unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP JOÃO MACIEL DE ARAÚJO ARARAQUARA – S.P. 2021 JOÃO MACIEL DE ARAÚJO Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Diversidade, Identidades e Direitos Orientadora: Profª. Drª. Renata Medeiros Paoliello Bolsa: PROPG-CAPES/FAPEAM ARARAQUARA – SP 2021 JOÃO MACIEL DE ARAÚJO Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título Doutor em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Diversidade, Identidades e Direitos Orientadora: Prfª. Drª. Renata Medeiros Paoliello Bolsa: PROPG-CAPES/FAPEAM Data da Defesa: 02/ 06 / 2021. MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientadora: Profª. Drª Renata Medeiros Paoliello Universidade Estadual Paulista – UNESP. Membro Titular: Prof. Dr. Edmundo Antonio Peggion Universidade Estadual Paulista – UNESP. Membro Titular: Prof. Dr. Silvio Simione da Silva Universidade Federal do Acre – UFAC. Membro Titular: Prof. Dr. Fernando Michelotti Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará – UNIFESSPA. Membro Titular: Prof. Dr. Carlos Corrêa Teixeira Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP. Membro Suplente: Profª. Drª. Catia Grisa Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Membro Suplente: Profª. Drª. Marisa Barbosa Araújo Universidade Federal de Roraima – UFRR. Membro Suplente: Profª. Drª. Darlene Aparecida de Oliveira Ferreira Universidade Estadual Paulista – UNESP. Local: Videoconferência Aos seringueiros do Alto Acre, de ontem, hoje e amanhã. AGRADECIMENTOS Agradeço a todas as pessoas que tornaram este trabalho possível. À minha companheira Líllian e aos meus filhos Davi e Maria Vitória, pela motivação, sem a qual não faria sentido qualquer esforço intelectual e físico. À meus pais e todos os meus familiares a quem, de uma maneira ou outra, este trabalho faz referências. A todos os homens e mulheres que se dispuseram a colaborar com a pesquisa de campo, seja por terem cedido parte de seu tempo para as entrevistas, seja pela confiança de abrirem as portas de suas casas e instituições para que eu pesquisasse seus arquivos e vidas. À direção do Instituto Federal do Amazonas, que me concedeu afastamento para qualificação. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, por meio da FAPEAM, no âmbito do Programa PROPG-CAPES/FAPEAM (Processo nº 88887.312498/2018-00), que me permitiu realizar as atividades de campo e a participação em eventos com certa comodidade. Agradeço também ao Institute of International Education pela ajuda concedida através do Alumni Awards, do International Fellowships Program, que contribuiu para a realização de viagens de campo. À minha orientadora, Drª. Renata Paoliello, pela dedicação na leitura atenta deste trabalho e pela paciência no atendimento aos incontáveis relatórios que tive que produzir ao longo do período. Agradeço também às coordenadoras do PPGCSO, Drª. Ana Lúcia de Castro e Drª. Carla Gandini Giani Martelli, que atenderam com muita prontidão às minhas demandas. A todos e todas, mais uma vez, OBRIGADO! RESUMO A ideia central do presente trabalho é que a partir do final do século XX os seringueiros do Alto Acre alteraram sua condição e obtiveram reconhecimento social, oportunizando a estabilidade territorial conquistada pela demarcação das Reservas Extrativistas, pela participação político-partidária no contexto de redemocratização do país e pelo estabelecimento de uma rede de lideranças comunitárias, tornando-se atores sociais e políticos ativos para a reconfiguração do campo político do Alto Acre. A manutenção de sua condição camponesa e da nova posição no espaço social do Alto Acre se deu nos limites de um processo marcado por descontinuidades, contradições, transformações e resistências na relação com o Estado e com diferentes forças que disputam a hegemonia a partir da imposição de projetos de desenvolvimento econômico baseados no domínio do território e dos recursos naturais. A partir de uma perspectiva que compreende as comunidades rurais como unidades formadas por diferentes grupos que se relacionam continuamente com agentes localizados em outros ambientes, a pesquisa ocorreu entre os anos de 2018 e 2020, referida aos Projetos de Assentamento Agroextrativistas Remanso, no município de Capixaba, Chico Mendes, no município de Xapuri, Santa Quitéria, no município de Brasiléia e Comunidade Rio Branco, na Reserva Extrativista Chico Mendes, em Xapuri, Acre. Foi realizada pesquisa bibliográfica, levantamento documental, observação e entrevistas junto a camponeses, moradores das cidades do Alto Acre e técnicos de ONGs e Governos. Palavras – chave: Seringueiros. Desenvolvimento. Reconhecimento. Amazônia. Reservas Extrativistas. ABSTRACT The central idea of the present work is that, from the end of the 20th century, Seringueiros in Alto Acre changed their condition and obtained social recognition, giving opportunity to the territorial stability achieved by the demarcation of Extractive Reserves, by political-party participation in the context of the country's redemocratization and by establishing a network of community leaders, becoming active social and political actors for the reconfiguration of the Alto Acre political field. The integration of their peasant status and the new position in the social space of Alto Acre occurred within the limits of a process marked by discontinuities, contradictions, transformations and resistance in the relationship with the State and with different forces that dispute the hegemony from the imposition of economic development projects based on the domain of the territory and natural resources. From a perspective that understands rural communities as units formed by different groups that continuously relate to agents located in other environments, the research took place between the years 2018 and 2020, referring to the Remanso Agroextractive Settlement Projects, in the municipality of Capixaba , Chico Mendes, in the municipality of Xapuri, Santa Quitéria, in the municipality of Brasiléia and Comunidade Rio Branco, at the Chico Mendes Extractive Reserve, in Xapuri, Acre. Bibliographic research, documentary survey, observation and interviews were carried out with peasants, residents of the cities of Alto Acre and technicians from NGOs and Governments. Keywords: Seringueiros. Development. Recognition. Amazon. Extractive Reserves. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Mapa 1 Indicação da região do estudo 46 Gráfico 1 Volume de madeira autorizado para exploração no Acre por categoria de MFS – 2011/2018 (%) 92 Gráfico 2 Valores Referenciais Hectare por Regiões do Acre (R$) 123 Gráfico 3 Variação Acumulada de Indicadores da Pecuária no Acre – 2001/2014 (%) 139 Gráfico 4 Movimentação de gado entre o Alto Acre e Rio Branco – 2012/2018 (cabeças) 144 Gráfico 5 Relação da evolução desmatamento/população Resex CM (1997 à 2018) - % 146 Gráfico 6 Movimentações Internas de bovinos no Alto Acre – 2012/2018 (cabeças) 165 Gráfico 7 Relação Ocupação Resexs e Desmatamento – 2011/2017 (%) 167 Fotografia 1 Sede do STR de Assis Brasil, com uma fotografia de liderança histórica na fachada 287 Fotografia 2 Seringueiros conversam após reunião comunitária na Resex CM em Xapuri 319 Fotografia 3 Reunião numa comunidade da Resex CM em Xapuri 305 Fotografia 4 Motocicletas estacionadas enquanto camponeses participam de reunião em Comunidade da Resex CM em Xapuri 323 Fotografia 5 Dupla de jovens em motocicleta trafega por Ramal no PAE Chico Mendes, em Xapuri 345 Fotografia 6 Residência de seringueiros no PAE Chico Mendes em Xapuri 345 Fotografia 7 Eletrodoméstico em cozinha de residência de seringueiros no PAE Chico Mendes, em Xapuri 359 Figura 1 Diagrama de uma Comunidade Extensa de Seringueiros no Alto Acre 343 LISTA DE QUADROS E TABELAS Quadro 1 Resumo dos instrumentos estaduais de regulamentação da atividade madeireira no Acre a partir do governo da Frente Popular 87 Quadro 2 O PT na Política do Acre (1999 a 2018) 191 Quadro 3 Desempenho do PT em Eleições 1996 a 2016 226 Tabela 1 PAEs e RESEXs no Estado do Acre 121 Tabela 2 Estrutura fundiária de Xapuri incluindo Resexs 126 Tabela 3 Percentual de Religiões entre a população, segundo situação de domicílio 257 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS BID Banco Interamericano de Desenvolvimento BIRD Banco Internacional da Reconstrução e Desenvolvimento BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CAEX Cooperativa Agroextrativista de Xapuri CDB Convenção da Diversidade Biológica CEDRFS Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural Florestal Sustentável CEMACT Conselho Estadual de Meio Ambiente Ciência e Tecnologia CENAFLOR Centro Nacional de Apoio ao Manejo Florestal CFE Conselho Florestal Estadual CIFOR Center International for Forestry Research (Centro Internacional para Pesquisa Florestal) CNPT Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentável para Populações Tradicionais CNS Conselho Nacional dos Seringueiros CONAFLOR Comissão Nacional de Florestas CONTAG Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura COPAJ Comissão Permanente de Assuntos Jurídicos COPIAI Comissão da Política de Incentivos às Atividades Industriais do Estado do Acre CPT Comissão Pastoral da Terra CTA Centro dos Trabalhadores da Amazônia CONAB Companhia Nacional de Abastecimento COOPERACRE Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Estado do Acre COOPERFLORESTA Cooperativa dos Produtores Florestais Comunitários CUT Central Única dos Trabalhadores EMATER Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária FAO Food and Agriculture Organization of the United Nations (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) FEM Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansour FETACRE Federação dos Trabalhadores em Agricultura do Acre FPA Frente Popular do Acre FSC Forest Stewardship Council (Conselho para Manejo Florestal) IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis IBDF Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal IBRA Instituto Brasileiro de Reforma Agrária ICMBio Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade ICMS Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços IEA Instituto de Estudos Amazônicos IFT Instituto Floresta Tropical IMAFLORA Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola IMAZON Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INPE Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais ISA Instituto Socioambiental ITTO International Tropical Timber Organization (Organização Internacional de Madeira Tropical) GTA Grupo de Trabalho Amazônico MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário MDS Ministério do Desenvolvimento Social MMA Ministério do Meio Ambiente ONG Organização Não-governamental PAA Programa de Aquisição de Alimentos PAS Plano Amazônia Sustentável PA Projeto de Assentamento PAD Projeto de Assentamento Dirigido PAE Projeto de Assentamento Agroextrativista PAF Projeto de Assentamento Florestal PCA Projeto Casulo de Assentamento PDC Plano de Desenvolvimento Comunitário PDS Projeto de Desenvolvimento Sustentável PDSA Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre PESACRE Grupo de Pesquisas em Sistemas Agroflorestais do Acre PIB Produto Interno Bruto PIN Programa de Integração Nacional PLANACRE Plano Integrada de Desenvolvimento do Alto Acre PNAE Programa Nacional de Alimentação Escolar PND Plano Nacional de Desenvolvimento PNRA Plano Nacional de Reforma Agrária PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento POLAMAZÔNIA Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia PPA Plano Plurianual PPG-7 Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil PROACRE Programa de Inclusão Social e Desenvolvimento Econômico e Sustentável do Acre PROBOR Programa de Incentivo à Produção de Borracha Vegetal PRODES Projeto PRODES – Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélites PRODEX Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Extrativismo PRÓ-FLORESTANIA Programa de Apoio às Populações Tradicionais e de Pequenos Produtores PROMANEJO Projeto de Apoio ao Manejo Florestal PT Partido dos Trabalhadores PTC Programa Territórios da Cidadania PV Partido Verde PZ Parque Zoobotânico Resex Reserva Extrativista SAF’s Sistemas Agroflorestais SCA Secretaria de Coordenação da Amazônia SEAPROF Secretaria de Estado de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar SEDENS Secretaria de Estado de Desenvolvimento Florestal, da Indústria, do Comércio e dos Serviços Sustentáveis SEFAZ Secretaria de Estado da Fazenda SFB Serviço Florestal Brasileiro SEF Secretaria Estadual de Florestas SEFE Secretaria Executiva de Floresta e Extrativismo SNUC Sistema Nacional de Unidades de Conservação SUDHEVEA Superintendência da Borracha UFAC Universidade Federal do Acre WWF World Wildlife Fund (Fundo Mundial para a Natureza) SUMÁRIO INTRODUÇÃO 16 Pressupostos teóricos e desenvolvimento da pesquisa 16 Metodologia, fontes e inserção no campo de pesquisa 34 Organização da tese 47 CAPÍTULO 1 – VERSÃO ECOLOGIZADA DO DISCURSO DESENVOLVIMENTISTA: SERINGUEIROS E O MODELO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 50 1.1 Exploração de madeira em florestas tropicais na era da ―sustentabilidade‖ 60 1.2 Seringueiros e exploração madeireira 68 1.3 Selo de garantia e discursos do mercado diferenciado para madeira comunitária 74 1.4 O processo de naturalização do manejo madeireiro comunitário em meio à exploração intensiva de madeira no Acre 81 1.5 O manejo madeireiro em Unidades de Uso Sustentável do SNUC 93 CAPÍTULO 2 – TRÊS DÉCADAS DE RESEXS NO ALTO ACRE: SERINGUEIROS E O MODELO DE DESENVOLVIMENTO DA EXPANSÃO DA FRONTEIRA AGROPECUÁRIA 103 2.1 As Reservas Extrativistas contra a política de contrarreforma agrária no Alto Acre 106 2.2 Dinâmica do mercado de terras no Alto Acre no século XXI 122 2.3 Corrida pela terra e pecuária bovina de corte: por que os seringueiros criam gado? 132 2.4 A produção camponesa nas Reservas Extrativistas 147 2.5 O gado em Reservas Extrativistas, na prática 155 CAPÍTULO 3 – OS SERINGUEIROS DO ALTO ACRE E AS DISPUTAS POLÍTICAS NO CONTEXTO DAS RESEXS 172 3.1 Seringueiros, Partido e política no estado do Acre 177 3.2 Seringueiros, Partido e fóruns da sociedade civil: alianças e cumplicidade com governos federal e estadual 192 3.3 Seringueiros, Partido e intelectuais 203 3.4 Seringueiros, Partido e as disputas eleitorais no Alto Acre 217 CAPÍTULO 4 – “NO MATO E NA RUA”: COMUNITARISMO E FAMÍLIA APÓS A CRIAÇÃO DAS RESEXS 242 4.1 Seringueiros e comunitarismo e o comunitarismo seringueiro na política do Alto Acre: a gênese no comunitarismo cristão 250 4.2 Tensões políticas internas e estratégias políticas externas 272 4.3 A burocratização e os elementos da coesão comunitária 291 4.4 Direito à terra e mobilidade: dilemas e paradoxos da sucessão e reprodução social a partir das Reservas Extrativistas 317 4.5 As mulheres nas Reservas Extrativistas: breves notas sobre conquista de direitos 348 CONCLUSÃO 362 REFERÊNCIAS 373 APÊNDICES APÊNDICE A – GUIA PARA OBSERVAÇÕES DURANTE VIAGENS A CAMPO (2018/2019) 394 APÊNDICE B – ROTEIRO ENTREVISTAS CAMPONESES (2018/2019) 397 APÊNDICE C – QUADRO COM DISPOSITIVOS DE INCENTIVOS TRIBUTÁRIOS ESTADUAIS (ICMS) À PECUÁRIA NO ACRE 398 APÊNDICE D - VARIAÇÃO NÚMERO DE FAMÍLIAS E INCREMENTO DO DESMATAMENTO EM ÁREAS RURAIS DA FRONTEIRA AGROPECUÁRIA (%) 404 APÊNDICE E - SEÇÕES ELEITORAIS CONSIDERADAS NA PESQUISA 405 16 INTRODUÇÃO Esta tese versa sobre sujeitos de um grupo sociocultural cuja trajetória representa legitimamente os processos sociais que se desenrolam há aproximadamente um século e meio numa área da Amazônia brasileira, aqui tomada como uma fronteira. Nossa pesquisa buscou identificar e discutir mudanças socioculturais ocorridas a partir da segunda metade da década de 1990, após a criação de Reservas Extrativistas - Resexs na região do Alto Acre, dando ênfase às implicações políticas de sua organização em comunidades. Nosso objetivo é contribuir para a compreensão da direção, a profundidade, o ritmo e os processos que levaram a tais mudanças. O trabalho procura demonstrar que após a criação das Resexs os seringueiros se constituíram em atores de alta relevância no campo político do Alto Acre. Assim o fizeram com base num comunitarismo muito singular, que despretensiosamente aqui nomeamos de ―comunitarismo seringueiro‖, que se fez articulando práticas costumeiras do universo cultural camponês, como as relações de parentesco, o partidarismo político e as vicissitudes democráticas e ambientais inerentes à contraditória noção (e medidas institucionais a ela associada) de desenvolvimento sustentável. Recorremos a aspectos históricos da posição dos seringueiros no espaço social do Alto Acre em tempos passados, apontando para contrastes com o período que se inicia no século XXI. Da mesma forma, buscamos expor as relações com os diversos atores com quem se relacionaram neste período e quais as implicações de tais relações na configuração do comunitarismo que vigorou no mencionado período. Portanto, a tese é de que um grupo normalmente classificado como "os de baixo" (pela academia e também em representações de diversos atores sociais), no decurso das últimas três décadas, oportunizando e ao mesmo tempo construindo ativamente forças políticas pela democratização (de direito a participação) em escala nacional, se refaz e se atualiza, incidindo na reconfiguração do espaço social em que está inserido. Pressupostos teóricos e desenvolvimento da pesquisa Múltiplos aspectos da experiência seringueira na Amazônia têm sido estudados pelas ciências sociais, através de diferentes abordagens e ênfases em diferentes categorias. De maneira geral, o registro identifica certo privilégio na escolha de abordagens que enfatizam isoladamente, ou mais ou menos articuladas, as seguintes chaves: 17  Identidade: campesinato; trabalhadores rurais; povos e comunidades tradicionais;  Movimentos sociais: sindicalismo; ambientalismo; direito ao território;  Questão agrária: expropriação; reforma agrária; Reservas Extrativistas; desenvolvimento sustentável etc. A título de ilustração quanto às diferentes posturas teórico-metodológicas em estudos sobre os seringueiros e o processo de criação das Resexs, tomemos alguns exemplos que derivam de pesquisas com a finalidade de produção de dissertações e teses, eventualmente gerando artigos disponibilizados em revistas e anais de eventos, ou na forma de livros. A contribuição destes autores, por mais divergentes que sejam em certos pontos, foram fundamentais para o delineamento de minha pesquisa, constituindo uma base de ideias nas quais me referencio e com as quais dialogarei, implícita ou explicitamente, ao longo da tese. Especificamente sobre a região do Alto Acre, as análises de inspiração marxista, realizadas com base nos acontecimentos das décadas de 1970 e 1980, tratam o seringueiro enquanto ―trabalhador rural‖, que protagonizou um sindicalismo peculiar às regiões de expansão da fronteira agropecuária brasileira (COSTA SOBRINHO, 1992; PAULA, 1991). Outras análises, referidas à mesma região e periodização, detiveram-se na caracterização cultural do seringueiro e os processos que o levaram a ser sujeito de direito (ALLEGRETTI, 2002; ESTEVES, 2010) 1 . Allegretti (2002; 2008), ao analisar o processo de institucionalização das Reservas Extrativistas como política ambiental, numa perspectiva que dialoga com a vertente teórica dos novos movimentos sociais, dará ênfase ao espectro ―ecologista‖ do modo de vida e consequentemente da ―identidade‖ e do movimento de resistência dos seringueiros, que permitiu o estabelecimento de alianças decisivas entre o sindicalismo de trabalhadores rurais e outros ―movimentos sociais‖, notadamente o ambientalista, passando da clássica luta pela terra para a luta pelos recursos florestais, alinhando-se ao ideário do ―desenvolvimento sustentável‖, uma vez expressando sua indignação com as precárias condições de vida a que estavam submetidos. Para a autora, na articulação entre defesa de permanência na terra e acesso aos recursos naturais, portanto da questão fundiária e proteção ambiental, o movimento 1 Os trabalhos de Elder Paula (1991) e Pedro Vicente Costa Sobrinho (1992) buscam realçar o sindicalismo dos trabalhadores rurais em sua relação com capital e Estado. O trabalho de Mary Allegretti (2002) é uma biografia de Chico Mendes, através da qual se analisa a trajetória dos seringueiros da Amazônia e como Chico Mendes incide sobre essa trajetória. 18 seringueiro, como novo protagonista do desenvolvimento sustentável, ―[...] em um segundo momento, fundiu as duas tradições em um novo conceito, no qual a regularização da posse ficou subordinada à proteção do meio ambiente‖ (ALLEGRETTI, 2008, p. 51). Por sua vez, Paula (2013), numa perspectiva marxista, conclui que no bojo das discussões sobre o desenvolvimento sustentável, ou ―desenvolvimento [in]sustentável‖, como o autor prefere classificar, as organizações representativas dos seringueiros se renderam aos ditames hegemônicos do capitalismo do século XXI. O autor reconhece que, no final dos anos 1970, o seringueiro aparece como sujeito em vias de expropriação, mas que, como ―classe, ou fração de classe‖ resiste e golpeia os interesses do ―capital‖, representado pela classe dos proprietários e outros agentes dominantes, através da inserção das Resexs no debate da ―reforma agrária‖, que representaria um projeto ―contra-hegemônico‖. Na mesma linha de Paula (2013), Cláudia Cunha (2010) enfatizando a características da execução do Projeto Reservas Extrativistas – Projeto RESEX, no âmbito do Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil – PPG7, na Reserva Extrativista Chico Mendes – Resex CM, analisa o processo de institucionalização e implementação das Resexs pelo Estado brasileiro. Esta autora se baseia na concepção gramsciana de Estado integral, segundo a qual a ―sociedade civil‖ é considerada arena de disputas na construção da ―hegemonia‖, mas que, paradoxalmente, a implementação do Projeto RESEX teria operado um enfraquecimento e perda de autonomia dos seringueiros na condução da gestão das Resexs. Estes trabalhos se debruçam sobre períodos relativamente diferentes, com Allegretti (2002) focando as ações dos seringueiros entre 1970 a meados de 1990; Cunha (2010) a segunda metade dos anos 1990; e Paula (2013), o início da década de 2000. Embora os sujeitos sejam os seringueiros, as perspectivas apresentam pontos conflitantes e me conduziram à formulação de questões que emergem da dinâmica atual dos processos sociais em que estão envolvidos os seringueiros do Alto Acre. Por um lado, se coloca o desafio de compreender por que, se os seringueiros foram apresentados com identidade marcadamente ecologista, as gerações atuais aderiram à criação de gado nas reservas extrativistas. O que caracterizaria a perda de autonomia na gestão de seus territórios e a subordinação dos seringueiros ao proselitismo dos ―mercadores da natureza‖ (PAULA, 2013; PAULA, 2013b), do discurso do desenvolvimento sustentável, se o manejo madeireiro comunitário, por exemplo, foi mínimo na Resex CM? Se os seringueiros foram capazes de resistir ao processo 19 de expansão do capital que os ameaçava expulsar nos anos 1970, por que prosseguiriam com certo entusiasmo no debate sobre o desenvolvimento sustentável e relativamente leais aos governos do PT do Acre, já que isso significaria aceitar um avanço do capitalismo contra eles próprios? Em última análise, estas indagações provêm de inquietações devidas ao que Almeida (2004) havia notado como dual tendência conclusiva sobre a relação entre ―povos tradicionais‖ e ―discurso do desenvolvimento‖, em estudos sobre resistência