Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP BRENDON DE ALCANTARA DIOGO A TRAGÉDIA GREGA NA CENA CONTEMPORÂNEA: UMA LEITURA DO ESPETÁCULO ANTÍGONA DE ANDREA BELTRÃO E AMIR HADDAD ARARAQUARA 2020 BRENDON DE ALCANTARA DIOGO A TRAGÉDIA GREGA NA CENA CONTEMPORÂNEA: UMA LEITURA DO ESPETÁCULO ANTÍGONA DE ANDREA BELTRÃO E AMIR HADDAD Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como pré-requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e crítica do drama Orientador: Prof. Dr. Fernando Brandão dos Santos ARARAQUARA 2020 Diogo, Brendon de Alcantara A tragédia grega na cena contemporânea: uma leitura do espetáculo Antígona de Andrea Beltrão e Amir Haddad / Brendon de Alcantara Diogo - 2020 111 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras (Campus Araraquara) Orientador: Fernando Brandão dos Santos 1. Antígona. 2. Encenação contemporânea. 3. Tragédia Grega. 4. Teatro Épico. 5. Beltrão, Andrea Haddad, Amir. I. Título. Ficha catalográfica elaborada pelo sistema automatizado com os dados fornecidos pelo (a) autor(a). BRENDON DE ALCANTARA DIOGO A TRAGÉDIA GREGA NA CENA CONTEMPORÂNEA: uma leitura do espetáculo Antígona de Andrea Beltrão e Amir Haddad Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Teorias e crítica do drama. Data da defesa: 30/04/2020 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof. Dr. Fernando Brandão dos Santos Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP Membro Titular: Prof. Dr. Marco Aurélio Rodrigues Universidade Federal do Amapá - UNIFAP Membro Titular: Profa. Dra. Maria Celeste Consolin Dezotti Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara A meu orientador, Fernando Brandão dos Santos, pelo amparo singular e por nortear o caminho AGRADECIMENTOS Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UNESP, campus de Araraquara, pela acolhida verdadeira e por possibilitar a realização de um sonho; Agradeço à minha mãe, Irene, por dedicar-se inteiramente ao meu bem-estar e cuidado incondicional que recebo até hoje. Do mesmo modo, agradeço à minha tia, Joana, por todo o incentivo e por todos os conselhos valiosos; Agradeço ao meu companheiro, Tiago, sobretudo por sempre me compreender nos momentos de ausência. Sou grato pelo constante incentivo e por sempre reconhecer e comemorar comigo cada etapa concluída; Sou profundamente grato ao Prof. Dr. Fernando Brandão dos Santos, pela confiança depositada em mim, pelas valiosas orientações que sempre auxiliaram e me conduziram aos melhores caminhos. Agradeço também as constantes indicações de eventos acadêmicos, pois, por meio delas, tive a oportunidade de participar do “18th Annual Joint Postgraduate Symposium On Ancient Drama” em Oxford e Londres, experiência que resultou em momentos essencialmente significativos em minha vida acadêmica; Com muito carinho, agradeço à Professora Dra. Elizabete Sanches Rocha, membro da Banca de Qualificação, por me apresentar a Unesp e me introduzir no meio acadêmico; ao longo de suas aulas, aprendi não só algumas teorias que contemplo em minha pesquisa, mas valiosas lições que levo para a vida; Agradeço aos demais Professores da Pós-graduação, em especial à Professora Dra. Renata Soares Junqueira, que prontamente aceitou o convite para participar do Exame de Qualificação e por quem tenho muita admiração e respeito. Suas aulas e ensinamentos resultaram em contribuições imprescindíveis nesta pesquisa e, principalmente, em minha formação humana; Agradeço também, à Professora Dra. Maria Celeste Consolin Dezotti e ao Professor Dr. Marco Aurélio Rodrigues que alegremente aceitaram participar da Banca de Defesa e contribuíram com valiosas leituras. Reforço os meus agradecimentos pelo fato de que, em meio a uma pandemia, ambos também assumiram o desafio de reinventar o modo de realização da Defesa para um ambiente totalmente on-line. Agradeço profundamente à Nathalia Fernandes e ao Rafael Bougleux, meus professores de teatro, que tanto estimo e admiro, além disso, eles me apresentaram inúmeros caminhos da prática teatral que, com toda certeza, somaram imensamente para a execução e para a ampliação da visão que trago sobre o espetáculo que aqui foi analisado. Eu não poderia deixar de agradecer às minhas queridas professoras da graduação em Letras, pois ao longo de toda a minha formação e também durante o andamento dessa pesquisa, sempre me auxiliaram, apoiaram, incentivaram e, com certeza, estiveram por perto. Gratidão. Por fim, agradeço ao ator e diretor de teatro Amir Haddad, pela entrevista concedida, pela atenção e pelas trocas. Do mesmo modo, agradeço à atriz Andrea Beltrão, pela receptividade que teve comigo e pelos comentários de incentivo à minha pesquisa. Assim, agradeço a todas e todos que de algum modo contribuíram direta ou indiretamente para a realização deste estudo. Sabemos bem Que ninguém aprendeu muito Com esta história de Sófocles. Os jornais de hoje mostram Que os próprios gregos não aprenderam. E, cansativamente, ela se repetiu Nos 2.400 anos que passaram: Ânsia de Brutos, Cruz de Cristo, Bizâncio Prostituída, Heil Hitler!, Lumumba esquartejado, Kenya de Kenyata, Chê nas montanhas. Há sempre duas faces na mesma moeda Cara: um herói. Coroa: um tirano. Algo mudou, bem sei; A ambição mudou de traje, A guerra, de veículo, O poder, de método. O mundo girou muito Mas o homem mudou pouco. Porém repetir uma história É nossa profissão, e nossa forma de luta. Assim, vamos contar de novo De maneira bem clara E eis nossa razão: Ainda não acreditamos que no final O bem sempre triunfa. Mas já começamos a crer, emocionados, Que, no fim, o mal nem sempre vence. O mais difícil da luta É descobrir o lado em que lutar. Millôr Fernandes, Prólogo para adaptação de Antígona, 1969 RESUMO Acredita-se que as tragédias gregas teriam surgido em Atenas no século V a.C., em meio aos festivais de celebração dionisíaca. Assim, a tragédia é um dos elementos significativos que permeiam a cultura grega. Desde então, observa-se que ao longo da história da literatura dramática, frequentemente, ocorrem diálogos com a tragédia grega e os seus respectivos temas. No Brasil, desde a década de 1940, as encenações teatrais baseadas nas tragédias são constantes e crescentes. Percebendo esse avanço e o interesse de dramaturgos e diretores pela encenação desses temas da Antiguidade Clássica, vê-se que na contemporaneidade, a representação cênica desses textos dialoga com questões sociais, políticas e até mesmo de experimentação teatral, pois afirmam a atualidade e a perpetuação das tragédias gregas. No final de 2016, a partir da obra de Sófocles, houve a montagem de Antígona, interpretada por Andrea Beltrão e dirigida por Amir Haddad. A presente pesquisa visa analisar a encenação de Antígona e compreender como os temas da Antiguidade Clássica se apresentam nessa representação. Para isso, faremos uma leitura a partir da semiologia do espetáculo teatral com base nos recursos utilizados em cena, tal leitura será fundamentada pela teoria dos signos teatrais postulada por Tadeuz Kowzan e, além disso, analisaremos essa encenação com base nos estudos sobre o teatro épico de Bertolt Brecht, para que, com esse escopo, possamos compreender os sentidos produzidos por essa encenação na contemporaneidade. Palavras-chave: Antígona. Tragédia Grega. Encenação Contemporânea. Andrea Beltrão. Amir Haddad. Teatro Épico. ABSTRACT Greek tragedies are believed to have arisen in Athens in the 5th century BC in Dionysian celebration festivals. Thus, tragedy is one of the significant elements that permeate Greek culture. Since then, it has been observed that throughout the history of dramatic literature, dialogues with Greek tragedy often occur and their respective themes as well. In Brazil, since 1940, theatrical performances based on tragedies have been constant and growing. As we realize the advance and the interest of playwrights and directors for staging these themes of Classical Antiquity, we see that in contemporary times the scenic representation of these texts dialogues with political and social issues and even theatrical experimentation as they affirm the present and timeless Greek tragedies. At the end of 2016, from the work of Sophocles, there was a staging of Antigone performed by Andrea Beltrão and directed by Amir Haddad. The present research aims to analyze the staging in Antigone and understand how the themes of Classical Antiquity appear in this representation. For that, we will have a reading from the semiology of the theatrical show based on the resources used for the scene. Such reading will be based on the theory of theatrical signs postulated by Tadeuz Kowzan and, furthermore, we will analyze the staging based on studies of Bertolt Brecht's epic theater, so that we can understand meanings produced by this staging in contemporary times with that scope. Key words: Antigone. Greek Tragedy. Contemporary staging. Andrea Beltrão. Amir Haddad. Epic theater. LISTA DE IMAGENS Figura 1 Tentativas contra Hécuba 21 Figura 2 Antígone (1952) Direção de Adolfo Celi 35 Figura 3 Renata Sorrah interpreta Ismênia 36 Figura 4 Antígona (1990) Ói Nóis Aqui Traveiz 38 Figura 5 Antígona (2004) Direção de Antunes Filho 39 Figura 6 RockAntygona 1 41 Figura 7 RockAntygona 2 41 Figura 8 Elenco de Édipo Rei e o diretor Eduardo Wotzik 43 Figura 9 Figura 10 Figura 11 Figura 12 Figura 13 Figura 14 Figura 15 Figura 16 Figura 17 Figura 18 Coro de mulheres em As Troianas - Vozes da Guerra Figurinos de Medea en Promenade Antígona 2084 Trágica.3 Antígona Recortada Os signos teatrais A forma dramática e a forma épica Cenário de Antígona Acessórios de Antígona Figurino de Antígona 44 45 46 48 50 58 63 81 83 85 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 11 1 A PERMANÊNCIA DO MUNDO CLÁSSICO NOS PALCOS NACIONAIS 15 1.1 A tragédia grega hoje. Por quê? 15 1.2 Algumas representações de Antígona no teatro brasileiro ao longo das décadas 22 1.2.1 Antígona e Antígonas 22 1.2.2 Representações de Antígona no Brasil: 1940 a 2010 33 1.3 Um adendo, a tragédia em cena hoje: representações da tragédia grega encenadas no Brasil a partir de 2010 40 2 A CENA 53 2.1 Semiologia e encenação: Os signos teatrais 53 2.2 Considerações sobre o teatro épico brechtiano 59 3 ENTRE O TEXTO E A CENA: A ANTÍGONA DE ANDREA BELTRÃO E AMIR HADDAD 69 3.1 Em cena: Andrea Beltrão 69 3.2 Na direção: Amir Haddad 72 3.3 A encenação de Antígona analisada pela perspectiva do teatro épico 76 3.4 O cenário 81 3.5 O figurino 84 3.6 As personagens 85 3.6.1 Antígona 86 3.6.2 Ismênia 89 3.6.3 Coro 92 3.6.4 Creonte 93 3.7 O cômico 94 CONSIDERAÇÕES FINAIS 97 REFERÊNCIAS 104 ANEXO A – Entrevista com Amir Haddad 107 ANEXO B – Ficha Técnica do espetáculo Antígona 109 11 INTRODUÇÃO A presente pesquisa tem o intuito de observar e compreender o interesse de encenadores, diretores e atores brasileiros em representar tragédias gregas na contemporaneidade. Para tanto, após um percurso sobre a recepção dos clássicos gregos, principalmente, a tragédia grega na contemporaneidade, analisaremos ao final dessa pesquisa, de modo mais detalhado, a montagem do espetáculo Antígona que estreou em novembro de 2016 no Teatro Poeirinha no Rio de Janeiro; a peça é baseada na obra de Sófocles. A encenação contou com a adaptação1 de Millôr Fernandes e foi dirigida por Amir Haddad, sendo interpretada pela atriz Andrea Beltrão. Esse estudo surgiu a partir de um interesse em associar a formação acadêmica que possua na área de Letras junto à minha prática teatral, visto que ao longo dessa trajetória sempre busquei realizar pesquisas na área do teatro que pudessem esclarecer e aprofundar o meu trabalho enquanto ator e diretor. Como exemplo desse interesse em aprofundar e compreender essas relações, retomo aqui os artigos que foram