado nas comidas oferendadas a Ossaim, Orixá portador dos saberes a respeito dos segredos e poderes das plantas, considerado o curador e feiticeiro; além de ser utilizado no preparo de banhos para abertura de caminhos, atrair prosperidade, etc (BARROS, NAPOLEÃO; 2007). Visto a importância das plantas para o mantenimento da religião e seus cultos, e sabendo-se das pressões que as religiões de matriz africana têm sofrido, faz-se necessária a valorização da cultura afro-brasileira e dos saberes tradicionais oriundos dos terreiros de candomblé. Nesse contexto, o presente trabalho propôs a realização de um levantamento bibliográfico a partir de uma revisão da literatura existente quanto à Etnobotânica e Antropologia Social de Candomblé, objetivando contribuir para a conservação desse conhecimento de tamanha relevância na formação da identidade brasileira, na contra-mão de movimentos que visam estigmatizar e suprimir as matizes culturais de origem africana. 11 2 ETNOBOTÂNICA ENQUANTO ÁREA DE ESTUDO INTERDISCIPLINAR 2.1 Histórico da Etnobotânica como ciência Desde o início do período Neolítico, em que populações humanas se sedentarizaram e iniciaram a aplicação de técnicas agronômicas rudimentares, a relação homem-planta tornou- se central no desenvolvimento da Humanidade. Nesse ínterim, muitos vegetais tiveram seus usos possibilitados e aprimorados, por meio da seleção artificial, em que indivíduos os quais apresentavam traços de interesse eram intercruzados a fim de gerar novas variedades. Remonta do Neolítico o início da utilitarização da natureza e de seus elementos e, a partir desse cenário, as plantas configuram componente essencial na manutenção de sistemas humanos, tanto como alimento, quanto como fármaco ou mesmo ferramentas litúrgicas que possibilitariam a conexão com o divino, devido a suas propriedades enteógenas mas não somente. Tendo em vista o reino vegetal como intrínseco no processo de formação da cultura dos mais diversos povos, a Etnobotânica se destaca como campo da ciência de fundamental importância à compreensão sociocultural de sociedades tradicionais ou não. Além disso, como subárea da Botânica, a Etnobotânica possibilita vincular conhecimentos científicos aos saberes tradicionais, visto que o uso popular de plantas para diferentes fins se deu especialmente através da experimentação ativa e da transmissão oral. De acordo com Prance (1991), a Etnobotânica enquanto ramo da ciência surge a partir dos trabalhos do botânico e zoólogo Carolus Linnaeus (1707 - 1778), pois os diários de suas expedições continham registros e dados referentes às espécies encontradas e às culturas locais, bem como os costumes das populações e o modo de uso de plantas para finalidades diversas, tendo marcada interdisciplinaridade. Contudo, o termo só foi utilizado pela primeira vez em 1896, alcunhado pelo botânico John W. Harshberger (SCHULTES & REIS, 1995; CLÉMENT, 1998). Harshberger, em um artigo científico a respeito da construção de um museu com objetos aborígenes, traz a Etnobotânica como disciplina, além de discorrer sobre seus objetivos básicos (HARSHBERGER, 1896; CLÉMENT, 1998). Nesse mesmo ano, foi publicado também o artigo “A contribution to ethnobotany” (FEWKES, 1896), que corresponde a importante marco na consolidação desse campo de estudo. Ao longo do seu desenvolvimento, a Etnobotânica enquanto subárea científica apresentou fases marcadas de acordo com os interesses vigentes na época, dando diferentes direcionamentos aos estudos a partir disso (CLÉMENT, 1998; DAVIS, 1995). Nos séculos XVIII e XIX, os olhares das sociedades industriais voltavam-se aos etnosaberes com o intuito 12 de apropriar-se dos mesmos desde que apresentassem funcionalidade às mesmas, restringindo seu interesse às sociedades não-industriais em contextos que apresentassem benefícios econômicos (DAVIS, 1995). Diante desse cenário, Clément (1998) divide a Etnobiologia em três momentos, sendo eles: (I) o período pré-Clássico, que teve duração desde o início de 1860 até meados de 1950, e pode ser caracterizado pelo enfoque à coleta de dados sobre o uso de recursos; (II) o período Clássico, que vai de 1954 a 1980 e é marcado pela sistematização etnobiológica, e (III) o período pós-Clássico, que se estende até os dias atuais, destacando-se devido à participação das populações não apenas como objetos mas também como sujeitos da pesquisa. A medida em que a Etnobotânica avança na Academia, e devido ao seu caráter interdisciplinar, pesquisadores de diferentes áreas trataram de conceituá-la. Para Caballero (1979), a etnobotânica pode ser considerada como um campo da ciência que engloba conhecimentos de ramos distintos da mesma, compreendendo o estudo da significação cultural, do manejo e dos usos tradicionais da Flora. Xolocotzi (1983), por sua vez, definiu a etnobotânica como o estudo das relações estabelecidas entre o homem e as plantas ao longo do tempo, em diferentes meios nos quais estes se inserem. Minge Amaral Júnior (1995) ao conceituar a Etnobotânica busca abranger, também, os aspectos da relação do ser humano com as plantas tanto em ordem material, como os usos e finalidades e seu manejo, quanto imaterial, no que diz respeito a símbolos de culto, folclore envolvido, tabus e liturgia de plantas sagradas. Já Maria Christina de Mello Amorozo (1996) conceitua a etnobotânica como o estudo do conhecimento e das sistematizações desenvolvidas por diferentes grupos humanos a respeito de plantas presentes no meio que os circundam, envolvendo tanto o modo como as rotulam quanto seus usos e fins. Outros autores buscaram conceituar a Etnobotânica, entretanto, esse levantamento bibliográfico alinhou-se à definição desenvolvida por Amorozo (1996). As contribuições da Etnobotânica, desde que se estabeleceu, são crescentes, e intensificou o desenvolvimento de trabalhos realizados com povos indígenas da Amazônia, visto a ampla riqueza e diversidade sociocultural da região e a estreita relação dessas populações com a vegetação local (MACIEL, 2008; PRANCE, 1987). Ressaltam-se estudos como o feito por Rodrigues (2001), na comunidade indígena da etnia Krahô; Coutinho e colaboradores (2002), os quais realizaram levantamentos etnobotânicas de plantas utilizadas por povos indígenas no estado do Maranhão; bem como os levantamentos de plantas medicinais utilizadas pelos Tapebas no estado do Ceará (MORAIS et al, 2005). 