LÚCIO ALBERTO ENEAS DA SILVA FERREIRA O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E AS OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS DO ESTADO NA TUTELA PENAL FRANCA 2007 2 LÚCIO ALBERTO ENEAS DA SILVA FERREIRA O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E AS OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS DO ESTADO NA TUTELA PENAL Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito (Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado). Orientador: Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges. FRANCA 2007 3 Ferreira, Lúcio Alberto Eneas da Silva O princípio da igualdade e as obrigações constitucionais do Estado na tutela penal / Lúcio Alberto Eneas da Silva Ferreira. –Franca : UNESP, 2007 Dissertação – Mestrado – Direito – Faculdade de História, Direito e Serviço Social – UNESP. 1. Direito penal – Igualdade. 2. Obrigações constitucionais – Estado. 3. Direito penal mínimo. 4. Tutela penal. CDD – 341.5 5 O presente trabalho é dedicado: À minha avó Ana, in memorian, pelo exemplo de força, coragem e determinação. Ao meu avô José, in memorian, pelo exemplo de dedicação ao trabalho. À minha avó Rosa, in memorian, pelos almoços de domingo em família. Ao meu pai Aparecido, in memorian, pela inspiração e proteção espiritual. Ao meu tio Camilo, in memorian, pela ajuda quando precisei. Ao meu tio Devanir, in memorian, pelo exemplo de humildade. Ao Desembargador Castro Duarte, in memorian, pela confiança depositada em mim. À minha mãe Lídia, pelo seu amor e exemplo de honestidade e simplicidade. Ao meu sogro Walter, pela retidão de caráter. À minha sogra Genésia, pela sua devoção à família e a Deus. À minha esposa Luzia, pelo seu amor e carinho. Aos meus filhos, Caio e Laura, pela felicidade e motivação que me proporcionam. Ao meu irmão Júlio. À minha madrinha Betinha. Aos meus amigos e parentes. Aos meus alunos. E a todos aqueles que constroem a vida com luta e sofrimento. 6 AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges, pelos seus ensinamentos, orientações e por ter me conferido a oportunidade de regressar, como aluno, aos bancos da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista – UNESP – campus de Franca. Ao Prof. Dr. Antônio Alberto Machado, pelos ensinamentos na graduação e pós-graduação e pela sua dedicação ao estudo da Teoria Crítica, que me permitiu repensar os valores, objetivos e fundamentos do Direito. Ao Prof. Dr. Christiano José de Andrade, pelos ensinamentos na graduação e pós- graduação e pela sua postura democrática e cordial. Ao Prof. Dr. Augusto Martinez Peres, pelos seus ensinamentos na graduação e pós-graduação e pela sua postura altiva e com retidão de caráter. À Profa. Dra. Jete Jane Fiorati, pelos ensinamentos sobre metodologia da pesquisa científica e pelo seu exemplo de dedicação ao estudo e à Universidade. Ao Prof. Dr. Fernando Andrade Fernandes, pela sua participação no exame geral de qualificação, com críticas e sugestões ao presente trabalho, que foram valiosas. Aos Profs. Drs. Pedro Luiz Ricardo Gagliardi e Haroldo Pinto da Luz Sobrinho, pelos ensinamentos de Direito Penal na graduação e pela inspiração de seguir seus passos como Magistrado e Professor na área penal. Aos demais professores da graduação e pós-graduação, pelos ensinamentos e pelo prazer do convívio na UNESP. Aos funcionários da Faculdade, em especial da Seção de Pós-Graduação em Direito, que sempre me receberam com educação e prestatividade. 7 “Depois de tudo, ficaram três coisas: a certeza de que estamos sempre recomeçando... a certeza de que é preciso continuar... a certeza de que seremos sempre interrompidos antes de terminar... Portanto, devemos: fazer da interrupção, um novo caminho... da queda, um passo de dança... do medo, uma escada... do sonho, uma ponte... da procura, um encontro”. Fernando Pessoa 8 RESUMO A presente pesquisa aponta o Estado como co-responsável pela desigualdade social, estigmatização e marginalização ao aplicar o Direito Penal de forma seletiva e desigual, atingindo com maior intensidade a população pobre. Adverte o leitor sobre o papel da ideologia na determinação dos conceitos; nas escolhas dos agentes políticos e na ausência de percepção pela maioria da população sobre a aplicação desigual da lei penal. Ressalta as obrigações constitucionais do Estado Democrático e Social de Direito na criação dos tipos penais, na aplicação da lei penal e na execução das penas e medidas de segurança, em busca da igualdade material e da erradicação da pobreza, visando a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Expõe a evolução da teoria do bem-jurídico e as bases para a formação de um direito penal mínimo, garantista e legitimado na escala de valores e princípios previstos na Constituição Federal. Faz uma crítica ao positivismo jurídico e apresenta as bases de uma nova hermenêutica jurídica fundada no compromisso social do juiz com os valores e princípios constitucionais. Apresenta os sintomas da crise da pena privativa de liberdade, seu efeito estigmatizante, sua aplicação desigual e seletiva e sua promessa ilusória de recuperação do criminoso. Ressalta a importância de valores como a tolerância, a solidariedade e a conciliação na solução do conflito criminal. Palavras-chave: tutela penal. ideologia; obrigações constitucionais do estado; princípio da igualdade; bem-jurídico; valores constitucionais; dignidade da pessoa humana; princípios constitucionais; direito penal mínimo; justiça social. 9 RIASSUNTO La presente ricerca indica lo Stato come corresponsabile della disuguaglianza sociale, stigmatizzazione e emarginazione nell’applicare il Diritto Penale in forma selettiva e disuguale, attingendo con maggiore intensità la popolazione povera. Avverte il lettore sul ruolo dell’ideologia nella determinazione dei concetti; nelle scelte degli agenti politici e nell’assenza di percezione da parte della maggioranza della popolazione dell’applicazione disuguale della legge penale. Risalta gli obblighi costituzionali dello Stato Democratico e Sociale di Diritto nella creazione dei tipi penali, nell’applicazione della legge penale e nell’esecuzione delle pene e misure di sicurezza, alla ricerca dell’uguaglianza materiale e dello sradicamento della povertà, mirando alla costruzione di una società libera, giusta e solidale. Espone l’evoluzione della teoria del bene giuridico e le basi per la formazione di un diritto penale minimo, garantista e legittimato dalla scala di valori e principi previsti nella Costituzione Federale. Fa una critica al positivismo giuridico e presenta le basi di una nuova ermeneutica giuridica fondata sull’impegno sociale del giudice con i valori e principi costituzionali. Presenta i sintomi della crisi della pena privativa di libertà , il suo effetto stigmatizzante, la sua applicazione disuguale e selettiva e la sua promessa illusoria di recupero del criminale. Risalta l’importanza di valori come la tolleranza, la solidarietà e la conciliazione nella soluzione del conflitto criminale. Parole chiave: tutela penale; ideologia; obblighi costituzionali dello stato; principio dell’uguaglianza; bene giuridico; valori costituzionali; dignità della persona umana; principi costituzionali; diritto penale mínimo; giustizia sociale. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 11 CAPÍTULO 1 IDEOLOGIA E DIREITO ............................................................... 22 1.1 Uso Ideológico do Termo “Igualdade”............................................................... 28 1.2 Uso Ideológico do Termo “Justiça”.................................................................... 30 1.3 Uso Ideológico do Termo “Princípio”................................................................. 32 1.4 Uso Ideológico do Direito Penal.......................................................................... 34 1.4.1 Negação da legitimidade e do princípio do bem e do mal.................................. 34 1.4.2 Negação do princípio da culpabilidade individual.............................................. 36 1.4.3 Negação da finalidade da pena de recuperação do criminoso............................. 37 1.4.4 Negação do princípio de igualdade..................................................................... 39 CAPÍTULO 2 IGUALDADE PENAL E OBRIGAÇÕES CONSTITUCIONAIS DO ESTADO NA TUTELA PENAL ................................................................................. 41 2.1 Conceito e Distinções entre Estado de Direito; Estado Liberal de Direito; Estado Social e Estado Democrático de Direito................................................ 41 2.1.1 Surgimento do Estado de Direito e Estado Liberal de Direito............................ 41 2.1.2 Estado Social de Direito...................................................................................... 43 2.1.3 Estado Democrático de Direito........................................................................... 44 2.2 Delimitação das Obrigações Constitucionais do Estado na Tutela Penal..................................................................................................................... 46 2.3 Obrigações Constitucionais do Estado Social e Democrático de Direito na tutela penal........................................................................................................... 49 2.4 A Função de Garantia do Direito Penal no Estado Democrático e Social de Direito .................................................................................................................... 54 2.5 A Igualdade Material no Direito Penal.............................................................. 55 CAPÍTULO 3 IGUALDADE PENAL E FUNÇÃO LEGISLATIVA ................... 62 3.1 O Bem Jurídico e sua Escala de Valores............................................................ 63 3.2 A Proporcionalidade da Pena.............................................................................. 84 3.3 O Caráter Subsidiário do Direito Penal ............................................................ 88 3.4 A Proibição do Uso de Penas Cruéis, Infamantes, Banimento e Morte.......... 89 11 CAPÍTULO 4 O APLICADOR DA LEI PENAL EM FACE DO PRIN CÍPIO DA IGUALDADE ............................................................................... 96 4.1 Crítica ao Normativismo Jurídico...................................................................... 97 4.2 A Certeza e Segurança Jurídicas........................................................................ 108 4.3 A Igualdade Exige Análise Subjetiva e Interpretação de Valores. A Nova Hermenêutica Jurídica ....................................................................................... 110 4.4 O Compromisso Social do Aplicador da Lei Penal com a Inclusão Social, a Erradicação da Pobreza e a Dignidade da Pessoa Humana............................ 115 CAPÍTULO 5 IGUALDADE PENAL E FUNÇÃO EXECUTIVA ....................... 121 5.1 A Execução da Pena e da Medida de Segurança............................................... 121 5.2 O Mito da Ressocialização................................................................................... 134 5.3 A Criminologia Crítica......................................................................................... 137 5.4 A Justiça Restaurativa......................................................................................... 147 CONCLUSÃO............................................................................................................. 151 REFERÊNCIAS......................................................................................................... 