MAYARA CAMARGO FOGAÇA DE ALMEIDA “FULIGINOSO E OPACO”: A INTROSPECÇÃO EM ANGÚSTIA (1936), DE GRACILIANO RAMOS, SOB O OLHAR DA CRÍTICA LITERÁRIA ASSIS 2021 MAYARA CAMARGO FOGAÇA DE ALMEIDA “FULIGINOSO E OPACO”: A INTROSPECÇÃO EM ANGÚSTIA (1936), DE GRACILIANO RAMOS, SOB O OLHAR DA CRÍTICA LITERÁRIA Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestra em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e vida social). Orientador: Dr. Benedito Antunes Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, processo nº 130280/2019-4) ASSIS 2021 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Assis “FULIGINOSO E OPACO”: A INTROSPECÇÃO EM ANGÚSTIA (1936), DE GRACILIANO RAMOS, SOB O OLHAR DA CRÍTICA LITERÁRIA TÍTULO DA DISSERTAÇÃO: CERTIFICADO DE APROVAÇÃO AUTORA: MAYARA CAMARGO FOGAÇA DE ALMEIDA ORIENTADOR: BENEDITO ANTUNES Aprovada como parte das exigências para obtenção do Título de Mestra em LETRAS, área: Literatura e Vida Social pela Comissão Examinadora: Prof. Dr. BENEDITO ANTUNES (Participaçao Virtual) Departamento de Estudos Linguísticos, Literários e da Educação / UNESP/Assis Prof. Dr. LUIZ GONZAGA MARCHEZAN (Participaçao Virtual) UNESP/Araraquara Prof. Dr. ALVARO SANTOS SIMÕES JUNIOR (Participaçao Virtual) Departamento de Estudos Linguísticos, Literários e da Educação / UNESP/Assis Assis, 05 de abril de 2021 Faculdade de Ciências e Letras - Câmpus de Assis - Av. Dom Antonio, 2100, 19806900, Assis - São Paulo www.assis.unesp.br/posgraduacao/letras/CNPJ: 48.031.918/0006-39. Aos meus pais, cujo amor me inspira. À memória de Graciliano Ramos, o velho Graça. À memória de Antonio Candido, eterno mestre. AGRADECIMENTOS Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, pelo financiamento da pesquisa. Ao meu orientador, professor Benedito Antunes, pela paciência e compreensão durante os momentos mais turbulentos. Aos professores Álvaro dos Santos Simões Junior, Carla Cavalcanti e Silva, Márcio Roberto Pereira, Sandra Aparecida Ferreira e Sílvia Maria de Azevedo por acompanharem, de maneira especial e atenta, minha caminhada acadêmica durante os anos de pós-graduação. Aos muitos funcionários da UNESP/Assis, sobretudo os membros da seção de pós- graduação e da biblioteca, cuja gentileza e prontidão possibilitaram a conclusão deste trabalho em tempos de pandemia. Aos meus pais, Antonio e Janice, por todo amor, suporte, incentivo e dedicação desde as minhas primeiras palavras. Sem o seu apoio incondicional, eu não teria chegado tão longe. Aos meus amigos (da pós-graduação e das jornadas externas), pela lealdade, companheirismo, compreensão, partilha e amor. Sou especialmente grata às minhas primeiras leitoras, que desprenderam um pouco de seu tempo para opinar sobre a construção do meu texto. Em especial, à dra. Fabiana de Oliveira Fabosi, psiquiatra, cuja gentileza sem precedentes encaminhou meu tratamento de maneira eficaz e possibilitou que eu completasse essa etapa. Por fim, e não menos importante, à UNESP, instituição pública de ensino superior da qual me orgulho imensamente em fazer parte de sua história. Mesmo sob ataques político- ideológicos absurdos, a universidade pública brasileira resiste em seus mais altos níveis de excelência para a formação de indivíduos com olhar crítico mais apurado e atento aos valores sociais. Defendo o ensino público superior, pois acredito em seu poder de libertação e transformação diante das amarras do negacionismo e do obscurantismo. Num crítico, a qualidade básica é a penetração em profundidade porque se supõe, justamente, que ele ponha em evidência o que, no leitor comum, não passa de sensação vaga. Mas, por definição, ele é também o homem que lê, tão sujeito a deformar-se quanto qualquer outro. Antonio Candido “Presente do indicativo”, Diário de S. Paulo, 27 de setembro de 1945, p. 4. ALMEIDA, Mayara Camargo Fogaça de. “Fuliginoso e opaco”: a introspecção em Angústia (1936), de Graciliano Ramos, sob o olhar da crítica literária. 2021. 151 p. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Assis, São Paulo. 2021. RESUMO O ano de 1936 foi decisivo para o escritor Graciliano Ramos: houve a publicação de seu terceiro romance, Angústia, e sua prisão em decorrência da política autoritária do regime de Getúlio Vargas. O romance trouxe a introspecção como elemento pungente de sua estrutura narrativa, pontuando outras perspectivas para os romances vindouros do autor e da literatura brasileira como um todo. Tais técnicas de composição foram aplicadas, de diferentes maneiras, nos romances S. Bernardo (1934) e Vidas secas (1938) também de autoria de Graciliano. Considerando a densidade da subjetividade em Angústia (1936), que se coloca em uma posição intermediária entre os outros romances dentro da cronologia do autor, torna-se oportuno avaliar a maneira pela qual a crítica literária lidou com o elemento fortemente psicológico. A partir do ensaio “Ficção e confissão”, de Antonio Candido, em que o crítico considera a trama como “gordurosa” e “sufocante” ao mesmo tempo em que exalta a grandiosa complexidade psicológica do romance, busca-se estabelecer um diálogo com outros textos críticos e com a própria análise de Angústia, além de considerar o contexto político e o mercado editorial dos anos 1930, para pensar a recepção crítica como um fator determinante à consolidação de Graciliano Ramos como escritor de grande prestígio na literatura brasileira. Palavras-chave: Angústia. Graciliano Ramos. Romance de 30. Romance introspectivo. Crítica literária. ALMEIDA, Mayara Camargo Fogaça de. “Sooty and opaque”: the introspection in Anguish (1936), by Graciliano Ramos, from the perspective of literary criticism. 