13 Hoje, os estudos etnobotânicos não se limitam a plantas de interesse econômico, e englobam saberes que vão desde a Etnofarmacologia e o uso de plantas com propriedades medicinais, bem como os conhecimentos tradicionais relacionados (LÉVI-STRAUSS, 1975); plantas de valor alimentício e potencial na subsistência de populações humanas, como a mandioca (ELIAS et al, 2004; MARCHETTI, 2013; OLER, 2012) ou mesmo as plantas alimentícias não-convencionais (PANCS), cada vez mais em pauta tanto em meios populares quanto científicos (KINNUP; LORENZI, 2014); além dos seus usos religiosos e ritualísticos, como no consumo de bebidas enteógenas tais quais a ayahuasca e o santo daime (GOULART, 2004; KEIFENHEIM, 2004) ou no preparo de banhos e defumações em religiões como a umbanda e o candomblé (CARLESSI, 2016; VERGER, 1995). 2.2 Plantas medicinais Wa dàgò l’ojú ewé, àwa dàgò l’ojú e mò oògun A dàgò l’ojú ewé, a dàgò l’ojú e mó oógun Pedimos licença para que nossos olhos possam ver o conhecimento da medicina. Pedimos licença, para nossos olhos verem vosso conhecimento das folhas. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), plantas medicinais são aquelas que, quando administradas pelo ser humano, por qualquer via, exercem ação farmacológica, e o estudo destas inclui-se entre os programas prioritários da OMS, a qual afirma seu uso dentre a assistência médica primária de boa parte da população mundial, especialmente em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento (ALONSO, 1998; SILVA et al, 2009). Segundo a mesma, cerca de 3,5 bilhões de pessoas utilizam as plantas medicinais no tratamento da saúde nesses países e, ao redor do mundo, cerca de 85% são adeptos de tratamentos à base de plantas, bem como 25% dos medicamentos farmacêuticos derivam de vegetais (RAI et al., 2000). Apesar da alta expressividade dos saberes populares relacionados ao uso de plantas no cuidado com a saúde, estes muitas vezes são subjugados, especialmente com o advento da industrialização e com a expansão da indústria farmacêutica no mercado. Nesse contexto, a 14 Etnobotânica tem o potencial de colaborar para a valorização de conhecimentos tradicionais frente o aumento do uso fármacos alopáticos e das questões que envolvem o uso indevido de etnosaberes e de vegetais, envolvendo problemáticas referentes a apropriação de patentes e ameaças à sociobiodiversidade (BAPTISTA, 2012; CUNNINGHAM, 1993; ELIZABETSKY, 2003). No que concerne à proteção dos conhecimentos tradicionais referentes a plantas medicinais, a legislação brasileira tem progredido, como com a incorporação da fitoterapia ao Sistema Único de Saúde - SUS (FERREIRA, 2012). Como subdivisão da Etnobiologia, a Etnofarmacologia reserva-se ao estudo de sistemas tradicionais da medicina, associando saberes populares a estudos químicos, em abordagem farmacológica (ELIZABETSKY, 2003). A Etnofarmacologia inicia-se na América Latina a partir do século XVI, devido ao interesse de missionários jesuítas sobre as plantas utilizadas pelas populações nativas (CUNNINGHAM; MENEZES, 2011). No Brasil, boa parte dos conhecimentos etnofarmacológicos tem origem indígena, e apresenta também matrizes africanas e europeias, visto a história étnica do país (CAMARGO, 2006). Essa herança cultural reflete na formação identitária das diferentes populações que compõem o povo brasileiro e, especialmente, nas comunidades tradicionais que fazem da relação com a flora que os circunda um dos elementos centrais de seu modo de vida (ALMEIDA, 2011; LINDENMAIER; PUTZKE, 2011). Os saberes populares em relação a plantas medicinais são envoltos em dualismo, assumindo posição no limiar entre o místico e o medicinal (CAMARGO, 2006). Além disso, por se tratar de um conhecimento transmitido de forma majoritariamente oral ao longo das gerações, muitas vezes não pode ser justificado e nem é respaldado cientificamente, o que o coloca à margem do conhecimento acerca da saúde humana e configura ao mesmo um status de inferior em relação a conhecimentos médicos e farmacológicos técnicos (AMOROZO, 1996; CAVALLI-SFORZA et al, 1982). Um exemplo de ofício tradicional carregado de influência mágico-religiosa e estritamente ligado à flora e ao bioma em que essa população se encontra é o dos raizeiros e benzedeiras (GUARIM-NETO, 2006). Descendentes de indígenas e africanos, os raizeiros e benzedeiras do Cerrado são os responsáveis pela saúde comunitária local por meio dos recursos naturais e da espiritualidade, e têm grande conhecimento sobre a rica e diversa flora do bioma, que oferece cascas, folhas, frutos, sementes e flores com diferentes propriedades e usos, compondo produtos como as tradicionais garrafadas. Considerados curandeiros nas matas, relacionam o conhecimento empírico sobre o uso de plantas a um conjunto de crenças, mitos e ritos, do qual não pode ser dissociado, tanto é que em muitas das suas aplicações 15 medicinais, atrelado ao uso dos produtos feitos tradicionalmente está a entoação de cantos, orações e palavras sagradas (GUARIM-NETO, 2006). Devido a sua importância na manutenção do sistema de saúde de povos tradicionais do Cerrado, tramita desde 2004 a proposta de pedido de registro do ofício de raizeiro como Patrimônio Cultural Imaterial no Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), já em processo de reconhecimento. A articulação de raizeiros para esse fim é crescente e conta com o apoio de organizações da sociedade civil, como a “Articulação Pacari - Plantas medicinais do Cerrado”, o que além de impulsionar a luta dos mesmos pelo registro no IPHAN, gerou