155 12 INTRODUÇÃO Um dos temas mais importantes e polêmicos no estudo do direito moderno é o que se refere ao princípio da igualdade, porque a norma objetiva destaca a igualdade formal como garantia fundamental do cidadão, dizendo que todos são iguais perante a lei, mas “igualdade” também é sinônimo de Justiça e “Justiça” é o ideário de qualquer sistema jurídico democrático, porque não pode existir direito legítimo sem justiça. Ocorre que a igualdade como sinônimo de “Justiça” diz respeito à igualdade material, já que a igualdade entre os seres humanos deve ser tida como a base dos direitos humanos, e o ideário a ser perseguido, neste terceiro milênio, em que, há o predomínio da desigualdade material; da dominação; da discriminação; da violência exacerbada contra os menos favorecidos. O Evangelho, segundo Mateus (20, 1-15), apresenta uma parábola que ilustra muito bem a problemática da igualdade: O Reino dos céus é semelhante a um pai de família que ao romper da manhã saiu a fim de contratar operários para sua vinha. Ajustou com eles um denário por dia e enviou-os à sua vinha. Cerca da terceira hora, saiu ainda e viu que alguns ainda estavam na praça sem fazer nada. Disse-lhes ele: Ide também vós para minha vinha e darei o justo salário. E eles foram. À sexta hora saiu de novo e igualmente pela nona hora, e fez o mesmo. Finalmente, pela undécima hora, encontrou ainda outros na praça e perguntou-lhes: Porque estais todo o dia sem fazer nada? Eles responderam: É porque ninguém nos contratou. Disse-lhes ele, então: Ide também vós para minha vinha. Ao cair da tarde, o senhor da vinha disse a seu feitor: Chama os operários e paga-lhes, começando pelos últimos até os primeiros. Vieram aqueles da undécima hora e receberam cada qual um denário. Chegando por sua vez os primeiros julgavam que haviam de receber mais. Mas só receberam cada qual um denário. Ao receberem, murmuravam contra o pai de família, dizendo: Os últimos só trabalharam uma hora... e deste- lhes tanto como a nós, que suportamos o peso do dia e do calor. O senhor, porém observou a um deles: Meu amigo, não te faço injustiça. Não contrataste comigo um denário? Toma o que é teu e vai-te. Eu quero dar a este último tanto quanto a ti. Ou não me é permitido fazer dos meus bens o que me apraz? Porventura vês com maus olhos que eu seja bom? Assim, pois, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos1. Parece, porém, inerente ao ser humano o sentimento de injustiça relacionado com a igualdade, ou seja, não se aceitam as ações afirmativas, que visam à correção material das desigualdades. Prevalece o sentimento de que a divisão deve ser feita, segundo a capacidade, o mérito e o esforço de cada um. Ocorre que alguns integrantes da sociedade não possuem as mesmas condições materiais e psíquicas, para competirem com igualdade e, com isso, surge a necessidade da solidariedade entre os homens e das ações 1 BÍBLIA Sagrada. São Paulo: Editora Ave Maria, 2004. p. 1308. 13 afirmativas por parte do Estado. Existe uma tendência, do ser humano, de ser voltado para o individualismo e para a competição, como se a sobrevivência dependesse desta luta constante, conforme foi propalado por Rodolf Von Jhering na sua célebre obra: “A Luta Pelo Direito”, que se finaliza a obra com as palavras do poeta Goethe (1851, p. 435 apud JHERING, 1985, p. 88) “só deve merecer a liberdade e a vida quem, para as conservar, luta constantemente”. Acontece que o Estado moderno prima pela busca constante e perpétua da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com desenvolvimento nacional; erradicação da pobreza e da marginalização; redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; além disso, a cidadania e a dignidade da pessoa humana são os fundamentos da democracia2. Assim, não é suficiente que o Estado garanta a igualdade formal ou meramente jurídica entre os cidadãos; é preciso que se promovam ações efetivas e intervencionistas, visando à busca da igualdade material. José Luiz Bolzan de Morais (1996, p. 74) ensina que o Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade e não se restringe a uma melhora das condições sociais, como faz o Estado Social de Direito; é preciso concretizar-se, materialmente, uma vida digna ao homem, o que, necessariamente, implica a solução do problema das condições materiais de existência. O referido autor apresenta os princípios do Estado Democrático de Direito: 1- constitucionalidade; 2- Organização Democrática da Sociedade; 3- Sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos; 4- Justiça Social; 5- Igualdade; 6- Divisão de Poderes ou de Funções; 7- Legalidade e 8- Segurança e Certeza Jurídicas (MORAIS, 1996, p. 75). O Direito Penal, por ser eminentemente Público e intervencionista, nos comportamentos humanos, precisa ser revisto e reformulado sob a ótica da igualdade material e das obrigações constitucionais do Estado Social e Democrático de Direito na tutela penal. No desenvolvimento da pesquisa, será importante abordar o papel da ideologia, no que diz respeito ao princípio da igualdade e na escolha dos bens jurídicos que serão objeto de tutela penal, porque, conforme adverte Alessandro Baratta (2002, p. 162), atualmente existe o mito da igualdade, pelo qual se acredita que o Direito Penal protege igualmente todos os cidadãos, e que a lei penal é igual para todos e que todos têm iguais 2 Artigo 3º da Constituição Federal. 14 chances de serem sujeitos ativos de crimes e de sofrerem as conseqüências do processo de criminalização. A criminologia crítica apresenta proposições opostas ao mito da igualdade, destacando o caráter fragmentário do direito penal, que não protege todos os bens jurídicos, mas somente aqueles essenciais; a lei penal não é igual para todos, porque o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos; e o grau efetivo de tutela penal e o status de criminoso não são distribuídos de acordo com a danosidade social das ações e gravidade das infrações, que deveriam ser as principais variáveis para a reação criminalizante e a sua intensidade. A crítica visa demonstrar que o Direito Penal não é menos desigual do que outros ramos, pelo contrário, é o direito desigual por excelência (BARATTA, 2002, p. 162). Maurício Antônio Ribeiro Lopes (1999, p. 191) também pondera que a ideologia tem influência marcante na formulação do Direito Penal, já que no mais das vezes as leis penais são protetoras de valores ou bens que não são necessariamente representativos de uma aspiração social majoritária e que tudo mais em direito penal segue uma ideologia dominante, ou seja, a redação do tipo penal; os limites da pena; os mecanismos de execução da pena; a escolha da sanção; a atuação do Poder Judiciário; as normas processuais. Alessandro Baratta (2002, p. 161) ainda destaca três momentos ou mecanismos que devem ser analisados separadamente no processo de criminalização: 1- o mecanismo de produção das normas (chamado de criminalização primária); 2- mecanismo da aplicação das normas (chamado de criminalização secundária); 3- mecanismo da execução da pena ou das medidas de segurança. O referido autor também destaca a ideologia da defesa social em que baseia a responsabilidade penal nos princípios da legitimidade; do bem e do mal; da culpabilidade; finalidade ou prevenção; igualdade, interesse social e delito natural, que representam o ponto de chegada de uma longa evolução do pensamento penal e penitenciário, mas não permitem analisar realisticamente o processo de criminalização; por isso a criminologia crítica pretende a superação do conceito de defesa social (BARATTA, 2002, p. 44). Portanto, a presente pesquisa visa destacar, nas funções do Estado (legislativa, Judiciária e Executiva), os três mecanismos principais de criminalização e, por conseguinte, produtores da desigualdade na tutela penal. Também visa destacar as obrigações constitucionais do legislador, do magistrado e do executor da pena ou medida de segurança, à luz do princípio da igualdade, na tutela penal. 15 Parte-se do pressuposto de que o Direito Penal moderno deve estar fundamentado em cinco pilares: a legalidade; a dignidade da pessoa humana; a igualdade; a liberdade e a segurança pública, havendo entre eles uma comunicação, de modo que não se aceita o sacrifício da dignidade da pessoa humana em nome da segurança pública. É sabido que o Direito Penal tem como principal garantia o princípio da legalidade que está previsto na Constituição Federal3: “não há crime sem lei anterior que o defina; nem pena sem prévia cominação legal”; e também está no artigo 1º, do Código Penal, mas doutrinariamente é sabido que dele decorrem outros princípios, por ser justamente um delimitador da atuação do legislador e do próprio julgador. Assim é que se proíbe o uso da analogia “in malam partem”, no Direito Penal, limitando a atuação do julgador, mas também se sabe que não se podem criar tipos penais para qualquer ato tido como delituoso, pois o Direito Penal tem caráter subsidiário; é o último recurso da ordem democrática (ultima ratio), destinado a garantir a paz social, traduzida em segurança e no convívio harmônico entre os indivíduos, ou seja, só deve ser aplicado para proteger os valores mais importantes da sociedade e do indivíduo, e somente naquelas hipóteses nas quais outros ramos do direito não conseguem prevenir a conduta ilícita. Visa-se, assim, coibir eventual arbítrio do legislador ou do aplicador da lei penal que usa o Direito Penal como forma de repressão social, para manutenção da ordem vigente, mas como efeito perverso acaba criando ou aumentando as desigualdades sociais e as injustiças contra a população carente. É sabido que a principal função do Direito Penal é a proteção dos bens jurídicos mais importantes para a vida em sociedade, tais como: a vida, a saúde pública, a liberdade, a integridade física, o meio ambiente, o patrimônio, a honra. Tal proteção é feita sob a forma de ameaça de aplicação de uma sanção (pena) para aqueles que violarem tais bens jurídicos, tomando, assim, o Estado, a condição de solucionador dos conflitos internos que atinjam aqueles bens jurídicos, não se admitindo a vingança privada ou a autotutela para a solução dos conflitos. A ameaça de punição visa incutir nos cidadãos a consciência sobre o respeito que cada um deve ter em relação àqueles bens jurídicos, para viabilizar a vida harmoniosa em sociedade: é o que se entende pelo caráter preventivo geral da pena. Uma vez violado o bem jurídico, surge, para o Estado, o direito de punir, ou seja, o direito de reprovar a conduta anti-social praticada pelo agente. Tal reprovação deve 3 Artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal. 16 ser proporcional ao ato praticado; a pena aplicada deve ser justa na medida em que é necessária e suficiente para a reprovação do ato criminoso. Vale dizer que na aplicação da pena o Estado assume o papel de verdadeiro pai disciplinador, que castigará seus filhos na medida em que mereçam ser castigados, mas sem perder a finalidade educativa da pena, pois o bom pai somente castiga o filho para que ele aprenda a respeitar os valores e não volte a transgredi-los; vale dizer que o filho deve saber por que está sendo castigado e o castigo reprova, na medida em que subtrai algum direito do castigado; é a conseqüência jurídica pela violação do bem jurídico4. Por outro lado, o Direito Penal também é garantidor dos direitos fundamentais da pessoa humana, em relação ao próprio Estado, quando seus agentes atuam na sua aplicação, agindo contra qualquer forma de discriminação, opressão, desigualdade, violência ou supressão de direitos que não estejam previamente previstos e autorizados pela lei e aplicados pela autoridade competente. Daí a importância de se adotarem princípios que resguardam o cidadão contra o abuso e o arbítrio Estatal. Assim é que o garantismo penal adota os seguintes princípios, segundo Luigi Ferrajoli (2002, p. 75): 1)- princípio da retributividade ou da conseqüencialidade da pena em relação ao delito; 2)- princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3)- princípio da necessidade ou da economia do direito penal; 4)- princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; 5)- princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; 6)- princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; 7)- princípio da jurisdicionariedade, também no sentido lato ou no sentido estrito; 8)- princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9)- princípio do ônus da prova ou da verificação; 10)- princípio do contraditório ou da defesa ou da falseabilidade. Segundo Márcia Dometila Lima de Carvalho (1992, p. 64): A Constituição de 1988, fundamentando o Estado Democrático de Direito, por ela criado, na dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), teria necessariamente, de contemplar, como corolário dessa dignidade, o princípio da culpabilidade (inciso LVII do artigo 5º), ao qual se conexionam princípios outros, como o da presunção da inocência, o da individualização da pena, enfim, todo aquele feixe de princípios que materializam aqueloutro ‘do devido processo legal’. A natureza de princípio de direito justo, concedida ao princípio da culpabilidade, decorre de que: a)- fundamentando a pena, fornece-lhe caráter retributivo, simultaneamente demonstrando a face ética do Direito Penal, que assim tem, como centro de seu sistema, o homem, cuja responsabilidade provém de sua dignidade de pessoa, capaz, por isso mesmo, de sofrer reprovabilidade: b)- limitando a pena, proíbe, ao Estado, o abuso da sanção punitiva, quando da 4 Perda da liberdade; obrigação de prestar serviços à comunidade; perda de bens ou valores; pagamento de multa ou importância em dinheiro ou prestação de outra natureza; limitação de fim de semana; interdição temporária de direitos. 