produzidos no período de graduação: De grego a carioca: Medeia a Gota D'água, uma análise linguística; Medeia e Gota D'água: uma transposição do gênero tragédia e, além desses textos, a monografia que foi apresentada para a conclusão de curso, De boca em boca nasce o boca: uma análise discursiva da peça Boca de Ouro de Nelson Rodrigues que também buscava analisar o texto teatral. Para avançarmos ao tema mais específico desse estudo, isto é, a Antígona aqui analisada, cabe ressaltarmos que a escolha definitiva dessa peça foi se moldando aos poucos, sofrendo influências ao longo do percurso de pesquisa e de escrita. Assim, com o interesse de dar continuidade aos estudos que iniciei em minha graduação, no ano de 2016 ingressei como aluno especial no Programa de Pós-graduação da Unesp de Araraquara, momento em que tive a oportunidade de cursar disciplinas na linha de Teorias e Crítica do Drama. Dentre as disciplinas cursadas, destaco o interesse que tive pela linha de pesquisas sobre o Teatro Épico, bem como pela representação de tragédias gregas na contemporaneidade. No ano seguinte, em 2017, já mais familiarizado com o estudo e com a crítica do texto teatral em associação com a prática em cena, 1 Cf. Millôr Fernandes em artigo escrito para o jornal O Pasquim publicado1969 na cidade do Rio de Janeiro “Escrevi, há dois anos, uma adaptação de Antígona. A adaptação é toda sobre o original de Sófocles (talvez uma ou outra ressonância de Brecht é, meu Deus, não tem nada a ver com Anouilh). Para a representação em São Paulo, 12 tive conhecimento do espetáculo Antígona encenado por Andrea Beltrão e dirigido por Amir Haddad. O espetáculo em questão me despertou o interesse de várias formas, ressalto aqui algumas questões que, a princípio, me chamaram mais a atenção, como é o caso da execução de uma peça que conta com várias personagens, sendo representada e encenada por uma única atriz; o figurino do espetáculo que não necessariamente rememorava as vestimentas gregas do período clássico e, principalmente, o cenário da peça, que contava com uma grande árvore genealógica da personagem Antígona. Além desses recursos estético-visuais que já foram adiantados, também li inúmeras críticas sobre o espetáculo que apontavam questões muito positivas a respeito da performance da atriz e qualificavam muito bem o recorte do texto. Dessa forma, já ingressei como aluno regular no Programa de Pós-graduação da Unesp de Araraquara no início de 2018 com o projeto que visava compreender inúmeros processos artísticos viabilizados no espetáculo Antígona. Cabe ressaltar que foi nesse mesmo ano que tive mais oportunidades para, de fato, começar a me familiarizar com a peça. No primeiro semestre de 2018 assisti ao espetáculo no Espaço Itaú Cultural. Nessa ocasião, pude realizar inúmeras anotações ao longo da peça, fui permitido a fotografar o cenário utilizado no espetáculo e ainda, mesmo que brevemente, pude ter uma conversa informal com o diretor, Amir Haddad e a atriz Andrea Beltrão. Após assistir o espetáculo na íntegra e refletir ainda mais sobre o modo como ele foi encenado, em 2019, o diretor Amir Haddad nos concedeu uma entrevista, que apresentamos ao final desse estudo, que nos possibilitou perceber mais questões sobre o processo de concepção do espetáculo. Além disso, a produção nos cedeu alguns trechos filmados da peça, bem como nos indicou o texto que serviu como base para a construção da dramaturgia do espetáculo, isto é, a adaptação de Millôr Fernandes para a Antígona de Sófocles. Desse modo, com o propósito de aprofundar o panorama sobre as encenações de tragédia grega no Brasil e, com isso, contribuir com os estudos da área de recepção dos Clássicos na contemporaneidade dividimos esse estudo em três partes: Na primeira parte da pesquisa, (A permanência do mundo clássico nos palcos nacionais) temos o propósito de ampliar os conceitos sobre a recepção dos clássicos no teatro escrevi o texto que publico aqui, buscando promover a Antígona de Ferreira Gullar (também adaptação) em cartaz no Opinião.” Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/124745/294. Acesso em: 08 mar. 2020. 13 brasileiro. Trataremos nesse capítulo de modo mais específico sobre algumas das possíveis razões que conduzem artistas brasileiros a se empenharem na representação de tragédias gregas. De acordo com Gilson Motta2 (autor da pesquisa O espaço da tragédia grega na cenografia brasileira contemporânea, em que destaco meu débito para com esse estudo, tendo em vista que, em inúmeras vezes, adotei seu estudo como uma referência a respeito das encenações de tragédia realizadas no Brasil), uma das hipóteses que justificam a escolha desses temas, ocorre no momento em que diretores e encenadores “deparam-se com elementos formais e com temáticas que, apesar da distância histórica e da diferença de contextos estéticos, ainda são importantes em termos de uma busca de experiências formais e em termos de um questionamento acerca da ordem política e social” (2011, p. 12). Portanto, partindo dessa constatação projetada por Gilson Motta, nessa seção pretendemos enfatizar, por meio de exemplos de montagens e encenações teatrais, de que maneira esses espetáculos correspondem às perspectivas sociais, políticas e de estética teatral. Na segunda parte desse capítulo, nosso interesse foi retratar algumas montagens teatrais que consideramos significativas para explicar o processo de recepção dos clássicos no Brasil. Tendo em vista que pesquisadores como Gilson Motta, Daisi Malhadas, Zélia de Almeida Cardoso e Fernando Brandão dos Santos já desenvolveram pesquisas nessa área, trataremos das montagens e peças que ainda não foram citadas por esses estudiosos. Para isso abordaremos, principalmente, as encenações de Antígona que obtivemos notícia, bem como algumas encenações de tragédias gregas realizadas a partir de 2010. Para completar essa seção, também nos baseamos em notícias extraídas dos jornais da época, acervos culturais e em sites de companhias teatrais. Além disso, várias filmagens de representações que foram realizadas a partir desse período estão disponíveis na internet, possibilitando, dessa forma, registrar comentários mais abrangentes acerca dos espetáculos de tragédia. Na segunda parte desse estudo, intitulada Encenação e semiologia: os signos teatrais procuramos definir o conceito de encenação com fundamento nos estudos críticos de Patrice Pavis e de Jean-Jacques Roubine. Além dessa definição, há a abordagem sobre o outro ângulo de análise adotado, o da semiologia do espetáculo teatral teorizada por Tadeus Kowzan. Na sequência, pelo fato de o espetáculo Antígona tratar-se de uma encenação contemporânea e apresentar uma estética que se distancia dos padrões naturalistas de encenação, 2 Cenógrafo e pesquisador brasileiro que discute a permanência das tragédias gregas no teatro contemporâneo. 14 destacamos a presença de recursos do teatro épico ao longo do espetáculo. Para tanto, desenvolvemos uma seção com um conciso percurso sobre o teatro épico brechtiano, levando em consideração que esses traços épicos podem ser visualizados na encenação pesquisada. Para abordar o conceito de teatro épico, fundamentamos essa seção em leituras e estudos realizados acerca das obras de Bertolt Brecht, Anatol Roselfeld, Iná Camargo Costa e Patrice Pavis, para que seja possível sustentar as interpretações a respeito da estética teatral adotada na encenação de Antígona. A terceira e última parte desse estudo: A Antígona de Andrea Beltrão e Amir Haddad é voltada para a análise da encenação do espetáculo. Dessa forma, dividimos o capítulo da seguinte maneira: um breve comentário sobre a vida e a carreira de Andrea Beltrão, (subitem intitulado: Em cena: Andrea Beltrão) que foi construído com base em informações extraídas de entrevistas que a atriz concedeu para sites, canais de TV, jornais, além de informações biográficas de acervos culturais. No subitem: Na direção: Amir Haddad, levantamos aspectos biográficos do diretor do espetáculo e também nos baseamos na entrevista que Amir Haddad nos concedeu. A partir do levantamento dessas informações, propomos uma análise do espetáculo referido sob as formas do teatro épico, no subitem A encenação de Antígona pela perspectiva do teatro épico com o interesse de ilustrar as aproximações do espetáculo com as formas do teatro épico. Nesse capítulo, dividimos o estudo em alguns subitens, como cenário, figurino, personagens e o elemento cômico, pois, a partir do material que tínhamos em mãos, como já apresentamos, a análise desses recursos se mostrava mais concreta, possibilitando maiores reflexões. 15 1 A PERMANÊNCIA DO MUNDO CLÁSSICO NOS PALCOS NACIONAIS 1.1 A tragédia grega hoje. Por quê? E o que há algum tempo era jovem e novo Hoje é antigo Velha roupa colorida, Belchior Este capítulo está fundamentado em estudos sobre a recepção dos clássicos nos dias atuais, como também em críticas e informações a respeito de montagens e adaptações de Antígona. Desse modo, nesta seção, traçamos um histórico de algumas das principais representações e releituras dessa tragédia grega no Brasil, com a finalidade de obter um panorama sobre a permanência dos clássicos gregos no teatro brasileiro. A permanência dos temas tratados na antiguidade greco-romana tem sido constante, sobretudo nas artes produzidas no Ocidente. Esses ecos da Antiguidade podem ser notados, por exemplo, em obras de artistas do período da Renascença3. Nas literaturas de língua portuguesa observamos que o poeta clássico Luís Vaz de Camões, do mesmo modo, faz referências aos temas greco-romanos em sua produção poética, sobretudo na epopeia Os Lusíadas (1572), bem como em alguns de seus sonetos. Séculos mais tarde, ainda em Portugal, o poeta modernista Fernando Pessoa (1888 – 1935) também referencia temas míticos em Mensagem (1934) e em poemas do autor sob o heterônimo Ricardo Reis. No Brasil, no século XIX Machado de Assis (1839 – 1908), em sua vasta produção literária, também escreve sob a influência dos temas greco-romanos. Esses traços podem ser notados em contos, poesias e romances conforme descreve Brunno V. G. Vieira (2012) no artigo A biblioteca latino- portuguesa de Machado de Assis publicado no livro Mosaico clássico. Já no teatro, o dramaturgo francês Corneille (1606 – 1684) escreve Médée em 1629; Molière (1662 – 1673) escreve as comédias Amphitryon e L’avare em 1668 e Racine (1639 – 1699) compõe Iphigènie em Aulide e Phèdre entre 1666 e 1667. Todas essas peças também se baseiam nos temas da antiguidade greco-romana. 3 Movimento clássico que em suas temáticas buscava retratar os Clássicos gregos e latinos. 