materiais em que se expõe a vida e as histórias de raizeiros, bem como parte dos conhecimentos que detêm, como a publicação da Farmacopeia do Cerrado (http://www.pacari.org.br/). Como se ilustra através da relação dos raizeiros com a biodiversidade do Cerrado, intrínseca à valorização da Etnobotânica e da Etnofarmacologia está a proteção à biodiversidade brasileira e ao patrimônio genético. Como dispõe a Lei 13.123/2015, O acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado será efetuado sem prejuízo dos direitos de propriedade material ou imaterial que incidam sobre o patrimônio genético ou sobre o conhecimento tradicional associado acessado ou sobre o local de sua ocorrência (BRASIL, 2015). Essa Lei sancionada em maio de 2015 respalda povos indígenas e tradicionais na aquisição e conservação de seus conhecimentos, que além de serem parte essencial em suas culturas, contribuem para a conservação do meio ambiente e dos respectivos biomas dos quais se originam. Nesse sentido, esta configura instrumento legal que corrobora com a defesa dos etnosaberes frente a ameaças da indústria, tanto sobre essas populações quanto sobre o patrimônio genético e a biodiversidade nacional. O ofício dos raizeiros e benzedeiras exemplifica a estreita relação que o os sistemas de saúde tradicionais podem ter com a espiritualidade. Além do caráter curativo das plantas medicinais, estas carregam outros atributos de grande importância dentro das dinâmicas sociais e culturais de populações tradicionais e de sociedades tradicionais, entre eles, o uso religioso e ritualístico (CAMARGO, 2006). Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo está entre os principais nomes da Etnofarmacobotânica, sendo autora e coautora de diversos artigos e livros que abordam a sacralidade de ervas medicinais, especialmente nos cultos afro- brasileiros. Nas religiões de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé no Brasil, as ervas assumem papéis diversos, tanto em processos iniciáticos quanto na conexão com o http://www.pacari.org.br/) 16 divino; bem como para fins terapêuticos. Cabe, também, à Etnobotânica, o estudo de plantas em contextos litúrgicos, o qual será abordado no decorrer dessa pesquisa. 2.3 Plantas, comida e liturgia Ó igi igi òtá Àròní ó O igi igi òtá Àròní ó Ewé bo igi igi àwòrò oógun mòm, ó igi igi ìtá Àròní ó Òtá Àròní ó A árvore é a pedra de Àròní É a árvore o culto às folhas e a árvore é de Àwòrò, que conhece os segredos da medicina e da magia Além de suas propriedades medicinais e terapêuticas, às plantas se atribuem valores assumidos em níveis extra-materiais, conferidos por meio da espiritualidade. As terapias e sistemas de tratamento populares adquirem, portanto, caráter mágico-religioso, no qual o homem é considerado não apenas ser biológico, mas leva-se em conta sua dimensão simbólica, mantendo intrínsecos corpo, mente e espírito (CAMARGO, 2014). De acordo com Durkheim (1989), as plantas se tornam sagradas a partir do instante em que se impute às características biológicas das mesmas um valor sacral, conferindo a estas poderes sobrenaturais e que muitas vezes necessitam a ativação por um curandeiro ou sacerdote. As plantas assumem, dessa forma, duas ordens de funções, que apesar de diferentes, são complementares. De acordo com Camargo (2014), o papel sacral das plantas define-se a partir de seu [...] valor simbólico, subjetivamente construído no mito e legitimado no rito, capaz de impregnar as plantas de poderes curativos emanados de forças sobrenaturais, segundo ditam os sistemas de crença dos quais fazem parte o doente, o curador e seu grupo familiar e social. A autora acrescenta: No papel sacral percebe-se a prevalência do pensamento subjetivo de explicações passíveis de diferentes interpretações, levando-se em conta como o paciente vivencia a determinante etiológica decodificada pelo curador, aquele que conduz o ritual de cura. (CAMARGO, 2014, p. 10). 17 Além do seu aspecto mágico-religioso, há também o papel que a autora trata como funcional, o qual é definido “com base no valor intrínseco que as plantas encerram, considerando os componentes químicos, responsáveis pelas atividades biológicas, passíveis de verificação empírica.” (CAMARGO, 2014, p.10). [...] prevalece o pensamento passível de verificação empírica, visto as plantas encerrarem princípios ativos, os quais variam segundo sua composição química e, consequentemente na atividade biológica. Esta, todavia, não decorre de um só elemento químico presente, mas da ação sinérgica de todos os componentes presentes na planta toda, podendo, porém, estarem mais concentrados em uma ou mais partes dela, como: na raiz, no caule, na casca, na folha, na flor, no fruto e na semente, considerando, ainda, como as plantas são consumidas [...] (CAMARGO, 2014, p. 11). O consumo das plantas em contextos mágico-religiosos e terapêuticos pode se dar de diferentes maneiras, como por ingestão de bebidas preparadas; em banhos feitos a partir de macerados de ervas; aplicação sobre a pele, escarificada ou não; aspiração pelas narinas; inalação da fumaça através de incensórios ou outros utensílios; fumo, etc. A esse modo de uso muitas vezes está associado um conjunto rígido de crenças, regras e dogmas, dos quais as plantas e sua utilização não deve ser dissociada, sob risco de perderem sua eficácia (CAMARGO, 2006). No Brasil, devido às matrizes indígena, africana e europeia que originaram e compõem o sistema mágico e religioso associado a curas do corpo e da alma, a diversidade dos mesmos é imensurável; contudo, alguns exemplos ilustram bem a relevância do tema tanto no cenário sociocultural brasileiro quanto na área médica, tendo em vista plantas cuja utilização tem se destacado devido aos recentes estudos acerca das mesmas, bem como os trâmites legais pelos quais seu uso passou até ser legitimado e legalizado. A ayahuasca, também conhecida como hoasca e Daime, é uma bebida de coloração marrom escura, aspecto viscoso e caráter