17 satisfação da preocupação criminal, numa visão utilitarista de instrumentalização do homem para satisfação do bem comum. Diz ainda a mesma autora (1992, p. 69): O Estado Democrático de Direito está a serviço do homem concreto. A realidade deste homem, condicionado por suas circunstâncias econômico-sociais, não dispensa a concreção da culpabilidade na dependência, também, dessas circunstâncias sociais. Em termos da culpabilidade, intenta-se penetrar no que realmente ocorre quando se trata um homem como delinqüente, não só do ponto de vista de interesses abstratos do conhecimento, isto é, da dogmática, ou mesmo tendo em vista a perfeição do processo de direção social, mas, também tendo em vista a responsabilidade social para com aquele que sofrerá o peso da sanção jurídico-penal. Acontece que a realidade demonstra que o Direito Penal possui um efeito perverso, que seria o uso deste mecanismo de força Estatal, de forma mais rigorosa, ou seja, acima do necessário, porque a justiça penal reside na justa equação entre suficiência e necessidade da pena, para que surta os efeitos de prevenção e reprovação do delito. O uso desnecessário desta força Estatal se faz justamente contra aquela população marginalizada (periférica), que já sofreu todo tipo de exploração ao longo dos tempos e que não tem acesso aos bens de consumo da vida moderna; não visa à recuperação, regeneração ou reeducação, mas sim, é uma forma de segregação, separação, isolamento ou confinamento, por meio da pena de prisão, sob o argumento de que a sociedade precisa de segurança e não pode ficar à mercê de tais indivíduos que representam uma ameaça constante aos direitos dos mais favorecidos. Isto parece representar o medo anterior ao delito, mas, na verdade, visa assegurar ao grupo social dominante a monopolização do uso dos bens de consumo e das oportunidades materiais. A construção ideológica neste sentido é tão forte que os próprios integrantes da classe pobre pedem uma atuação rigorosa do Direito Penal, obviamente porque sentem mais insegurança no seu dia-a-dia, do que os ricos, que moram em condomínios fechados ou prédios de apartamentos com segurança 24 horas, por isso, os pobres, depositam na força do Direito Penal total credibilidade, como o único remédio para a sua proteção contra os que representam a sua insegurança, e a única medida que se apresenta adequada, na visão destes, é a segregação (prisão) do violador da ordem, por um longo tempo, o que vem de encontro com a ideologia da classe dominante. Conseqüentemente, aumenta-se o número de presídios, o número de condenações e a quantidade da pena privativa de liberdade, em especial nos crimes contra o patrimônio, o que acarreta gastos elevados para o Estado, que deixa de aplicar aqueles 18 recursos, na educação, na profissionalização dos jovens e na área social, através dos programas assistenciais. Em artigo publicado no jornal “Folha de São Paulo”, o advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (2005, p. 3) advertiu que: O chamado homem mediátrico perdeu o poder de crítica. Recebe as imagens que atingem seus sentimentos e suas emoções sem passá-las pela razão, o que é divulgado é tido como verdade. Na realidade, está ele perdendo a sua individualidade, segundo anota Ortega y Gasset. Faz parte do todo. Pensa como todos. E poucos pensam nos projetos coletivos. Cada qual procura seus interesses imediatos ligados ao conforto e ao bem-estar. O sonho e a utopia estão rareando. Há uma propagação persistente, diria até obstinada, da ideologia da repressão como o instrumento único de combate ao crime. Entenda-se como repressão os mecanismos retributivos utilizados em face do cometimento do delito. Essa cultura repressiva vem acompanhada da divulgação, pelos meios que mais atingem a massa – filmes e novelas -, da violência como único meio de reação às frustrações e decepções que a vida oferece. Assim, de um lado, o estímulo ao crime, e, de outro, ao castigo. Ao clamar pelo encarceramento e por nada mais, a sociedade se esquece de que o homem preso voltará ao convívio social, cedo ou tarde. Portanto, prepará-lo para sua reinserção, se não encarado como um dever social e humanitário, deveria ser visto, pelo menos, pela ótica da autopreservação. Com efeito, sem apoio durante o cumprimento da pena e abandonado ao sair do presídio, sua tendência quase inexorável será a volta à delinqüência. Tal realidade já pode ser observada nos Estados Unidos da América, conforme relata Loïc Wacquant (2002, p. 49), no seu livro “Punir os Pobres – a nova gestão da miséria nos Estados Unidos”. Diz o autor que hoje a América emprega dez vezes mais dinheiro na “indústria da repressão criminal” do que no apoio aos cidadãos deserdados, e tudo indica que esta defasagem vai continuar a crescer e a prisão ocupa uma posição central que se traduz pela colocação sob tutela severa e minuciosa dos grupos relegados às regiões inferiores do espaço social estadunidense. Desenha-se assim a figura de uma formação política de um tipo novo, espécie de “Estado centauro”, cabeça liberal sobre corpo autoritário, que aplica a doutrina do “laissez-faire, laissez passer” ao tratar das desigualdades sociais, mas que se revela brutalmente paternalista e punitivo quando se trata de assumir as conseqüências. Loïc Wacquant (2002, p. 82) informa que: É verdade que, entre a penitenciária e a universidade, a Califórnia fez a sua escolha. Em 1979, o orçamento das prisões californianas consumia 3% dos recursos públicos e o das universidades, jóia e orgulho do estado, ultrapassava alegremente os 18%. Até 1984 estas cifras foram cortadas para 6 e 10% respectivamente. Dês anos mais tarde, os gastos carcerários igualavam, em seguida ultrapassavam pela primeira vez os da educação superior com 8% (center for Juvenile and Criminal Justice, 1994). Durante esta década, o estado californiano inaugurou apenas um campus universitário, a despeito do crescimento sensível da população estudantil, enquanto erguia 19 novos estabelecimentos de detenção – os documentos preparatórios à votação da lei ‘Three strikes and you’re out’ de 1994 preconizavam até mesmo a abertura de 34 19 prisões para o período de 1995-2000, ou seja, três vezes mais do que aquelas com que o estado contava em 1984. Um levantamento realizado pelo Departamento de Justiça constatou que os EUA é o país com o maior número de presos do mundo, atingindo uma população de mais de sete milhões de pessoas que estão detidas ou em liberdade condicional. Este recorde equivale a proporção de um preso para cada 32 adultos. Deste total de presos, pelo menos 2,2 milhões estão encarcerados. O centro Internacional para Estudos Carcerários do King's College, de Londres, revelou que os EUA estão em primeiro lugar, enquanto que a China vem em segundo, com uma população carcerária de 1,5 milhão de pessoas. A Rússia está em terceiro com 870 mil. No que diz respeito somente ao encarceramento, os EUA se mantém no topo da lista: 737 detidos para cada 100 mil pessoas. Em geral, nos países imperialistas, esta taxa corresponde a 100 prisioneiros para cada 100 mil. Os números comprovam e desmascaram a falsa campanha de que os EUA são o país da democracia e da liberdade (OPRESSÃO..., 2006, on-line). Wacquant (2002, p. 100) faz com muita precisão o paralelo entre a prisão e o gueto: [...] uma comparação histórico-analítica entre o gueto e a prisão pode ajudar a esclarecer as propriedades de um e de outro. Pois essas duas organizações pertencem claramente a uma mesma classe, a saber, as instituições de confinamento forçado: o gueto é um modo de ‘prisão social’, enquanto a prisão funciona à maneira de um ‘gueto judiciário’. Todos os dois têm por missão confinar uma população estigmatizada de maneira a neutralizar a ameaça material e/ou simbólica que ela faz pesar sobre a sociedade da qual foi extirpada. É por esta razão que o gueto e a prisão tendem a desenvolver padrões relacionais e formas culturais que ostentam espantosas similaridades, merecedoras de um estudo sistemático em contextos históricos e nacionais diversos’[...] ‘uma casa de detenção ou de pena é certamente um espaço à parte que serve para conter sob coação uma população legalmente estigmatizada, no seio da qual esta população desenvolve instituições, uma cultura e uma identidade desonrada que lhe são específicas. A prisão também é, portanto, composta por estes quatro elementos fundamentais que formam um gueto - estigma, coação, confinamento territorial e paralelismo institucional – e isso por objetivos similares. Assim, da mesma forma como o gueto protege os habitantes da cidade da contaminação que implica o contato físico com os corpos corrompidos mas indispensáveis de um grupo pária, à maneira de um ‘preservativo urbano’ – segundo a significativa expressão de Richard Sennett (1994:237) em sua descrição do “medo de tocar” na Veneza do Século XVI – assim também a prisão limpa o corpo social da infâmia temporária que lhe é infligida por aqueles entre seus membros que cometeram um crime, isto é, segundo Emile Durkheim, os indivíduos que atentaram contra a integridade sócio-moral da coletividade infringindo ‘estados fortes e determinados da consciência coletiva’. Pelo que se observa, o Brasil tem seguido o caminho da “indústria da prisão” como forma de “gueto” ou segregação. Edison Miguel da Silva Júnior (2005, p. 1) anota que: 20 Se o Sistema Penal fosse avaliado por critérios da iniciativa privada ele seria uma indústria de sucesso. Explico, o produto dessa indústria é a prisão, pois assim combate o crime: ‘quanto mais prisões, menos crimes’. O sistema, dividido em setores como nas linhas de montagem, está voltado para a prisão de criminosos, portanto o resultado da sua produção deve ser medido pelo número de pessoas presas. Sucesso total. O balanço da última década indica que a indústria da prisão está em ótima fase, recomendando-se aos acionistas (a população que paga impostos) que continuem investindo na prisão. Vamos aos números. Em 1995, a população carcerária do Brasil era de 149 mil presos, com taxa de encarceramento de 95,5 por 100 mil habitantes; em abril de 