16 Nesse sentido, surgem algumas questões: por que até hoje, após mais de 2500 anos, as tragédias gregas ainda são representadas nos teatros de quase todo o mundo? Quais seriam os possíveis interesses em trazer aos palcos da atualidade peças baseadas nas tragédias gregas? Segundo Motta, no Brasil, “o processo de montagem de textos antigos tem início justamente com o surgimento do moderno teatro brasileiro na década de 1940” (2011, p. 27). Esse período ficou também marcado pelo nascimento e estabelecimento de grupos como o Teatro do Estudante do Brasil; Teatro Universitário; o Grupo de Teatro Experimental que originou o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia); a EAD (Escola de Arte Dramática) e Os Comediantes que são grupos responsáveis por modificarem significativamente a estética teatral brasileira. No Brasil, alguns estudiosos da recepção dos clássicos já se ocuparam da tarefa de listar e analisar com quais propósitos se representam, ainda hoje, as tragédias gregas. Daisi Malhadas, por exemplo, em O drama antigo hoje, as representações de tragédia grega no Brasil, analisa algumas das principais representações ocorridas no Brasil sobre esse tema entre os anos 60 e 70. Do mesmo modo, Zélia de Almeida Cardoso, em A permanência do mundo clássico nos dias atuais, destaca algumas representações ocorridas no Brasil, não só das tragédias, como também da perpetuação das comédias gregas e dos Clássicos Latinos. Nessa mesma perspectiva, Fernando Brandão dos Santos, em seu artigo Las representaciones del teatro griego en el Brasil, recolhe informações e faz um levantamento das representações de teatro grego que aconteceram no Brasil entre 2002 e 2009. Com tal característica, o cenógrafo e pesquisador brasileiro Gilson Motta, em O espaço da tragédia grega na cenografia contemporânea, faz uma divisão em duas partes de seu estudo. Na primeira, propõe-se a recuperar um percurso analítico dessas representações de tragédias gregas ocorridas no Brasil. Tal roteiro inicia-se nos anos 60 e vai até, aproximadamente, o início dos anos 1990. Na segunda parte de sua pesquisa, os seus estudos são concentrados do final dos anos 1990 até o final dos anos 2000. O autor, ainda nessa segunda parte, concentra-se, principalmente, na análise dos cenários presentes em montagens de Antunes Filho e Bia Lessa, por exemplo. Fora do Brasil, pesquisas sobre esse tema revelam alguns motivos importantes que nos fazem pensar na perpetuação das tragédias gregas sendo representadas ainda hoje. Edith Hall, Fiona Macintosh e Amanda Wrigley, em Dionysus since 69: Greek Tragedy at the Dawn of the 17 Third Millennium ilustram, a partir de ensaios desenvolvidos por especialistas dos estudos clássicos; quais são algumas das tendências que impulsionam o interesse pelas representações de tragédia grega na contemporaneidade. De acordo com Motta (2011) essa pesquisa é dividida em seções temáticas, que definem quatro categorias em torno das quais estabelece o discurso de resgate da tragédia grega na pós-modernidade: a Social (que se relaciona sobretudo, à temática da liberação sexual e a discussão da sexualidade por intermédio do texto antigo); a Política (que diz respeito aos diversos conflitos internacionais que marcam a vida contemporânea); a Teatral (relativa aos elementos específicos da Estética teatral); e a Intelectual (referente aos elementos conceituais presentes no teatro antigo, por exemplo, as relações entre o emotivo e a razão, entre religião e pensamento metafísico) (grifo nosso) (MOTTA, 2011, p. 4). Assim, com o propósito de ilustrar essa afirmação das autoras sobre cada uma dessas categorias de preservação das tragédias gregas no presente, discorreremos a respeito de alguns espetáculos nacionais em que, de certa maneira, percebemos a manifestação dessas divisões. Vale ressaltar que nesse momento pretendemos dar ênfase às montagens de tragédia grega que ainda não foram citadas pelas pesquisadoras e pesquisadores citados anteriormente. Sobre o aspecto social e a liberação sexual citada anteriormente, podemos pensar, por exemplo, nas inúmeras montagens realizadas de Medeia, já que em uma sociedade excessivamente marcada pelo machismo e pela repressão à mulher, a personagem feminina que dá título à peça realiza seus desejos e vinga-se de seu ex-marido matando os seus próprios filhos, que eram frutos de sua união com Jasão. Gilson Motta ainda acentua que: os artistas teatrais encontram no texto grego a possibilidade de discutir temas como o aborto, [...] as orientações sexuais, a relação entre o comportamento sexual e o amor romântico, a violência doméstica, os direitos da mulher, o relacionamento das mulheres com os filhos, os direitos das crianças, entre outros (2011, p. 5). Como exemplo de montagem que apresenta uma denúncia social, em São Paulo, no ano de 2017, houve a encenação do monólogo Mata teu pai. O texto é da dramaturga brasileira Grace Passô e foi dirigido por Inez Viana, contando com a interpretação da atriz Débora Lamm no papel de Medeia.4 Em Mata teu pai, que se trata de uma releitura da Medeia de Eurípides, Grace Passô 4 O espetáculo Mata teu pai estreou em maio de 2017 no Sesc Ipiranga em São Paulo, segundo as informações de: 18 apresenta a repressão masculina que recai constantemente sobre a mulher. Assim, nas palavras da atriz: “estamos falando sobre a mulher de sempre, mas, principalmente, sobre a luta da mulher de hoje”5. Ainda sobre esse espetáculo encenado em 2017, de acordo com Marco Aurélio Rodrigues (2018) em seu texto A recepção da performance e o grupo Giz-en-Scène: catalogação e disponibilização de 30 anos de representações do teatro antigo, podemos encontrar um percurso das recentes tragédias gregas encenadas no Brasil. Nesse material há valiosas informações a respeito dessa montagem: Mata teu pai, [...] faz parte do grupo de obras cuja inspiração retoma imediatamente a temática clássica, muito embora, no caso de Mata teu pai, há uma exigência maior da atenção do espectador para que as referências sejam claras. Interpretada por Débora Lamm, atriz global voltada em sua maior parte para papeis cômicos, Medeia vive com as filhas entre expatriadas, mulheres de todas as partes do mundo. Inconformada com o abandono de seu marido, Jasão, com o qual deixou sua terra natal, até mesmo tendo participado do assassínio de seu irmão, a heroína relata a crueldade e a dor da mulher desamparada e largada à própria sorte com os filhos. (RODRIGUES, 2018, p.39) E a respeito da dinâmica da peça: A primeira fala do espetáculo “Preciso que me escutem!”, repetida algumas vezes e desesperadamente pela protagonista, já denuncia a necessidade da mulher desprotegida e que, por vezes, procura entender a própria situação em que se encontra. Sua fala direcionada e raivosa, muitas vezes voltada para o público, cria um angustiante cenário em que o espectador, passivo, contempla o conflito da mãe e das filhas nas incertezas e impasses sobre o destino que devem tomar em relação ao pai. Sendo assim, o tempo todo o público recebe perguntas que, devido ao fato de as luzes da plateia serem constantemente acesas, despertam a suspeita sobre o teor retórico ou inquisidor das questões propostas, tensão constante que é resolvida nos momentos finais da peça quando o espectador entende que é ele, ali, quem será assassinado. (RODRIGUES, 2018, p.40) Ainda na esteira das montagens que possuem teor social, Motta enfatiza que “assim como ocorre no movimento feminista os textos gregos põem em questão os direitos da mulher a partir de uma relação entre a esfera individual ou privada e a esfera pública ou política (2011, p. 5)”. NUNES, Leandro. Debora Lamm vive Medeia moderna. São Paulo. 2017. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/noticias/teatro-e-danca,debora-lamm-vive-medeia-moderna,70001763936. Acesso em: 5 mar. 2019. 5 GALVÃO, Pedro. Premiada peça mata teu pai debate sobre feminismo e xenofobia. São Paulo. 2017 Disponível em: https://www.uai.com.br/app/noticia/teatro/2018/03/24/noticias-teatro,224346/premiada-peca-mata-teu-pai- debate-sobre-feminismo-e-xenofobia.shtml. Acesso em: 23 dez. 2018. 19 Desse ponto, percebemos que as tragédias possibilitam a expressão do “questionamento do modelo de dominação cultural e política masculina, a partir mesmo de uma valorização da ótica feminina (MOTTA, 2011, p. 6)”. No que se refere à discussão política em relação à encenação das tragédias, nota-se que constantemente aparecem questionamentos de insatisfação com a segregação social, xenofobia, sistemas de governo sem compromisso social efetivo, desastres ambientais movidos pela ganância do ganho fácil, violência contra os direitos do cidadão, além de inúmeras denúncias de justiça feita pelas próprias mãos, sem a interferência das autoridades constituídas. Todas essas problemáticas apontadas e ainda outras, dependendo do enfoque desejado pelos diretores e encenadores, podem ser recobrados ao se encenar hoje qualquer tragédia. A respeito do interesse político em se representar uma tragédia grega hoje, o espetáculo Oréstia apresentado no Rio de Janeiro em 2012 a partir de estudos sobre tragédia grega e que contou com a direção de Malu Galli e Bel Garcia, revela a denúncia de problemas que ainda hoje persistem na sociedade, pois, conforme o depoimento da diretora Malu Galli, “Ésquilo evidencia a nossa necessidade de fazer justiça, o instinto ancestral de vingança6. Até hoje não sabemos como lidar com isso. Mesmo que a sociedade tenha se organizado, a barbárie continua”.7 Ainda sobre o interesse político nas representações de teatro grego antigo, nas palavras de Gilson Motta “os textos gregos foram recuperados a fim de discutir diversos problemas políticos como a questão ambiental, o apartheid, o holocausto, as guerras civis, os sistemas políticos marcados pela opressão” (2011, p. 6). Portanto, entendemos que: A tragédia grega tem sido redescoberta também como um campo fértil para a exploração das diferenças culturais. O próprio texto grego já contém um confronto de experiências entre tebanos, atenienses, tessálios, cretenses e argivos, assim como a relação com outros povos [...]. Os textos exploram personagens que foram deslocados de suas próprias terras devido às guerras, ao banimento e às sentenças de punição. [...] No quadro das diferenças culturais, outro aspecto político que pode ser encontrado nos textos gregos diz respeito à possibilidade de criação de um discurso anticolonialista ou pós-colonialista, já que o pós-modernismo traz à tona a voz das culturas e dos segmentos sociais periféricos, operando um descentramento radical. (MOTTA, 2011, p. 7). 6 Dado o enredo da trilogia Oréstia que é composto por Agamemnon,Coéforas e Eumênides. Nas três peças o tema principal é a vingança que se dá no eixo familiar. 7 SCHENKER, Daniel. Peças no Rio lançam novos olhares sobre tragédias gregas. Rio de Janeiro. 2012. Disponível em: https://www.valor.com.br/cultura/2885120/pecas-no-rio-lancam-novos-olhares-sobre-tragedias- gregas. Acesso em: 23 dez. 2018. 20 Ainda de acordo com o autor, o interculturalismo possui uma estreita relação com as experimentações estéticas. Desse modo, no que se refere à categoria Teatral e o interesse em se representar a tragédia grega atualmente, Gilson Motta observa que: As diferentes versões e adaptações do texto grego na atualidade têm ressaltado alguns dos elementos típicos da cultura pós-moderna, como o corpo, o artifício, a arbitrariedade da narrativa, a desconstrução dos mecanismos de ilusão. De acordo com Hall, desde 1969 a preeminência da tragédia grega coincidiria com o momento em que historiadores teatrais começaram a estabelecer divisões para a história do teatro do século XX, de modo a assimilar a herança moderna. Assim, nesse contexto, os novos conceitos que surgem nos anos 1950 e 1960 (happening, teatro físico, experimentalismo, performance, ruptura com o espaço tradicional, entre outros) são incorporados às tragédias gregas. (2011, p. 7-8) Nesse caso, podemos citar como exemplo a montagem de Prometeu, solo da companhia Circo Mínimo que estreou em 1993 e, por mais de dez anos, foi apresentada em espaços como na rua, em salas, em torres e guindastes. Em 2009 a peça contou com uma reestreia em São Paulo.8 É possível associar essa peça à categoria teatral citada anteriormente, pois o espetáculo permite a sua realização em espaços não-convencionais. Essa recusa pelo palco italiano “trouxe à tona a possibilidade de exploração de diferentes configurações entre cena e sala, ator e espectador, possibilitando a visão de diferentes ângulos e a criação de diferentes percepções” (MOTTA, 2011, p. 8). Outra montagem recente que se enquadra nessa mesma categoria teatral, ocorreu no interior de São Paulo em 2019, na cidade de Franca. A montagem de Tentativas contra Hécuba foi realizada em agosto desse mesmo ano e contou com 16 atores e atrizes em cena. O