e defesa ecológica, que viam como únicos caminhos a estas populações: ―[...] ou manter sua marginalidade como processo de resistência, ou aceitar uma integração passiva e manipulada nas estruturas de poder globais‖ (ALMEIDA, 2004, p.34). Em sua análise da região do Alto Juruá, no Acre, do período de 1982 a 1992, este autor aponta para a possibilidade de outros desfechos menos ortodoxos, pois reviravoltas ―complexas e não planejadas‖ levaram a resultados que, antes de tudo, refletem os conflitos locais 2 . Os moradores das Resexs do Alto Acre expressam rotineiramente, em falas e ações, que o reconhecimento de seus direitos a estes territórios não está dissociado de sua busca por reconhecimento e legitimação na escala da sociedade local. Embora não seja de fato algo garantido infinitamente, o direito à terra foi conquistado com as Resexs, mas ao longo deste período se desenrolaram processos que revelam sua finalidade de manterem-se dignamente na terra, não mais distanciados dos núcleos urbanos como foram mantidos até meados dos anos 1990, mas podendo também transitar por onde acreditam que devam. Ou seja, são expressões que indicam, antes de tudo, uma busca ao exercício da liberdade (HONNETH, 2003). A distribuição dos agentes e propriedades no espaço físico, conforme ensina Bourdieu (2013), indica a posição de agentes e grupos no espaço social, ou seja, nos diferentes campos que constituem esse espaço social. A reconfiguração do meio agrário e suas repercussões sobre o espaço social do Alto Acre, a partir da criação das Resexs e do debate em torno do desenvolvimento sustentável exige que se discuta a posição e práticas dos seringueiros neste novo cenário, sobretudo no que diz respeito ao espaço público, entendido como local das interações entre grupos com interesses divergentes, passível de apropriação como estratégia de afirmação e exercício de poder e de violência simbólica. Pierre Bourdieu (2013, p. 134) afirma que: 2 Em perspectiva semelhante, numa escala geográfica que extrapola a Amazônia Ocidental, ver Hébette e Moreira(2008). 20 [...] uma divisão social objetivada no espaço físico, [...] funciona simultaneamente como princípio de visão e de divisão, como categoria de percepção e apreciação; em suma, como estrutura mental. E pode-se pensar que estruturas do espaço físico apropriado constituem uma das mediações através das quais as estruturas sociais se convertem em sistemas de preferências e em estruturas mentais. Mais precisamente, a inscrição imperceptível, nos corpos, das estruturas da ordem social ocorre certamente, em grande parte, através dos deslocamentos e dos movimentos do corpo, das poses e das posturas corporais que essas estruturas sociais convertidas em estruturas espaciais organizam e qualificam socialmente como ascensão ou declínio, entrada (inclusão) ou saída (exclusão), aproximação ou distanciamento a um lugar central e valorizado [...] (BOURDIEU, 2013, p. 134). Esta perspectiva contribui para, considerando as modificações profundas nas estruturas econômicas e políticas, a compreensão do envolvimento dos seringueiros, nas últimas três décadas, em questões mais amplas como o desenvolvimento sustentável, ou na política partidária, através das disputas eleitorais (municipais, estaduais e nacionais). Mas também contribui para a compreensão das práticas das gerações atuais, nascidas num contexto de Resexs, que indicam rompimento com a situação anterior do ―seringal‖ tido como lugar hierarquicamente inferiorizado no contexto do Alto Acre. Conforme Bourdieu (2013), ―o espaço social se encontra assim inscrito simultaneamente na objetividade das estruturas espaciais e nas estruturas subjetivas que são, em parte, o produto da incorporação dessas estruturas objetivadas‖ (BOURDIEU, 2013, p. 135). Continuando o diálogo com estudos sobre a trajetória dos seringueiros do Acre, destacamos duas referências que, cada uma à sua maneira, inspiraram-nos na definição da perspectiva aqui adotada. Almeida (2004; 2012) questiona o caráter inexorável e essencial da história local esclarecendo que, com o colapso do mercado internacional da borracha da Amazônia, a partir da década de 1920, os seringueiros, com base na experiência camponesa nordestina, desenvolveram um modo de vida florestal, tornando-se ―camponeses da floresta‖. No processo de resistência à expropriação e exploração, a partir dos anos 1970, através da atuação de determinadas lideranças, articuladas em escala regional, nacional e internacional, mas estreitamente vinculadas às suas comunidades, os seringueiros construíram o improvável, ao utilizarem a margem de liberdade que ampliou o horizonte do possível, ―[...] conquistaram não apenas direitos coletivos à terra, mas também a possibilidade de, sem deixar de ser seringueiros, tornar-se antes de tudo, cidadãos, políticos, gerentes de associações, professores e pesquisadores‖ (ALMEIDA, 2004, p. 49). Ao considerar estudos da trajetória dos seringueiros sob a categoria de ―populações tradicionais‖, a partir dos anos 1990, enfatizando a relação dos seringueiros com o meio ambiente, Cunha e Almeida (2017) esclarecem que o ambientalismo pode designar tanto um 21 conjunto de práticas, como uma ideologia. Estas variações do ambientalismo podem se apresentar na forma meramente retórica, como ideologia sem prática; na forma de prática com ideologia, como geralmente se constata em culturas de povos indígenas derivadas de cosmologias próprias; e na forma de práticas conservacionistas sem ideologias, pelo fato de ser importante a adoção de certas técnicas que garantam a manutenção de certos recursos e consequentemente a reprodução social de determinado grupo. Mantendo certa distância de essencialismos e considerando as complicações de supor ser possível haver reprodução social de camponeses exclusivamente em bases retóricas, as evidências são de que os seringueiros do Alto Acre mantêm práticas conservacionistas, conforme constatado por Almeida (2012) em seu estudo sobre Colocações 3 . Por sua vez, Silva (2004), ao discutir o desenvolvimento agrário no contexto da fronteira amazônica-acreana, caracteriza o campesinato, que estaria representado em dois grupos: o camponês da lavoura, constituído no processo de expansão da fronteira agropecuária a partir dos anos 1960; e o camponês florestal, constituído no bojo da expansão da empresa extrativista, sendo este grupo representado pelo seringueiro, um campesinato que se atualiza a partir da experiência nordestina migrante na Amazônia. Silva (2004) esclarece que a terminologia ―seringueiro‖ é utilizada como expressão de um posicionamento político, social e cultural, forjado no processo de luta pela terra nas décadas de 1970 e 1980, não se reduzindo a uma designação de ofício ou profissão (não se trata do seringueiro reduzido ao ofício de extrator de látex). Este autor entende que a luta pela terra no Acre estaria relativamente estável, com a criação das Resexs, e destaca a alternativa de empreendimentos produtivos coletivizados, com base na organização comunitária, como mecanismos que fazem frente à hegemonia do agronegócio no meio agrário do Acre. Compreende que as tentativas de imposição de propostas governamentais sobre as organizações camponesas, apesar de constituir um risco à autonomia dos camponeses, por vezes são assimiladas pelos agentes de maneira a produzir resultados em favor do campesinato. 3 A Colocação figurava no sistema de aviamento como unidade territorial básica, dispondo de uma quantidade de árvores de seringueiras para a produção de borracha para o seringalista. Segundo Almeida (2012), com o colapso do mercado mundial da borracha amazônica, os seringueiros desenvolveram um modo de vida florestal na Colocação, de maneira que passaram a depender do mínimo de mercadorias produzidas fora desta unidade. A Colocação manteve-se como unidade referencial quando da criação de Resex, uma vez que sua indivisibilidade era o que possibilitava ao seringueiro viver como camponês florestal. 22 Embora situados em campos disciplinares diferentes e olhando para casos empíricos relativamente distintos, tanto Almeida (2004 e 2012), quanto Silva (2004), utilizam a categoria ―camponês‖, para expressar especificidades culturais dos seringueiros, em análises e conclusões que convergem, ao manterem o distanciamento de determinismos históricos e culturais e assim percebendo certas circunstâncias não planejadas, que levam o campesinato a ações que, em última análise, concorrem para alterações favoráveis à sua posição na dinâmica socioeconômica local e regional. Ambos os autores partem do pressuposto de que haveria um campesinato florestal, expressado pelo seringueiro, que se constitui anteriormente ao período da chegada da frente de expansão da fronteira agropecuária nos anos 1970. Constitui-se camponês no período em que se afrouxam as condicionantes do cativeiro da economia da borracha, quando experimentaram relativa liberdade em relação ao sistema de aviamento. Situamos os seringueiros no conjunto do campesinato brasileiro e trabalhamos com a ideia de ―condição camponesa‖ tal qual discutiu Paoliello (2009) ao estudar o caso de remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira, em São Paulo. Buscamos evidenciar as estratégias para manutenção da articulação do trabalho na terra para garantia de reprodução, mas extrapolando o aspecto produtivo (agrícola, extrativista, pecuário, etc.), agregando demandas de outras ordens, que podem ser mais afeitas a categorias de sujeitos comunitários geralmente tratados como coadjuvantes. A condição camponesa é forjada na articulação entre a inserção e as formas de relacionamento no contexto da sociedade na qual está inserido, segundo a referência dos próprios agentes, e os múltiplos aspectos que garantem sua reprodução familiar. Assim, analisar a condição camponesa do seringueiro, morador de Resex do Alto Acre, implica compreende-lo não como um sujeito do passado, mas como um agente no tempo presente, que interage de determinadas formas, com determinados agentes externos a seu núcleo doméstico e que assim o faz devido ao que lhe confere a condição camponesa e para a garantia de manutenção de tal condição. Alguns exemplos da condição camponesa sob esta perspectiva foram por nós presenciados durante pesquisa de campo: uma moradora do PAE Chico Mendes se dirige ao escritório da empresa responsável pelo fornecimento de energia elétrica, situado na cidade de Xapuri, para formalizar uma reclamação e pedido de solução para as constantes quedas de energia em sua residência; um morador da comunidade Rio Branco, na Resex CM, dirige-se ao banco para atualizar o cadastro que lhe possibilitará receber valores financeiros da CONAB relativos à política de preços mínimos para produtos da sociobiodiversidade; ou 23 ainda, um morador do PAE Santa Quitéria negocia a venda de três bezerros com um comprador de gado, pois precisa de dinheiro porque planeja presentear o filho com uma carteira de motorista, já que o rapaz está atingindo a maior idade, e dirigir motocicleta até a cidade é uma tarefa básica por ali, na atualidade. A manutenção da condição camponesa, no entanto, não se reduz à relação do camponês com a sociedade ―externa‖, conforme os exemplos apresentados. Em todos estes exemplos, além das expectativas dos agentes em interação, subjazem perspectivas, trajetórias, vínculos diversos em cooperação e disputas e diferentes níveis de autonomia alcançados mediante a posição no espaço social. A condição camponesa, assim concebida, manifesta-se em todas as dimensões da vida social, não somente na produtiva. A terra, no entanto, é central como espaço de vida presente e futura, conforme Wanderley (2014), um patrimônio fundiário a ser legado para as gerações subsequentes. Nesse sentido, importa menos qual mercadoria o camponês e a camponesa produzem num determinado