2002, chegou-se a 235 mil, taxa de encarceramento de 138. Agora, em agosto de 2003, a população carcerária do Brasil sofreu uma explosão e bateu recorde, chegando a 301.851 pessoas. As projeções indicam que até o final do ano atingiremos a marca histórica de 350 mil pessoas presas... Só existe um problema com o produto dessa indústria: sua propaganda é enganosa. A equação ‘quanto mais prisões, menos crimes’, anunciada pelo Sistema Penal, não se verifica na realidade. Apesar do crescente aumento da população carcerária, observado na última década, a violência aumentou. Esta situação reclama a abordagem do tema da igualdade, como fundamento do Direito Penal, no Estado Democrático e Social de Direito, visando a uma atuação mínima e subsidiária, de forma a não promover as desigualdades materiais, e sim, promover a inclusão social e a educação da pessoa humana. Os tipos penais devem ser criados pela lei, seguindo sempre um critério objetivo de escala de valores, punindo-se com maior severidade as condutas que ofendam os valores mais importantes e com menos severidade as condutas que ofendam os valores menos importantes: é o que se denomina de princípio da proporcionalidade da pena. Atualmente, aplicam-se tipos penais criados em 1940 e outros criados por leis especiais que foram sendo editadas, sem muita técnica legislativa e com algumas imperfeições no que diz respeito ao princípio da igualdade. Podem-se apontar alguns exemplos de incoerências e imperfeições que ferem o princípio da igualdade na legislação vigente: 1- a punição do ócio, simplesmente porque a pessoa esteja apta para o trabalho e não tenha rendas para garantir sua subsistência (artigo 59 da Lei das Contravenções Penais). Vale dizer que o pobre não pode dedicar-se ao ócio, ao passo que o rico pode, já que este estaria se mantendo com suas rendas. 2- O crime de roubo, quando praticado por dois ou mais indivíduos, aumenta- se a pena de 1/3 até 1/2, mas, no furto, quando praticado por dois ou mais indivíduos, a pena dobra em relação ao furto simples. Portanto, no furto, o legislador dobrou a pena e, no roubo, aumentou de um terço até metade, sem indicar o critério razoável para tal diferenciação. 21 3- Puniu-se a lesão corporal gravíssima, que é aquela que resulta em incapacidade permanente para o trabalho; enfermidade incurável; perda ou inutilização de membro sentido ou função; deformidade permanente; ou aborto, com pena de 2 a 8 anos e ao mesmo tempo, pune-se o furto qualificado, que pode ser o furto de um objeto de pequeno valor praticado por dois indivíduos, com a mesma pena. A falsificação de moeda é punida com pena de 3 a 12 anos, o que demonstra maior proteção ou valorização do patrimônio e dos bens do Estado, do que à integridade física da pessoa humana. 4- A lei dos crimes Hediondos5 definiu quais seriam os crimes hediondos e que estariam submetidos aos rigores daquela lei, mas deixou de classificar como hediondo o homicídio qualificado; valorizou a saúde pública, incluindo o tráfico de drogas; a liberdade sexual, incluindo o estupro e o atentado violento ao pudor, em detrimento da vida, que é o principal bem jurídico da pessoa humana. O erro foi corrigido em 1994, pela Lei 8.930, 06.09.1994, após reivindicação popular. 5- O Código Trânsito Brasileiro6 tipificou o homicídio culposo no trânsito, com uma pena de 2 a 4 anos de detenção, e no Código Penal ainda se mantém o homicídio culposo com pena de 1 a 3 anos de detenção. Com isso, podem surgir situações incompatíveis, tais como: o atropelamento de alguém por uma motocicleta que causa a morte da vítima, imporá ao agente uma pena de 2 a 4 anos de detenção, mas se a vítima for atropelada por uma bicicleta, então o agente estará sujeito a uma pena de 1 a 3 anos. O mesmo se diga em relação à lesão corporal culposa no trânsito e a lesão corporal dolosa leve, prevista no Código Penal, já que esta ficou com a pena inferior (de 3 meses a 1 ano de detenção) àquela (de 6 meses a 2 anos de detenção). 5- O Estatuto do idoso7 criou tipos penais visando à proteção do mesmo, mas, ao invés de aumentar o rigor da punição, porque se trata de protegê-lo, acabou abrandando a situação de quem pratica crimes contra o idoso, porque pune o abandono material do mesmo, com pena de 6 meses a 3 anos, e ainda autorizou a aplicação do procedimento previsto na Lei 9099/95, que prevê a transação penal, se a pena prevista não ultrapassar 4 anos; ao passo que o Código Penal, no seu artigo 244, punia o abandono material do ascendente inválido ou valetudinário, com pena de 1 a 4 anos de detenção, sem direito à transação penal. 5 Lei n. 8.072, de 25.07.1990. 6 Lei n. 9.503, de 23.09.1997. 7 Lei n. 10.741, de 1º.10.2003. 22 7- O novo estatuto do desarmamento8 elevou as penas do porte ilegal de arma e vetou a concessão de liberdade provisória, em relação aos crimes tipificados nos artigos 16, 17 e 18 da referida lei, criando assim, uma situação em que a lei pune com maior rigor um crime de perigo do que o crime de dano, como acontece com a lesão corporal gravíssima. Como se vê, são algumas imperfeições que ferem o princípio da igualdade e o seu princípio corolário que é o da proporcionalidade da pena. 8 Lei n. 10.826, de 22.12.2003. 23 CAPÍTULO 1 IDEOLOGIA E DIREITO Ao realizar uma pesquisa científica sobre a igualdade no Direito Penal, em especial, sobre a igualdade material e sobre os valores mais importantes para a sociedade, que merecem a tutela penal, é imperioso abordar inicialmente a questão da ideologia no Direito, porque é sabido que o conhecimento científico busca conhecer a realidade e a verdade das coisas, mas estas, no campo das ciências sociais e jurídicas, no mais das vezes, podem estar ocultas pelas ideologias. Por esta razão, a teoria crítica enfatiza que o papel da ideologia, no Direito, é de manutenção do status quo vigente, o que implica, quase sempre, em ocultar a realidade e contribuir para a manutenção das desigualdades, da pobreza, da marginalização e da estigmatização, exercendo o Direito importante papel na manutenção da ordem social e se caracterizando como o mais eficiente meio de controle das condutas individuais (COELHO, 2003, p. 349). Segundo a concepção marxista, o grande instrumento do Estado é o Direito. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou seja, como “Estado de Direito”, mas o papel do Direito ou das leis é o de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal e por ser legal e não-violenta deve ser aceita. Com isso, a lei é direito para o dominante e dever para o dominado. A função da ideologia consiste em fazer com que o legal apareça para os homens como legítimo, isto é, como justo e bom. (CHAUÍ, 2001, p. 82-83). Não é conveniente, nos limites desta pesquisa, discorrer sobre os diferentes tipos de ideologia e os diferentes significados do termo “ideologia”. Relacionada inicialmente com o estudo das idéias, criada pelo filósofo francês Destutt de Tracy (1754- 1826) para quem a Ciência das Idéias seria o verdadeiro fundamento para todas as demais ciências, que deveria investigar e descrever a forma pela qual os pensamentos se constituem (CRESPIGNY, 1981, p. 6), passou a ser tida, logo depois, como o conjunto de idéias duma pessoa ou grupo e mais tarde descobriu-se que a imagem mental não correspondia exatamente à realidade das coisas devido às deformações do raciocínio decorrentes de vários condicionamentos, em especial, os sociais, o que pode afetar as premissas e as conclusões a que chegam os cientistas (LYRA FILHO, 2005, p.14). Segundo Lyra Filho (2005, p. 16-17), a ideologia é uma crença falsa, uma “evidência” não refletida que produz uma deformação inconsciente da realidade, mas não 24 se trata de má-fé, porque, conforme esclareceram Marx e Engels, a má-fé pressupõe uma distorção consciente e voluntária e a ideologia é a cegueira parcial da inteligência entorpecida pela propaganda dos que a forjaram. Segundo Chauí (2001, p. 108), a ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta), que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Segundo Macridis (1982, p. 20), uma ideologia consiste em um conjunto de idéias e crenças, através das quais se percebe o mundo exterior e atua-se sobre essa informação. É um meio através do qual tenta-se apreender e compreender o mundo. É orientada para a ação, porque são idéias compartilhadas por muitas pessoas que agem juntas e assim são influenciadas de forma a alcançar os fins postulados. A ideologia não se forma a partir do indivíduo. Não há deliberação de foro íntimo, isenta de interferências, que desencadeie um processo ideológico (ANDRADE, 1993, p. 20). A ideologia é um fato social, exterior, anterior e superior aos indivíduos (LYRA FILHO, 2005, p. 19). A ideologia é articulada e adquirida dentro das práticas de instituições como a igreja, a escola, a família e o partido político. Em vez de ser primordialmente uma formulação consciente, ela funciona com um verdadeiro inconsciente, determinando tipos de comportamentos e hábitos, é orgânica, organiza os homens e reproduz relações sociais (CRESPIGNY, 1981, p. 8). Não há uma única ideologia acontecendo e sendo reproduzida. Existem várias, que se somam, se inter-relacionam, chocam-se; interferem reciprocamente, negam-se e se assimilam (ANDRADE, 1993, p. 21). As ideologias tratam elas próprias de valores: a qualidade de vida, a distribuição de bens e de serviços, a liberdade e igualdade. Se houvesse acordo sobre cada uma e sobre todas as coisas, só haveria uma única ideologia compartilhada por todos, mas como não há acordo dentro de qualquer sociedade, porque as pessoas têm opiniões diferentes, as nações projetam valores e crenças diferentes (MACRIDIS, 1982, p. 25). Na concepção marxista, a forma inicial da consciência é a alienação. Os homens não se percebem como produtores, transformadores e inventores, julgam que há um alienus, um Outro (deus, natureza, chefes) que definiu suas vidas e a forma social em 25 que vivem; por isso se submetem ao poder, e com isso as idéias serão tomadas como anteriores à práxis, superiores e exteriores a ela como um poder espiritual autônomo que comanda a ação material dos homens (CHAUÍ, 2001, p. 62). Práxis é a atividade própria dos homens livres, dotados de razão e de vontade para deliberar e escolher uma ação. Na práxis, o agente, a ação e a finalidade são idênticos e dependem apenas da força interior ou mental daquele que age. (CHAUÍ, 2001, p. 11). Crespigny (1981, p. 7) aponta três interpretações diferentes da ideologia na concepção marxista: 1)- ideologia como falsa consciência; 2)- ideologia como reflexo da infra-estrutura econômica; 3)- ideologia como parte orgânica e necessária de todas as sociedades. Mesmo aquele indivíduo que descobre o funcionamento do sistema e tenta sair ileso, em busca da “neutralidade”, acaba levando consigo uma carga ideológica porque o oposto da ideologia não é a verdade, mas é outra ideologia. Ver a ideologia como mácula de conhecimentos não os deixa puros, mas os elimina (MACEDO, 1986, p. 98 apud ANDRADE, 1993, p. 23). Daí porque a propalada neutralidade do cientista do Direito, feita por Hans Kelsen (1934), com sua Teoria Pura do Direito, nada mais é do que outra ideologia, que idealiza e formaliza o direito, impedindo o conhecimento da realidade social. A ideologia cumpre funções de envolvimento emocional, de unificação de esforços, de ocultamento de interesses, de projeção para o futuro, de auto-identificação do indivíduo ou de grupos, de comprometimento com idéias e apoio a propósitos, de padronização de conceitos, desencadeamento de ações (ANDRADE, 1993, p. 23). Wolkmer (2000, p. 104-105) cita as características da ideologia: 1)- a ideologia surge em condições de crise, durante períodos de profunda tensão; 2)- os indivíduos estão ligados à ideologia pelos transmissores de massa; tais como: partidos políticos, grupos