alucinógeno ou enteógeno, devido à presença do alcalóide dimetiltriptamina (DMT), e produzida a partir da fervura de duas plantas diferentes: o cipó-de-mariri (Banisteriopsis caapi, Malpighiaceae) e a chacrona (Psychotria viridis, Rubiaceae). Disseminado entre populações e comunidades indígenas por toda a Bacia Amazônica e considerada “medicina” pelos seus praticantes, o consumo da ayahuasca se expandiu mesmo entre centros urbanos, especialmente através de religiões como o Santo Daime e a União do Vegetal, que propõem a utilização do chá dentro da doutrina, a fim de auxiliar nos processos de cura e iluminação espiritual (MCKENNA, 1984; NEVES, 2017). As pesquisas acerca da ayahuasca tiveram início com o botânico Richard Spruce (1817 - 1893), que percorreu a Amazônia brasileira, venezuelana e equatoriana entre os anos de 1849 e 1864, 18 viagem que rendeu o primeiro inventário de espécies botânicas amazônicas (SANGIRARD, 1989; SCHULTES, HOFFMANN, 1992). Mais recentemente, a organização não- governamental Center for International Environmental Law (CIEL), associada à Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA) conseguiu impedir que o chá fosse patenteado após requerimento feito ao órgão americano Patent and Trademark Office (SANGIRARD, 1989; MCKENNA et al, 1998). No ano de 1985, o antigo Conselho Federal de Entorpecentes (COFEN) incluiu B. caapi na lista de drogas ilegais, proibindo seu uso e a prática ritualística em contextos não-indígenas, e em 1987, o governo federal aprovou no Brasil o consumo de ayahuasca apenas em cerimônias religiosas; concessão que intervém legalmente no período de mais de 1.600 anos em que o uso e ritualística que toca à ayahuasca manteve-se restrita a indígenas, visto que a bebida era combatida de acordo com a política de Guerra às Drogas que já se instituía (MCKENNA et al, 1998). Apesar disso, as práticas religiosas que envolvem esta bebida ainda estão envoltas em estigmatização e perseguição e, a fim de salvaguardar a tradição, grupos ayahuasqueiros entraram com pedido de patrimonialização pelo IPHAN, movimento o qual continua em curso (ASSIS; RODRIGUES, 2017). Com a legitimidade do uso ritualístico da ayahuasca, religiões a ela ligadas podem se expandir e fortalecer, como é o caso também da Umbandaime, a qual integra a bebida à Umbanda, de forma com que seu consumo passa a envolver “possessão” ou “transe” (termos estes que, apesar de serem amplamente utilizados, são considerados pejorativos pelos fiéis, que preferem “incorporação”) e a entoação de cantos para os Orixás, chamados de pontos, em vez dos tradicionais hinários do Daime (OLIVEIRA, 2011). Nos cultos afro-brasileiros, o vinho da jurema, extraído da planta Mimosa hostilis Benth. (Fabaceae), também surge como bebida sacra, podendo ser misturado a mais de 23 ingredientes, como vinho e mel (CAMARGO, 2006). Assim como na ayahuasca, seu principal componente é o DMT; contudo, devido à ausência de uma planta que impeça a ação de enzimas do trato digestório que bloqueiam sua ação no sistema nervoso central - papel desempenhado pela chacrona na ayahuasca - seu uso por via oral torna suas propriedades psicoativas reduzidas (CAMARGO, 2006). O consumo de plantas em práticas religiosas não se limita àquelas que apresentam propriedades terapêuticas e enteógenas. As mesmas aparecem em diferentes cenários e contextos, e para diversos fins que não apenas estes, como por exemplo na ornamentação dos espaços religiosos, nas confraternizações entre membros que compartilham da mesma fé e na confecção de oferendas a serem entregues às divindades, como acontece entre os Hare Krishna, na Índia, e nos cultos de matriz africana, no Brasil. O comer configura, portanto, ato 19 central na execução e no mantenimento de diversas tradições religiosas. À parte do seu papel na liturgia da religião, a comida e o comer, mesmo quando tem por fim apenas nutrir o corpo, carregam diversos significados e simbologias e implicam diretamente na cultura popular. De acordo com Mintz (2001, p. 31-32), O comportamento relativo à comida liga-se diretamente ao sentido de nós mesmos e à nossa identidade social, e isso parece valer para todos os seres humanos. [...] Como precisamos comer para viver, nenhum outro comportamento não automático se liga de modo tão íntimo à nossa sobrevivência. [...] A comida e o comer assumem, assim, uma posição central no aprendizado social por sua natureza vital e essencial, embora rotineira. O comportamento relativo à comida revela repetidamente a cultura em que cada um está inserido. Nos arranjos religiosos da prática do Candomblé, plantas alimentícias e a comida correspondem a elementos fundamentais e vinculam-se estreitamente ao trato com o divino e os Orixás. Comer além da boca, como tudo, é uma ampliação do conceito de comer nas religiões afro-brasileiras. Comer é acionar o axé - energia e força fundamentais a vida do homem. Certo que os modos de preparar, ao lado dos saberes, irão fazer a transmissão do axé. O orixá se alimenta e transfere ao homem seu axé, mas para que esse processo ocorra, é preciso que o alimento oferecido a ele seja bem preparado, dentro dos procedimentos da culinária afro-descendente (BELTRAME; MORANDO, p.243). Conforme a literatura, o Candomblé é uma das religiões que mais possuem rituais interligados por alimentos, onde maneiras de preparar, de oferecer, atitudes e os rituais propriamente ditos estão repletos de significados simbólicos, econômicos e sociais, sendo de alta importância para comunicação em linguagem própria – a comida. Oferecer alimento aos deuses do Candomblé é ter insigne honra de “comer” com eles, garantindo, dessa forma, a presença dos orixás na vida das pessoas (BELTRAME; MORANDO, p.246). Contudo, desde que povos africanos foram trazidos ao Brasil, as plantas utilizadas em seu rituais mudaram com o passar dos tempos, visto que as fitofisionomias e espécies vegetais encontradas e ofertadas são distintas, o que exigiu que adequações fossem feitas (CAMARGO, 2014). Um exemplo dado por Camargo (2014) é o da pimenta-malagueta, sendo que a espécie existente e utilizada na África não é a mesma conhecida no Brasil, hoje, por esse nome. A espécie trazida do território africano ao brasileiro por Portugal foi Afromomum melegueta Roscoe (Zingiberaceae), oriunda da Costa da Melegueta, região que hoje corresponde à Libéria e Serra Leoa. Contudo, após plantada na Bahia, essa espécie não foi adotada pelos negros, visto que estes ao chegarem ao Brasil encontraram a espécie brasileira Capsicum frutescens L. (Solanaceae), chamada pelos mesmos de pimenta- malagueta - nome que se mantém até os dias atuais. 