período, do que sua relação com a terra com vistas a garantir a ocupação de seus descendentes através do trabalho. No caso específico dos seringueiros, apesar das designações atribuídas, inegavelmente originadas em processos próprios do campo burocrático (ou das políticas públicas, se preferível), como ―comunidades e populações tradicionais‖, a partir do final dos anos 1990, para além de submeterem-se às proposições que, apesar de não corresponderem totalmente a determinadas expectativas, vão ao encontro de suas aspirações de territorialidades, autonomias e perspectivas, os sujeitos assumem tais designações, uma vez que as mesmas constituem-se instrumentos de reconhecimento e podem viabilizar demandas históricas legítimas. Conforme assinalam Cunha e Almeida (2017) os sujeitos políticos se mostraram dispostos a dar substância a esta designação, assumindo-a como identidade. As referências à noção de ―comunidades tradicionais‖, como uma concepção alternativa ao indivíduo, ou mesmo ao individualismo moderno, comumente parte do pressuposto de que, em sociedades tradicionais, o indivíduo estaria imerso no grupo e nas relações sociais, em contraposição ao individualismo da cultura moderna, portanto a salvo do contratualismo e do utilitarismo. Porém é necessário buscar as conexões e sentidos da relação que estes sujeitos estabelecem no espaço social, que, ao final, não se restringem à vida comunitária (segundo um entendimento reducionista), conforme percebeu Vincent (1987). Quais as relações entre pessoas, que tipo de pessoas, entre pessoas e a natureza, entre pessoas e objetos, na comunidade, na sociedade mais ampla etc.? No cotidiano são acionadas diversas 24 condições e papeis que ensejam expectativas variadas: de eleitor, de dirigente de associação, de pai, de vendedor de mercadorias, de mãe, de filho, etc. Não sem percalços, contradições e ameaças, na passagem do século XX ao XXI, a comunidade se consolidou como instrumento fundamental para a manutenção da condição camponesa dos seringueiros do Alto Acre. Há, inegavelmente, diferenças consideráveis na concepção de comunidade quando se considera a trajetória iniciada nas CEBs, desembocando na ―comunidade tradicional‖ que afirma o direito territorial, passando pelo sindicato, pelo partido e pela associação. Mas certamente, a comunidade, que dá conteúdo a essas instituições, constitui-se num diferencial da vivência dos seringueiros em seus territórios após inaugurada a fase do reconhecimento estatal de sua identidade e sua busca por afirmação no espaço social do Alto Acre. Certamente uma condição camponesa relativamente modificada, em relação às experiências camponesas no espaço social da fronteira agropecuária na Amazônia. A noção de comunidade camponesa que embasa nosso estudo afasta-se de perspectivas que a concebem como agrupamentos constitutivos de um microcosmo, relativamente fechado, sendo as relações com o exterior basicamente resumidas à comercialização da produção para obtenção de renda monetária, portanto, uma concepção um tanto forçada de aproximação a um modelo ideal em estudos antropológicos (FELDMAN-BIANCO, 1987). Ou seja, concepções como estas supõem uma comunidade marcadamente diferenciada culturalmente, mas tendem a prender-se a vertentes economicistas que privilegiam a análise da dinâmica de produção e consumo das famílias camponesas. Estas perspectivas, em boa medida, foram determinantes em minha pesquisa para o mestrado em Desenvolvimento Regional, em que analisei os processos organizativos comunitários, portanto internos, relativos ao manejo madeireiro comunitário (ARAÚJO, 2013). Para esta tese, foi necessário desfazer-me desta concepção e reorientar o entendimento sobre comunidade. Ao balizar o estudo de comunidades camponesas num olhar que as concebe como unidades parcialmente fechadas e homogêneas, tende-se a ofuscar questões políticas e majorando o aspecto econômico, da relação do homem com a terra, recorrentemente centrando-se na figura do patriarca, chefe-de-família, tende-se à indiferença quanto aos demais indivíduos que constituem a comunidade, comprometendo a compreensão dos processos sociais. Igualmente arriscado é buscar discutir o ―campesinato‖, como categoria 25 ampla, estritamente vinculada a questões políticas, aos movimentos de protesto e à relação com o Estado (VINCENT, 1987). Pressupor que as comunidades camponesas são compostas de indivíduos, e direcionar o olhar para enxergá-los, a princípio sugere uma dissolução da própria unidade comunitária. Contudo, Vincent (1987) argumenta que análises pautadas numa suposta homogeneidade das comunidades obscurecem os processos de mudança social, visto deixarem de considerar categorias inteiras de indivíduos que constituem as sociedades rurais, como não proprietários de terra, mulheres, crianças e rapazes, lojistas, atravessadores etc. Enfocar a mobilidade social e geográfica e as relações estabelecidas por indivíduos destes grupos geralmente deixados de lado, libertando-se das análises restritas à relação do homem com a terra, permite observar a mudança contínua. A mobilidade destes agentes, segundo Vincent (1987), constitui a essência da concepção de ―sociedade agrária‖ como fluxo organizado. Desta feita, a autora acrescenta que a incorporação de contribuições da história e da economia política, extrapolando a análise do tempo e do espaço da unidade observada e a adoção da perspectiva dos ―campos de atividade‖, contribuem para dissolver as falácias parte-e-todo e topo-base, que levam a uma separação do campesinato em relação à atividade do Estado, e dão uma visão distorcida da política e do envolvimento dos camponeses com a política. A concepção de comunidade camponesa da qual nossa análise pretende se afastar deriva e é, por vezes, reforçada, em discursos que julgam ser necessário acentuar uma diferença (tradições, crenças, manejo de recursos naturais etc.) para legitimar a reinvindicação de determinados direitos. Esta concepção comumente estrutura discursos de políticos e militantes, mas às vezes norteia também o campo acadêmico, que, no caso dos seringueiros, por exemplo, esteve centrado em questões de viabilidade/debilidade da economia extrativa da borracha, num referente exclusivamente masculino 4 . Esta concepção decorre ainda da falta de separação entre observação e investigação (esta última permitindo averiguar a inserção destas comunidades em contextos mais amplos), cuja ausência tende a considerar os processos de mudanças sociais em termos sincrônicos e estáticos (VINCENT, 1987). Durante minhas primeiras observações em campo e escuta das representações durante entrevistas e conversas informais, por exemplo, sobre suas frequentes viagens à cidade para a 4 Ellen Woortmann (1998) havia notado uma tendência dos trabalhos acadêmicos, centrados exclusivamente na imagem do homem, ―do seringueiro‖. 26 resolução de um conjunto diversificado de demandas (negócios, passeios, acesso a serviços públicos etc.), indicaram que não é razoável sugerir que os seringueiros estejam isolados atualmente. Ao considerar a comunidade como constituída por variados grupos de indivíduos, em interação constante com espaços ―exteriores‖ à comunidade, estabelece-se a linha orientadora da presente análise, pois assim se permite a leitura de que as mudanças socioculturais as quais fazemos alusão, cuja raiz é inegavelmente a criação das Resexs, implica não somente na eliminação de certos grupos que faziam parte do ―sistema seringal‖ 5 (patrões, comboieiros, mateiros etc.), ou na mudança dos modelos de produção dos camponeses mas, sobretudo, devido a realçar aspectos que geralmente são invisibilizados em relação com os atores dos espaços citadinos no contexto do Alto Acre. Procuramos dar relevo à relação dos seringueiros com agentes dos espaços citadinos no contexto de Alto Acre, em contraposição a análises que tendem a privilegiar a compreensão das relações que seringueiros estabelecem, ou estabeleceram, com interlocutores situados em outras escalas, como ―ambientalismo internacional‖, elites políticas estaduais etc. Embora estas sejam fundamentais para a compreensão do que nos propusemos investigar. Concepções enrijecidas de comunidade como uma unidade autocontida, aproximando- se do que Almeida (2007), acerca de estudos sobre o campesinato do Brasil, denomina culturalismo agrário, muitas vezes dão base a contestações das reivindicações de direito a reconhecimento, depreciando evidências de mudanças nos arranjos de parentesco e práticas religiosas, manejo de recursos naturais, entre outras, encontrados ao longo do tempo, como se tais mudanças fossem degenerativas da condição do status diferenciado do agrupamento em questão. Ou seja, esta perspectiva é facilmente introduzida em disputas, assumindo um caráter ambíguo, que tanto pode conferir reconhecimento e direitos, como ao sinal de mudanças, pode municiar os que se opõem ao reconhecimento dos direitos, conforme o que Sahlins (1997) classifica de ataque à cultura como demarcação de diferença. Ora, naquilo que é tido como agrupamento padrão, normal, majoritário ou maioria, ocorrem frequentemente mudanças radicais em indivíduos particulares (ou mais recorrentes) com o passar dos anos e os questionamentos à legitimidade destas mudanças são suavizados. Em boa medida, a condição de população tradicional, extrativista, seringueira, ou camponesa, assumidas pelos agentes, enredam argumentos essencialistas que os reprimem ao menor sinal de mudança de postura, de hábito, de práticas, em suma, de habitus (BOURDIEU, 2011a). 5 Para uma análise do Sistema Seringal que aqui buscamos extrapolar pela consideração de outros agentes que não os envolvidos diretamente no sistema de aviamento, ver Esteves (2010). 27 Portanto, as noções que embasam nossa abordagem partem do pressuposto de que a manutenção da cultura de povos em contato com os instrumentos associados à modernidade reside justamente no modo específico como suas culturas se transformam (SAHLINS, 1997b). Neste sentido, inserimos nossa análise no debate sobre fronteira agropecuária, aqui tomada como uma formação social peculiar. Como lugar em que se procura destacar/classificar certo arcaísmo dos meios técnicos precedentes, confrontados aos meios técnicos de ponta do mais avançado capitalismo. Por exemplo, as estradas de barro, quase varadouros, em que circulam caminhonetes japonesas de tecnologia sofisticada baseada em inteligência artificial, etc.: uma formação social da estrada precária, como cenário para um sem número de relações dos agentes próprios desta formação. Na situação de fronteira aumenta a intercorrência destes contrastes e agravam-se os conflitos provenientes das intercessões entre diferentes agentes e perspectivas. Frente a esta concepção de comunidade, buscando observar aspectos outros que não estritamente econômicos, uma vez que nos deparamos com a indicação de várias alterações do ponto de vista das práticas cotidianas das diferentes categorias de indivíduos (mulheres, crianças etc.), quando consideramos as quatro gerações com as quais convivemos (na história correspondem da 2ª à 5ª geração 6 ), o que poderia então conferir coerência na designação dos seringueiros do Alto Acre como sendo camponeses, no século XXI? Este alargamento da concepção de comunidade, desprendido de quaisquer essencialismos étnico-culturais congelados no tempo, impõe que se faça uma discussão acerca da condição camponesa na atualidade da fronteira agropecuária. Buscamos realizar tal discussão aproximando-nos dos pressupostos da teoria dos campos. A fronteira é um espaço social no qual se encontram diferentes grupos, dotados de diferentes visões de mundo e inclinações para a ação. Embora se possa objetar que uma visão de mundo prevaleça, entre os indivíduos haverá, em maior ou menor intensidade, influência das outras visões. A intersecção entre as diferentes perspectivas cria impasses em torno dos sentidos dos objetos que permeiam diferentes esferas da vida de um certo número de grupos e indivíduos, provenientes de espaços socioculturais diferenciados entre si, mas que precisam compartilhar o mesmo espaço geográfico. Assim, as opiniões divergentes, conflitantes, mas 6 Tivemos a oportunidade de conhecer pessoas das 5 gerações, considerando os mais idosos e as crianças. Como é sabido, embora o processo de ocupação dos seringais por migrantes se acentue já no final do século XIX, os nascimento se iniciaram a partir da formação de famílias, por volta da década de 1920 (PORTO-GONÇALVES, 2003). 