2021. 151 p. Thesis (M.Sc. in Liberal Arts). Sao Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis. 2021. ABSTRACT The year of 1936 was decisive for the writer Graciliano Ramos: there was the publication of his third novel, Anguish, and his arrest as a result of the authoritarian policy of Getulio Vargas’ regime. The novel brought the introspection as a poignant element of its narrative structure, punctuating other perspectives for the author’s coming novels and Brazilian Literature as a whole. Such composition techniques were applied, in different ways, in the novels S. Bernardo (1934) and Barren lives (1938), also authored by Graciliano. Considering the density of subjectivity in Anguish (1936), which places itself in an intermediate position among the other novels within the author’s chronology, it becomes opportune to evaluate the way in which literary criticism dealt with the strongly psychological element. From the text “Fiction and confession”, by Antonio Candido, in which the critic considers the plot as “greasy” and “suffocating” while extolling the great psychological complexity of the novel, it seeks to establish a dialogue with other critical texts and with the analysis of Anguish, in addition to considering the political context and the publishing market of the 1930s, to think of critical reception as a determining factor in the consolidation of Graciliano Ramos as a writer of great prestige in Brazilian literature. Keywords: Anguish. Graciliano Ramos. 1930’s novel. Introspective novel. Literary criticism. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Primeira edição de Caetés (1933), ilustrada por Tomás Santa Rosa.................................29 Figura 2: Primeira edição de S. Bernardo (1934), publicada pela Ariel............................................34 Figura 3: Primeira edição de Angústia (1936), publicada pela José Olympio...................................44 Figura 4: Primeira edição de Vidas secas (1938), publicada pela José Olympio...............................47 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................ 12 CAPÍTULO 1: O impulso literário de Graciliano Ramos ..................................................................... 18 1.1. GRACILIANO RAMOS E AS TENDÊNCIAS MODERNISTAS ........................................................ 19 1.2. OS ANOS DE 1930 A 1934: OS ROMANCES E O MERCADO EDITORIAL .................................... 25 1.2.1. A ESTREIA PELA LIVRARIA SCHMIDT EDITORA: CAETÉS (1933) ................................... 27 1.2.2. S. BERNARDO (1934) E A EDITORA ARIEL ...................................................................... 31 1.3. OS ANOS DE 1936 A 1938: TENSÕES POLÍTICAS E ESTABILIDADE LITERÁRIA........................ 36 1.3.1. PRISÃO, ANGÚSTIA (1936) E A CÉLEBRE EDITORA JOSÉ OLYMPIO................................. 37 1.3.2. LIBERDADE E VIDAS SECAS (1938) ................................................................................. 45 1.4. ENTRE FICÇÕES E CONFISSÕES: A PRODUÇÃO LITERÁRIA DOS ANOS POSTERIORES .............. 49 1.4.1. A INTELECTUALIDADE E A POLÍTICA ESTADONOVISTA ................................................. 50 1.4.2. A CONSOLIDAÇÃO POLÍTICA E LITERÁRIA DE GRACILIANO RAMOS ............................. 53 CAPÍTULO 2: As perturbações psicológicas em Paulo Honório e Fabiano ....................................... 61 2.1 A CONSTRUÇÃO DO ROMANCE MODERNO ............................................................................. 61 2.2 OS CAMINHOS DO ROMANCE BRASILEIRO ............................................................................. 66 2.3 S. BERNARDO (1934) E O PSICOLÓGICO “AGRESTE” ............................................................... 69 2.4 VIDAS SECAS (1938): O ROMANCE “DESMONTÁVEL” E O “HISTORIADOR DA ANGÚSTIA” ...... 87 CAPÍTULO 3: Entre ratos, desilusões e crimes: a obsessão de Luís da Silva ................................... 102 3.1 A NARRATIVA OBSESSIVA DE UM FRUSTRADO .................................................................... 103 3.2 “OBRA-PRIMA NÃO SERÁ” ................................................................................................... 126 3.3 A “FULIGEM” NARRATIVA DE ANGÚSTIA ............................................................................. 129 3.4 A NOVIDADE NARRATIVA DE LUÍS DA SILVA ...................................................................... 136 3.5 UM LUÍS DA SILVA EM GRACILIANO RAMOS ...................................................................... 138 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................... 143 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................................... 