20 Outro exemplo é o da banha de ori, utilizada em rituais ligados ao orixá Oxalá. Segundo publicações de Lépine (1982) e Cacciatore (1977), esta, na África, corresponde a uma manteiga vegetal, branca, retirada das amêndoas do fruto da árvore ‘emi’ Butyrospermum parkii Kotschy (Sapotaceae) ou do karité do tipo boro-boro, para o qual há registros de seu uso na África desde o século XIV, visto que é o mais rico em óleos. Entretanto, em terras brasileiras a espécie foi substituída por outra do gênero Orbignia sp, popularmente conhecida como babaçu, da qual é extraída manteiga vegetal também branca, cor essa associada à Oxalá. Constata-se, então, que desde que trazidos ao Brasil colônia para serem escravizados, os africanos tiveram incorporados em sua própria cultura e sistemas de crenças, ritos e curas alguns elementos brasileiros, bem como indígenas e europeus. É importante, para entender Candomblé enquanto religião afro-brasileira, conhecer o histórico da mesma no país, a fim de compreender os caminhos que esta - e as folhas, sem as quais não há Orixá - percorreu. 21 3 A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA: DA CHEGADA AO NOVO MUNDO À ORIGEM DO CANDOMBLÉ A roda dos não ausentes O nada e o não, ausência alguma, borda em mim o empecilho. Há tempos treino o equilíbrio sobre esse alquebrado corpo, e, se inteira fui, cada pedaço que guardo de mim tem na memória o anelar de outros pedaços. E da história que me resta estilhaçados sons esculpem partes de uma música inteira. Traço então a nossa roda gira-gira em que os de ontem, os de hoje, e os de amanhã se reconhecem nos pedaços uns dos outros. Inteiros. (EVARISTO, 2017) Originalmente usada no Antigo Testamento bíblico para definir a dispersão dos judeus pelo mundo, a palavra diáspora carrega múltiplos usos e traz em si a ideia de migração forçada, seja em busca de refúgio, quando da ocorrência de guerras e desastres naturais; seja em busca de melhores condições de trabalho; seja de maneira violenta e colonizadora, como se deu o contexto propulsor do sistema escravagista. De acordo com Wendy Walters, em seu livro “At home in Diaspora – Black International Writing”, a diáspora é designada como um “espaço global, uma teia de abrangência mundial, que se deve tanto pelo continente original quanto por qualquer lugar no mundo em que seus filhos possam ter sido levados pelas infortunas forças da história” (WALTERS, 2005, p. 7). Esse conceito de diáspora considera 22 aqueles que se deslocam de suas terras de origem para outras direções como filhos levados de suas mães, apontando para uma noção que considera “uma construção do lar múltipla, plurilocal, portanto, evitando idéias de fixidez, liberdade espacial, e exclusividade nostálgica que a idéia de lar tradicionalmente levanta” (WALTERS, p. 11). Denota, assim, a ausência de lar em um dado momento, para a reconstrução da própria identidade em outro lugar, ainda que acompanhada do desejo de retornar ao que já se foi ou aonde estava. A diáspora dos povos oriundos da África subsaariana pela América se deu em dimensões massivas durante o período do tráfico de negros escravizados, ao longo de quatro séculos, com estimativas de que até cinco milhões de pessoas tenham sido retiradas de suas terras para compor a mão-de-obra que trabalharia forçadamente em especial nas lavouras, casas de engenho e residências de latifundiários (SANTOS, 2008). Aos estudos sobre a diáspora africana, atribui-se o pioneirismo aos historiadores Joseph E. Harris e Shepperson George que, durante uma conferência realizada pela UNESCO na Tanzânia, em 1965, trouxeram à tona a temática a partir de uma ótica pluralista e que colocava o passado diaspórico-africano como fundamental no entendimento da história mundial. É importante salientar que, apesar de ser tratada como um único lugar, o que dá a ideia de homogeneidade sociocultural, a África é um continente de grandes dimensões, e povos de diferentes países foram trazidos ao território brasileiro. Os primeiros negros a serem escravizados pertenciam às regiões dos países hoje denominados Angola e Congo, e eram conhecidos como bantu. Desta região da África, vieram povos de grande influência na construção da identidade afro-brasileira, entre eles os chamados angola, cabinda, os benguela, os moçambique, os macúa e os congo (BOTÃO, 2007). Segundo Botão (2007), até meados do século XVII, os bantu foram maioria no país, até o início do Ciclo do Ouro, de onde datam as primeiras descobertas de minas no Brasil. A partir daí, o tráfico negreiro transfere-se à região do golfo da Guiné, a qual engloba os atuais países da Nigéria, Benin, Gana e Togo, devido à crença de que os sudaneses eram mais aptos a trabalhos com minérios do que os bantu. Nessa região, definida pelos portugueses como “Costa de Mina”, também distribuíam-se diferentes grupos étnicos, sendo os principais o iorubá (que abrange nagôs e ketu) e o jeje (CARNEIRO, 1964; RUSSEL-WOOD, 2001; VERGER, 1987). Negros pertencentes aos mesmos grupos eram vendidos separadamente, como estratégia para conter a articulação entre escravos e as possíveis revoltas decorrentes. Por pertencerem a distintas regiões e nações no continente africano, possuíam entre si barreiras culturais e linguísticas, que geraram conflitos e incompatibilidades dentro dos grupos 23 