de interesses e meios de comunicação; 3)- a ideologia é um padrão sistemático de pensamento político: idéias que oferecem uma explicação e uma visão de mundo; 4)- a ideologia é autônoma e auto-suficiente porque gira em torno de algumas premissas básicas, contendo regras próprias de mudança e desenvolvimento; 5)- a ideologia é abstrata, ou seja, não é um retrato da realidade; 6)- a ideologia tende a ser exclusiva, absoluta e universal porque sua intenção é incorporar as idéias que representam os verdadeiros princípios do progresso e da justiça; 7)- a ideologia é um argumento persuasivo, gera emoção e sustenta a crença e a ação; 8)- a ideologia é milenária, prometendo um mundo melhor; 9)- a ideologia tende a ser excessiva, é algo que muito mais se deseja do que se espera ver realizado; 10) a 26 ideologia é personalizada e escrituralizada, mediante documentos sagrados, apresentando- se através de líderes carismáticos, heróis e mártires; 11)- a ideologia é programática pois envolve estratégias de ação que alteram significativamente as metas e os ordenamentos da sociedade; 12)- a ideologia experimenta desenvolvimento, mas é resistente a mudanças no grupo social; 13)- a ideologia está entrelaçada com movimentos políticos onde são disseminadas e executadas. Segundo Macridis (1982, p. 20-21) o que separa a teoria e a filosofia da ideologia é que, enquanto as duas primeiras envolvem contemplação, organização de idéias e, sempre que possível, demonstração, a ideologia incita o povo à ação. A ideologia molda crenças que põem o povo em ação. Homens e mulheres se organizam para “impor” certas filosofias ou teorias e para levá-las a efeito numa maneira prática. A ideologia implica ação e esforço coletivos. Macridis (1982, p. 22-25) informa que uma ideologia é um conjunto de idéias sustentadas por um grupo de pessoas: ela enuncia o que tem ou não valor; o que precisa ser mantido ou mudado; ela molda as atitudes daqueles que a apóiam. As ideologias não precisam ser racionais, porque geralmente são imunes a provas ou argumentos empíricos. Em contraste com a teoria e a filosofia, que se preocupam com o conhecimento e a compreensão, as ideologias estão relacionadas ao comportamento e à ação político-sociais. As funções sociais da ideologia são: 1)- solidariedade e mobilização, porque define o que é comum e o que é estranho aos membros; 2)- organização, porque proporciona uma percepção comum dos objetivos e dos meios necessários para a sua consecução, dando aos seus defensores um objetivo comum e os encoraja a executar as tarefas objetivadas; 3)- expressão, porque proporciona um veículo para que seus defensores possam expressar os desejos, interesses, esperanças e até impulsos e ansiedades pessoais; 4)- manipulação, porque pode prometer a paz e fazer a guerra; a liberdade e estabelecer um sistema autoritário; o socialismo, mas consolidar a posição e os privilégios dos proprietários; 5)- comunicação, porque a ideologia simplifica a comunicação e torna mais fácil o esforço comum para aqueles que a aceitam; e 6)- afeto, porque proporciona uma ligação emocional entre as pessoas do grupo, que passam a ter orgulho de suas idéias e são orgulhosas de cada um e de todas que as compartilham e se ajudam mutuamente na busca comum de realização. Uma pessoa cuja ideologia é compartilhada por um grupo de pessoas provavelmente será feliz e segura, deleitando-se com a intimidade do esforço comum. Ao identificar-se com ele, a pessoa nunca se sente só. 27 Apesar da realidade da massificação, ela seria relativa, porque não atingiria o âmago da individualidade, bem mais próximo do indivíduo, com características próprias e marcantes, estariam a família, os amigos, o clube, a igreja, o sindicato, a escola, que consolidam crenças com maior eficácia, à medida que gozam de mais e melhor reputação social. Com isso, os valores hegemônicos são derramados sobre cada um desses grupos, e eles fazem, conscientes ou não, pouco importa, a linha de frente dos modos de se comportar, desejados pelos poderosos. Exatamente aí se dão as práticas de rituais que erigem ou confirmam valores (ANDRADE, 1993, p. 28). A ideologia não é um erro, nem sequer uma mácula do conhecimento (MACEDO, 1986, p. 98 apud ANDRADE, 1993, p. 22); pode ser abrigo que proporciona companheirismo, cooperação e realização (MACRIDIS, 1982, p. 28). Lyra Filho (2005, p. 22) adverte que a libertação dos condicionamentos ideológicos faz florescer uma conscientização, que é favorecida, em seu impulso crítico, pelas crises que manifestam as contradições da estrutura social, onde primeiro surgiram as crenças, agora contestadas ou de contestação viável; desde que não se esteja acomodado com a alienação, o grau de consciência depende do engajamento numa “práxis”, numa participação ativa conseqüente. O ser humano é dotado de livre arbítrio, que compreende a de liberdade de escolha e a tomada de decisões. A ideologia age justamente sobre essa liberdade de escolha, fazendo com que as escolhas não sejam tão livres assim, condiciona as pessoas a tomarem esta ou aquela decisão, não porque representam “a escolha”, mas porque interessam a determinados grupos ou interesses. O homem livre é um ser universal (sempre existiu e sempre existirá) que se caracteriza pela união de um corpo mecânico e de uma vontade finalista (CHAUÍ, 2001, p.16). O melhor exemplo da força ideológica é o “marketing” que virou símbolo de convencimento ilusório. Qualquer empresário sabe que o seu negócio somente será bem sucedido se realizar um bom “marketing”, que é a venda “das qualidades” do produto, que, no mais das vezes, implica associá-lo com a idéia de liberdade, sucesso, conquista, poder, independência, vantagem etc. Vale recordar as antigas propagandas de cigarros que associaram adequadamente o seu consumo a estas idéias, influenciando principalmente os membros mais jovens da sociedade. Na política, acontece algo semelhante, porque os candidatos procuram associar a imagem pessoal com ideais de liberdade, igualdade, segurança pública, competência 28 administrativa, honestidade, bom senso, caridade... Acontece que muitas vezes tais imagens são “fabricadas” pelas equipes de “marketing” e não condizem com a “práxis” do candidato. Com isto, o eleitor acaba sendo induzido a fazer a escolha do seu candidato, movido pela aparência física, pela colocação de certas palavras em momentos certos, pelos gestos ensaiados, pela postura ao falar, em detrimento de propostas concretas e projetos de construção de um futuro melhor, com demonstração efetiva de resultados em administrações anteriores. Além disso, para ser candidato é preciso disponibilizar grande soma em dinheiro e de abertura em partido político. Os partidos políticos já possuem seus “caciques”, que são os verdadeiros donos do poder, na democracia representativa, vivenciada no Brasil. O primeiro filtro da liberdade de escolha do eleitorado é justamente a escolha do candidato pelo partido político e esta escolha nem sempre estará motivada pela busca do desenvolvimento social, pela erradicação da pobreza, pela diminuição das desigualdades e para promover o bem de todos. A idéia motivadora é a conservação do poder, que implica necessariamente em auferir recursos suficientes para futuras campanhas eleitorais, popularmente conhecidos como “caixa dois de campanha”. O financiamento das campanhas é o verdadeiro “calcanhar de Aquiles” da democracia representativa, porque grande parte dos candidatos chega a gastar na campanha mais do que ele irá receber durante todo o mandato com o salário. Com isso, a política se torna, a rigor, para o cidadão honesto e verdadeiramente comprometido com o povo um mau negócio. Além disso, o financiamento das campanhas está permeado de acordos e compromissos com os financiadores das campanhas que fazem parte da elite, que não reclama por mudanças econômicas, mas somente por segurança pública e respeito às “liberdades”. Assim, surge a relação entre a ideologia e o Direito, porque aquela visa manter o status quo vigente, já que assim interessa aos donos do poder e à elite, e o Direito cria os sistemas ilusórios de proteção, resguardo da liberdade e igualdade de todos, perante a lei. Neste aspecto o positivismo-normativista contribuiu de maneira relevante para a criação de tais ilusões, baseando-se na ideologia da “ordem social” tal como preconiza a Bandeira Nacional na frase “ordem e progresso”. A paz social nada mais é do que a ordem estabelecida que beneficia alguns, em detrimento de outros (LYRA FILHO, 2005, p. 37). O Direito não é visto como mecanismo de mudança social, como instrumento de transformação social, mas sim, como instrumento a serviço da ordem e da segurança. Por isso, é preciso repensar o papel do Direito, à luz das normas programáticas 29 estabelecidas pela Constituição Federal, porque são elas que irão conferir legitimidade ao Direito aplicado e não se pode ficar esperando que sejam regulamentadas, porque a ausência de regulamentação é uma estratégia ideológica para não serem aplicadas. Em momento algum, a Constituição Federal declarou que cabe ao Direito única e exclusivamente manter a ordem social. Pelo contrário, a Constituição Federal reconheceu que o Brasil é um país de desigualdades sociais, de pobreza, de marginalização e por isto a República Federativa do Brasil tem como objetivos fundamentais a redução das desigualdades e a erradicação da pobreza e da marginalização. 1.1 Uso Ideológico do Termo “Igualdade” Segundo a concepção marxista, a ideologia burguesa, através dos seus intelectuais, produz idéias que faz com os homens creiam que são desiguais por natureza e por talentos, ou que são desiguais por desejo próprio, isto é, os que honestamente trabalham enriquecem, e os preguiçosos empobrecem; que possuem iguais chances de melhorar, ocultando assim que os que trabalham não são senhores de seu trabalho e que as chances de melhorar não dependem deles, mas de quem possui os meios e as condições de trabalho. Faz com que creiam que são desiguais por natureza e pelas condições sociais, mas que são iguais perante a lei e perante o Estado, escondendo que a lei foi feita pelos dominantes e que o Estado é instrumento dos dominantes (CHAUÍ, 2001, p. 73). A concepção marxista também acrescenta que a definição de liberdade como igual direito à escolha é a idéia burguesa da liberdade e não a realidade histórico-social da liberdade (CHAUÍ, 2001, p. 82). Quando os homens admitem que são desiguais, porque Deus ou a Natureza os fez desiguais, estão tomando a desigualdade como causa de sua situação social e não como produto das relações sociais e, portanto, por eles próprios, sem que o desejassem e sem que o soubessem (CHAUÍ, 2001, p. 94). A igualdade no Direito está fundamentada na expressão legal de que “todos são iguais perante a lei”; por isso, seria inconstitucional criar um discrimen na lei que não estivesse sustentado por uma correlação lógica; a lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajoso, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de indivíduos, se não houver adequação racional entre o 30 elemento diferencial e o regime dispensado aos que se inserem na categoria diferenciada. Não pode haver discriminação gratuita ou fortuita, pois deve haver uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo (MELLO, 1994, p. 37-40). O princípio da igualdade proíbe o arbítrio, as diferenciações de tratamento sem fundamento material, quer dizer, sem justificação razoável, segundo os critérios de valor objetivo constitucionalmente relevantes. Proíbe as diferenciações fundadas em categorias meramente subjetivas (CANOTILHO, 1989, p. 577 apud LOPES, 1999, p. 279). Por mais que se busque a igualdade formal, a realidade demonstra que materialmente os indivíduos são diferentes, o que gera em última análise um tratamento injusto por parte da lei que não considera tais diferenças, porque a isonomia consiste em tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam. Vale dizer que o princípio da igualdade não proíbe que a lei estabeleça distinções. A ideologia que se estabelece é no sentido de que o Direito não promove desigualdades, mas a realidade demonstra o contrário, especialmente o Direito Penal que é o direito da desigual proteção de bens jurídicos e da desigual distribuição social da criminalização. A seleção legal de bens e comportamentos lesivos institui desigualdades simétricas: de um lado, garante privilégios das classes superiores, com a proteção de seus interesses e imunização de seus comportamentos lesivos, ligados à acumulação capitalista; de outro, promove a criminalização das classes inferiores, selecionando comportamentos próprios desses seguimentos sociais em tipos penais (BARATTA, 2002, p. 15). Diante da desigualdade material surge o discurso da ideologia da competência que é no sentido de que só há felicidade na competição e no sucesso de quem vence a competição (CHAUÍ, 2001, p. 107), estabelecendo, assim, os valores da competição, da vitória, do sucesso, como sinônimos de felicidade. Segundo Chauí (2001, p. 109), a função da ideologia é de apagar as diferenças como as de classes e fornecer aos membros da sociedade o sentimento de identidade social, com referenciais de todos e para todos como: a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação ou o Estado. A igualdade deve ser considerada como valor supremo para uma convivência ordenada, feliz e civilizada. É um valor perene para o homem como ente pertencente a uma determinada classe, que é a humanidade. E o que faz da igualdade uma meta humanamente desejável é o fato de ser justa (BOBBIO, 2000, p. 12-15). 