146 12 INTRODUÇÃO Em 1945, quando Graciliano Ramos publicou Infância, Antonio Candido era crítico titular do periódico Diário de São Paulo e, reconhecendo a importância da figura do autor entre os “romancistas do Nordeste”, decidiu publicar cinco ensaios – um para cada livro – a fim de fazer um balanço de sua obra. Algum tempo depois da morte de Graciliano, ocorrida em março de 1953, Candido recebeu um convite de Antonio Olavo Pereira, diretor da filial paulista da Editora José Olympio, para escrever a introdução à próxima obra do autor. Para tanto, retomou os artigos publicados, escreveu a análise de Memórias do cárcere (1953) e uma conclusão, os quais deram origem ao ensaio “Ficção e confissão”, que figurou como introdução a Caetés (1933), de 1955 a 1969. Sobre o romance Angústia, publicado no ano de 1936 – o mesmo ano da prisão arbitrária do autor –, Candido assumiu uma posição um tanto polêmica ao afirmar que o romance não era a “obra-prima” de Graciliano (como assim considerava o crítico Álvaro Lins, por exemplo) e se apresentava como um livro “fuliginoso” e “opaco”, cheio de partes “gordurosas” e “corruptíveis”.1 Dessa forma, o crítico abriu para a interpretação de que a leitura do romance, para ele, constituiu uma experiência cansativa e insalubre. O enredo de Angústia gira em torno das perturbações mentais do protagonista e narrador, Luís da Silva, que se apresenta como um funcionário público, de trinta e cinco anos, oriundo de uma família de proprietários rurais em decadência. Sua história se desenrola a partir das inúmeras frustrações que experimenta durante a vida, sobretudo a amorosa. A narrativa simboliza um ponto de inflexão subjetiva dentro do conjunto das obras de Graciliano, o que gerou, em partes, um estranhamento da crítica, já que o romance antecessor – S. Bernardo (1934) – havia mostrado a maestria do autor alagoano em compor uma narrativa forte por meio de uma linguagem enxuta, objetiva e concisa. Aliás, a tônica introduzida por S. Bernardo guiou grande parte das produções literárias de sucesso da década de 1930, uma vez que se construíam ao redor do elemento do “fracasso”2 e tratavam da falência econômica e moral do coletivo e do indivíduo. O ponto central da literatura regionalista de 30 era a construção de uma narrativa crítica que concentrou em si mesma a representação de uma ação social. Dessa forma, assume um caráter menos 1CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2012. p. 46-61. 2Sobre a incorporação da figura do “fracassado” na narrativa da década de 1930: BUENO, Luís. Uma figura- síntese: o fracassado. Uma história do romance de 30. São Paulo: Edusp; Campinas: Editora Unicamp, 2006. p. 74-82. 13 estereotipado do regionalismo – como construído ao longo da literatura do início do século XX, especialmente em Monteiro Lobato3 – e mais concentrado na construção de um pensamento crítico de diferentes aspectos da realidade regional, dando espaço às figuras do “fracassado”, do “marginal” e do “proletário”. A política autoritária do governo de Getúlio Vargas, principalmente concentrada na década de 1930, repercutiu nas produções literárias da época, que assumiram os tons da polarização política e do estudo sociológico das realidades brasileiras. Valendo-se da nova vanguarda proposta pela Semana de Arte Moderna, que representou a ruptura aos antigos moldes e o exercício de construção de uma arte verdadeiramente brasileira, a literatura de 1930 pautou-se no social, a partir de um projeto estético e ideológico4 baseado nas diversas mazelas e realidades vividas pelo país naquela época. Não se pode negar, é claro, a inovação na literatura e nas artes brasileiras trazida pela Semana em 1922, uma vez que houve a tentativa de recuperação de um passado nacional sob os olhares da modernidade. Mesmo assim, a ousada proposta modernista não recebeu adesão unânime dentro do cenário brasileiro, ficando atrelada ao eixo de desenvolvimento cultural e econômico representado, num primeiro momento, pelos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. A partir deste ponto é importante mencionar a pluralidade de concepções para a construção de um modernismo no Brasil, tornando-o, por sua vez, um movimento complexo e variado em suas tantas representações. Desde as publicações de periódicos,5 o modernismo brasileiro se constituiu de inúmeras realidades e urgências com a intenção de criar uma arte tipicamente nacional, expressão da força cultural brasileira. Ao propor um estudo sobre as diversas manifestações modernistas no Brasil, João Luiz Lafetá,6 apresenta uma relação de aparente harmonia entre os movimentos de 1922 e 1930, elencando-os como dois modelos estéticos – em que há a presença de um projeto estético, de rupturas com a linguagem literária, e um projeto ideológico, de reorganização dos modos de pensar – pertencentes a uma mesma fase. Segundo a visão de Lafetá, o modernismo da década de 1920 se caracteriza pela ênfase ao projeto estético, ao passo que a produção dos anos 1930 enfatiza o projeto ideológico. É importante mencionar que, ao adotar tal divisão, o crítico não 3SANTINI, Juliana. Entre o riso e a ruína: humor, romance e regionalismo em José Lins do Rego. Teresa: Revista de Literatura brasileira, São Paulo, v. 1, n. 16, p. 175-190, 2015. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2020. 4LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Editora 34, 2000. 5São exemplos de periódicos modernistas: Klaxon (São Paulo, 1922-1923); Estética (Rio de Janeiro, 1924-1925); Verde (Cataguases, 1927-1928; 1929); Arco e flexa (Salvador, 1928-1929); Madrugada (Porto Alegre, 1926). Para um completo estudo de periódicos modernistas brasileiros, recomenda-se a leitura de: LUCA, Tania Regina de. Leituras, projetos e (re)vista(s) do Brasil (1916-1944). São Paulo: Editora UNESP, 2011. 6LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Editora 34, 2000. 