28 em certos casos convergentes, de um tanto de indivíduos "pertencentes" aos diferentes espaços socioculturais, leva ao estabelecimento de embates para imposição de sentidos. Tais embates se darão no âmbito de campos específicos, nos quais cada grupo buscará impor o sentido a um objeto especifico em disputa. Há de se determinar quais os critérios e práticas que levam os diferentes grupos, ou indivíduos, a participar da luta em um determinado campo como especialistas do campo – em contraposição ao profano. O fato é que diferentemente das instituições de disputa, ou cristalização do poder relacionadas à política (partidos, mandatos, assembleias, eleição etc), não há necessariamente uma escolha, uma representação em si. Os agentes pertencentes a um determinado espaço sociocultural apoiarão, concordarão, ou simplesmente não se oporão aos posicionamentos dos demais agentes do campo, cujas ideias defendidas aproximam-se às que eles julgam convenientes para ampliação de seu capital social, econômico, cultural e simbólico. Há um fluxo de ideias que passam de um campo a outro, traduzidas de forma que ganham sentidos para um grupo, que a princípio não possuiria envolvimento com a ideia, ou mais, grupos que seriam prejudicados pela ideia, conformando a violência simbólica. Um exemplo aqui é a da presunção de uma inexorabilidade de uma marcha da modernidade, traduzida em sentenças tão rotineiras como as de: "o pessoal lá é do tempo que..."; ou "eles ainda fazem assim...", classificando práticas como formas atrasadas, mas que seriam extintas quando alcançadas pelo avanço técnico e tecnológico. A investigação empírica, porém, revela que esta suposta inexorabilidade não ocorre exatamente assim. Imaginemos que primeiro o barco com motor a combustão foi introduzido no cotidiano dos camponeses desta região, depois as motocicletas, os celulares e outros instrumentos, e nem por isso foram substituídas certas formas de se expressar, ou de explicar e de dar sentido ao mundo. No contato entre indivíduos de diferentes grupos, na situação de fronteira, as populações já estabelecidas não se reduzem a meras receptoras de ideologias e de tecnologias, ou de equipamentos oriundos de outras formações socioculturais. Também não se conformam em serem somente supridoras de matéria prima, ou trabalho para o domínio tecnológico colonial. Elas aportam também conhecimentos que influenciam o fazer deste domínio, sobretudo em relação ao trato com a natureza, tão influente em suas práticas, que em muitos casos chega-se a dizer que essas formações são do mundo natural, pré-cultural. E mais, há coisas do conhecimento tecnológico colonial que contribuem com as populações estabelecidas, como vacinas e motores, por exemplo. Não entraremos no debate quanto a 29 características raciais que corresponderiam a cada uma destas formações socioculturais que entram em contato na situação de fronteira, mas, ao final, o empírico parece ratificar o que Sahlins (1997, p. 52) afirmou: [...] Pois ao menos aqueles povos que sobreviveram fisicamente ao assédio colonialista não estão fugindo à responsabilidade de elaborar culturalmente tudo o que lhes foi infligido. Eles vêm tentando incorporar o sistema mundial a uma ordem ainda mais abrangente: seu próprio sistema de mundo (SAHLINS, 1997, p. 52).. A sobrevivência, no caso por nós estudado, claramente foi determinada pelo reconhecimento do direito ao território, conseguida, em última análise, pela reinvindicação do direito à diferença. A nós parece difícil usar uma gramática multiculturalista para analisar as regiões de fronteira que foram alcançadas pelas rodovias e pela ideologia desenvolvimentista, pois, excluída a situação dos povos indígenas que ali já viviam, os demais grupos que se entrecruzaram o fizeram justamente porque é este o caso da situação de fronteira. Ou seja, é uma expansão da sociedade envolvente, mas na fronteira há, por excelência, uma situação de instabilidade no que concerne a uma hegemonia cultural. No caso desta região da Amazônia, o que havia, no momento da chegada das estradas e da economia da pecuária e todas as implicações que esta impõe sobre a terra, a floresta, etc., era uma sociedade cujos traços culturais mais singulares eram os costumes, perspectivas e representações forjadas pelo sistema seringal, que do ponto de vista do seringueiro em boa medida tem a ver com o universo sertanejo. Os grupos que chegaram, representando, grosso modo, a cultura majoritária/moderna, defrontaram-se com esta sociedade calcada no sistema seringal, que, por sua vez, era formada por grupos socialmente diferenciados e ordenados hierarquicamente. Na fronteira, o contato entre a cultura estabelecida e a que está chegando, a princípio não permitiria dizer o que é majoritário ou hegemônico por um lado, e o que é minoritário por outro. Tentar fazer esta classificação pode reduzir a questão a termos de invasores para os que chegam, e atrasados, para os que já se encontram na área geográfica correspondente. Quem, num caso como o da fronteira agropecuária sobre a Amazônia, seria a minoria a ter direitos diferenciados para manutenção de sua cultura e modo de viver autonomamente? Parece que ao assumir que seriam os povos que já se encontravam, assume-se, de antemão, a legitimidade dos que chegam como grupo homogêneo portador da cultura aceitável como majoritária. Em boa medida esta perspectiva conferiu o direito diferenciado ao território para os seringueiros. Entretanto, ao longo dos anos 1990 e 2000, processou-se uma grande contradição, pois somente teriam sido reconhecidos direitos de alguns seringueiros, em algumas regiões, e muito mais pela condição estratégica de conservação ambiental do que por outro motivo. 30 Nesta tese, essa perspectiva evidencia ainda mais o quão singular teria sido o caso dos seringueiros do Alto Acre, pois estes estão exatamente na linha da frente de expansão da cultura representada pela pecuária, pelas rodovias, pelo capital, etc. Contudo, se o pleito a direitos diferenciados se fizer legítimo em razão do que seria minoria, que migram e formam comunidades em regiões de cultura diferente, o direito seria justamente para os ―paulistas‖ 7 . No caso dos seringueiros, esta fronteira, que emergiu como uma onda de dominação, expropriação, humilhação e destruição, avançando sobre o que ali estava (pois assim era concebida pelo autoritarismo dos governos militares que a planejaram e financiaram), com o esforço de resistência, somando -se, ao mesmo tempo que essa resistência tensionava a uma abertura política e articulava-se com o discurso do desenvolvimento sustentável, oportunizando o que foi possível e favorável do modelo chegante, tornou possível a sua permanência nesta parte da Amazônia (e não a sua destruição). A região de fronteira, na qual os seringueiros reivindicaram um direito diferenciado, justificado por uma identidade cultural peculiar, em substituição ao restritivo direito que teriam como posseiros, é uma região relativamente diferente dos contextos em que se processam normalmente movimentos reivindicativos pautados no multiculturalismo. A fronteira, do ponto de vista teórico é uma região onde estão mais ou menos delimitadas e facilmente observadas as identidades culturais diferentes: o migrante e os estabelecidos; no caso da fronteira agropecuária na Amazônia, respectivamente, o pioneiro (colono migrante, mas também técnicos, burocratas e capitalistas) e o nativo (camponês, indígena, mas também famílias e elites políticas e comerciais tradicionais/―aristocracia‖ dos núcleos urbanos remanescentes do sistema de aviamento 8 ). Ou seja, os seringueiros fizeram uma transição entre uma identidade reconhecida pelos outros internos da fronteira, para uma identidade 7 ―Paulistas‖ foi o termo com que se convencionou designar os imigrantes do centro-sul do país que se deslocaram para as regiões da frente de expansão da fronteira agropecuária na Amazônia, a partir dos anos 1960 (ESTEVES, 2011; VELHO, 2009; MARTINS, 1981). 8 O sistema de aviamento/sistema seringal legou um grupo social composto de pessoas que ocupavam as funções públicas e da administração de comércios, que faziam funcionar localmente a burocracia necessária à economia da borracha. Este grupo, na prática membros oriundos de algumas famílias, estava situado nas cidades e invariavelmente era dele que saiam os quadros para ocuparem novos cargos públicos (em regra, demandas para serviços a eles próprios) e participação na política municipal. Como rótulo de distinção e pertencimento, estes agentes dão relevo a seus sobrenomes e se autoclassificam como ―famílias tradicionais‖. Estas famílias tradicionais podem ser incluídas no que Silva (2001) classifica como ―famílias de grife‖. Quando dos eventos que indicam o início do estabelecimento da agropecuária na região, estas ―famílias tradicionais‖ dominavam a política e administração pública local e desde então, com a inesperada insurgência dos seringueiros, tentam manter-se na política, tendo que disputar com os insurgentes e também com os políticos que mais se identificam como representantes da pecuária. 31 cujos elementos culturais teriam um reconhecimento valioso por parte de agentes situados geograficamente fora da fronteira. Esta situação, que Allegretti (2008) interpreta como uma combinação entre a legitimidade social oferecida pelos seringueiros aos ambientalistas, com a força e poder político que os ambientalistas ofereceram aos seringueiros, foi seguida de insatisfação e em muitos casos reações furiosas dos outros atores locais (outros internos), cujos conflitos tiveram, e têm, que ser dirimidos, em parte, por meio de disputas eleitorais. Neste sentido, a ideia do desenvolvimento sustentável consistiu num trunfo em favor do capital simbólico dos seringueiros. A sociedade xapuriense da cidade, por exemplo, e mesmo os pioneiros da fronteira agropecuária no Alto Acre, até hoje se mostram inconformados e não aceitam os seringueiros da maneira com eles foram reconhecidos por agentes situados fora da fronteira, como nos campos acadêmicos, jornalísticos, etc. Seringueiros (categoria eminentemente política), apesar de avaliados sob o prisma econômico, ambiental, ou social, deram resposta política àquilo que era um desdobramento de processo político, mas que por muitas circunstâncias e em muitos casos, era analisado como processo econômico. Constatar que houve uma resposta política e os seringueiros alcançaram o campo político com resultados objetivos e simbólicos, e se mantiveram no campo produzindo (mas também adquirindo direitos de acesso a bens públicos e elevando as condições de vida e retendo parte da família no campo), implica um elemento relativamente novo no que concerne ao lugar dos camponeses numa situação de capitalismo autoritário (VELHO, 2009), pois a reação dos seringueiros aos processos econômicos (decorrente de decisão política) não foi somente uma adaptação econômica. Esta linha de interpretação filia-se especialmente ao que levanta Montero et al. (2011) sobre uma tendência, no caso brasileiro, ao reconhecimento de demandas de grupos historicamente marginalizados, através do acesso ao campo do direito, como linguagem própria no