espetáculo é baseado na tragédia de Eurípides. Em sua concepção estética o palco italiano também foi recusado. A peça contou com a direção de Rafael Bougleux e Nathália Fernandes. Embora exista na produção do espetáculo a figura dos diretores, essa montagem foi desenvolvida a partir de um processo colaborativo entre os envolvidos nessa encenação. A seguir, apresentamos um cartaz de divulgação do espetáculo: 21 Figura 1 – Tentativas contra Hécuba Fonte: Cia Zero. Tendo em vista a recorrente recusa à caixa cênica nas representações de tragédia grega, com ela também passou a ocorrer, com maior frequência, que os artistas renunciassem a estética naturalista, uma vez que O ressurgimento da tragédia grega seria, assim, uma consequência de uma potente coincidência cultural: a recusa à noção tradicional de teatro, a onda performática, a exploração de tradições teatrais não ocidentais. Esta recusa aos padrões estéticos e convenções cênicas ocidentais envolve também uma rejeição à estética realista e ao psicologismo que lhe é associada (MOTTA, 2011, p. 8). Para finalizar a abordagem dessas categorias, Motta (2011), ao tratar do interesse intelectual em representar a tragédia grega hoje, afirma que “O interesse atual pela tragédia grega é estimulado também pela reflexão acerca da moral. Os textos gregos colocam-nos questões éticas diversas, tais como a legitimidade do desejo da vingança [...] julgamentos, premeditação de um crime” (p. 11). Na categoria intelectual, são expostas questões de ordem conceitual que percorrem as tragédias gregas. Com tal característica, “nota-se que nos personagens trágicos está presente um grande debate acerca da psicologia, da cognição, do poder da oratória, do relativismo moral, das relações entre a razão e emoção e, especialmente, da religião e da metafísica” (MOTTA, 2011, p. 9-10). 8 PROMETEU. Circo Mínimo, 2018. Disponível em: http://www.circominimo.com.br/index.php?option=com_content&view=category&id=27&Itemid=35. Acesso em: 26 dez. 2018. 22 Nesse aspecto, podemos chamar a atenção para as montagens de Medeia e Medeia 2, realizadas por Antunes filho. O diretor, a partir da obra de Eurípides, propõe um debate acerca da moral, questionando o modo abusivo de com que as ações irresponsáveis praticadas em uma sociedade preocupada apenas com o ganho fácil são capazes de corromper e destruir a natureza. Antunes Filho, por meio de um cenário construído com elementos da natureza, denuncia a postura inconsequente e desrespeitosa do ser humano em relação ao meio natural. Desse modo, de acordo com Motta “a crise dos valores éticos e espirituais vividos na sociedade ocidental a partir do segundo pós-guerra encontra na tragédia grega um lugar para a autorreflexão” (2011, p. 11). Portanto, notamos que inúmeros são os motivos que possibilitam incorporar as tragédias gregas no panorama das representações teatrais. Muitas vezes, elas ocorrerão pela necessidade inerente que a arte propõe para a discussão social, política, teatral e intelectual, visto que “é neste movimento de adequação do mito trágico aos problemas da sociedade atual que a tragédia grega se renova e permanece como uma constante fonte de reflexão sobre a representação teatral sobre os grandes temas humanos e existenciais” (MOTTA, 2011 p. 20). 1.2 Algumas representações de Antígona no teatro brasileiro ao longo das décadas 1.2.1 Antígona e Antígonas Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram Por que ler os Clássicos? Ítalo Calvino Nesta seção trataremos especificamente de algumas encenações de Antígona que foram realizadas no Brasil. Aqui, abordaremos as principais montagens de que tivemos notícia e que estão relacionadas aos aspectos: social, político, teatral e intelectual comentados anteriormente. Especificamente no Brasil, de acordo com Motta (2011), “a década de 1940 e que chega ao início da década de 1950, são encenados autores como Shakespeare, Molière, Musset, Gil Vicente, Marivaux, Camões e muitos nomes associados ao que seria o teatro clássico” (p. 28). 23 Desse modo, com tal retorno a esses textos, consequentemente as tragédias gregas seriam escolhidas como objeto de trabalho dos grupos. Na década de 1940, encontramos relatos sobre três montagens de tragédia grega, duas que ocorreram no Rio de Janeiro e uma no Nordeste do país. Já na década de 1950, o número de encenações de tragédia grega cresceu, principalmente as tragédias de Sófocles, encenadas em São Paulo e no Rio de Janeiro. No início da década em questão, de acordo com notícia do jornal Correio da Manhã9, o crítico Paschoal Carlos Magno, com a companhia Teatro dos Estudantes do Brasil, realiza o Festival do Teatro Grego com a montagem dos espetáculos: Antígona e Édipo Rei, com os quais promove turnê pelo Nordeste do país. Desse modo, é necessário resgatar algumas informações sobre a personagem Antígona que está inserida no mito de Édipo. De acordo com Grimal, em seu Dicionário de mitologia grega e romana, Antígona é Filha de Édipo, irmã de Ismene, de Polinices e de Etéocles. [...] A variante mais corrente da tradição (segundo os trágicos) faz dela a filha de Jocasta e o resultado do incesto de Édipo com a sua própria mãe. [...] Após a morte de seu pai, Antígona regressou a Tebas, onde viveu com a sua irmã Ismene. [...] Na Guerra dos Sete Chefes contra Tebas, os seus dois irmãos, Etéocles e Polinices, encontravam-se em campos opostos [...] Etéocles e Polinices morreram ambos às mãos um do outro. Creonte, o rei, tio de Polinices e Etéocles e das duas jovens, organizou funerais solenes para Etéocles, mas proibiu que se desse sepultura a Polinices, que conduzira estrangeiros contra a sua pátria. Antígona recusou-se a cumprir esta ordem. Considerando um dever sagrado, imposto pelos deuses, dá sepultura aos mortos e, sobretudo, aos parentes mais próximos, infringiu a ordem de Creonte e espalhou sobre o cadáver de Polinices uma mão- cheia de pó, gesto ritual suficiente para o cumprimento da obrigação religiosa. Por este ato de piedade, ela foi condenada à morte por Creonte e encerrada viva no túmulo dos Labdácidas, de quem descendia. Enforcou-se aí e Hémon, seu noivo e filho de Creonte, matou-se sobre o seu cadáver. Também a mulher de Creonte, Eurídice, se suicidou, desesperada. (2005, p. 31). Na montagem que analisaremos aqui, realizada por Andreia Beltrão e Amir Haddad no final de 2016, os artistas optaram por representar o texto escrito por Sófocles10 “para cujo 9 REGRESSOU o Teatro do Estudante do Brasil: 114 espetáculos em dois meses e dez dias de excursão. CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, 14 de Março de 1952. 1º Caderno, Página 5. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/089842/per089842_1952_18091.pdf. Acesso em 3 jan. 2019. 10 Vale salientar que outros autores também se dedicaram a escrever sobre o tema de Antígona como é o caso de Jean Anouilh (França, 1944) e Bertolt Brecht (Alemanha, 1948), por exemplo. 24 nascimento, junto aos dados de outras fontes, a Crônica de Paros indica, como mais provável, a data de 497/6” (LESKY, 2003, p. 141). De acordo com a tese defendida por Flávia Almeida Vieira Resende intitulada: Antígonas: apropriações políticas do imaginário mítico, o contexto em que se desenvolve essa tragédia, [...] insere no período dos concursos trágicos que, não por acaso, têm lugar na Atenas triunfante do século V a.C., tendo todo o seu desenvolvimento e declínio concentrados nesse lugar e nesse período de um século. Com isso queremos dizer que a tragédia (e a arte de modo geral) tanto reflete e dá forma às inquietações e às estruturas sociais do espaço-tempo em que está inserida, quanto se constitui também como uma instituição e influencia na formação desse pensamento. [...] A relação do teatro com a política, nesse momento, é tão forte que há relatos de que Sófocles teria recebido um cargo de general na guerra de Samos devido ao prestígio atingido pela representação de Antígona. [...] podemos entender que Antígona foi uma espécie de “plataforma política” para Sófocles. (2017, p. 28). A respeito de Atenas no período das representações da tragédia antiga, Resende ainda sintetiza que Atenas vivia o auge de sua glória no século V: a vitória dos gregos liderados por Atenas sobre os persas, o poder imperialista conduzido por Péricles, a constituição de uma democracia nas ágoras. Se aos nossos olhos as construções destinadas ao teatro já podem parecer grandiosas, vale lembrar que a população da cidade de Atenas e o seu entorno, como afirma Baldry (1975), era de aproximadamente 300 mil habitantes. É impressionante, nesse sentido, pensar como o teatro fazia parte da vida comunitária dos atenienses, que enchiam as arquibancadas para assistir às representações. [...] O teatro, como as assembleias, fazia parte da atividade cidadã do grego no âmbito da democracia. (2017, p. 29). É fundamental compreender esse contexto vivido na Grécia para que possamos perceber a importância que a encenação de Antígona resultou naquele período. Nesse sentido, Resende complementa que: Embora seja tentador resumir essa tragédia à história de uma mulher que leva às últimas consequências o enfrentamento a um poder tirânico, que é, aliás, o ponto central da imagem mítica que prevalece nas atualizações feitas pelas dramaturgias modernas e contemporâneas, há inúmeras nuances tanto nessa relação entre Antígona e Creonte quanto nas relações entre as demais personagens e na peça como um todo, nuances essas que permitem, ao nosso ver, que a peça seja recontextualizada e reencenada em diversos contextos. (2017, p. 31). 25 Alguns estudiosos desse período na Grécia apontam que a Antígona de Sófocles teria, possivelmente, sido encenada em 442 a. C. A tragédia de Sófocles apresenta a determinação de Antígona em exercer os ritos fúnebres sobre o corpo de seu irmão Polinices. A respeito da produção literária de Sófocles, Lesky descreve que: A criatividade do poeta não esmoreceu até idade bem avançada e de sua riqueza nos dá prova a notícia de que os cidadãos eruditos alexandrinos classificaram cento e vinte e três peças sob o nome de Sófocles e até nós chegaram 114 títulos. [...] Sófocles, [...] é indicação do espírito de uma nova época vê-lo preocupado com questões teóricas, relativas à sua criação literária. Os antigos conheciam um escrito em prosa, “Sobre o coro”, sendo lícito supor que aí se falava do aumento, introduzido por ele, no número de coreutas, de doze para quinze. Também deu à tragédia o terceiro ator. (2003, p. 144). A partir de agora sintetizaremos o enredo da Antígona de Sófocles a partir da adaptação de Millôr Fernandes. Para esse momento, usamos o texto de Millôr Fernandes, pois foi essa a obra escolhida por Andrea Beltrão e Amir Haddad para compor a dramaturgia do espetáculo Antígona que será analisado a posteriori.11 No início da tradução de Millôr Fernandes, já há uma indicação cênica que possibilita a compreensão da ação que ocorrerá no espetáculo: CENA: Tebas, praia em frente ao Palácio Real, onde outrora residia Édipo. Ao fundo o palácio, com três portas, das quais a maior, no centro. É madrugada do dia em que os irmãos de Antígona, Etéocles e Polinices, morrem 1utando às portas de Tebas. Tendo fugido os argivos, atacantes da cidade, Creonte, o rei, é o grande herói do dia. (SÓFOCLES, 1996, p.2). No entanto, a rigor, sabemos que o texto original de Sófocles não tem indicação cênica nenhuma. Em O espetáculo na tragédia grega de Daisi Malhadas (2003, p. 49) ela formula que a concepção do cenário na tragédia grega aparece no texto pronunciado (uma construção apenas imagética, poética). Toda essa indicação presente no texto de Millôr Fernandes (que veremos no terceiro capítulo dessa pesquisa) não aparece no texto de Sófocles, como também não se encontra na tradução de Guilherme de Almeida. Pelo texto grego (sem a indicação) percebemos que Antígona está fora do palácio e também chama a irmã para fora, justamente para que os de dentro não escutem a conversa. 