recentemente formados nas chamadas senzalas. Entre as diferenças culturais, estavam as divindades cultuadas, bem como o conjunto de práticas, ritos e mitos a elas associadas. Nesse contexto, a religião africana assume posição central, visto que “...a construção do sujeito dá-se fundamentalmente no processo religioso” (OLIVEIRA, 2003). De acordo com Oliveira (2008, p. 22): Toda a integração social do sujeito africano com o mundo, seu envolvimento nas questões sociais, econômicas, culturais e históricas, a organização da vida comunitária dão-se através da religião, que se utiliza de processos coletivos para a transmissão dos conhecimentos ancestrais referentes àquela comunidade, fundamentando a ligação do homem com a natureza a fim de restaurar a ligação entre o ser humano e a mãe Terra. Todo esse envolvimento independe da religião africana, ou melhor, toda essa ligação está presente em todas as religiões africanas, que são muitas [...] Cada região caracterizava-se pelo culto a um ou mais divindades, chamados de Orixás. Como acrescenta Oliveira (2003, p. 23), a devoção aos Orixás foi [...] capaz de reunir mulheres e homens escravizados em torno de uma nova consciência familiar, de uma coletividade não mais formada por laços consangüíneos, mas por laços religiosos e espirituais. Esse reencontro dos africanos no Brasil com a forma ancestral de se organizar sócio-política e culturalmente a partir da religião, privilegiando o comunitarismo, garantiu a esses grupos maior segurança e fortalecimento emocional, necessários para a sobrevivência, dentro de condições extremamente cruéis, advindas com a escravidão. Ainda sobre a importância dos Orixás no contexto de ressignificação da ideia de lar e da própria identidade quando em território brasileiro, Siqueira (1998, p. 43) pontua: [...] os Orixás transpuseram as fronteiras territoriais e culturais, e se tornaram o patrimônio de todo o povo, que atualmente neles se reencontra na diáspora africana. Isto quer dizer que os Orixás acompanharam a história, assumiram sua dimensão de referência para os escravos libertos como divindades de uma grande maioria de pessoas que buscaram uma expressão de identidade cultural e religiosa. A partir da aproximação de negros escravizados (e mesmo após a abolição da escravatura), agora residentes no Brasil e compartilhando um mesmo espaço e vivências, re- caracteriza-se a religiosidade africana e forma-se a amálgama de crenças, cultos e rituais que origina as religiões afro-brasileiras, entre elas, o Candomblé. Dentro do próprio Candomblé ainda existem variações ao sistema de crenças, línguas e fundamentos, definidas de acordo com grupo ou etnia originária, chamadas de nações, como por exemplo a nação ketu, a nação jêje, congo e angola. “É possível distinguir essas 'nações' umas das outras pela maneira de tocar o tambor (seja com a mão, seja com varetas), pela música, pelo idioma dos cânticos, pelas vestes litúrgicas, algumas vezes pelos nomes das divindades, e enfim por certos traços 24 do ritual” (BASTIDE, 2001, p. 29). Grande parte dos pesquisadores que se dedicaram a estudar as religiões afro-brasileiras, como o precursor Nina Rodrigues (1935) e Bastide (1960), entram em consenso sobre a influência da nação ketu como a com maior número de adeptos no Brasil; por conta disso, esse trabalho baseou-se em especial nesta nação, a qual foi um dos focos na busca bibliográfica e tem maior expressividade em estudos etnobotânicos. Apesar das variantes que podem ser encontradas dentro do Candomblé, o culto à natureza está presente em todas as nações de forma geral, bem como a sacralização do reino vegetal como instrumento capaz de ligar o humano ao divino, de diversas maneiras e a diferentes níveis. 25 4 KOSI EWÉ, KOSI ÒRÌSÀ: A LITURGIA DAS PLANTAS NO RITUAL DE CANDOMBLÉ Ewé e ní àsà ki ó jé Ewé jé si gbogbo Òrìsà Ewé ki mò àsà ki ó jé baba Ewé jé si gbogbo Òrìsà A folha é e tem a tradição dos costumes do culto sagrado A folha é de todos os Orixás A folha conhece a tradução e o Pai das folhas serve a todos os Orixás 4.1 Ewé o! Ewé o! O reino Vegetal no Candomblé É notável a importância da espiritualidade e da religiosidade nas dinâmicas sociais de grupos afro-brasileiros, do período colonial até os dias atuais, e, tratando-se uma religião de culto à natureza, as ervas, apesar de pertencerem a diferentes divindades (divindade esta que pode ser diferente à planta em questão a depender da nação ou mesmo do espaço religioso, chamado de terreiro), têm um Orixá que detém o conhecimento sobre seus poderes e segredos: Ossaim (PRANDI, 2001). Diz-se que, em tempos primórdios, todas as plantas a ele pertenciam e foi de sua vontade, devido a acontecimentos que se procederam, que decidiu compartilhar parte de seus saberes com outros Orixás. Consta na obra “Mitologia dos Orixás”, do sociólogo Reginaldo Prandi, o seguinte mito acerca de Ossaim e o domínio que detém sobre o reino vegetal: Ossaim, filho de Nanã e irmão de Oxumarê, Ewa e Obaluaê, era o senhor da folhas, da ciência e das ervas, o orixá que conhece o segredo da cura e o mistério da vida. Todos o orixás recorriam a Ossaim para curar qualquer moléstia, qualquer mal do corpo. Todos dependiam de Ossaim na luta contra a doença. Todos iam à casa de Ossaim oferecer seus sacrifícios. Em troca Ossaim lhes dava preparados mágicos: banhos, chás, infusões, pomadas, abo, beberagens. Curava as dores, as feridas, os sangramentos; as desenterias, os inchaços e fraturas; curava as pestes, febres, órgãos corrompidos; limpava a pele purulenta e o sangue pisado; livrava o corpo de todos os males. Um dia Xangô, que era o deus da justiça, julgou que todo os orixás deveriam compartilhar o poder de Ossaim, conhecendo o segredo das ervas e o dom da cura. Xangô sentenciou que Ossaim dividisse suas folhas com os outros orixás. 