campo burocrático, portanto, na esfera do Estado, que busca realçar diferenças culturais como especificidades identitárias. Complementarmente, acompanhamos Paoliello (2006, p.65), quando afirma que é possível interpretar comunidades camponesas como ―compartilhando com o mundo urbano um mesmo sistema de valores, e relacionando-se com ele, jurídica, política e economicamente, constituindo assim o contínuo rural-urbano‖. Isto não significa que não buscamos observar evidências na atualização de certos valores morais ou de 32 honra, do habitus destes camponeses, na base do estabelecimento e condução de relações sociais. É importante de antemão salientar que, não obstante uma necessária discussão sobre o lugar da comunidade na dinâmica social dos seringueiros, nesta análise daremos atenção secundária ao aspecto cultural das comunidades em si mesmas, de modo a destacar apenas certas regularidades sobre determinados aspectos nos quatro casos observados, recaindo a atenção principal sobre os mecanismos de interação entre os camponeses e o todo sociocultural e político no qual estão inseridos, sob o feixe de agentes e instituições que conformam redes imbricadas nos campos de poder, burocrático, econômico e outros que informam a noção de Estado desenvolvimentista à qual fazemos referência no título e, sobretudo, suas relações no espaço social do Alto Acre 9 . Assim, a análise recorre a uma série de normas como ponto de explicação, segundo a perspectiva de que o Estado, os atos de Estado, visam efeito sobre a realidade social. É neste sentido, também com base em Bourdieu (2014), que busco mostrar quais agentes foram determinantes na produção de certas normas jurídico-administrativas. Analisamos o seringueiro sob o entendimento de que em si, a categoria seringueiro refere-se a uma identidade configurada socialmente (tendo outros agentes como mediadores culturais) para o embate político de um grupo camponês florestal e que as relações, as disputas e cooperações nas quais se envolveram, dão-se no plano simbólico, com recursos simbólicos de uma economia simbólica que dá sentido ao plano material. Joan Vincent (1987) adverte, no entanto, que os estudos sobre o envolvimento dos camponeses com a política tendem a ignorar as condições estruturais, interpretando os resultados em nível do Estado como se fossem ações deliberadamente desejadas, ignorando que ―as configurações sociais somente emergem de um amálgama de consequências 9 Uma característica das comunidades do Alto Acre deve ser destacada. O modelo de comunidades de seringueiros geralmente apontadas em estudos realizados na Amazônia Ocidental, como as do Médio Madeira, analisadas por Chaves (2011), ou as do Alto Juruá, estudadas por Pantoja et al. (2009), assim como outras que tivemos a oportunidade de conhecer no Médio Purus, consiste em aglomerações de núcleos domésticos às margens dos Rios, nas quais geralmente as residências são dispostas lado a lado formando pequenos povoados. No Alto Acre, as comunidades se tornaram muito mais uma referência política, para instalação de serviços públicos (Escolas e Assistência à Saúde) em localizações/colocações mais ou menos nucleares, em relação a um conjunto de Colocações, ou seja, as comunidades não são unidades mais povoadas do que as outras Colocações. Abordaremos a relevância e característica das comunidades do Alto Acre nos capítulos 3 e 4. A referência à comunidade (desde o ponto de partida no evangelismo, passando por delegacia sindical, associação e núcleo de base) no contexto de Alto Acre, tem um sentido também de suplantar a referência do sistema seringal (PORTO- GONÇALVES, 2003). 33 pretendidas e não pretendidas‖ (VINCENT, 1987, p. 376). Nesse sentido, buscaremos evidenciar o quadro em que estão inseridos os seringueiros, nos diferentes períodos do ―Estado Desenvolvimentista‖, a partir da menção a certos instrumentos legais, de maneira a evidenciar os contextos e agentes que conduzem à edição de Decretos, aprovação da Leis, da Resoluções etc. Ou seja, buscar focalizar ―gente, tempo e lugar‖ (FELDMAN-BIANCO, 1987, p. 11). A concepção de Estado que perpassa todo o trabalho assenta na proposição de Bourdieu (2011a, p. 97), para quem ―o Estado é um x (a ser determinado) 10 que reivindica com sucesso o monopólio da violência física e simbólica em um território determinado e sobre o conjunto da população correspondente‖. Nesse sentido, a dimensão simbólica é central em nossa tese, uma vez que, ao reconhecer essa propriedade, o Estado tanto incide sobre a objetividade quanto na subjetividade, quer dizer, nas mentes, ―sob a forma de estruturas mentais, de esquemas de percepção e de pensamento‖ (BOURDIEU, 2011a, p. 98). Este pressuposto teórico nos leva a reconstituição de processos, a fim de revelar embates, articulações e desfechos que contribuíram para o estabelecimento de situações que no presente estão sob a aparência de natural, ocultando e fazendo esquecer que havia outros desfechos possíveis. Consideramos processos que derivam e são derivados do reposicionamento dos seringueiros em sua relação com o Estado, não somente o Estado diretamente para eles, mas o Estado quando visa beneficiar grupos como os fazendeiros. Nossa pesquisa foi guiada pelo objetivo de compreender qual a participação dos seringueiros nos processos de transformações da região do Alto Acre após a criação das Resexs. Quais respostas os seringueiros têm dado frente a mudanças institucionais e econômicas ocorridas a partir da criação das Resexs? Para responder a esta questão, buscamos mapear as condições sob as quais se processa esta dinâmica, remetendo-nos à história e à estrutura econômica na qual estão inseridos. Nesse sentido, a relação dos seringueiros com os diferentes modelos do desenvolvimento foi colocada no centro da análise, sob a indagação de como os seringueiros, mantendo sua condição camponesa, relacionam-se com as diferentes expressões produtivas de cada um deles. 10 Bourdieu evita as definições substancialistas do Estado, mantendo a ideia de que este é um campo em disputa. Contudo, destaca que o Estado é interpretado como um princípio oculto da ordem social, também um princípio de produção e representação do mundo social. Numa definição provisória, Bourdieu (2014, p. 33-34) afirma que ―o Estado, diria que o setor do campo do poder, que se pode chamar de ‗campo administrativo‘ ou ‗campo da função pública‘, esse setor em que se pensa particularmente quando se fala de Estado sem outra precisão, define- se pela possessão do monopólio da violência física e simbólica legítima‖. 34 Metodologia, fontes e inserção no campo de pesquisa Em termos de temporalidade, o presente estudo buscou situar-se no período em que se inicia a criação das Resexs no Alto Acre. Contudo, esta referência temporal exige recuos, sempre que seja necessária a compreensão de determinados fatos com raízes em processos anteriores. Esta tese coloca-se como desdobramento da pesquisa realizada durante o mestrado no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional, da Universidade Federal do Acre, cursado entre 2011 e 2013. O recorte empírico para a tese manteve as comunidades dos Projetos de Assentamento Agroextrativistas – PAEs estudadas durante o mestrado, sendo acrescentada a Comunidade Rio Branco, situada na Resex CM, no município de Xapuri. A dissertação de mestrado investigou processos ―internos‖ do arranjo organizacional das comunidades dos PAEs para a execução de Planos de Manejo Madeireiro Comunitários. A região que dá base à pesquisa consiste na zona de influência da rodovia BR-317, no Alto Acre, que, neste estudo, considera os municípios de Capixaba, Xapuri, Epitaciolândia, Brasiléia e Assis Brasil, estado do Acre, numa área da frente de expansão da fronteira agropecuária sobre a Amazônia Ocidental 11 . O lócus das observações são comunidades de camponeses situadas em Projetos de Assentamento – PAEs e Resex CM, a saber: Comunidade São Luiz do Remanso, no PAE Remanso, município de Capixaba; Comunidade Chora Menino, no PAE Chico Mendes e Comunidade Rio Branco, na Resex CM, no município de Xapuri; e Comunidade da Aurora, localizada no PAE Santa Quitéria, município de Brasiléia. Nestes lugares, vive a maioria das pessoas com quem tive contato e que referenciaram a tentativa de compreensão do desenrolar dos processos aqui analisados. Estas quatro comunidades, amostras de uma Amazônia que a partir dos anos 1970 está recortada por estradas de rodagens e em certos períodos do ano o verde dá lugar ao tom cinza e avermelhado da espessa nebulosidade de fumaça e poeira, compartilham características representativas da trajetória dos seringueiros do Alto Acre. Na prática, os PAEs são as 11 Na classificação do IBGE, o município de Capixaba não está agrupado aos demais municípios, que correspondem à microrregião de Brasiléia. Entretanto, o mesmo integra este bloco, no que concerne ao recorte do Território da Cidadania do Alto Acre e Capixaba. A constituição deste Território, no âmbito de uma política do Governo Federal, em 2005, em grande medida foi animada pelas administrações petistas na região, à época. Cabe destacar, ainda, que, assim como Epitaciolândia (cujo território originou-se de desmembramentos de Brasiléia e Xapuri), este município foi criado em 1994 com parte de seu território derivado do município de Xapuri, razão pela qual utilizo esta referência espacial, visto que os embates iniciais do movimento seringueiro compreendiam toda esta região. 35 primeiras áreas destinadas às Resexs, reivindicadas pelo movimento seringueiro do Acre (PAULA, 1991; ALLEGRETTI, 2002). Inicialmente sob a designação de Projetos de Assentamento Extrativistas, esta modalidade de assentamento está sob a responsabilidade jurídico-administrativa do INCRA, cumprindo, portanto, com a premissa do movimento seringueiro de que a Resex era a ―reforma agrária do seringueiro‖, naquele momento não vinculando-se a uma política de conservação ambiental (ALEGRETTI, 2002). Os três PAEs que consideramos neste estudo são especificamente os primeiros a serem criados no Brasil: PAE Remanso, então pertencente ao município de Xapuri, em junho de 1987; o Santa Quitéria, no município de Brasiléia, em junho de 1988; e o Chico Mendes, então integralmente no município de Xapuri, em março de 1989 12 . Em 1990 foi criada a Resex CM, que se distribui nos municípios de Sena Madureira, na região do Rio Iaco, Rio Branco, no Baixo Acre e, sobretudo, Capixaba, Xapuri, Brasiléia, Assis Brasil e Epitaciolândia, no Alto Acre. Nos anos seguintes, paralelo ao debate que a partir de 1992 vincularia definitivamente as Reservas Extrativistas à política ambiental (ALEGRETTI, 2002), foram criados novos PAEs, no âmbito do I Plano Nacional de Reforma Agrária, tanto no Acre como em outros estados do Brasil 13 . Nesta tese o termo ―Resexs‖ é utilizado para designar os PAEs e a Resex CM, juridicamente vinculada ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, no âmbito do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio. Ao longo do trabalho será demonstrado que a interação dos seringueiros com estes dois mundos do campo burocrático estatal (o que trata da Reforma Agrária e o que trata do SNUC), repercutirá de maneira diferente na relação dos seringueiros com o Estado, o que por si só, ratifica a ênfase ao aspecto relacional como força motriz da tecitura do espaço social. As áreas definidas para a pesquisa têm importância simbólica na história do movimento seringueiro do Acre. O PAE São Luiz do Remanso foi a primeira Resex oficialmente reconhecida; os PAEs Santa Quitéria e Chico Mendes derivam de dois episódios que por sua projeção pública, em circunstâncias trágicas, forjou os principais nomes do 12 Uma parte do Projeto está situada no município de Epitaciolândia. 