11 Tivemos também acesso a outras traduções de Antígona, inclusive a tradução de Guilherme de Almeida (tradução integral do texto de Sófocles). No entanto, acreditamos que a abordagem desse texto já no início da pesquisa possa familiarizar o nosso leitor diante da obra de Millôr Fernandes, que se trata de uma adaptação mais recente e que foi intencionalmente escolhida pela atriz e pelo diretor do espetáculo analisado para ser a base da dramaturgia. 26 Assim, já é possível compreender qual é a situação conflituosa instaurada em cena, isto é, o confronto que se deu entre Etéocles e Polinices. O embate entre os irmãos resultou na morte de ambos, dessa forma, Antígona já sabendo do decreto de Creonte, dirige-se a Ismênia: ANTÍGONA - Um e outro, os dois, ambos – nossos irmãos morreram nessa guerra sem fim que travamos contra Argos, por umas miseráveis escavações de argila e cobre. Polinices, quase menino, acreditava em Argos e morreu por ela. Etéocles, ainda mais jovem, lutou até o fim, defendendo do próprio irmão a última porta de Tebas. Separados na vida, também não poderão se reencontrar sob o manto da terra. Para Etéocles, que morreu nobremente pela pátria e pelo direito, Creonte ordenou pompas de herói, respeito total e detalhado a todos os ritos e costumes. Mas o corpo do desgraçado Polinices, o traidor, não terá sepultura. (SÓFOCLES, 1996, p. 2). E, em seguida, propõe a Ismênia: ANTÍGONA - Pergunto se queres dividir comigo o trabalho e o perigo. ISMÊNIA - Com que aventura me tentas? Que sentido têm tuas palavras? ANTÍGONA - Procuro teu auxílio para enterrar um morto. ISMÊNIA - O morto que Tebas renegou? ANTÍGONA - O morto que se revoltou. ISMÊNIA - Você tem a audácia de enfrentar o edital de Creonte e a ira do povo? ANTÍGONA - Nenhum dos dois é mais forte do que o respeito a um costume sagrado. Enterro meu irmão, que é também o teu. Farei a minha e a tua parte se tu te recusares. Poderão me matar, mas não dizer que eu o traí. (SÓFOCLES, 1996, p. 2 - 3). Com base nessa cena, depreende-se que mais um conflito está instaurado na ação da peça, pois Antígona já demonstra oposição ao decreto de Creonte e, ao mesmo tempo, também expressa reação contrária à posição de Ismênia. Nessa passagem, Antígona fala em nome das leis divinas, já a personagem Ismênia, vê-se sobre a opressão de Creonte: ISMÊNIA - [...] Não, temos que lembrar, primeiro, que nascemos mulheres, não podemos competir com os homens; segundo, que somos todos dominados pelos que detêm a força e temos que obedecer a eles, não apenas nisso, mas em coisas bem mais humilhantes. Peço perdão aos mortos que só a terra oprime: não tenho como resistir aos poderosos. Constrangida a obedecer, obedeço. Demonstrar uma revolta inútil é pura estupidez. (SÓFOCLES, 1996, p. 3). Após esse embate entre as irmãs, ocorre o episódio em que Creonte torna pública a notícia de que agora é o novo rei de Tebas. A seguir, a personagem impõe sua ordenação sobre o corpo de Polinices e justifica da seguinte forma: “O sentido da minha decisão é que, mesmo depois de 27 mortos, não devemos tratar heróis e infames de maneira idêntica. Nunca, enquanto eu for rei, Tebas dará tratamento igual ao traidor e ao justo” (SÓFOCLES, 1996, p. 5). No entanto, mesmo com a imposição severa do tirano sobre a cidade, o Guarda vai até Creonte e anuncia: GUARDA - Meu rei, ninguém gosta de ser arauto de desgraças. O cadáver, alguém o enterrou rapidamente e desapareceu. Quando vimos, o morto estava coberto de pó e terra seca, e havia em volta outros sinais de que se tinham cumprido os ritos piedosos. CREONTE - Me custa acreditar. A audácia é inconcebível! Quem foi? GUARDA - Ninguém sabe. O chão estava liso, não havia marcas de enxada ou picareta. A terra, dura e seca, sem traço de rodas ou qualquer marca que pudesse levar ao criminoso. Quem praticou o ato não deixou vestígio. O corpo, quando o descobrimos à primeira luz do dia, não estava bem enterrado, tinha em cima uma poeira fina e alguma terra, como se alguém quisesse apenas mostrar seu desafio ao decreto real. (SÓFOCLES, 1996, p. 8). Descontrolado e tomado pela ira, Creonte ordena que o Guarda encontre o responsável pela realização dos ritos fúnebres. Nesse momento, o Coro composto por cidadãos da elite de Tebas se manifesta antecedendo a entrada da personagem Antígona: CORO - Muitas são as coisas prodigiosas sobre a terra, mas nenhuma mais prodigiosa do que o próprio homem. Quando as tempestades do sul varrem o oceano, ele abre um caminho audacioso no meio das ondas gigantescas que em vão procuram amedrontá-lo: à mais velha das deusas, à Terra eterna e infatigável, ano após ano ele lhe rasga o ventre com a charrua, obrigando-a a maior fertilidade. A raça volátil dos pássaros captura, muita vez, em pleno voo. Caça as bestas selvagens e atrai para suas redes habilmente tecidas e astuciosamente estendidas a fauna múltipla do mar, tudo isso ele faz, o homem, esse supremo engenho. Doma a fera agressiva acostumada à luta, coloca a sela no cavalo bravo, e mete a canga no pescoço do furioso touro da montanha. A palavra, o jogo fugaz do pensamento, as leis que regem o Estado, tudo ele aprendeu, a si próprio ensinou. Como aprendeu também a se defender do inverno insuportável e das chuvas malsãs. Vive o presente, recorda o passado, antevê o futuro. Tudo lhe é possível. Na criação que o cerca só dois mistérios terríveis, dois limites. Um, a morte, da qual em vão tenta escapar. Outro, seu próprio irmão e semelhante, o qual não vê e não entende. Se não resiste a ele, é esmagado. Se o vence, o orgulho o cega e vira um monstro que os deuses desamparam. Só o governante que respeita as leis de sua gente e a divina justiça dos costumes mantém sua força porque mantém sua medida humana. Em mim só manda um rei: o que constrói as pontes e destrói muralhas. (SÓFOCLES, 1996, p. 8). Esse canto coral antecede o primeiro embate entre Antígona e Creonte e, como afirma Lesky, tal passagem retrata a “perigosa grandeza do ser humano” e explica: 28 Nessa época, Sófocles entoou seu cântico sobre a sinistra faculdade do homem de empurrar cada vez mais as fronteiras de seu domínio para dentro do reino da natureza e de levar os símbolos de sua soberania até os confins do mundo. Esse afã de conquista desperta nele espanto e medo, a um só tempo. A última estrofe [...] constitui uma das maiores declarações já proferidas, sob o signo do absoluto, contra a relativização de todos os valores. Será preciso dizer ainda que estes versos através do ateniense do século V, alcançam também o homem como tal? (2003, p. 154). Seguindo o enredo, o Guarda regressa ao palácio, dessa vez, ele retorna com a personagem Antígona e descreve o ocorrido: CREONTE - Onde, como e quando ela foi presa? GUARDA - Repito que enterrava e consagrava o morto – e agora sabes tudo. CREONTE - Repetes o que te contaram ou foste testemunha? GUARDA - Conto o que aconteceu: voltamos para o posto de vigília, apavorados com tuas terríveis ameaças, limpamos o pó e a terra que cobria o corpo já em estado de putrefação e nos sentamos perto, numas pedras, de costas para o vento, pois o mau cheiro era insuportável. Cada um procurava ter os olhos mais abertos do que o outro, e todos se punham aos palavrões e às ameaças se alguém, cedendo ao cansaço, cochilava. Assim vigiamos até que o disco do sol ficou a pino, cegando a todos com sua luz terrível. Súbito um vento quente nos envolve num turbilhão de areia em brasa. O redemoinho se abate sobre as árvores, arranca folhas, escurece o céu, enche toda a planície de destroços mil. Fechamos os olhos e enfrentamos tremendo aquilo que só podia ser a maldição celeste. Quando, enfim, passou a tempestade, esfregamos os olhos e vimos essa mocinha aí, soltando gritos de horror e angústia como um pássaro desesperado por perder os filhotes. Foi exatamente o que ela fez ao ver o cadáver de novo descoberto. E também proferia terríveis ameaças e lançava maldições sobre os autores do que chamava de heresia. Cavando do chão, com as próprias unhas, o pouco de terra que podia, cobriu de novo o morto, ao mesmo tempo que, de uma ânfora de bronze trabalhado, bebia e derramava sobre ele a tripla libação sagrada. Vendo isso caímos sobre ela e a prendemos sem que demonstrasse o mais leve receio. (SÓFOCLES, 1996, p. 8) Essa passagem, além de deixar explícito o modo como Antígona exerce o ritual sagrado sobre corpo de Polinices e, com isso, desobedece a ordem de Creonte, também apresenta indícios da fúria dos deuses contra a atitude do tirano que, ao proibir sepultura ao irmão da heroína, desrespeita um costume sagrado. Essa ideia é confirmada pela resposta de Antígona a Creonte: ANTÍGONA – [...] A tua lei não é a lei dos deuses; apenas o capricho ocasional de um homem. Não acredito que tua proclamação tenha tal força que possa substituir as leis não escritas dos costumes e os estatutos infalíveis dos deuses. Porque essas não são leis de hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos: ninguém sabe quando apareceram. Não, eu não iria arriscar o castigo dos deuses para satisfazer o orgulho de um pobre rei. Eu sei que vou morrer, não vou? 29 Mesmo sem teu decreto. E, se morrer antes do tempo, aceito isso como uma vantagem. Quando se vive como eu, em meio a tantas adversidades, a morte prematura é um grande prêmio. Morrer mais cedo não é uma amargura, amargura seria deixar abandonado o corpo de um irmão. E se disseres que ajo como louca eu te respondo que só sou louca na razão de um louco. (SÓFOCLES, 1996, p. 8). A esse ponto da ação, Creon e Antígone aparecem numa contraposição irreconciliável. Em grande cena. Sófocles faz com que os dois se encontrem frente a frente. Aqui Antígone diz sob qual signo está lutando e sofrendo: ela responde pelas grandes leis não escritas dos deuses, diante das quais toda prescrição, que as desdenhe, se converte em opróbrio. De novo surge dessas palavras um grande conhecimento de validade intemporal, e de novo se faz dispensável qualquer palavra adicional para que percebamos esse protesto contra o Estado onipotente, que quer erigir-se em poder absoluto, até mesmo face à norma ética, parece dirigido a nossa época. (LESKY, 2003, p. 156). Após isso, a personagem Ismênia retorna arrependida de não ter colaborado com a irmã na realização dos ritos fúnebres para Polinices e Antígona reage: ISMÊNIA - Se minha irmã permite, eu também sou culpada. Também participei, sou cúmplice. ANTÍGONA - Nunca! A justiça não admite que eu concorde com isso. Você não aprovou meu ato nem eu permiti que me ajudasse. ISMÊNIA - Ainda é tempo de te dar minha aprovação. E peço que me deixe repartir com você a sua culpa. Se se reconciliar comigo talvez nosso irmão morto me perdoe também a hesitação de antes. ANTÍGONA - Não queira repartir agora a culpa daquilo em que não teve coragem de botar as mãos. Vive você. Minha morte basta. (SÓFOCLES, 1996, p. 10). Na sequência, as irmãs são levadas pelos Guardas e, a seguir, Hémon, filho de Creonte e Eurídice, noivo de Antígona, chega ao palácio, pois já sabe que Creonte reserva um fim trágico a Antígona. Hémon pede ao pai que reveja a sua postura diante da jovem e também sobre o decreto que o rei ordena ao corpo de Polinices. “Quando a tempestade cai sobre a floresta, os abutres que se curvam à ventania resistem e sobrevivem, enquanto tombam gigantes inflexíveis. Domina a tua cólera e cede no que é justo” (SÓFOCLES, 1996, p. 13). No entanto, o governante se mantém rígido na sua decisão e na sua ânsia por comandar: CREONTE - Não estou disposto a deixar a indisciplina corroer meu governo comandada por