26 Mas Ossaim negou-se dividir suas folhas com os outros orixás. Xangô então ordenou que Iansã soltasse o vento e trouxesse ao seu palácio todas as folhas das matas de Ossaim para que fossem distribuídas ao orixás. Iansã fez o que Xangô determinara. Gerou um furacão que derrubou as folhas das plantas e as arrastou pelo ar em direção ao palácio de Xangô. Ossaim percebeu o que estava acontecendo e gritou: ”Euê uassá!” “As folhas funcionam!”. Ossaim ordenou que as folhas voltassem às suas matas e as folhas obedeceram às ordens de Ossaim. Quase todas as folhas retornaram para Ossaim. As que já estavam em poder de Xangô perderam o axé, perderam o poder de cura. O orixá-rei, que era um orixá justo, admitiu a vitória de Ossaim. Entendeu que o poder das folhas devia ser exclusivo de Ossaim e que assim devia permanecer através dos séculos. Ossaim, contudo, deu uma folha a cada orixá, deu uma euê pra cada um deles. Cada folha com seus axés e seus ofós, que são as cantigas de encantamento, sem as quais a folhas não funcionam. Ossaim distribuiu as folhas aos orixás para que eles não mais o invejassem. Eles também podiam realizar proezas com as ervas, mas os segredos mais profundos ele guardou para si. Ossaim não conta seus segredos para ninguém, Ossaim nem mesmo fala. Fala por ele seu criado Aroni. Os orixás ficaram gratos a Ossaim e sempre o reverenciam quando usam as folhas. (PRANDI, 2001, p. 74-75) A partir desse mito entende-se o papel das plantas tanto nos sistemas de saúde tradicionais da liturgia candomblecista quanto em toda a doutrina ritualística, visto sua estreita relação aos Orixás e à magia. Mais do que suas propriedades farmacológicas, no Candomblé as plantas são dotadas de axé, energia vital e universal que agrega às mesmas poderes, ativados por meio de orações e cantos (BARROS, 2009; PRANDI, 2001). Ainda sobre os poderes e funções que o reino Vegetal contém em si, e que são de fundamental importância no conjunto de ritos e crenças do Candomblé, Albuquerque acrescenta: [...] as plantas são mediadoras entre os dois planos de existência. Assim, entre os nagôs (e os iorubá de um modo geral), as plantas mediam o ayie, mundo dos vivos e das representações físicas; e o orun, mundo sobrenatural, onde habitam espíritos dos mortos (eguns), ancestrais e divindades (orixás). (ALBUQUERQUE, 2005, p. 51). Um cargo sacerdotal que reitera a importância de Ossaim e das folhas é o do Babalossaim, presente em alguns terreiros. Ao Babalossaim é atribuído o papel de coletar todas as plantas utilizadas nas atividades litúrgicas, visto que esse sacerdócio liga-se diretamente à Ossaim e, portanto, o fiel torna-se apto a manuseá-las, pedindo sempre ao Orixá a permissão para coletá-las e usá-las (COSTA, 2017). Visto que o Candomblé é uma religião de caráter iniciático e com tradição oral, os conhecimentos dos membros de um mesmo terreiro acerca do uso das folhas é passado hierarquicamente, de maneira oral e ao longo das vivências dentro do ilê (espaço religioso; casa; terreiro). Muitas das qualidades das ervas, bem como os Orixás a elas associados, estão sujeitas a variações de acordo com o terreiro, mas de qualquer maneira, é geral a importância das mesmas para o mantenimento da religião. As plantas assumem, na liturgia do Candomblé, finalidades mágico-religiosas, mas também integram a terapêutica tradicional, às quais se recorrem com fins de prevenção ou tratamentos da saúde, “sem distinções rígidas entre males ou benefícios a que se atribuem causas físicas 27 ou simbólicas e sem separação entre corpo e espírito” (OLIVEIRA et al, 2007, p. 82). As prescrições, banhos, ebós, oferendas e rituais em geral, feitos sob orientação do Babalorixá e das entidades espirituais (segundo a crença, seres que vivem no plano espiritual e que atuam a serviço da evolução humana), são procuradas tanto por fiéis quanto por pessoas não necessariamente iniciadas na religião, que buscam por aconselhamento (idem). Além de ligadas à cura de enfermidades do corpo e da alma, as folhas são utilizadas em diferentes procedimentos dentro da dinâmica do terreiro, como para defumá-lo, para o preparo de amaci, para bori, para preceitos e para todas as obrigações. É por isso que uma das máximas do Candomblé é “kosi ewé, kosi Òrìsà”, ou seja, sem folha, não há Orixá. 4.2 A Etnobotânica do Candomblé em terra brasilis: intercâmbios afro-indígenas e a influência na cultura brasileira A flora do continente africano difere-se da encontrada no Brasil; por conta disso, foram necessárias adaptações na alimentação e, especialmente, nas plantas utilizadas nos ritos e em toda a liturgia da religião afro-brasileira que se estabelecia entre negros recém-trazidos. Além dos casos já citados, como o da banha de ori de Oxalá e da pimenta-malagueta, são muitas as substituições que foram feitas pelos povos africanos quando em território brasileiro. Pierre “Fatumbi” Verger foi um antropólogo e fotógrafo que dedicou sua carreira acadêmica e vida religiosa às religiões afro-brasileiras e à cultura diaspórica, voltando-se enquanto pesquisador - e babalaô - ao Candomblé. Foram anos de estudos sobre a religião dos Orixás, dos quais 17 se passaram na África, coletando informações e fazendo registros fotográficos. Seus estudos abrangem desde a origem e formação do Candomblé no Brasil até o uso de folhas, especialmente nos cultos afro-baianos. Suas contribuições ao estudo etnobotânico dentro do Candomblé são, portanto, de grande valia. Uma das suas obras, “Ewé, o uso das plantas na sociedade iorubá”, aborda a etnofarmacobotânica candomblecista a partir da catalogação de mais de 2.000 receitas a base de folhas, cascas, flores, frutos, sementes e raízes, utilizadas para diversos fins no que concerne ao trato do corpo, da alma e das divindades. Verger destaca a importância das folhas especialmente no momento da iniciação à religião, apontando que No Candomblé, a coisa mais importante é a questão das folhas, das plantas que se utilizam no momento em que se faz a iniciação. A natureza está sempre presente dentro da cerimônia. Antes de se fazer a cerimônia, a gente toma banho de certas plantas, para ter esse axé, essa força que está dentro das plantas (2004, p. 12). 