31 Segundo Bobbio (2000, p. 24), já que os homens não podem ser iguais em tudo, então devem ser considerados iguais e tratados como iguais, em relação àquelas qualidades que, segundo as diversas concepções do homem e da sociedade, constituem a essência do homem ou da natureza humana, enquanto distinta da natureza dos outros seres, tais como o livre uso da razão, a capacidade jurídica, a capacidade de possuir dignidade social ou mais sucintamente, a dignidade (como reza o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem). Assinala ainda que o princípio “cada um segundo a necessidade” é o mais igualitário de todos os princípios, porque considera que os homens são mais iguais (ou menos diversos) em relação às necessidades do que, por exemplo, em relação às capacidades (BOBBIO, 2000, p. 34). Bobbio (2000, p. 42) aponta as diferenças entre o Liberalismo e o Igualitarismo, dizendo que aquele é individualista, conflitante e pluralista; ao passo que o Igualitarismo é totalizante, harmônico e monista. Naquele o Estado deve ser limitado e garantista e neste deve ser intervencionista e dirigista. Para melhor orientar os objetivos desta pesquisa, é importante assinalar que a igualdade reflete-se no Direito Penal em três momentos: na elaboração das leis; na aplicação das penas e na execução das penas. 1.2 Uso Ideológico do Termo “Justiça” O termo “justiça” é ambíguo, prestando-se a inúmeros usos para casos, situações e estados semelhantes, aproximados, porém não idênticos. Saber o que é justo não é tarefa fácil, mas o saber o que é injusto é mais fácil, porque passa pelos sentidos. Portanto, o homem injusto é ora aquele que não respeita a igualdade, ora aquele que não respeita a lei, ora aquele que toma em excesso aquilo que é bom em sentido absoluto e relativo (BITTAR, 2001, p. 88). Segundo Aristóteles, a Justiça total consiste na observância da lei, no respeito àquilo que é legítimo e que vige para o bem de todos. Nesta perspectiva tudo que é legítimo é justo. O justo total é a observância do corpo legislativo como regra social de caráter vinculativo. O hábito humano de conformar as ações ao conteúdo da lei é a própria realização da justiça nesta acepção; justiça e legalidade são uma e a mesma coisa. Para 32 Aristóteles, a Justiça é a maior das virtudes, ressaltando o caráter de sociabilidade inerente à mesma (BITTAR, 2001, p. 89-91). A justiça é algo que se refere sempre ao outro (alteridade), é sempre um laço entre um homem e outros homens; a rigor, ninguém poderá ser justo para consigo mesmo (BETIOLI, 2000, p. 446). Segundo Santo Tomás de Aquino, a essência da justiça consiste em “dar a cada um o que é devido, segundo uma igualdade” (BETIOLI, 2000, p. 446). Para Miguel Reale (1987, p. 372 apud BETIOLI, 2000, p. 446) A justiça deve ser, complementarmente, subjetiva e objetiva, envolvendo em sua dialeticidade o homem e a ordem justa que ele instaura, porque esta ordem não é senão uma projeção constante da pessoa humana, valor-fonte de todos os valores no processo dialógico da história. A igualdade é elemento essencial à justiça que se estabelece pela comparação de uma coisa com outra ou pela adequação proporcional de uma coisa a determinada pessoa (BETIOLI, 2000, p. 447). Se a justiça consistir em dar a cada um o que é seu, isto pode significar dar ao pobre a pobreza, ao miserável, a miséria, ao desgraçado, a desgraça. A regra da Justiça deve ser a cada um segundo o seu trabalho, enquanto não se atinge o princípio de dar cada um, segundo a sua necessidade (LYRA FILHO, 2005, p. 21). Segundo Alf Ross (2000, p. 320), invocar a “justiça” é como dar uma pancada na mesa: uma expressão emocional. É impossível estabelecer uma discussão racional com quem apela para a “justiça” porque suas palavras são de persuasão e não argumentos. A ideologia da justiça conduz à intolerância e ao conflito porque a exigência de alguém passa a ter validade superior, de caráter absoluto e exclui todo argumento e discussão racionais que visem a um acordo. A ideologia da justiça é uma atitude militante de tipo biológico- emocional, para a qual alguém incita a si mesmo à defesa cega e implacável de certos interesses. Todas as guerras e conflitos sociais foram travados em nome da exaltada idéia de justiça. Apelar para a justiça é usar uma arma demasiadamente eficiente e conveniente do ponto de vista ideológico. É ser vítima da ilusão. Para Alf Ross (2000, p. 326), a justiça é a aplicação correta de uma norma, como coisa oposta à arbitrariedade. A justiça não pode ser um padrão jurídico-político ou um critério último para julgar uma norma. A declaração de que uma norma é injusta não contém característica real alguma, nenhuma referência a algum critério, nenhuma argumentação. A Constituição Federal ampliou direitos, visando assegurar uma justiça social. Consagrou valores e princípios, que se apresentam como essência do Estado Democrático 33 de Direito, dentre eles, a relevância da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III), a preponderância dos direitos humanos (art. 4º, inc. II), com finalidade de construir uma sociedade livre, justa e solidária, onde a pobreza e a marginalização sejam erradicadas e as desigualdades sociais diminuídas, em busca do bem-estar de todos (art. 3º) (SBARDELOTTO, 2001, p. 194). 1.3 Uso Ideológico do Termo “Princípio” O termo “princípio” é vago e reveste-se de caráter impreciso, porque o seu conteúdo é variável, de conformidade com as convicções pessoais e visão de mundo do magistrado, já que é a este que cabe dar força e vida ao princípio, no momento de concretude da norma. Segundo Miguel Reale (1987, p. 60), princípios “são verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade”. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2000, p. 450), o princípio jurídico é o mandamento nuclear de um sistema que permite a compreensão das normas, por definir a lógica e a racionalidade do sistema, conferindo-lhe um sentido harmônico. No ordenamento jurídico existem princípios explícitos e implícitos, que buscam vincular a lei ao sentimento de justiça e eqüidade. Os princípios estão na base do direito legislado e se caracterizam como orientações culturais e políticas da ordem jurídica, portanto, com conteúdo valorativo. São valores e aspirações de uma sociedade com o sistema de direito, apresentando certa conexão com a filosofia política ou com a ideologia imperante, de forma que a relação entre norma e princípio é lógico-valorativa (DINIZ, 2001, p. 460). Para o realismo jurídico norte-americano, o legislador só emite palavras que apenas entram em ação efetiva, mediante as sentenças judiciais. O Direito passa a existir somente após a decisão judicial, definindo-se como um conjunto de normas estabelecidas pelos órgãos judiciais de um certo grupo social, para determinação dos direitos subjetivos e deveres jurídicos. Portanto, o Direito efetivo é o Direito elaborado pelo Poder Judiciário (DINIZ, 2001, p. 76). 34 Segundo Jerome Frank (1949 apud DINIZ, 2001, p. 79) o Direito é uma ordem essencialmente mutável, por ter uma dimensão plástica adaptável às novas circunstâncias. O Direito não possui uma segurança estática criada para garantir velhas situações; possui uma segurança dinâmica para proteger as pessoas de novas situações, determinadas pela realidade, que, no mais das vezes, não estão previstas nas normas estabelecidas; o juiz precisa formular novas normas sob a aparência de estar interpretando as velhas, e precisa eleger princípios válidos que vão fundamentar sua sentença, sofrendo, nesta eleição, que depende de juízos valorativos, a influência de suas convicções pessoais. Jerome Frank (1949) declara ainda que a decantada certeza e segurança do direito não passam de uma ilusão, de um mito decorrente de um complexo de infância, como a criança que foge do inseguro e procura o aconchego do estável para, muitas vezes, criar o ideal de um mundo perfeito. É uma peculiar tendência do ser humano ver o mundo pelo avesso. A realidade mostra que o mundo é hostil aos desejos de paz; que o mal e o perigo andam soltos; que existem guerras, pestes, crises econômicas; que nada é como se quer: o homem foge da realidade, finge que é real o que gostaria que fosse, apegando-se a idéias de um mundo imaginário, substituindo o real pelo ideal. A certeza do direito decorre deste processo psíquico do ser humano. O Direito, na realidade, nada tem de certo, mas a sua incerteza não é um mal catastrófico, pelo contrário, constitui a sua condição de incremento da justiça e do progresso. A sociedade necessita muito mais do que certeza jurídica, de magistrados amadurecidos e autoconscientes que promovam as mudanças que a vida social requer. Portanto, o termo “princípio” pode ser a porta do sistema por onde entra toda a visão de mundo e os preconceitos do magistrado na aplicação da lei, cumprindo, consciente ou inconscientemente, a função ideológica do direito de manutenção da ordem e do status quo vigente; por outro lado, também pode ser a porta que traz a luz, a transparência e a transformação que a sociedade reclama, pois é através do princípio que o magistrado poderá humanizar a lei, conferindo-lhe aplicação racional e dando-lhe um sentido harmônico com as finalidades do Estado Social e Democrático de Direito, proclamado pela Constituição Federal de 1988. 