uma mulher. Se temos que cair do poder, que isso aconteça diante de outro homem. [...] Só sabe comandar quem comanda até o mais ínfimo 30 detalhe. Só sabe comandar quem desde cedo aprende a obedecer. (SÓFOCLES, 1996, p. 12). Hémon também traz informações sobre o que o povo de Tebas tem dito a respeito das determinações de Creonte: A ti, nenhum cidadão viria dizer o que se murmura na sombra e nas esquinas: “Nenhuma mulher – murmuram todos – jamais mereceu menos destino tão cruel, morte tão infamante. Essa que ousou tudo para não deixar o irmão ser pasto dos cães, e dos abutres, devia ser coroada pelo povo, carregada em triunfo, vestida numa túnica de ouro.” Esse é o murmúrio clandestino que corre por aí. (SÓFOCLES, 1996, p. 12). Contudo, todas essas tentativas são inúteis e o tirano se mantém irredutível. Hémon sai de cena e Creonte já tem um veredito para as irmãs: Ismênia não receberá nenhum castigo e Antígona CREONTE – [...] será enviada para um lugar deserto, enterrada viva numa gruta de pedra, nas montanhas. Lá não lhe chegará um som de voz humana e poderá conversar em paz com seus mortos queridos. Receberá como alimento apenas a ração de trigo e vinho que os ritos fúnebres mandam dar aos mortos. É isso: para se manter viva terá que se alimentar com a comida dos mortos. (SÓFOCLES, 1996, p. 14). Dando andamento ao decreto, o quadro emocional da cena se modifica e Antígona caminha para a morte. Essa cena é acompanhada por um canto do Coro e é um episódio de alta dramaticidade no espetáculo: ANTÍGONA - Vejam bem, cidadãos de meu país, reparem como Antígona dá o primeiro passo de seu último caminho. Com que angústia olho o sol que não verei de novo. Hades, o deus que fecha para sempre os olhos de todos os seres, a mim me conduz viva para as margens do além. Me tiram o véu de noiva, me dão o véu do luto, e eu vou, sem cortejo nem cantos nupciais, infeliz prometida do deus da escuridão. CORO - Mas caminhas para a morte escoltada pelo respeito dos que te conheceram. Em tua cabeça há um halo de glória. A doença não consumiu teu corpo. O tempo não desgastou teu rosto. Senhora do teu próprio destino, única entre todos, desces viva ao mundo dos mortos. [...] Com extrema audácia tu te lançaste contra o duro pedestal do trono da justiça. Estás aí, caída, e a justiça está lá, inalterada. Mas se te consola saber, tua provação já estava escrita. Estás pagando ainda o crime de teu pai. ANTÍGONA - Agora tocaste no ponto mais dolorido que há dentro de mim – a sorte de meu pai. E me vem o horror do leito de minha mãe, o tenebroso leito onde ela dormiu com o próprio filho. De que gente infeliz, de que desgraçado instante se gerou meu miserável ser. Nada de estranho então que agora eu esteja aqui abandonada e maldita, caminhando sozinha ao encontro deles. Ah, meu 31 irmão, um gesto de amor por ti me traz a morte. Vivo, era bom estar viva a teu lado. Morto, me matas. (SÓFOCLES, 1996, p. 15). Pela última vez, Creonte e Antígona ficam frente a frente e, na sequência, a jovem sai de cena acompanhada pelos guardas. Agora, caminhando para o final da peça, Tirésias vai até Creonte: TIRÉSIAS - Todos sabem que és tu o culpado da doença que ataca o nosso Estado. Os oratórios dos lares e os altares dos templos foram maculados, um e todos, por pássaros e cães, que devoraram pedaços da carcaça do filho de Édipo. Os deuses não estão aceitando nossas orações e nossos sacrifícios. Nenhuma ave do céu solta um grito feliz de bom augúrio desde que provaram a gordura de um defunto. Pensa bem em tudo que te digo, meu filho. A hora do erro chega a todo ser humano. Mas quem logo a percebe e se corrige é menos tolo, menos infeliz, tem menos culpa. Não apunhala quem já não tem vida. Perdoa o morto. Poupa o cadáver. (SÓFOCLES, 1996, p.17). Mas, novamente, mesmo com os presságios e pressentimentos negativos sentidos e comentados pelo vidente Tirésias, Creonte mantém-se irredutível. E, então, o mensageiro passa a anunciar uma série de desgraças: MENSAGEIRO - Senhor, um golpe terrível. Perdoa-me que eu seja um mensageiro da desgraça. Teu exército está completamente destroçado dentro de Argos, batido em fuga, ou aprisionado. Teu filho Megareu está lá, morto, atravessado por uma flecha fatal, mas é apenas um corpo a mais, entre as centenas de corpos abandonados no campo de batalha. Só lutam até o fim os que não têm a coragem de fugir. (SÓFOCLES, 1996, p. 19). No entanto, ao tomar conhecimento desse fato, o mandante reage de forma diferente das outras vezes: CREONTE - Que cobertura se me resta apenas minha guarda? Que proteção se Megareu está morto? CORO - Tens que salvar os vivos. Corre. CREONTE - Pra onde? Que faço? Já não sei. CORO - Esqueces que tens outro filho, maior comandante do que Megareu? Vai a ele e entrega-lhe o comando. CREONTE - Ele não aceitará, depois de tudo. CORO - Hémon conhece bem o seu dever. Vai, filho de Meneceus, enquanto há tempo. Liberta a jovem do seu túmulo de pedra, enterra o morto em campa piedosa e põe nas mãos de Hémon a salvação de Tebas. É o que nos resta. CREONTE - Hémon, filho querido, agora que teu irmão já não existe, a dor de sua perda me traz o terror de te perder. Mas vamos travar juntos nossa guerra vã contra o destino. Venham comigo todos e tragam machados. Não deixem que meu coração fraqueje vendo a destruição que causei por não reconhecer que havia leis antes de mim. Sai com criados e guardas (SÓFOCLES, 1996, p. 20). 32 A seguir, na presença de Eurídice, a mulher do tirano, o mensageiro retorna anunciando o terrível desfecho de Hémon e Antígona: MENSAGEIRO - Foi apenas há um momento que Creonte salvou esta terra da desgraça: vestiu com justiça a toga do juiz, empunhou com propriedade o cetro do monarca. Reinou, um breve instante, pai glorioso de filhos principescos. Um giro só da roda da fortuna, e eis que perdeu tudo. Pois no estado em que está já não o conto entre os vivos. CORO - Que nova desgraça pretende anunciar com tão terrível prólogo? MENSAGEIRO - Hémon morreu. E não foram mãos estranhas que o mataram. [...] Hémon matou-se com suas próprias mãos, enlouquecido pelo crime do pai. (SÓFOCLES, 1996, p. 20 – 21). E descreve minuciosamente como tudo ocorreu: MENSAGEIRO - Guiei Creonte até a região deserta em que jazia Polinices, [...] Rezamos à deusa dos caminhos e pedimos a Plutão que contivesse sua ira. Lavamos o corpo com água consagrada e, juntando aqui e ali alguns gravetos, respeitosamente incineramos os restos do morto e seus poucos pertences. As cinzas foram, enfim, dadas à terra e sobre elas fizemos um túmulo modesto. Partimos então em direção da câmara nupcial de Antígona, onde a donzela esperava a morte emparedada viva. Alguém que ia na frente ouviu um gemido de homem partindo da masmorra e veio, apavorado, avisar o nosso rei. Quando nos aproximamos, o clamor saído das pedras se tornou ainda mais confuso enquanto o rei, desesperado, gemia e gaguejava angustiado: “Desgraçado de mim! Mil vezes desgraçado se o que pressinto for verdade. Essa é a voz do meu filho ou os deuses enganam meus ouvidos. Depressa, servidores fiéis, entrem depressa! Se alguém passou vocês também podem passar.” Afastando um pouco mais a pedra da entrada, penetramos acompanhados do rei, que parecia louco. E, na parte mais profunda do sepulcro, descobrimos Antígona enforcada, num laço feito com o próprio véu. Hémon, abraçando-a pela cintura, chorava o amor perdido e invectivava o pai como assassino. Mas Creonte, na dor do pai, ignorando a fúria do amante, perguntou aos soluços: “Meu filho, que cegueira é essa? Ficaste louco? Vem comigo, eu te imploro!” Hémon não respondeu. Olhou-o com um olhar gelado e cuspiu-lhe na cara, ao mesmo tempo que num gesto feroz atirava um golpe de espada contra ele. Errando o golpe e vendo Creonte correr, apavorado, Hémon jogou todo o peso do corpo contra a espada, que o atravessou sinistramente, lado a lado. Moribundo, ainda abraça Antígona com os braços frouxos e no espasmo da morte lança um jato de sangue na face pálida da morta. Morto abraçado a morto, lá ficaram. (SÓFOCLES, 1996, p. 20). Eurídice, mãe de Hémon e de Megareu, ao ouvir os terríveis relatos apresentados pelo Mensageiro, sai de cena silenciosamente. E Creonte ao retornar ao palácio, novamente, recebe trágicas notícias: CREONTE - Olhem para mim e vejam a que preço aprendi a ser humano. 33 CORO - Desgraçado de ti que aprendeste tão caro e já tão tarde. Que não ouviste as vozes de conselho e confundiste o teu poder com o teu direito. A todos nos perdeste. CREONTE - Que deuses traiçoeiros me apontaram os caminhos que segui e nos quais, me perdendo, perdi minha alegria? MENSAGEIRO - Senhor, a dor com que entras em casa é semelhante a dor que lá dentro te espera. A rainha morreu, igual ao filho na morte desgraçada – com golpes que desferiu no próprio peito. CREONTE - [...] Tebas de Sete Portas, eis tudo que resta da estirpe de Laio. Meu filho é morto e a espada com que iria deter o inimigo aqui está, manchada do seu próprio sangue. [...] Não temos mais comando nem vontade. Não sei para onde olhar nem onde buscar apoio. Levem-me daqui. Para onde eu possa morrer exposto ao tempo, a fim de que meu corpo desonrado acalme, enfim, a ira dos deuses e aplaque a fúria do exército inimigo. Para que Tebas não morra comigo. Sai, acompanhado pelos servidores. (SÓFOCLES, 1996, p. 22). Essa é a versão de Antígona baseada na peça escrita por Sófocles, adaptada por Millôr Fernandes, a qual foi escolhida por Andrea Beltrão e Amir Haddad para a dramaturgia do espetáculo que analisaremos. Vale relembrar que outros autores também apresentaram variantes para essa trajetória vivida por Antígona. 1.2.2 Representações de Antígona no Brasil: de 1940 a 2010 No século XX, Bertolt Brecht,12 na Alemanha, e J. Anouilh, na França, também elaboraram as suas versões de Antígona. A respeito da adaptação do francês, a pesquisadora Maria de Fátima Sousa e Silva (2009) no estudo: Uma “tradução” livre de Sófocles: J. Anouilh, Antigone” descreve que Quando, em 1943, J. Anouilh apresentava a sua Antigone, obedecia a um princípio que B. Brecht, também ele autor de uma nova Antígona (1948), sintetizou nestas palavras: “Se escolhemos Antígona para a presente tentativa teatral foi tão só porque a sua temática pode conferir-lhe uma certa actualidade e a sua forma propor interessantes problemas.” Esta era a perspectiva de um cidadão europeu que olhava em volta para um continente em ruínas – Anouilh do lado francês, na iminência do desfecho libertador da Segunda Guerra Mundial, Brecht no rescaldo, em território alemão, de um conflito devastador. Tratava-se, em ambos os casos, de reformular um tema que aos dois autores pareceu sugestivo para a “tradução” em cena das circunstâncias do momento, retomando um original grego paradigmático da corrosão, pessoal e social, que o exercício de um poder absoluto e tirânico acarreta. [...] Anouilh [...] introduziu na sua reescrita, em obediência ao que parecem os seus dois objectivos 12 Tratamos de modo mais específico sobre esse texto no Capítulo 2 dessa pesquisa. 