14 pretendeu categorizar como dois momentos isolados, mas, sim, como momentos de predominância entre um projeto e outro. O modo de composição do romance dos anos 1930 estaria ligado, dessa maneira, à incorporação da crítica dentro da narrativa, pois estaria atrelado predominantemente ao projeto ideológico. No Nordeste, o processo de “absorção das liberdades modernistas”7 se deu pelo contato, protagonizado por Joaquim Inojosa e Guilherme de Almeida, com o grupo modernista de São Paulo graças à prosa de José Américo de Almeida e à poesia de Jorge de Lima. Apesar da resistência protagonizada por intelectuais nordestinos (entre eles, Gilberto Freyre e José Lins do Rego), o modernismo no Nordeste se desenvolveu conforme sua própria realidade, adotando uma autonomia diante das vanguardas estabelecidas pela Semana. Apoiados em uma sólida base sociológica, o Grupo Regionalista8 ligou-se a uma tentativa de representação literária das tradições e costumes populares de sua região. A reinvindicação de um lugar proeminente dentro do quadro cultural brasileiro se deu, principalmente, a partir da perda do domínio sobre o capital nacional graças ao desenvolvimento e urbanização da região Sudeste do país, significando uma possível resposta ao declínio econômico e social das estruturas ligadas ao cultivo da cana-de-açúcar.9 A ficção regionalista produzida nos anos 1930 assume um tom sociológico ao debruçar- se sobre a figura do outro e sobre o ambiente em que se vive, ao mesmo tempo que se completa a partir do destaque aos costumes e tradições, que se ligam ao enredo de forma orgânica e crítica, desvelando as disparidades advindas com a modernização e o progresso. Para a constituição de uma literatura social, tornam-se fundamentais os estudos de base sociológica encabeçados por Gilberto Freyre,10 que, além de adensar a perspectiva crítica de composição, centralizavam o envolvimento com a cultura regional. O estabelecimento de uma literatura nacional e, consequentemente, do mercado editorial de livros no Brasil, teve implicações diretas sobre o fazer crítico. Para a crítica de rodapé, cujo rigor era guiado por um método básico de referencial teórico bastante restrito, tornou-se necessário pensar na organização de um fazer específico e mais bem articulado, de modo a 7BOSI, Alfredo. Pré-modernismo e Modernismo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2015. p. 323-405. 8Os intelectuais nordestinos ganharam o caráter regionalista justamente por dar grande destaque e relevância à cultura regional. O texto de representação do pensamento regionalista está contido em: FREYRE, Gilberto. Manifesto regionalista de 1926. Departamento de Imprensa Nacional; Serviço de Educação, 1955. 9SANTINI, Juliana. Entre o riso e a ruína: humor, romance e regionalismo em José Lins do Rego. Teresa: Revista de Literatura brasileira, São Paulo, v. 1, n. 16, p. 175-190, 2015. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2020. 10Tais estudos sociais estão representados, sobretudo, em: FREYRE, Gilberto. Casa grande & Senzala. São Paulo: Círculo do livro, 1990. 15 acompanhar a crescente complexidade das obras literárias em circulação. Para tanto, torna-se essencial mencionar a importância da figura de Antonio Candido para a passagem do método básico ao método específico, à medida em que o crítico se pautou pela solidificação e aprofundamento de outras leituras importantes para o exercício da crítica literária.11 Dessa forma, valendo-se da importância dos ensaios de Candido, em especial de seu estudo crítico fundamental e pioneiro sobre a obra de Graciliano Ramos, interessa-nos investigar pormenorizadamente seu texto crítico dedicado a Angústia (1936), contido em Ficção e confissão (1992). Acredita-se que a análise de Candido permitirá, com clareza, ressaltar elementos importantes do romance de Graciliano ao mesmo tempo em que revela as fragilidades da narrativa, o que, consequentemente, contribui para a relevância do estudo da crítica literária ao redor de Angústia, uma vez que o romance suscitou certo “estranhamento” devido ao seu grau de introspecção. Para tal, o trabalho organizar-se-á em três capítulos. O primeiro, irá tratar da contextualização da produção literária dos anos 1930, contemplando as mudanças no enfoque dos romances de acordo com as urgências sociais. Nesse sentido, também se faz importante mencionar a questão da polarização política provocada pela ascensão do Estado Novo e como isso refletiu na literatura da época, dando ênfase à perseguição ideológica que causou a prisão de Graciliano Ramos em 1936. Ao abordar a questão literária dos anos 1930, também se faz necessário pensar o mercado de livros da década, que se expandiu massivamente durante o período. Nesse sentido cabe abordar as editoras que publicaram as obras de Graciliano: a pequena editora de Augusto Frederico Schmidt, a Ariel – de Gastão Cruls e Agripino Grieco –, e a José Olympio. Com base nas editoras, é oportuno articular a construção da figura intelectual da época, compreendendo o meio em que se inseria o escritor Graciliano como parte de sua jornada. O segundo capítulo se preocupará em relacionar as tendências do romance dos anos 1930 ao romance moderno em suas estratégias de composição narrativa, construção do narrador e, principalmente, na escolha dos personagens. Para tanto, será utilizada a formulação de Alfredo Bosi sobre os níveis de tensão nos romances brasileiros contida em História concisa da Literatura Brasileira (1970). Dentro dessa temática, será especificado o lugar dos romances de Graciliano Ramos na literatura brasileira, explorando as escolhas do autor para as temáticas 11A trajetória das condições de método da crítica literária brasileira entre o rodapé e a universidade está contida em: MACEDO, André Barbosa de. Entre Graciliano Ramos e Guimarães Rosa: condições de recepção, leituras da crítica e questões de método. 2015. 330 f. Tese (Doutorado em Letras). Universidade de São Paulo (USP), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 2015. 