35 1.4 Uso Ideológico do Direito Penal O Direito Penal passa por uma crise de legitimidade, porque está estruturado sobre as bases de um Estado Liberal, de cunho individualista-patrimonialista, agregado a valores e conceitos que não se coadunam com as aspirações de um Estado Democrático de Direito, fomentado por uma hermenêutica positivista-normativista que mascara a impunidade de uma macrocriminalidade que lesam valores sociais importantes, sendo instrumento da manutenção do status quo (SBARDELOTTO, 2001, p. 17-18). Legitimidade do sistema penal entende-se como a característica outorgada pela sua racionalidade, uma coerência interna do discurso jurídico-penal e o seu valor de verdade. Para ser racional é preciso ser coerente e verdadeiro (ZAFFARONI, 1991, p. 16). Segundo Baratta (2002, p. 42-44) a ideologia da defesa social está fundada nos princípios da legitimidade (o Estado está legitimado a reprimir a criminalidade); do bem e do mal (o desvio criminal é o mal e a sociedade constituída é o bem); de culpabilidade (o delito é expressão de uma atitude interior reprovável, contrária aos valores e às normas); da finalidade ou da prevenção (a pena não tem somente a função de retribuir, mas de prevenir o crime e ressocializar o criminoso); igualdade (a lei é igual para todos e a reação penal se aplica de modo igual aos autores de delitos); interesse social e do delito natural (os interesses protegidos pelo direito penal são interesses comuns a todos os cidadãos). Adverte que o conceito de defesa social parece ser, na ciência penal, a condensação dos maiores progressos realizados pelo direito penal moderno. 1.4.1 Negação da legitimidade e do princípio do bem e do mal A criminologia crítica desloca o foco de análise do fenômeno criminal, do sujeito criminalizado para o sistema penal e os processos de criminalização que dele fazem parte e, mais em geral, para todo o sistema da reação social ao desvio (BARATTA, 2002, p. 49). Nega o princípio da legitimidade e o princípio do bem e do mal porque o delito, enquanto elemento funcional, faz parte da fisiologia da vida social e não da patologia desta. Somente as formas anormais, como no caso de um crescimento excessivo da criminalidade, é que podem ser considerados como patologia. Estando dentro dos limites 36 qualitativos e quantitativos da sua função psicossocial, o delito é não só um fenômeno inevitável, embora repugnante, devido à irredutível maldade humana, mas também uma parte integrante de toda sociedade sã (BARATTA, 2002, p. 60). O crime é algo inerente à vida em sociedade, que merece especial atenção, mas não pode ser considerado uma doença social, que precisa ser extirpada, a qualquer preço, do meio social. Segundo Miguel Reale Júnior (2004, p. 10), “o crime vem a ser um fato normal da vida social, e não uma doença, pois não há sociedade em que não exista crime”. Continua o mesmo autor (2004, p. 11): Não pode haver a pretensão de se instituir, por meio do Direito Penal, uma sociedade sem crime, pois instalar-se-ia o mais tenebroso totalitarismo, o domínio dos homens pelo Grande Chefe, registrando todas as condutas em todos os momentos, uma sociedade policialesca de submissão total graças à visibilidade da vida cotidiana dos homens, razão pela qual é essencial que existam limites à interferência do controle da sociedade, pois conforme tenho repetido o preço da liberdade é o eterno delito. Vale dizer que a estrutura social não permite, na mesma medida, que todos os membros da sociedade tenham um comportamento conforme os valores e normas. Isto varia de acordo com a posição que o indivíduo ocupa na sociedade, criando uma tensão entre a estrutura social e os valores culturais, o que faz surgir diferentes tipos de respostas individuais, algumas conformistas, outras desviantes (BARATTA, 2002, p. 64). Segundo Zaffaroni (1991, p. 19): O discurso jurídico-penal não pode desentender-se do ‘ser’ e refugiar-se ou isolar-se no ‘dever ser’ porque para que esse ‘dever ser’ seja um ‘ser que ainda não é’ deve considerar o vir-a-ser possível do ser, pois, do contrário, converte-se em um ser que jamais será, isto é, num embuste. Portanto, o discurso jurídico- penal socialmente falso também é perverso: torce-se e retorce-se, tornando alucinado um exercício de poder que oculta ou perturba a percepção do verdadeiro exercício de poder. Enfim, verifica-se um sistema penal seletivo e desigual, desvinculado dos valores sociais, que foram amparados pelo Estado Democrático de Direito, o que acarreta a sua deslegitimação e o descrédito nas suas funções, bem como nas instituições incumbidas de seu trato (SBARDELOTTO, 2001, p. 193). 37 1.4.2 Negação do princípio da culpabilidade individual A negação do princípio da culpabilidade parte da teoria das subculturas criminais que nega que o delito possa ser considerado como expressão de uma atitude contrária aos valores e às normas sociais gerais; e também reconhece que existem valores e normas específicas de diversos grupos sociais (subculturas). Não existe um sistema de valores, ou “o” sistema de valores, em face do qual o indivíduo é livre para determinar-se e ser considerado culpável, quando pode, e não se deixa determinar pelo valor. Só aparentemente está à disposição de o sujeito escolher o sistema de valores ao qual adere. Em realidade, condições sociais, estruturas e mecanismos de comunicação e de aprendizagem determinam a pertença de indivíduos a subgrupos ou subculturas e a transmissão de valores e modelos que são considerados ilegítimos pelo sistema penal. A investigação sociológica mostra que no interior de uma sociedade moderna também existem valores e regras específicas de grupos diversos e antagônicos; que o Direito Penal não exprime regras e valores aceitos unanimemente pela sociedade, mas seleciona entre valores e modelos alternativos, segundo a vontade do legislador e dos aplicadores da lei; há uma relatividade de todo o sistema de valores que são tutelados pelas normas do direito penal (BARATTA, 2002, p. 73-76). No Estado Democrático de Direito, o Direito Penal da culpabilidade não pode permanecer alheio aos fundamentos axiológicos, provenientes dos valores constitucionais. (CARVALHO, 1992, p. 68). A culpabilidade não é um fenômeno individual isolado, que afeta apenas o autor do delito. É um fenômeno social; a correlação de forças sociais existentes em um momento determinado é que vai, em última instância, definir os limites do culpável e do não culpável; da liberdade e da não liberdade. Não é uma categoria abstrata ou ahistórica, à margem ou contrária às finalidades preventivas do Direito Penal, mas a culminação de todo um processo de elaboração conceitual que explica, num determinado momento histórico, por que e para que se recorre à pena e em que medida deve-se recorrer a ela. O conceito de culpabilidade só se faz inteligível, quando analisado dentro do contexto sócio-cultural. O indivíduo, ao atuar, o faz dentro de uma estrutura sócio-cultural que o determina, impondo- lhe seus sistemas de valores. Diante da violação da norma, a culpabilidade só existe na medida em que o infrator tenha vivenciado, pelo processo socializador, o conteúdo 38 material da norma infringida. (MUNÕZ CONDE, 1985, p. 63 apud CARVALHO, 1992, p. 68-69). 1.4.3 Negação da finalidade da pena de recuperação do criminoso A pena de prisão não tem cumprido a prometida finalidade de recuperação do criminoso. Não o faz por diversos motivos e fatores, mas o principal deles reside no simples fato de que a prisão não é lugar ou ambiente adequado, para se fazer a “regeneração” ou “reeducação” de alguém que praticou um ato desviante. A prisão é traduzida como exclusão, segregação, isolamento, submundo, em relação ao que é bom, correto e saudável. E quando se fala em regenerar algo, obrigatoriamente não poderia haver exclusão. O correto e indicado seria a inclusão, ou seja, manter o podre ao lado do bom e fazer com que o podre se torne bom. Partindo do pressuposto de que o crime é algo inerente à vida em sociedade, o tratamento do criminoso deveria merecer outro enfoque, que não reflita o sentimento de exclusão social, que não seja estigmatizante, vilipendiador da auto-estima e dos sentimentos do sentenciado. O cárcere não é ambiente favorável à reeducação ou recuperação do criminoso, porque se tornou uma micro-sociedade dentro da sociedade. Tem sua própria cultura, com linguagem própria, regras próprias, hábitos próprios, disciplina rígida, uma série de violências (físicas e morais), que causam a dasaculturação do criminoso e lhe impõe uma outra cultura, que os pesquisadores denominam de aculturação ou prisionização. Segundo Baratta (2002, p. 183-184), a prisão produz efeitos contrários à reeducação e à reinserção do condenado e, por outro lado, produz efeitos favoráveis à sua estável inserção na população criminosa. A prisão é, em si, contrária a todo modelo ideal educativo, porque, quando se fala em educar, busca-se a individualidade, o auto-respeito do indivíduo, alimentado pela consideração que o educador tem por ele, promove o sentimento de liberdade e de espontaneidade do indivíduo; ao passo que na prisão o encarcerado é despojado até dos símbolos exteriores da própria autonomia (vestuário e objetos pessoais) e a vida no cárcere, como universo disciplinar, tem caráter repressivo e uniformizante. Adverte Baratta (2002, p. 184) que: 39 Exames clínicos realizados com os clássicos testes de personalidade mostraram os efeitos negativos do encarceramento sobre a psique dos condenados e a correlação destes efeitos com a duração daquele. A conclusão a que chegam estudos deste gênero é que ‘a possibilidade de transformar um delinqüente anti- social violento em um indivíduo adaptável, mediante uma longa pena carcerária, não parece existir’ e que ‘o instituto da pena não pode realizar a sua finalidade como instituto de educação’. Por prisionalização entende-se a assimilação das atitudes, dos modelos de comportamento, dos valores característicos da subcultura carcerária, cuja interiorização é inversamente proporcional às chances de reinserção na sociedade livre (BARATTA, 2002, p. 184-185). Segundo Claus Roxin (1997 apud HIRECHE, 2004, p. 116), o cárcere não educa – O encarceramento das pessoas, ao contrário do que deveria fazer, embrutece, dessocializa. Não há aprendizado, exercício de atividade laborativa; enfim, não há um processo gradual de reinserção no grupo social. As condições subumanas dos milhares de presos lembram um inferno dantesco. Quando sai da prisão, na maioria das vezes, ou o indivíduo sai demente, impossibilitado de retornar à normalidade, ou sai revoltado, disposto a “retribuir” à sociedade os seus anos de martírio. A vida na prisão faz prevalecer às relações de passividade-agressividade e de dependência-dominação e não abrem espaço para a iniciativa e o diálogo; as infantilizantes regras da prisão alimentam o desprezo pela pessoa. A homossexualidade e a masturbação aumentam o isolamento interior do indivíduo. O clima de opressão onipresente desvaloriza a auto-estima, faz desaparecer a comunicação autêntica com o outro, impede a construção de atitudes e comportamentos socialmente aceitáveis, para quando chegar o dia da libertação (HULSMAN, 1997, p. 63). Ainda que o criminoso venha a se tornar um “bom preso” é inegável que este não passará de um adaptado aos costumes e aos hábitos da cultura penitenciária, cujos valores vão sendo por ele internalizados, com o passar do tempo (TRINDADE, 2003, p. 43). A própria punição gera, através da mudança de identidade social do indivíduo, assim estigmatizado, uma tendência a permanecer no papel social no qual a estigmatização o introduziu. A intervenção do sistema penal, especialmente pelas penas detentivas, antes de terem um efeito reeducativo sobre o delinqüente, determinam, na maioria dos casos, uma consolidação da identidade desviante do condenado e o seu ingresso em uma verdadeira e própria carreira criminosa (BARATTA, 2002, p. 89-90). 