34 primordiais: em primeiro lugar, adoptar uma estratégia dramática que seja capaz de ultrapassar as barreiras do tempo e do espaço e garantir a compreensão e adesão de um auditório francês do séc. XX (1943) perante um original grego do século V a. C. (c. 441 a. C.); depois, o de ajustar o sentido de um drama servido aos Atenienses, justamente em fase de um pós-guerra e da estabilização de uma nova ordem social, às condições, ao mesmo tempo similares e distintas, que eram as da Europa dos anos 1940 do século que findou (p. 177-178). Além dessas adaptações realizadas por autores europeus, na América do sul, encontramos outros textos que, do mesmo modo, foram baseados em Antígona. A pesquisadora Flávia Almeida Vieira Resende (2017), em sua tese intitulada “Antígonas: apropriações políticas do imaginário mítico” investiga outras duas dramaturgias que aqui apresentamos os títulos: Antígona Furiosa, de Griselda Gambaro (Argentina, 1986), e Antígona, de José Watanabe e Yuyachkani (Peru, 2000). Em 1952, em São Paulo, no Teatro Brasileiro de Comédia, Adolfo Celi dirige o espetáculo Antígone, montagem inovadora para o momento, o que nos chamou a atenção, pois na mesma apresentação a peça contava com o texto de Sófocles e de Jean Anouilh, A cenografia para a tragédia de Sófocles é de Bassano Vaccarini (1914-2002), os figurinos são assinados por ele e Rina Fogliotti. Os cenários e figurinos para a versão francesa são uma realização de Aldo Calvo (1906-1991). A maquiagem de Leontij Tymoszcenko, resulta de um minucioso trabalho de pesquisa de época. As máscaras da versão grega são do artista plástico Darcy Penteado (1926-1987).13 A seguir, observamos uma imagem do espetáculo Antígone e ao examiná-la percebemos os figurinos, (túnicas usadas pelo coro e demais personagens), os acessórios (os adereços que reproduziam as antigas máscaras usadas nas representações de tragédia no século V a.C) fazem alusão ao universo grego antigo e ao que se imagina sobre o modo das representações de tragédia na Grécia Antiga. 13 ANTÍGONE. ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento395730/antigone. Acesso em: 02 jan. 2019. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7 35 Figura 2 – Antígone (1952) Direção de Adolfo Celi Fonte: Registro fotográfico Fredi Kleemann Esse espetáculo dirigido por Adolfo Celi ainda nos permite analisar não só a sua proposição estética/teatral, como também os interesses políticos e sociais do espetáculo, pois “A discussão política é o cerne dos dois textos, sendo que a versão de Jean Anouilh, escrita em 1943, alude diretamente à França sob a ocupação nazista. O espetáculo dura quatro horas e Celi usa o mesmo elenco, com a mesma distribuição de papéis nas duas versões, reforçando os contrastes entre elas.”14 Na década seguinte, em 1966, no nordeste do país, houve a montagem de Antígona com direção de Benjamim Santos, assistência de Hermilo Borba Filho e tradução de Ariano Suassuna (FERRAZ, 2006)15. Anos mais tarde, no auge da ditadura militar, especificamente em 1969 o Grupo de Teatro Opinião, em comemoração aos seus cinco anos de existência, realizou a montagem de Antígona, com direção de João das Neves e tradução do texto de Sófocles por Ferreira Gullar. A atriz Renata Sorrah16, que protagonizou o espetáculo após a saída de Isabel Ribeiro, ao comentar o processo de montagem do espetáculo, relata que, durante os ensaios, os atores sempre se 14 Ibidem. 15 Cf. FERRAZ, Leidson (org.). Memórias da cena pernambucana (Vol 2). Recife: L. Ferraz, 2006. 16 ITAÚ CULTURAL. Renata Sorrah - Ocupação João das Neves (2015). 2015. (9m9s) Disponível em: https://youtu.be/F38J9R5wuqo. Acesso em: 1 jan. 2019 36 perguntavam “qual era a importância de se realizar essa peça?”, “o que em Antígona se relacionava diretamente com o momento opressivo em que viviam?”. Desse modo, notamos que esse espetáculo tinha intuito político/social, pois os envolvidos acreditavam que a postura firma e a insubordinação da personagem principal era um mecanismo de denúncia quanto à insatisfação que sentiam diante do cenário político/social da época, no caso desse espetáculo, a ditadura civil militar. As indumentárias desse espetáculo se diferenciam significativamente daquelas que já haviam sido apresentadas até o momento em encenações de teatro grego. Como exemplo, o traje de Ismênia e Antígona eram idênticos, só que modernizados e despojados, ou seja, os figurinos não tinham o intuito de reproduzir vestes antigas comumente usadas nas representações de tragédia grega que ocorriam no país. Figura 3 – Renata Sorrah interpreta Ismênia Fonte: Acervo Itaú Cultural No ano de 1969 também é encenada a montagem de Ato sem perdão, adaptação da Antígona de Sófocles feita por Millôr Fernandes. A peça foi dirigida por José Renato e os cenários e os figurinos são de Flávio Império. Como afirma Gilson Motta, no espetáculo é possível perceber o recurso do viés político a partir de elementos do teatro épico como “a quebra 37 da identificação do público a partir da troca dos intérpretes de um mesmo personagem, a fim de propiciar a reflexão crítica” (2011, p. 46). Anos mais tarde, em 1986, ocorreram também duas apresentações de Antígone, novamente uma no Rio de Janeiro e a outra em Belo Horizonte. Na representação da capital mineira, o texto foi encenado em homenagem aos 30 anos da morte de Brecht; Carlos Rocha ficou responsável pela direção dos atores da Cia Sonho & Drama.17 A montagem de Antígone, em 1986, no Rio de Janeiro, foi apresentada na Sala dos Lanceiros no Paço Imperial e contou com a direção de Antônio Guedes e Helena Varvaki. Nas décadas de 1990, 2000 e 2010 começa a haver mais adaptações de textos de tragédia grega, ainda que não necessariamente os textos sejam apresentados na íntegra. Além disso, mudanças radicais na estética dos cenários e figurinos passam a ocorrer com mais frequência. O número de peças de que tivemos notícia também é maior do que encontramos nas décadas anteriores. A partir daqui, trataremos dos espetáculos que mais se diferenciam em suas encenações e também daqueles que receberam destaque em sua recepção crítica. Em 1990 houve a estreia do espetáculo Antígona, ritos de paixão e morte, realizado pela companhia gaúcha Ói Nóis Aqui Traveiz; a peça fez parte da série chamada “raízes do teatro”18. O espetáculo tem a duração de 3 horas, pois seu texto não é composto somente pela peça Antígona, mas também reúne fragmentos de textos de vários autores como Brecht, Sartre e Nietzsche. Por se tratar de um grupo de teatro de rua, em seu cenário (que na apresentação em questão ocorreu no Centro Cultural Terreira da Tribo), na imagem a seguir, nota-se que o chão está coberto de areia e segundo o crítico de teatro Renato Dalto19 essa areia simboliza o deserto em que Creonte determina que o corpo insepulto de Polinices permaneça: Mas seu irmão, Polinices, amigo do inimigo que nos atacava - Polinices - que voltou do exílio jurando destruir a ferro e fogo a terra onde nascera - e conduzir seu próprio povo à escravidão, esse ficará como os que lutavam a seu lado - cara ao sol, sem sepultura. Ninguém poderá enterrá-lo, velar-lhe o corpo, chorar por ele, prestar-lhe enfim qualquer atenção póstuma. Que fique exposto à voracidade 17 CIA. Sonho & Drama. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo241322/cia-sonho-drama. Acesso em: 08 jan. 2019. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7. 18 DALTO, Renato. 'Antígona' gaúcha, grupo de teatro de rua revê a tragédia grega. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1 de Fev. de 1990. Caderno B, Página 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_08&pagfis=6124&url=http://memoria.bn.b r/docreader#. Acesso em: 14 jan. 2019. 19 Ibidem 38 dos cães e dos abutres, se é que esses quererão se alimentar em sua carcaça odienta. (SÓFOCLES, 1996, p. 4). Na figura 5, é possível visualizar o cenário do espetáculo que em muito se distingue dos cenários regulares e simétricos já vistos nas representações de tragédias gregas como Antígona. Observa-se que a nudez também foi um recurso explorado, o que se opõe significativamente às túnicas e figurinos carregados que observamos até o momento nessas encenações. Em Antígona ritos de paixão e morte percebemos o recurso intelectual, devido à abordagem de textos de filósofos como Sartre e Nietzsche. Assim, o espetáculo anuncia as mudanças radicais que as encenações de tragédia grega no Brasil passariam a adquirir ao longo dos próximos anos. Figura 4 – Antígona (1990) Ói Nóis Aqui Traveiz Fonte: Registro de Cláudio Etges Em 1995, no Rio de Janeiro, houve a montagem de Antígona pelo grupo Mergulho no Trágico, com direção de Alexandre Mello e figurinos de Celestino Sobral. O crítico Lionel Fisher entende que há a proposta do grupo em “atualizar” o espetáculo, devido ao fato de que a personagem Creonte usa terno e roupas de couro, todavia aponta uma incoerência no momento em que as personagens Antígona e Ismênia vestem roupas de época.20 Assim, destacamos mais uma vez a tentativa dos grupos de modernizar e trazer constantes experimentações estéticas para a tragédia grega, portanto, não visualizamos esse processo como uma incoerência e sim como uma escolha estética para a realização do espetáculo. 20 FISHER, Lionel. Teatro/Antígona. Híbrida versão de um clássico. 16 de Fev. de 1995. Tribuna Bis. Página 2. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=154083_05&PagFis=29416&Pesq=Ant%C3%ADgona. Acesso em: 14 jan. 2019. 39 Outra montagem significativa de tragédia grega dirigida e adaptada por Antunes Filho na década de 2000 é Antígona (baseada no texto de Sófocles), que teve a sua estreia em 2005 no Sesc Consolação.21 Em entrevista concedida a Beth Néspoli, o diretor faz um comparativo entre as suas peças, para explicar a proposta do espetáculo Antígona: Sempre procuro vendar uma ideia. Em Fragmentos Troianos eu falava das lutas étnicas da Europa; não consegui atingir a tragédia, fiquei no drama, sei disso; Medeia era Greenpeace, as queimadas, as fogueiras, a destruição do planeta. Dei um passo adiante, era um drama radicalizado. Com Antígona falo de liberdade. Como falar em cidadania, sem o princípio de liberdade? Liberdade exige responsabilidade, não é libertinagem (ANTUNES FILHO Apud MOTTA, 2011, p. 156). Assim, depreende-se que o espetáculo também se libertou da proposta cênica, pois o cenário da peça remetia a um cemitério vertical, a personagem Antígona atua sobre uma cadeira de rodas e os figurinos e máscaras do coro não tinham a intenção de recriar os trajes gregos, os atores do coro usavam ternos, luvas e cartolas, como podemos observar na imagem a seguir: Figura 5 – Antígona (2004) Direção de Antunes Filho Fonte:https://www.terra.com.br/istoegente/301/diversao_arte/teatro_antunes_filho.htm Em 2004, no Rio Grande do Sul, o diretor Luciano Alabarse assume a direção do espetáculo Antígona, que contou com a dramaturgia de Kathrin Rosenfield e a tradução de Lawrence Flores Pereira. O espetáculo reuniu 35 atores e buscou recriar a atmosfera grega da 21 DUBRA, Pedro Ivo. "Antígona" ganha montagem de Antunes Filho no Sesc Consolação. Folha de São Paulo. Ilustrada. 20/05/2005 - 09h04 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u50865.shtml. Acesso em: 21 jan. 2019. https://www.terra.com.br/istoegente/301/diversao_arte/teatro_antunes_filho.htm 40 cidade de Tebas, não só a partir da iluminação do espetáculo e dos figurinos similares aos da época, mas também com o texto encenado na íntegra.22 1.3 Um adendo, a tragédia em cena hoje: representações da tragédia grega encenadas no Brasil a partir de 2010 Tendo em vista que as pesquisas e levantamentos que conhecemos sobre as tragédias gregas encenadas no Brasil datam até 2009, propomo-nos, nessa seção, a realizar um breve levantamento das tragédias gregas encenadas no período entre 2010 a 2020. Ao longo desses anos tivemos notícia de um maior número de peças baseadas em tragédias gregas. Devido a esse número elevado, trataremos aqui, principalmente, das montagens que foram baseadas em Antígona, por ser o tema desta pesquisa, mas não deixaremos de lado, outras montagens que nos chamaram a atenção dadas as propostas de encenação. Em 2010, houve a representação de RockAntygona, espetáculo baseado na Antígona de Sófocles. A peça foi dirigida Guilherme Leme e texto de Caio de Andrade. Em seu elenco a montagem contou somente quatro atores em cena: Luís Melo, Larissa Bracher, Armando Babaioff e Marcelo H. Os cenários são de Aurora dos Campos e a iluminação de Tomás Ribas.23 A peça tem linguagem contemporânea que pode ser notada quando observamos os figurinos. Creonte, por exemplo, (interpretado por Luís Melo) usa terno preto, coturnos escuros e gravata vermelha, já Antígona (interpretada por Larissa Bracher) usa um longo vestido vermelho, ou seja, não buscam representar as vestimentas gregas utilizadas em algumas montagens dos anos anteriores. No cenário, há poucos recursos: uma grande mesa ao centro do palco, um tapete de pedras sobre o qual anda a atriz que interpreta Antígona e uma imponente cadeira em que se senta Luís Melo ao interpretar Creonte. Vejamos algumas imagens do espetáculo: 22 ANTÍGONA, Unisinos apresenta Antígona. Universia Brasil. 