28 Sobre a origem da religião no Brasil e as subsequentes mudanças que foram feitas na farmacopeia candomblecista e nas plantas utilizadas nas práticas do ritual, o pesquisador aponta que com a chegada dos primeiros africanos ao país, iniciaram-se também o contato destes com os indígenas, os quais compartilharam gradativamente seus conhecimentos sobre as plantas nativas e os papéis que desempenhavam em seus sistemas terapêuticos e rituais litúrgicos (VERGER, 1981). Um exemplo do intercâmbio cultural e religioso feito entre povos indígenas e povos africanos em território brasileiro é o caruru. O caruru hoje é um conhecido prato baiano e importante “comida de santo”, ou seja, preparado alimentício feito com o propósito de ser oferendado às divindades, preparado especialmente no mês de setembro, no qual se comemora o dia dos Ibejis, Orixás crianças sincretizados nas figuras dos santos católicos São Cosme e Damião. O caruru baiano é preparado à base de quiabos e azeite de dendê, ingredientes originários da África. Contudo, a origem desse prato é indígena; caruru era o nome popular de uma planta ainda encontrada nos dias de hoje e atualmente conhecida como uma PANC, que integrava o preparo de um ensopado de folhas da mesma. O prato foi, nas mãos dos afro-brasileiros, se modificando, até chegar no que é hoje, carregando histórias do processo colonizatório brasileiro, da resistência dos povos aqui subjugados e todo o axé que contém em si como comida de santo (CASCUDO, 2004). Além das adaptações feitas com ingredientes nativos e aqueles trazidos da África, no Brasil já era expressiva a quantidade de espécies exóticas oriundas de países como Índia e México na flora. Essa permuta de alimentos votivos pode ser percebida nas comidas oferendadas aos Orixás, [...] como a inclusão do milho nas comidas de Oxossi, Iemanjá, Omulú ou Xapanã que também gosta de pipocas, o feijão para Oxum, o fumo no culto de Irocô, e farinha de mandioca no amalá de Iansã. Serão conquistas brasileiras e não fidelidades sudanesas no cardápio dos orixás [...] (CASCUDO, 2004, p. 161) Ainda sobre esse ponto, mas se tratando do Candomblé e suas folhas hoje, Camargo, já mencionada nesse trabalho como um dos principais nomes da Etnofarmacobotânica de Candomblé, acrescenta: A flora do candomblé é produto da modificação humana na paisagem, sendo caracterizada, predominantemente, por espécies que não são nativas do Brasil. Com o crescimento democrático acelerado das grandes e médias cidades e a diminuição das áreas de florestas, os terreiros ou cultivavam suas plantas em seus quintais cada vez mais reduzidos, ou buscam estas em outros locais, como “casas de folhas”, feiras livres e até rudeiras. (1999, p 59) 29 A pesquisadora usa como exemplo as espécies nativas do Brasil do gênero Erythrina, utilizadas em rituais de religiões afro-brasileiras, visto que o gênero também era encontrado na África e foi prontamente reconhecido pelos povos que originaram a nação de Candomblé ketu (CAMARGO, 1997). A partir dos estudos de Cascudo (2004); Verger (2004) e Camargo (1999), fica evidente o quanto se modificou e se criou das trocas, permutas e intercâmbios entre povos índigenas, africanos e, posteriormente, imigrantes europeus, moldando o conjunto de crenças e ritos e ilustrando quão dinâmico é o sistema religioso - mas não somente - de um país cuja identidade representa a amálgama de povos de diferentes ascendências, costumes e rituais mágico-religiosos. 30 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS As religiões afro-brasileiras, pautadas no culto à natureza, na tradição oral e no resgate da ancestralidade, têm em sua liturgia a estreita relação com o reino vegetal, como ferramenta capaz de curar males do corpo e da alma e ligar os mundos físico e espiritual. A partir do culto aos Orixás, divindades associadas a fenômenos e elementos da natureza, o Candomblé possibilita a conexão com o divino; conexão esta que sem as folhas, nos diferentes preparos e para os diferentes fins possíveis, não é possível. O Candomblé, genuinamente afro-brasileiro, se origina como amálgama de influências africanas que convergem nas senzalas, e que no Brasil entram em contato com a biodiversidade botânica local e com os saberes compartilhados com demais povos aqui presentes. Tendo em vista todo o cenário exposto ao longo deste trabalho, torna-se evidente o grande valor sociocultural das religiões afro-brasileiras frente à história da formação da identidade nacional. A história do Candomblé conta, também, parte da história do Brasil colônia; da história dos povos indígenas e seu contato com o negro, bem como as trocas que ocorreram entre os mesmos; da história da agrobiodiversidade brasileira, entre plantas nativas e exóticas, e a história dos sistemas de cura e terapia populares, visto a influência das crenças derivadas dos cultos afro-brasileiros entre populações tradicionais e seus ofícios ligados à saúde, como no caso dos raizeiros. Proteger o Candomblé, seus mitos, ritos e crenças e o chamado “povo-de-santo”, representa, portanto, salvaguardar a cultura brasileira. E com a benção dos Orixás e o axé das folhas, o caminho é longo mas a resistência é certa. 31 REFERÊNCIAS ALONSO, J. Tratado de Fitomedicina. Bases clínicas y farmacológicas. Buenos Aires: ISIS Ediciones, 1998. AMOROZO, M. C. M.; GÉLY, A. L. Uso de plantas medicinais por caboclos do Baixo Amazonas, Barcarena, Para, Brazil. Boletim do Museu Paraense Emilio Goeldi. Belém, v.4, n.1, p.47-131, 1988. AMOROZO, M. C. M. A abordagem etnobotânica na pesquisa de plantas medicinais. In: DI STASI, L. D. (Org.). Plantas medicinais: arte e ciência – um guia de estudo interdisciplinar. São Paulo: Editora da Unesp, p. 47-68, 1996. ALBUQUERQUE, U. P. Etnobotânica: uma aproximação teórica e epistemológica. Revista Brasileira de Farmácia, 78(3): 60-64. 1997. BAPTISTA, J. R. 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