40 1.4.4 Negação do princípio de igualdade A crítica se dirige contra o mito da igualdade, que está na base da ideologia do Direito Penal, pelo qual se protege igualmente a todos os cidadãos contra ofensas aos bens essenciais, interesse de todos os cidadãos; dirige-se contra o mito de que a lei penal é igual para todos os autores de comportamentos anti-sociais e violadores de normas penalmente sancionadas e que estas teriam iguais chances de serem punidos, com as mesmas conseqüências do processo de criminalização. A crítica segue caminho oposto, o Direito Penal não defende a todos, mas somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos; porém, quando pune as ofensas aos bens essenciais, o faz com intensidade desigual e de modo fragmentário; a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos e o grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei. A crítica mostra que o Direito Penal não é menos desigual do que outros ramos, pelo contrário, é o direito desigual por excelência (BARATTA, 2002, p. 162). Segundo Baratta (2002, p. 102), a criminalidade do colarinho branco é perseguida de forma escassa ou escapa completamente, nas suas formas mais refinadas, das malhas largas da lei. Fatores econômicos, de natureza social e jurídico-formal concorrem para a impunidade; consideram o prestígio dos autores das infrações; observa-se o escasso efeito estigmatizante das sanções aplicadas; a ausência de um estereótipo que oriente as agências oficiais na perseguição dessas infrações, como existe para as infrações típicas dos estratos menos favorecidos; a competência de comissões especiais, ao lado da competência de órgãos ordinários para certas formas de infrações, em certas sociedades; a possibilidade de recorrer a advogados de renomado prestígio ou de exercer pressões sobre os denunciantes. Também existe a chamada “cifra negra”, que compreende o volume de fatos legalmente puníveis, que o sistema ignora ou menospreza, porque não foram denunciados pelas vítimas; ou foram denunciados, mas não registrados; ou a polícia registrou a notícia do crime, mas não investigou; ou foram investigados, mas não geraram inquéritos policiais; ou o Ministério Público não ofereceu denúncia e o juiz não recusou o arquivamento; ou o juiz rejeitou a denúncia por aspectos formais ou absolveu o réu por 41 falta de provas ou por amor ao próximo, venalidade ou tráfico de influência (THOMPSON, 2007, p. 1-19). As teorias da criminalidade, baseadas na reação social, demonstraram que a criminalidade, segundo sua definição legal, não é o comportamento de uma minoria, mas da maioria dos cidadãos (BARATTA, 2002, p. 113). O que significa que o sistema penal, longe de funcionar na totalidade dos casos em que teria competência para agir, funciona em número extremamente reduzido de casos (HULSMAN, 1997, p. 65). Segundo Zaffaroni (1991, p. 26), se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as defraudações, todas as falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças fossem concretamente criminalizados, praticamente não haveria habitante que não fosse, por diversas vezes, criminalizado. Zaffaroni (1991, p. 27) pondera que, diante da absurda suposição, não desejada por ninguém, de criminalizar reiteradamente toda a população, torna-se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não se opere, e sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva, dirigida contra os setores mais vulneráveis da sociedade. Os órgãos executivos têm “espaço legal” para exercer poder repressivo sobre qualquer habitante, mas operam quando e contra quem decidem. Hulsman (1997, p. 66) questiona e complementa: Como achar normal um sistema que só intervém na vida social de maneira tão marginal, estatisticamente tão desprezível? Todos os princípios ou valores sobre os quais tal sistema se apóia (a igualdade dos cidadãos, a segurança, o direito à justiça etc...) são radicalmente deturpados. Segundo Maurício Antônio Ribeiro Lopes (1999, p. 208) “trata-se em síntese de uma legislação penal individualista, de um individualismo formal e abstrato que só aspirava a construir uma base sólida para um direito penal a serviço da liberdade do homem”. Com isso, produz-se um modelo punitivo extremamente seletivo, desigual e injusto, que premia camadas sociais econômica e politicamente privilegiadas, em detrimento dos cidadãos não dotados desses predicados, o que destoa dos fundamentos do Estado Democrático e Social de Direito (SBARDELOTTO, 2001, p. 88). 42 CAPÍTULO 2 IGUALDADE PENAL E OBRIGAÇÕES CONSTITUCIO NAIS DO ESTADO NA TUTELA PENAL 2.1 Conceito e Distinções entre Estado de Direito; Estado Liberal de Direito; Estado Social e Estado Democrático de Direito 2.1.1 Surgimento do Estado de Direito e Estado Liberal de Direito O Estado de Direito surge, em meados do século XVIII, em oposição ao Estado Absolutista, que se caracterizava pela concentração de poder ilimitado nas mãos do governante, que realizava intervenções administrativas na vida privada de seus súditos, havendo nítida separação de classes, com diferenças de direitos e tratamentos. Surgiu com o objetivo de submeter o poder político às regras do Direito, de modo que a administração do Estado encontraria limites, com controle judicial dos seus atos. Significava, portanto, uma limitação do poder do Estado pelo Direito, sob a inspiração de certos critérios materiais de justiça, ou seja, a legalidade deveria se sustentar na legitimidade, na idéia de Direito como expressão dos valores jurídico-políticos vigentes em uma época (SBARDELOTTO, 2001, p. 30-32). O Estado Liberal de Direito decorre da ideologia do liberalismo, que trouxe uma nova visão de mundo de uma classe social emergente, até então submissa, a burguesia, em sua luta histórica contra os domínios do feudalismo aristocrático e fundiário. Inicialmente, o liberalismo surgiu com o levante da classe burguesa capitalista, composta basicamente por camponeses e camadas sociais menos favorecidas, contra o regime absolutista vigente, e seus princípios marcantes foram liberdade, igualdade e fraternidade, identificando-se tanto com os ideais individuais da burguesia mais abastada, como com os aliados economicamente fragilizados. No liberalismo, o indivíduo, como proprietário, encontra-se totalmente livre, exceto nas obrigações contratuais assumidas com o Estado. O homem toma consciência da liberdade, como valor supremo da vida individual e social; do 43 direito à livre manifestação, para alcançar uma elevação moral dos homens e dos povos (SBARDELOTTO, 2001, p. 33). O liberalismo, como expressão política da filosofia moderna, afirmou-se com várias Declarações dos Direitos do Homem e do Cidadão, sendo a primeira a do Estado da Virgínia, no ano de 1776, que põe em relevo a dignidade da pessoa humana, o direito à segurança, à liberdade e à igualdade, conforme se extrai do seu artigo primeiro: Todos os homens nascem livres e independentes e têm certos direitos naturais dos quais, quando entram em sociedade, não podem por nenhum contrato privar ou despojar sua posteridade; especialmente o gozo da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir propriedade e perseguir e obter a felicidade e a segurança. (LESBAUPIN, 1984, p. 171 apud BORGES, 2005, p.37). A mais notória e influente, resultante da Revolução Francesa, em 1789, buscava novas formas de governo capazes de garantir os direitos naturais, preexistentes ao Estado, inspirada na filosofia iluminista de Rousseau, Voltaire e Montesquieu. Estabeleceu a igualdade de todos perante a lei, consagrou o direito à liberdade, à propriedade, à luta contra a opressão e também à segurança (BUSSINGER, 1997, p. 26 apud BORGES, 2005, p. 39). Em 10 de dezembro de 1948, em Paris, foi aprovada a “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, destacando-se a preocupação com a vida, a liberdade e o direito à segurança (BORGES, 2005, p. 39). O Estado Liberal de Direito assume caráter de neutralidade, restringindo seu campo de intervenção na necessidade de permitir uma organização da sociedade em que cada indivíduo e cada grupo social tenham condições de perseguir livremente o seu próprio objetivo e escolher seu próprio destino. O Estado é reduzido a um mero procedimento político e jurídico, que busca a regulação e proteção social, basicamente situadas na manutenção da ordem e da segurança. O ideário liberal se consubstancia no estabelecimento do princípio da legalidade, da divisão de poderes ou funções e, acima de tudo, da garantia dos direitos individuais. O Estado se coloca na posição de garantidor das liberdades individuais e da propriedade, o que é considerado como um direito natural, anterior ao Estado. Prima pela não intervenção do Estado nas relações entre particulares (SBARDELOTTO, 2001, p. 34-35). Segundo Sbardelotto (2001, p. 36), o Direito Penal atual assenta-se sobre as bases do Estado Liberal, porque sua ênfase é voltada para o interesse individual, patrimonial e econômico, privilegiando camadas sociais e está vinculado ao primado da legalidade, validade e igualdade formais, usando conceitos de crime e de bem jurídico, 44 ainda impregnado dos princípios e da ideologia do Estado Liberal, destoando do Estado Democrático de Direito, que foi preconizado pela Constituição Federal de 1988. 2.1.2 Estado Social de Direito O Estado Social, também identificado como Estado do Bem-Estar ou Welfare State, surge a partir da constatação de que a não-intervenção estatal nas relações entre os indivíduos acarreta desigualdades, ou seja, as relações econômicas estabelecidas no seio do Liberalismo produzem o beneficiamento dos indivíduos mais fortes economicamente, em detrimento das camadas menos favorecidas. Percebeu-se que a burguesia dominante não cumpriu os princípios filosóficos que motivaram a resistência ao Estado absolutista, porque a igualdade estabeleceu-se apenas formalmente e a liberdade cingiu-se ao móvel econômico, fomentador de desigualdades, configurando um domínio ainda maior das classes privilegiadas. Surge a necessidade de o Estado incorporar um caráter positivo, intervencionista, em detrimento da abstenção característica do Estado Liberal. O foco de atenção é desviado do indivíduo para o grupo social, no qual o Direito terá como característica central a promoção do bem-estar social, e os serviços do Estado passam a ser considerados como direitos da cidadania. O Estado deve assumir garantias mínimas de renda, de acesso à alimentação, saúde, habitação, educação, não como caridade, mas como direito político dos cidadãos. Busca-se a proteção da sociedade por meio do Estado, através de prestações sociais, direção econômica e distribuição do produto nacional (SBARDELOTTO, 2001, p. 37-39). Com o Estado Social de Direito, busca-se um tipo de Estado que visa criar uma situação de bem-estar geral que garanta o desenvolvimento da pessoa humana (SILVA, 1988, p. 65 apud MORAIS, 1996, p. 73). A lei deixa de ser vista somente como ordem geral e abstrata e passa a ser vista como instrumento de ação, muitas vezes com caráter específico e concreto, atendendo a critérios circunstanciais (MORAIS, 1996, p. 74). 45 2.1.3 Estado Democrático de Direito Mesmo sob o Estado Social, a questão da igualdade não obtém solução e é por estas e outras razões que se desenvolve um novo conceito, na tentativa de conjugar o ideal democrático ao Estado de Direito, em que estejam presentes as conquistas democráticas, as garantias jurídico-legais e a preocupação social, constituindo um novo conjunto preocupado com a transformação do status quo (MORAIS, 1996, p. 74). A legalidade assume a forma de busca efetiva da concretização da igualdade, não pela generalidade do comando normativo, mas pela realização, através dele, de intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade. O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não se restringe, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência. O seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública, quando o democrático qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os seus elementos constitutivos e também sobre a ordem jurídica, que implica necessariamente a solução do problema das condições materiais de existência (MORAIS, 1996, p. 74-75). Segundo Sbardelotto (2001, p. 40-41), no Estado Democrático de Direito, ocorre a agregação de uma expectativa ou ideal de caráter modificador da realidade, por meio da implementação do valor igualdade, extraído da democracia; visa assegurar a todos as condições mínimas