28 de Abril de 2005 Disponível em: http://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2005/04/28/483720/unisinos-apresenta-antigona.html. Acesso em: 21 jan. 2019. 41 Figura 6 – RockAntygona 1 Figura 7 – RockAntygona 2 Fonte: Achabrasilia.com/rockantygona A trilha sonora da peça é composta a partir das músicas da banda de rock Vulgue Tostoi e de acordo com Luís Melo “Uma tragédia tem de ser encenada com a pulsação e a adrenalina de um show de rock”.24 Ainda em 2010, o espetáculo Hotel Medea chega ao Brasil, a peça nasce de uma parceria entre grupos do Reino Unido e do Rio de Janeiro. Hotel Medea – 3 performances da meia-noite ao amanhecer é uma realização teatral criada em parceria pelos grupos londrinos Zecora Ura Theater e Para- Active/The Urban Dolls, além do Centro de Conspiração Popular Gargarullo, do Rio de Janeiro, como resultado de várias residências interculturais pela Europa e pelo Brasil, em estudo e processo artístico sobre o mito grego de Medeia. O trabalho envolve a pesquisa e a re-apropriação de elementos urbanos (do encontro humano com as novas tecnologias de relacionamento e entretenimento) e de elementos tradicionais (das danças, dos mitos dos Orixás e daqueles buscados nos encontros realizados nos estados brasileiros de Pernambuco e Maranhão, como o Boi e o Cavalo Marinho). Por sua natureza contemporânea de viver em permanente processo de construção, o espetáculo é desenvolvido através do intercâmbio entre artistas residentes no Brasil e em Londres desde o Drift Project, ocorrido em dezembro de 2006.25 23 Cf. ACHA, Renato. Espetáculos. RockAntygona. 27 de Jan. de 2011. Disponível em: http://www.achabrasilia.com/rockantygona/. Acesso em: 8 mar. 2019. 24 Ibidem. 25 SHOO, Márcia. HOTEL MEDEA da meia noite ao amanhecer. Overmundo. Disponível em: http://www.overmundo.com.br/overblog/hotel-medea-da-meia-noite-ao-amanhecer. Acesso em: 8 mar. 2019. 42 O título faz jus ao espetáculo que tem mais de seis horas de duração e, conforme informações extraídas da página web de entretenimento da Bol26, No Rio, a peça começa com uma espécie de "rave", em que a plateia dança e interage ajudada por discotecagem [...] e iluminação de boate. É a representação do mercado onde Jasão conhece Medeia. Às duas da manhã, depois de biscoitinhos, energético e café, a plateia é dividida e migra para uma sala com dez TVs em que Jasão [...] se apresenta como candidato político. Na sala ao lado, Medeia chora a ausência do marido ao lado de oito beliches e banquinhos dispostos para seus filhos no caso, o público, dividido em turmas: parte vê a cena nos bancos, parte veste os pijamas e dorme. Às quatro da manhã, gim para "mulheres de coração partido" e perucas no público masculino. Medeia sofre com a traição de Jasão. Cinco da manhã, mais pijamas. Carregando ursinhos de pelúcia pelo teatro, o público deve se esconder (nos banheiros e escadas internas do prédio) para não ser morto pela mãe desesperada. De tédio, é fato, não se morre. Ao observarmos os apontamentos sobre espetáculo Hotel Medea, notamos que ao longo da representação há uma constante interação com o público, pois a partir das ações descritas anteriormente há o rompimento deliberado com a quarta parede. Tendo em vista a longa duração do espetáculo em que ações cotidianas são inseridas à representação (uma festa, uma propaganda política, etc.), e todas essas ações não estão presentes no texto de Eurípides, ou seja, situações que vão além do texto que conhecemos, podemos perceber uma adaptação e possível atualização do texto clássico, ao observarmos a sua transposição para os dias atuais. Em 2012, o diretor Eduardo Wotzik adaptou e dirigiu Édipo Rei. A montagem de Wotzik contou com atores profissionais e de longa carreira nas artes cênicas como Eliane Giardini no papel de Jocasta, Amir Haddad como Tirésias e Gustavo Gasparani interpretando Édipo. 26 ESPETÁCULO londrino "Hotel Medea" vara a madrugada no Rio. Bol. 11 de Jun de 2010. Disponível em: https://noticias.bol.uol.com.br/entretenimento/2010/06/11/ult4738u38253.jhtm. Acesso em: 8 mar. 2019. 43 Figura 8 – Elenco de Édipo Rei e o diretor Eduardo Wotzik Fonte: Eduardo Wotzik Na imagem anterior, percebemos que os figurinos utilizados pelos atores remetem às vestimentas usadas na Grécia Antiga. A maquiagem dos atores é bem carregada e a peça acontece em um teatro de arena, ao estilo dos antigos teatros gregos em que se representavam as tragédias. Em vídeos do espetáculo,27 percebemos a que a iluminação mantem-se praticamente a mesma ao longo da encenação e que os objetos em cena são mínimos. Nota-se, também, que os atores em Édipo Rei possuem forte entonação e ritmo constante ao proferirem as suas falas. A versão de Eduardo Wotzik [...] tenta manter-se fiel ao texto. Mas não hesita em eliminar aquilo que poderia dificultar sua compreensão pelo público e alcança uma enxuta encenação, com pouco mais de uma hora. "Em geral, as traduções e adaptações têm distanciado a tragédia do espectador, tornando-as mais eruditas. Complicando sua linguagem e impedindo a clareza de sua narrativa", considera o diretor. "Trabalhamos no sentido inverso, buscando sempre a comunicação imediata com o público". (MENEZES, 2013)28 Vê-se aqui a preocupação do diretor com a recepção do espetáculo, ou seja, com a percepção que o público teria ao contemplar a sua leitura de Édipo Rei. Segundo o próprio programa de espetáculo, também redigido pelo diretor Eduardo Wotzik: Esse espetáculo é uma declaração de amor. A todos vocês que buscam respostas no Teatro. A todos vocês que acreditam que o Teatro pode ajudar o Homem a melhorar a espécie. Amo todos vocês que desde Sófocles fazem do Teatro um espaço de investigação, religião e profissão. Que deixaram suas dúvidas dentro 27 ÉDIPO REI - Clip de Divulgação 2012 (8 min) Publicado pelo canal Jony Luz. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-feEoue6YPk e https://www.youtube.com/watch?v=n-6yFlqdS08 Acesso em: 9 jan. 2019. 28 MENEZES, Maria Eugênia de Tragédia Popular. O Estado de S.Paulo, 1 de Mar. de 2013. Disponível em: https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,tragedia-popular-imp-,1003060. Acesso em: 9 mar. 2019. 44 dele, e que sustentaram a si e as suas famílias com o valor que sua sociedade lhe deu. (2012, p. 3). Observamos nesse comentário que ainda há o interesse particular de muitos encenadores, diretores e atores em trazer para os palcos as origens do teatro, em proporcionar ao público e a si mesmos, vivências e experiências propiciadas à luz das tragédias gregas. Mais um espetáculo singular no ano de 2012 e que também foi baseado em uma tragédia grega é As Troianas – Vozes da Guerra. O espetáculo29 foi dirigido por Zé Henrique de Paula e contou com mais de quinze atores e atrizes em cena. O cenário representa um campo de concentração da Segunda Guerra Mundial e há no espetáculo a proposta de mesclar as duas Guerras (A Segunda Guerra Mundial e o desfecho da Guerra de Troia, retratado por Eurípides em As Troianas). Há então uma comparação entre as guerras, que pode ser compreendida como a representação da barbárie gerada pela guerra, seja ela histórica ou mítica. Na encenação, os homens representam os soldados da Alemanha nazista e falam em alemão, já as mulheres não têm diálogos e apenas gesticulam e cantam (representando as mulheres troianas escravizadas que compõem o coro na peça de Eurípides). O fato de as mulheres não terem falas também pode ser interpretado como uma crítica à repressão que sofrem desde os tempos mais remotos. Em suma, a peça aborda, com base em uma tragédia grega, um fato histórico que deve sempre ser lembrado (o Holocausto), a barbárie da guerra, a crueldade humana, a intolerância. Figura 9 – Coro de mulheres em As Troianas - Vozes da Guerra Fonte: nucleoexperimental.com.br Foto: Lenise Pinheiro 45 Para fechar as encenações de tragédia grega do ano de 2012, também houve a encenação de Medea en Promenade, texto de Clara Góes e direção de Guta Stresser; o espetáculo estreou no Rio de Janeiro.30 A adaptação acontece com a participação de quatro atores, o cenário é bem carregado por vários objetos: uma cadeira comumente usada em consultórios de dentistas, velas acesas, tecidos espalhados e estendidos ao longo do palco, uma trombeta, além da constante presença de fumaça cênica. Ao fundo do palco, um conjunto de pequenas luzes que formam o nome: MEDEIA. Outro aspecto que chama muita atenção no espetáculo é a grande quantidade de jogos de iluminação, as cores das luzes se modificam a todo tempo e vários blackouts acontecem ao longo do espetáculo, além disso, também ocorrem focos de luz em personagens com muita frequência. Em suma, o espetáculo tem uma iluminação bem carregada. Ademais, os figurinos se diferenciam em muito das encenações que já destacamos no decorrer da pesquisa, pois não remetem às túnicas gregas e tampouco remontam às vestimentas mais usadas atualmente. Em Medea en Promenade as indumentárias são repletas de muitos tecidos, xales, mantas e coletes. Figura 10 – Figurinos de Medea en Promenade Fonte: joanabueno.com.br 29 C.f. AS TROIANAS - VOZES DA GUERRA, Núcleo Experimental. Disponível em: http://nucleoexperimental.com.br/portfolio-item/troianas/. Acesso em: 9 mar. 2019. 30 C.f. TEATRO, Globo. Guta Stresser estreia na direção com espetáculo 'Medea en Promenade'. 1 de Ago. de 2012. http://redeglobo.globo.com/globoteatro/boca-de-cena/noticia/2013/09/guta-stresser-estreia-na-direcao-com- espetaculo-medea-en-promenade.html. Acesso em: 10 mar. 2019. 46 Em 2013, o diretor Vadim Nikitin escreveu e dirigiu o espetáculo O Abajur Lilás ou uma Medea perdida na Augusta. Já no título encontramos referência à tragédia grega Medeia, bem como à peça O Abajur lilás31 de Plínio Marcos. Ao final de 2013, também houve a montagem de Antigona 2084 com texto de José Rubens Siqueira e direção de João Grembecki: a peça se passa em 2084 e coloca a heroína grega Antígona em um futuro apocalíptico. Antígona 2084 é uma atualização do clássico de Sófocles, enfatizando a perenidade da questão humana profunda da filha de Édipo: o seu conflito entre o pessoal e o social [...]. O projeto que tem coordenação de José Rubens foi idealizado pela atriz Lenita Ponce, que sempre sonhou em montar Antígona. “Para mim essa peça propõe uma retomada de valores essenciais” [...] Comenta a atriz que interpreta Antígona. (SIQUEIRA, 2013). 32 Esse espetáculo é um dos poucos que tratamos até aqui em que há cenas de nudez, como exposto na imagem a seguir: Figura 11 – Antígona 2084 Fonte: Foto de João das Caldas Sobre o projeto estético da peça, o diretor João Grembecki expõe: 31 Plínio Marcos é o autor da peça O Abajur Lilás. A ação ocorre em um prostíbulo comandado por Giro, um cafetão homossexual que precisa da violência de seu segurança Oswaldo para se fazer respeitado. Nesse bordel convivem Célia, Dilma e Leninha. As três prostitutas sofrem constantemente com o abuso provocado por Giro. A trama se desenvolve quando o cafetão encontra um abajur lilás quebrado e nenhuma