13 Cabe reforçar a informação que há uma diferença jurídica entre as categorias Projetos de Assentamento Agroextrativistas (PAEs) e Reservas Extrativistas. Os PAEs, conforme mencionado no projeto de pesquisa original, foram criados e estão sob a gestão do INCRA e as Reservas Extrativistas, criadas e inicialmente sob a responsabilidade do IBAMA, foram posteriormente assumidas pelo ICMBio. Em razão de ambas terem sido produto da mobilização dos seringueiros, neste trabalho nos referimos apenas a Reservas Extrativistas. Esta diferenciação será melhor discutida nos capítulos 2 e 3. 36 movimento seringueiro, conforme registra a historiografia: Wilson Pinheiro e Chico Mendes, duas lideranças que embora apresentassem abordagens e estratégias de luta diferentes, foram firmes na condução do movimento que tiraria da obscuridade política os trabalhadores rurais do Acre; e a Comunidade Rio Branco por ter sido a região de um dos enfrentamentos que, por sua repercussão na imprensa, trouxeram a público os desmandos de autoridades locais e a determinação com que os seringueiros lutavam contra a expropriação: o conflito com a Fazenda Nazaré, do frigorífico Bordon. A explicitação da delimitação geográfica da pesquisa é crucial em nosso estudo à medida que aqui consideramos as diferenciações entre as microrregiões do Acre, do ponto de vista econômico, social, político e cultural (os resultados da atuação política dos seringueiros são diferentes em cada microrregião), mas também ambiental e ecológica (a espécie Castanheira – Bertholletia Excelsa, por exemplo, não ocorre no Vale do Rio Juruá). No Alto Acre, a partir da criação das Resexs se sobrepõem propostas de três modelos de desenvolvimento, como superação de um modelo que estruturou as relações sociais durante aproximadamente um século: um modelo gestado e iniciado durante os governos militares e pautado na integração do Acre ao Centro-sul, através da produção de carne bovina (que no período por nós estudado é um contradiscurso oficial); o segundo, baseado no discurso do desenvolvimento sustentável cujas ações vinculadas à ideia de manejo florestal possuem interface direta com os territórios dos seringueiros; e ainda um terceiro, discursivamente próximo ao segundo, mas vinculado a políticas federais voltadas à Agricultura Familiar e Populações Tradicionais (que apoia a produção extrativista através de subsídios). Para os agentes que historicamente dominaram o campo desenvolvimentista, num momento de rearranjo da composição e cuja tendência a partir deste período foi uma polarização entre as duas novas propostas, havia uma verdade compartilhada: a de que o modelo pautado no extrativismo da borracha deveria ser dissolvido. Os que não abandonaram por completo esta ideia da produção de borracha foram justamente os seringueiros, que buscavam um protagonismo nesta economia que lhes fora negado por um século no sistema de cativeiro do aviamento. Quanto aos dois modelos que mais disputaram a hegemonia junto ao governo do Estado do Acre, o primeiro pressupõe a atração de migrantes para o adensamento populacional, o segundo se contrapõe justamente por ver neste movimento uma ameaça de destruição dos recursos naturais que são base para setores do comércio internacional. O fato é 37 que há uma disputa nesta sobreposição e este trabalho pretende acompanhar os seringueiros num dos locais mais emblemáticos desta disputa, cujas causas e consequências refletem as linhas de forças e principais debates da esfera pública internacional e, sobretudo, nacional. O modelo do desenvolvimento sustentável surge da crítica ao da expansão da fronteira agropecuária (agora nomeado agronegócio). Mas quando emerge o modelo do desenvolvimento sustentável, as bases que estimularam a pecuária se encontravam em avançado estágio, visto terem sido conduzidas autoritariamente pelo Estado. Nesse sentido, a pesquisa se move buscando evidenciar mudanças nas práticas dos seringueiros em âmbito interno e externo às comunidades, decorrentes de sua relação com as diferentes vertentes do desenvolvimentismo nesta região da Amazônia. Um dos objetivos de nossa pesquisa é analisar a dinâmica dos diferentes modelos, evidenciando seus impactos objetivos e simbólicos sobre a gestão e uso das reservas extrativistas nas últimas duas décadas e os desdobramentos de tais impactos para o conjunto da sociedade regional. Para tal é necessário buscar compreender os fatores que atuaram no sentido de favorecer, ou se opor a cada uma dessas vertentes; em que medida os três modelos influenciam a posição dos seringueiros no espaço social do Alto Acre, especialmente no que se refere ao campo político. E ainda, buscaremos analisar as práticas nas relações comunitárias evidenciando as influências de cada matriz. Antes de continuar é necessário ter clareza de que as discussões e observações aqui apresentadas não significam dizer que os seringueiros constituem um todo sociocultural homogêneo. As afirmações aqui contidas dizem respeito ao que foi possível observar e ouvir, mas, de maneira nenhuma, são as exceções do que vem acontecendo na área em que se deu a pesquisa. Como resultado do confronto entre pesquisa bibliográfica, narrativas difundidas pela mídia e observações durante a pesquisa para o mestrado e em outras oportunidades, surgiram diversas questões que me motivaram a busca pelo aprofundamento da compreensão da situação dos seringueiros do Alto Acre. Os seringueiros teriam sucumbido aos governos do PT? Os seringueiros teriam perdido a autonomia sobre gestão/uso das reservas extrativistas com o avanço do capitalismo verde e da ideologia do desenvolvimento sustentável? Os seringueiros seriam meros elementos folclóricos do Governo da Floresta? As lideranças seringueiras teriam sido cooptadas por ONGs e pelo Governo da Floresta? Com o enfraquecimento da produção de borracha nativa, as Resex se transformaram em áreas rurais 38 comuns? Em assentamentos rurais iguais aos demais? Os seringueiros seriam somente guardiões da floresta que vivem na miséria devido à rigorosa legislação ambiental que suplantou a ideia de Reserva Extrativista como luta por reforma agrária? Diante desta miríade de questionamentos buscamos identificar quais os instrumentos de organização dos seringueiros após a criação das reservas extrativistas e como esta organização se processou. Partimos do pressuposto de que a postura do pesquisador deve ser, antes de tudo, determinada pela busca em apreender estruturas e mecanismos que incidem sobre a construção e reprodução do espaço social, portanto, indo além das diferenças mais pitorescas apanhadas na superficialidade (BOURDIEU, 2011a). Nesse sentido, esforçamo-nos para situarmo-nos numa posição que não visa exclusivamente o macrossocial, ou o microssocial. Consideramos observações que dizem respeito a processos macro, como as descrições da dinâmica econômica mundial e nacional que engendram as forças que compelem à adoção da pecuária de corte como fonte de renda; com observações microssociais, como as do direito de uma mulher à justiça, ambas considerando a dimensão histórica dos processos. Agindo desta maneira, procuramos captar elementos que tanto escapam ao curioso pelos exotismos, quanto escapam ao olhar nativo (BOURDIEU, 2011a). Além da pesquisa bibliográfica, cujas referências foram parcialmente apresentadas nesta introdução, o trabalho de pesquisa exigiu que se processe um levantamento documental, realização de entrevistas e observações diretas. a) Levantamento documental O recurso ao levantamento documental se deu em razão da busca de informações sobre a história e para a evidenciação do processo de configuração das condições objetivas, nas quais estão inseridos os seringueiros do Alto Acre na atualidade. Assim, demos atenção relativamente especial à emergência de certas normas jurídico-legais, de vários períodos e esferas político-administrativas, que, emanados do Estado [desenvolvimentista], são elementos fundamentais no processo de instituição de certos aspectos da realidade e, especificamente sobre o que tratamos neste trabalho, são atos de Estado que ao mesmo tempo em que exprimem disputas de sentidos na emergência de categorias como desenvolvimento sustentável, populações tradicionais, manejo sustentável, conservação, etc., autorizam e impõem novas práticas aos agentes imbricados nos diversos campos do espaço social. Grande parte das Leis e Decretos, Instruções Normativas, Portarias, Resoluções etc. foram obtidas através das páginas oficiais dos órgãos na internet, ou Diários Oficiais, e outras 39 requisitadas diretamente ao respectivo órgão, como Conselho de Meio Ambiente e Conselho Consultivo da Resex CM. Também foram levantadas e examinadas cópias de Atas de reuniões, Relatórios técnicos de órgãos públicos e ONGs, memórias de eventos etc. Em relação a esses, além dos dados disponibilizados na internet pelas instituições, oportunizei um acervo pessoal com documentos digitalizados, obtidos durante pesquisa de campo realizada em 2011/2012, nos escritórios do Conselho Nacional dos Seringueiros – CNS, em Rio Branco (AC) e do Sindicado dos Trabalhadores Rurais de Xapuri. Complementarmente, recorri ao rico acervo do Instituto Socioambiental – ISA disponibilizado a consulta aberta através da internet, a partir de dezembro de 2017. São utilizadas estatísticas de banco de dados de órgãos governamentais, em muitos casos apresentadas de maneira combinada entre mais de uma fonte, como INCRA, IBGE, IBAMA, INPE, e do próprio TSE, de maneira a gerar variáveis que contribuem para a fundamentação das análises. Nesse sentido, importa destacar que algumas séries temporais apresentadas ao longo do trabalho, foram estabelecidas de maneira condicionada às bases dos dados publicadas pelos órgãos. b) Visitas às comunidades Entre dezembro de 2017 e outubro de 2018 viajei com certa frequência aos municípios do Alto Acre, para a realização de entrevistas, participação em reuniões e visitas a moradores dos PAEs Remanso e Santa Quitéria e da comunidade Rio Branco, na Resex CM. À exceção das visitas aos moradores, que exigiram planejamento com antecedência e se deram tão logo as condições de trafegabilidade nos ramais se fizeram mais favoráveis (entre abril e julho de 2018), outras viagens à Brasiléia e Xapuri, deram-se mediante a oportunidade de agendas de reuniões de Sindicatos, associações e Cooperativas. Neste período visitei os municípios de Assis Brasil e Capixaba uma única vez. Em janeiro de 2019 viajei ainda ao município de Boca do Acre, no estado do Amazonas, ocasião em que fiz entrevistas com pessoas que acompanham o universo camponês e indígena do município, situado na parte amazonense da rodovia BR-317. Além de se darem a partir do contato com pessoas que eu conhecia, em razão de ter frequentado estas áreas anteriormente (entre meados dos anos 1990 e o final da década de 2000 e depois por ocasião da pesquisa de mestrado, entre 2011 e 2013), as visitas às comunidades obedeceram a seguinte dinâmica: partia da sede do município com destino a hospedar-me (pernoitar) na casa de um comunitário, com quem havia combinado com 40 antecedência e, durante o dia, percorria (de motocicleta) moradias de outras famílias, observando e fazendo entrevistas. No PAE Santa Quitéria estive durante o mês de maio de 2018 e em junho, estive no PAE Remanso, ou São Luiz [do Remanso]. Em Santa Quitéria, hospedei-me na casa de Chico Assis, que mora na Colocação Arraial, dividida entre ele, o irmão e um sobrinho. No Remanso, hospedei-me na casa de Maria das Dores, que mora na Colocação Escondido, onde duas de suas filhas também fizeram morada. Na Comunidade Rio Branco não houve período de estadia, com pernoite. As duas visitas realizadas àquela comunidade (uma em abril e outra em julho de 2018) foram vinculadas a reuniões nas quais participei devido à articulações com a Associação dos Moradores e Produtores da Resex CM de Xapuri – AMOPREX e com o