16 e as técnicas de composição. A partir deste panorama, será apresentada a questão da introspecção na construção de três romances do autor: S. Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas secas (1938). O terceiro, e último capítulo, será dedicado a uma leitura pormenorizada de Angústia (1936), dando ênfase aos aspectos essenciais da narrativa, bem como de sua estrutura. Será observada a subjetividade do enredo de Luís da Silva. Neste sentido, será trazida para análise a terceira parte do ensaio “Ficção e confissão”, leitura crítica de Antonio Candido contida em Ficção e confissão (1992). Será, então, aprofundada a análise do texto literário, dialogando com a metodologia de Candido ao abordar a questão da introspecção do narrador. Desta maneira, busca-se elencar os aspectos do romance destacados pelo crítico, acentuando as características “corruptíveis” da narrativa e colocando em diálogo com outros textos da crítica publicados na imprensa, reunidos no exemplar comemorativo de 75 anos de Angústia (2011). 18 CAPÍTULO 1 O impulso literário de Graciliano Ramos 18 Com a intenção de investigar os caminhos percorridos por Graciliano Ramos até a publicação de seus romances e, posteriormente, sua consagração literária diante da crítica brasileira, é importante traçar seus primeiros passos como escritor, desde as primeiras publicações em pequenos periódicos regionais à publicação de seus famosos relatórios como prefeito da pequena Palmeira dos Índios. A crescente modernista e o surgimento do romance social dos anos 1930 tornam fundamental a contextualização de suas publicações em meio à polarização política que influenciava também os rumos da literatura de cunho regionalista. A partir da boa estreia com Caetés (1933) e da ótima recepção com S. Bernardo (1934), é notável a expectativa para o terceiro romance do autor, Angústia (1936). Com o enredo voltado a uma história de obsessão e frustração amorosas vivida por um narrador introspectivo, Graciliano suscitou outras leituras e outros embates da crítica literária brasileira. Com o aparecimento de seu quarto romance, Vidas secas (1938), composto por uma estrutura em contos e, aparentemente, fragmentária, o alagoano conquistou seu espaço proeminente na literatura brasileira, tornando-se um dos escritores mais relevantes e atemporais de nossa história. Neste primeiro capítulo será apresentado um breve acompanhamento biográfico ao longo das publicações de Graciliano, buscando relacioná-lo ao tenso contexto político da década de 1930. Tal relação ao momento histórico é importante para que se compreenda e se conheça a figura política do alagoano, tão forte quanto a figura de escritor. Por mais que nunca tenham cedido à configuração do romance “panfletário”, os enredos de Graciliano são permeados pelos conflitos político-sociais e caminham para as reflexões diante dos impasses surgidos com a desigual modernidade brasileira. Ao longo da apresentação de cada publicação de Graciliano – com exceção de Angústia – será levantado um ponto importante da leitura crítica de Antonio Candido contida em Ficção e confissão. Os textos do crítico serão norteadores deste trabalho, uma vez que seu estudo sobre Graciliano Ramos constitui um dos mais completos e profundos sobre o autor brasileiro. Neste sentido, estarão apresentados alguns destaques em relação a Caetés (1933), S. Bernardo (1934) e Vidas secas (1938). A exclusão de Angústia (1936) se deve ao fato de que será dedicado um capítulo apenas para sua apreciação e análise, com a apresentação de outros textos críticos em diálogo com Candido. Portanto, estarão presentes neste capítulo os quatro grandes romances de Graciliano publicados na década de 1930. Serão mencionadas, brevemente, as outras obras do alagoano a fim de compreender o panorama de sua produção literária. O interesse deste trabalho, num primeiro momento, é acompanhar a publicação puramente romanesca de Graciliano para que, 19 num segundo momento, nossa atenção se volte para a estrutura das narrativas introspectivas do autor. 1.1. GRACILIANO RAMOS E AS TENDÊNCIAS MODERNISTAS Os embates antagônicos do início do século XX em relação à cultura, à política e à economia concentraram forças e formas para o surgimento de uma vanguarda artística que fosse capaz de conciliar as diferentes imagens de Brasil: o Modernismo. Guiado por uma nova linguagem de ruptura e renúncia ao “passadismo”, o movimento se espalhou por todo o território nacional. Entretanto, por se tratar de um país tão plural como o Brasil, a vanguarda modernista se transfigurou conforme as urgências regionais, dando origem a um vasto cenário artístico e literário, composto pelas mais variadas cores. Graciliano Ramos – um de nossos maiores romancistas e intelectuais –, cuja produção se concentra na década de 1930, tinha uma visão crítica e singular acerca do Modernismo, a qual, sobretudo, valorizava o espírito de reação do movimento: De 1922 a 1930, verificou-se um movimento de destruição dos cânones que precisavam desaparecer. O movimento não nasceu em 1922. Concretizou-se no aludido ano. Era um sentimento que tomou expressão e foi ao combate. Desde então [...] nada pôde ser realizado até 30, quando começou um trabalho de criação dos mais brilhantes, até 1936.12 A fala do autor destaca dois pontos importantes a serem debatidos: o movimento representado pela Semana de Arte moderna, em fevereiro de 1922, não havia nascido naquele ano; era resultado de uma expressividade combativa que se formava desde o início do século. Adiante, Graciliano aponta para a afirmação do modernismo a partir do ano de 1930, em que houve uma alta produção literária voltada ao realismo social, pautada em moldes sociológicos, sob forte influência do regionalismo e preocupada em apresentar uma imagem real do Brasil, revelando suas decadências e progressos. A origem do termo “regionalismo” remete ao fim do século XIX e relaciona-se como ferramenta política contra a centralização do Estado nos países românticos.13 Ao passar dos anos, o termo foi se desprendendo de seu contexto original e, ao encontrar-se com a literatura, passou a caracterizar obras e autores que se preocuparam com o elemento regional. Os estudos 12Graciliano Ramos em entrevista a Osório Nunes. Cf. LEBENSZTAYN, Ieda; SALLA, Thiago Mio (Orgs.). Graciliano Ramos: Conversas. Rio de Janeiro: Record, 2014. p. 132. 