ICMBio. Entretanto, estas visitas proporcionaram entrevistas e observações em Colocações próximas ao núcleo comunitário, na Colocação Rio Branco, do Seringal Floresta. Por outro lado, os eventos que acompanhei na cidade de Xapuri, proporcionaram o encontro com moradores desta comunidade. Em situações casuais, na circulação pelos municípios, encontrei com moradores de outras comunidades de seringueiros destas áreas, com quem estabeleci conversas informais, às vezes propondo a realização de entrevista. Nestes casos, inicialmente eu apresentava os objetivos da pesquisa e documentações que atestavam minha condição de pesquisador (como declarações da Universidade e autorizações de órgãos), bem como esclarecia a natureza da participação e apresentação dos Termos de Autorizações relativos ao entrevistado. Em 2016 houve uma modificação e a Associação de Pequenos Produtores Rurais Fé em Deus, associação mais vinculada à comunidade do Chora Menino, passou a ser a detentora do CCDRU do PAE Chico Mendes. O Chora Menino é um núcleo mais distante da sede do município de Xapuri, o que ensejou a reprogramação da visita ao PAE Chico Mendes, pois a viagem até o local da sede da Associação Fé em Deus demanda um pouco mais de tempo e recursos do que havia inicialmente previsto para maio e junho de 2018, quando visitei as demais comunidades. Julguei mais prudente adiar a visita a esta comunidade para 2019, pois na medida em que se intensificam as atividades de campanha eleitoral (agosto e setembro de 2018), ―o tempo da política‖ (PALMEIRA, 2010), muitas vezes a presença de desconhecidos (e talvez, principalmente de conhecidos) numa área com o significado histórico e político como esta, podem ocorrer especulações que repercutem na forma como as pessoas acolhem, 41 ou não, uma iniciativa de pesquisa como a nossa 14 . Esta viagem ocorreu no mês de setembro de 2019, oportunizando o restante do período de melhora nas condições das vias de acesso. c) Entrevistas Conforme mencionado, participei de reuniões e visitas a moradores dos PAEs Remanso e Santa Quitéria e da comunidade Rio Branco, na Resex CM, proporcionando a realização de entrevistas. Também foram utilizadas inúmeras entrevistas e materiais jornalísticos e cinematográficos com relação aos temas aqui abordados, disponíveis em acervos de jornais e na plataforma Youtube. À exceção das visitas aos moradores, que exigiram planejamento com antecedência e se deram tão logo as condições de trafegabilidade nos ramais se fizeram mais favoráveis (entre abril e julho de 2018), outras viagens à Brasiléia e Xapuri, mediante a oportunidade de agendas de reuniões de Sindicatos, associações e Cooperativas. Neste período, além dos municípios do Alto Acre, visitei o município de Boca do Acre (AM), no Baixo Acre, onde se inicia (ou finda) a parte trafegável da BR-317. Durante as viagens foi possível entrevistar dezenas de pessoas (em torno de setenta) e participar de reuniões de Cooperativas, associações, STR, do CNS etc. O Apêndice B apresenta um roteiro com a estrutura básica utilizada na realização de entrevistas com camponeses. Com as demais categorias, as entrevistas foram circunstanciais e se deram com base em assuntos mais específicos a cada um dos entrevistados, sem que houvesse um roteiro padrão. Em muitos casos, sobretudo nas entrevistas ocorridas nas comunidades camponesas, mas também naquelas junto a agentes governamentais e dirigentes de associações, como Raimundo Moreira em Santa Quitéria, e Raimundo Oliveira (Mundico) em Remanso, acredito ter facilitada a comunicação com os entrevistados, em virtude da proximidade social e 14 Conforme se sabe, Chico Mendes morou por muitos anos numa Colocação por nome Lago, no Seringal Cachoeira (PAE Chico Mendes), onde vivem primos seus. Um dos motivos alegados pelo fazendeiro que confessou o ter assassinado diz respeito a negociação de uma Colocação de um seringueiro, por ele comprada desmatar e fazer pasto para gado. A comunidade interviu para que o negócio fosse desfeito e o fazendeiro atribuiu a responsabilidade da intervenção a Chico Mendes. Por seu valor simbólico, ao longo de seu envolvimento com PMFS esta comunidade contribuiu política e tecnicamente de forma decisiva para a discussão sobre manejo madeireiro em comunidades de Resexs, em parte, através da militância em favor desta atividade empreendida por lideranças locais, contratadas pelo governo. O envolvimento da comunidade com o manejo madeireiro conferiu apoio de diversas agências de cooperação, tais quais SUFRAMA, Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID e Comitê Amazônia Brianza da Itália. Em 2001, o plano de manejo vinculado a AMPPAE-CM, foi o primeiro projeto de manejo florestal comunitário, ou de pequena escala, certificado pelo FSC no Brasil. A centralidade do PAE Chico Mendes para a execução de projetos ligados ao Desenvolvimento Sustentável motivou críticas da utilização da imagem de Chico Mendes na promoção do governo da floresta, como marketing, somado ao fato de o núcleo do movimento seringueiro mais influente na política partidária local encontrar-se em Xapuri (ARAÚJO, 2013). 42 familiaridade com aquele espaço social, que, segundo Pierre Bourdieu (2008b) figuram como condições básicas para uma comunicação não violenta. Evidentemente, esta familiaridade, embora auxilie no estabelecimento de um diálogo fluente e evite eventuais intervenções inoportunas ou constrangedoras, já que possuo um conhecimento prévio das relações e conflitos de uma dada comunidade, não garante que não haja violência simbólica e que todos os contatados e tudo o que o obtive foi o mais adequado e fiel. Mas acompanhamos Comerford (1999) quando diz que uma ―semelhança de ethos‖ pode ajudar a inserção no campo pesquisado, ao mesmo tempo em que exige esforço redobrado de observação, distanciamento e relativização. Buscamos narrativas de memória coletiva nas entrevistas, contemplando a escuta de uma geração capaz de realizar comparativos entre o presente e o passado. Ou seja, valorizamos a ideia da consideração a eventos que se sucedem, em diferentes lugares e com pessoas que participam, mas que não se contêm em si mesmos. São partes de um processo contínuo. Este princípio observa também a intenção de identificar eventos, lugares e pessoas que se encadeiam, mas procuramos escapar de uma fixação política, e também acadêmica, de que existiria uma ―idade heroica‖, nos diferentes termos, pois entendemos que representações desta natureza, sugerem que o que sucede um evento, um lugar, etc., tem menor importância, ou até mesmo, negaria as expectativas da idade heroica. Há, no entanto, de se reconhecer as limitações das entrevistas para o alcance das perspectivas dos agentes (em alguns temas, e com alguns sujeitos, mais que outros). Perguntas pontuais, contingentes, buscando uma objetividade, que às vezes traz opiniões de ocasião, formuladas de improviso, por vezes com usos de termos que não seriam utilizados pelo entrevistado fora do contexto de entrevista. Ou ainda, mesmo se tivesse mais tempo para formulação, refletir sobre o tema, a resposta possivelmente seria outra. Ou seja, há um risco de utilizar representações que de fato não condizem com a perspectiva do entrevistado sobre aquele assunto. Expressar opiniões sobre algo em determinadas circunstâncias pode ser sensivelmente diferente das representações que de fato existem com base em reflexões mais aprofundadas sobre aquilo, que por vezes sequer faz parte do repertório de reflexões do sujeito. Por isso a utilização de observações das práticas dos agentes. Bourdieu et al. (2010) advertem que geralmente qualquer pessoa estará disposta a responder qualquer coisa, para qualquer pergunta, oferecendo, muitas vezes, respostas superficiais, o que denuncia, portanto, a necessidade do pesquisador se desprender da ideia de 43 que todas as respostas, conceitos e teorias para a explicação do que pesquisa estaria no campo empírico, ou, pior ainda, nas falas dos sujeitos pesquisados. Para além destas ressalvas relativas aos limites da entrevista, não descarto a possibilidade destes limites serem mais ampliados, em razão de minha relação pessoal e profissional na região do Alto Acre. É, por exemplo, muito provável que ex-dirigentes sindicais (como Rosildo Rodrigues e Leide Aquino) tenham emoldurado minha posição, para além de um pesquisador, de estudante de doutorado. Por isso, no tocante às entrevistas, tentei ampliar meus informantes para além destes dirigentes, conversando com outros que não os já conhecidos, apesar destes terem sido fundamentais para a realização da pesquisa de campo. Mas também posso ter uma posição emoldurada pela condição de nativo da região, descendente de pessoas que viveram e vivem, inter-relacionaram-se e inter-relacionam-se com agentes situados em diferentes posições nos campos que constituem o espaço social do Alto Acre. d) Participação em reuniões comunitárias e de organizações dos seringueiros Tive a oportunidade de apresentar a pesquisa, de maneira sucinta, em uma reunião na comunidade Rio Branco (em abril de 2018) e reunião na Comunidade Samaúma (na Resex CM de Xapuri, em julho de 2018) 15 , bem como na Assembleia da Cooperativa dos Produtores Florestais Comunitários – COOPERFLORESTA (em janeiro de 2018) e Assembleia da AMOPREX (em março de 2018), as duas últimas realizadas na sede do STR de Xapuri, e em reunião do Conselho Deliberativo da Resex CM, realizada na cidade de Rio Branco (em maio de 2019). Quanto a minha inserção no campo da pesquisa, sem maiores pretensões, junto-me a Neves (2009) ao analisar a produção acadêmica a respeito do campesinato brasileiro. Para esta autora, um dos fatores que conduziram ao aumento da produção acadêmica nos anos recentes sobre o campesinato foi o crescimento do número de pesquisadores para os quais um dos motivos determinantes que os levou a dedicarem-se ao estudo destas populações seja justamente o fato de eles próprios serem oriundos de famílias camponesas. Sou neto de seringueiros e filho de ex-seringueiros. Nasci e vivi os primeiros anos de minha infância num ―pedaço‖ de uma Colocação que meu avô cedera para que meu pai cortasse algumas estradas de seringa a fim de sustentar a família cuja formação iniciava. O seringal no qual nasci 15 A Comunidade Samaúma, localizada às margens do Rio Espalha, em Xapuri, não compõe diretamente as comunidades da pesquisa, mas se encontra na Resex CM. 44 atualmente é uma das fazendas localizadas ao longo da BR 317 entre Rio Branco e Xapuri, de onde nos anos 1980 foi expulsa para Rio Branco e Xapuri boa parte de minha ascendência paterna, inclusive meu pai. De outra parte, cresci em contato com a família de uma irmã e um irmão de minha mãe, moradores do campo até hoje em Xapuri. Esta socialização me marcou as referências quanto ao mundo e ao trabalho e quanto ao que o trabalho representa para o mundo na perspectiva camponesa. Acometido de poliomielite com um ano e quatro meses de vida, ainda no local onde nasci, recordo que a partir dos sete anos de idade meus tios e minhas avós, à sua maneira, vibravam com meu desempenho escolar (que nunca passou de mediano), já que sabiam que minha limitação de locomoção dificultaria muito minha sobrevivência pelo trabalho no campo, conforme a experiência lhes ensinara que todos da família historicamente fizeram, e que seria mais aconselhável eu partir para outro setor. Mas mesmo vivendo na cidade de Xapuri, a partir dos 4 anos de idade, meu vínculo com o universo camponês nunca se rompeu: através das férias no seringal, da peregrinação anual para o pagamento da promessa feita por meus pais a São João do Guarani 16 por eu ter sobrevivido à paralisia infantil e das constantes temporadas que passava com minha avó materna na colônia de meu tio, mais próxima à Xapuri, onde eu convivia com trabalhadores e testemunhava as mudanças que