13ARENDT, João Claudio. Notas sobre regionalismo e literatura regional: perspectivas conceituais. Todas as letras Z, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 110-126, maio/ago. 2015. Disponível em:. Acesso em: 20 jul. 2020. p. 112. 20 voltados à produção regionalista consideram como tal os enredos que se comprometem com a cultura de uma região, exaltando e defendendo as particularidades ideais para a formação de um ethos regional. Sob essa perspectiva são descartadas as narrativas que apenas se ambientam em áreas rurais. Outra característica marcante do regionalismo é a criação de uma linguagem própria, capaz de aproximar o leitor urbano aos personagens e temáticas rurais, humanizando- o ao invés de aliená-lo.14 A história do regionalismo indica, também, que o termo esteve sempre em conflito com os temas da modernização, urbanização e industrialização; tal fato, porém, não exclui o paradigma da existência do termo como um fenômeno moderno e urbano.15 No Brasil, é preciso levar em consideração que a difícil transição para uma sociedade capitalista foi feita de forma específica e, sendo assim, a literatura passou a recontar tal processo ora aliada à decadência, ora aliada à ascensão, dependendo da perspectiva que assume em relação à modernização ou à ruína.16 O regionalismo é uma característica marcante da produção modernista e, dessa forma, cabe avaliar sob quais perspectivas a literatura da década de 1930 abordou o diálogo entre modernização e ruína. Como a obra de Graciliano Ramos está inserida neste contexto e abriga os cenários nordestinos brasileiros, torna-se relevante, para este estudo, investigar os caminhos escolhidos pela literatura brasileira dos anos 1930, afim de se compreender e apresentar o panorama político-social da década e, de tal maneira, ilustrar quais são as repercussões presentes nos romances. Para tanto, é essencial pontuar que o modernismo no Nordeste foi desenvolvido de forma adequada à sua realidade, com seus contornos próprios e a partir de uma autonomia em relação à estética estabelecida pela Semana. O distanciamento – apesar de participarem do mesmo movimento – entre “modernistas” e “romancistas de 30” e a aproximação entre “sociais” e “intimistas” podem ser sentidos, de maneira vívida, se a análise recair sobre a figura mais representativa do espírito de criação do romance de 30: o “fracassado”.17 O fracasso gera um clima de impasse e de impotência em que há uma visão sufocante e negativa do presente, além da impossibilidade de ver delineado um projeto capaz de solucionar quaisquer impasses. 14CHIAPPINI, Ligia. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, p. 153-159, 1995. Disponível em: . Acesso em: 18 jul. 2020. p. 154. 15Ibid. p. 155. 16Ibid. p. 155. 17Termo empregado por Mário de Andrade ao perceber a recorrência da temática do “fracasso” em grande parte das obras do período. Constitui-se, dessa forma, um importante estudo crítico sobre o romance dos anos 1930 o ensaio do autor “Elegia de Abril”, publicado em 1941. Nele, Mário pontua as relevâncias e as fraquezas das produções da década, provocando a reflexão sobre a prevalência ora do “autor sobre as ideias”, ora “as ideias sobre o autor”. Cf. ANDRADE, Mário. Aspectos da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. 21 Diferentemente do modernismo dos anos 1920, o Zeitgeist da década de 1930 é o “pós- utópico”.18 Em outras palavras, para o romance da década de 1930, a “utopia” não está eliminada, mas distanciada; o elemento do fracasso é substancial para o pensamento acerca da negatividade do presente, e, portanto, só se pode vislumbrar a “utopia” a partir da superação das deficiências socioeconômicas do momento vivido nos anos 1930. Neste período, a consciência do atraso socioeconômico brasileiro motivou a produção literária, que procurava ou uma reprodução documental de um aspecto injusto da realidade nacional ou a crítica a uma mentalidade equivocada que contribuísse com a figuração do atraso. A partir de uma narrativa em primeira pessoa, que havia sido estigmatizada pelo realismo do século XIX, a produção dos anos 1930 buscou destacar o caráter definitivo da derrota social e conferir maior veracidade ao documento literário – que seria construído como o depoimento da vítima deste fracasso.19 Dessa forma, a produção literária da época, que se define a partir do Modernismo de 1922, não poderia ter tido a abrangência que teve sem as condições que aquele movimento conquistou para o ambiente literário e intelectual do país; contudo, à medida em que o projeto literário dos anos 1930 se afastava do projeto modernista inaugurado pela Semana, delineou seus próprios caminhos e contornos, resultando num momento único e marcante para a literatura brasileira. Sobre a Semana de Arte Moderna, Graciliano declarou que “vendia fazendas no interior quando soube do movimento. Naquela época, lia tudo e acompanhava o barulho de longe. Apenas aplaudi”. O autor ainda afirma “não fui modernista nem sou pós-modernista. Sou apenas um romancista de quinta ordem. Estava fora e estou”.20 Ao analisar o legado do Modernismo, Graciliano pontua muito nitidamente a importância da reação ao passadismo, que resultou em uma abertura a outras perspectivas de renovação estética e literária; entretanto, sua crítica residia no trabalho de criação, que se limitava a experiências de linguagem e ao proselitismo. Nas palavras do autor: Como reação, foi excelente. [...] Porque na prosa nada conseguiu realizar. Mário de Andrade e Oswald de Andrade tentaram o romance. Mas sem êxito. Enquanto a poesia adquiria expressão, o romance modernista não tinha conteúdo. Creio, entretanto, que se não houvesse a independência do modernismo, José Lins do Rego não teria conseguido realizar o seu romance, tal como o é.21 18BUENO, Luís. Uma história do Romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 2006. p. 76-77. 19Ibid. p. 78-79. 20Graciliano Ramos em entrevista a Osório Nunes. Cf. LEBENSZTAYN, Ieda; SALLA, Thiago Mio (Orgs.). Graciliano Ramos: Conversas. Rio de Janeiro: Record, 2014. p. 134. 21Ibid. p. 132. 22 Como uma de suas maiores preocupações sempre foi a busca por uma escrita concisa, enxuta e bem elaborada, Graciliano considerava haver uma ausência de critério dos modernistas quanto ao processo de criação, o que acabava por seduzir escritores demasiadamente amadores, que produziam “burrices” e “mediocridades” literárias: As portas largas do modernismo abriram caminho não só às mediocridades: a autênticas burrices. Todo indivíduo que não sabia ou não podia escrever certo agarrou- se a liberalidades e extravagâncias. [...] E o outro resultado: todo menino saído do liceu pôde escrever poemas em cinco minutos e romances em uma semana.22 Na época em que publicou em pequenos periódicos regionais, logo no início de sua “empreitada” literária, Graciliano demonstrava profunda afinidade com a escola literária realista, sobretudo com as obras de Aluísio de Azevedo. A simpatia era nutrida graças ao tom de sinceridade e simplicidade, além do rompimento com a trama do idealismo. Contudo, o autor afirmava não se aliar às “modas” ou “escolas” literárias; sua intenção era apenas contribuir com a literatura brasileira por meio da experiência ficcional.23 A consolidação de seu impulso literário se deu ao fim da década de 1920, pois já se tratava de um homem com mais de 30 anos, dotado de larga experiência existencial e de um traquejo especial com os textos, tanto na leitura como na escrita. Este período foi de suma importância para a formação e a afirmação do homem e do escritor Graciliano Ramos, uma vez que ele se tornou uma figura pública e passou a escrever fora da província, atingindo repercussão em nível nacional. Neste mesmo período, em decorrência – talvez – da viuvez, houve um momento de reclusão para o escritor, que passou a enfrentar dificuldades por conta de sua saúde mental ao mesmo tempo em que conviveu tensamente com os filhos pequenos, tratando-os com a rigidez que sempre condenou. Segundo Graciliano: Em 1924, em Palmeira dos Índios, interior de Alagoas, encontrei dificuldade séria, pus-me a ver inimigos em toda parte e desejei suicidar-me. [...] Naquele inverno de 1924, numa casa triste do Pinga-Fogo, sentado à mesa da sala de jantar, fumando, bebendo café, ouvindo a arenga dos sapos, os mugidos dos bois nos currais próximos e os pingos das goteiras, enchi noites de insônia e isolamento a compor uma narrativa. Surgiu um criminoso, resumo de certos proprietários rijos existentes no Nordeste. 22Ibid. p. 133. 23LEBENSZTAYN, Ieda; SALLA, Thiago Mio. Op. cit., p. 229. Contudo, numa entrevista ao repórter José Guilherme Mendes, do periódico Manchete, em 1952, Graciliano afirmou: “Sou realista. Faço exatamente o contrário dessa nova moda, o chamado abstracionismo”. Cf. LEBENSZTAYN, Ieda; SALLA, Thiago Mio (Orgs.). Graciliano Ramos: Conversas. Rio de Janeiro: Record, 2014. p. 245-251. [Grifo nosso] 23 Diálogo chinfrim, sintaxe disciplina, arrumação lastimosa. Felizmente essas folhas desapareceram.24 Alguns anos depois, mais precisamente em 1927, Graciliano foi eleito prefeito da cidade de Palmeira dos Índios. Seu curto mandato, de 1928 a 1930, foi efetivo e “moderno”, apesar das precárias condições do sertão alagoano à época. Durante os anos na prefeitura, escreveu dois relatórios ao governador de Alagoas sobre a administração da cidade; tais documentos foram compostos por uma linguagem pouco habitual em documentos oficiais e, dessa forma, revelaram uma inclinação especial do prefeito à escrita, como é possível observar neste trecho de um dos relatórios: Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o comandante do destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com prefeitos coronéis e prefeitos inspetores de quarteirões. [...] Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro. Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas.25 A linguagem, dotada de ironia e de um caráter narrativo, fez com que os relatórios repercutissem nacionalmente. Alguns jornais, inclusive, publicaram os textos na íntegra. O prefeito da pequena cidade de Palmeira dos Índios ganhou notoriedade e, dessa maneira, passou a ser “sondado” pelo poeta e editor Augusto Frederico Schmidt – da Livraria Schmidt Editora – em busca de algum texto literário para publicação. O fator responsável, porém, por levar o nome de Graciliano a Schmidt foi o pintor e desenhista paraibano Santa Rosa,26 que comentou sobre a inclinação de Graciliano à escrita e trouxe à tona os relatórios da prefeitura. O romancista José Américo de Almeida teria confirmado, algum tempo depois, a existência dos originais de um romance escrito. Por intermédio, então, de seu secretário Rômulo de Castro, Augusto Schmidt enviou uma carta a Graciliano solicitando os textos para editá-los.27 Segundo o autor: 24RAMOS, Graciliano. apud GARBUGLIO, José Carlos; BOSI, Alfredo; FACIOLI, Valentim. Graciliano Ramos. São Paulo: Editora Ática, 1987. p. 40. 25Ibid. p. 42. 26Tomás Santa Rosa (1909 – 1956) é o primeiro cenógrafo moderno brasileiro. Também é conhecido por suas habilidades ensaísticas, pinturas, decorações e figurinos. É responsável pela ilustração de capa da primeira edição de Caetés (1933), romance de estreia de Graciliano. [SANTA Rosa. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: . Acesso em: 18 de Jan. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7] 27MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 73-74. 24 Dois relatórios. Um que fiz em 1929 e outro que fiz em 1930. Este, ao que parece, foi o meu melhor trabalho. Pelo menos o que se esgotou mais depressa. Foi transcrito por diversos jornais de todo o Brasil. Daqui do Rio, onde o relatório foi transcrito em A União, jornal católico, recebi uma carta de Rômulo de Castro, que, a mando do Schmidt, me pedia um romance. Achava ele que eu devia ter alguma coisa guardada.28 Num primeiro momento, Graciliano precisou de um tempo para se acostumar à ideia de publicar seus escritos. Como sempre foi perfeccionista em relação à linguagem e ao trabalho de composição, sentiu que precisava revisar seus caetés antes de encaminhá-los a Schmidt.29 Tal processo só teve início em 1930, quando Graciliano mudou-se para Maceió afim de exercer a função de diretor da Imprensa Oficial do Estado de Alagoas; nas horas vagas – entre um e outro despacho –, o autor revisitava os manuscritos num trabalho minucioso de revisão. A mudança para Maceió também fez com que Graciliano passasse a conviver com um grupo de intelectuais que escrevia e publicava aos poucos, frequentava lugares sociais, fazia discursos, e tinha entre os membros José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge de Lima, Aurélio Buarque de Holanda etc. Por mais que fossem inspirados pela força renovadora do Modernismo, não havia fãs incondicionais do movimento: um dos assuntos principais das rodas de conversa do grupo era o seu declínio. O grupo de intelectuais pensava, também, em novos caminhos para a literatura a partir de 1922 e entendia que o primeiro ciclo modernista havia chegado ao fim. Quando olhamos para a produção dos anos de 1930, nota-se o distanciamento das poéticas da Semana e, de tal forma, percebe-se a preocupação dos romancistas em compor narrativas que se aproximam fortemente do documentário social, buscando dar voz a uma região marginalizada pelo processo capitalista de modernização. Rachel de Queiroz, autora de romances como O Quinze (1930), disse: “nós não tínhamos a intenção de fazer romance de sentido social [...]. O que fazíamos era romance-documento, romance-testemunho”.30 Sobre os romancistas surgidos na década de 1930, Graciliano Ramos mantinha uma postura crítica quase na mesma medida que mantinha em relação aos modernistas a partir de 1922; sua maior queixa recaía, mais uma vez, sobre a estratégia de composição dos escritores: Foi nessa época que de vários pontos surgiram, em número apreciável, escritores desconhecidos, que se afastavam dos preceitos rudimentares da nobre arte da escrita. 28Graciliano Ramos em entrevista a Paulo de Medeiros e Albuquerque. Cf. LEBENSZTAYN, Ieda; SALLA, Thiago Mio (Orgs.). Graciliano Ramos: Conversas. Rio de Janeiro: Record, 2014. p. 103. 29GARBUGLIO, José Carlos; BOSI, Alfredo; FACIOLI, Valentim. Op. cit., p. 43. 30QUEIROZ, Rachel de. apud MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 75. 25 Mas a verdade é que, sem saberem escrever, trouxeram qualquer coisa de novo à literatura brasileira. Meteram-se pela sociologia e economia e lançaram no mercado romances causadores de enxaqueca ao mais tolerante dos gramáticos. Foi um escândalo. Mas estavam ali pedaços do Brasil, e isso já era alguma coisa de importante. A literatura enriquecia-se de novos assuntos, novos problemas, nova vida, mas tínhamos que lastimar a maneira absurda e inclassificável como se escrevia.31 As falas de Graciliano e Rachel apontam para o que era, talvez, a essência do romance de 1930: o tom documental, social. Este período apresentou autores que, por meio de outras vias (como a sociologia), trouxeram cenas reais dos mais variados cantos do Brasil, compondo um quadro de imagens sob diversas perspectivas. Ao olhar para a produção de romances do autor, nota-se que suas quatro obras – Caetés, S. Bernardo, Angústia e Vidas secas – estão concentradas no cenário literário dos anos 1930. Dessa forma, dialogam com o período e, consequentemente, com a produção contemporânea à época. Com a intenção de contextualizar as publicações de Graciliano, faz-se relevante dar atenção ao mercado de livros da década, às editoras que publicaram os romances do autor e ao momento literário dos anos 1930. 1.2. OS ANOS DE 1930 A 1934: OS ROMANCES E O MERCADO EDITORIAL No início do período não é possível definir com clareza, mesmo que já estivesse presente, a polarização política que se confirmaria anos depois. A intelectualidade brasileira se movia em um ambiente bastante difuso; o anticomunismo, defendido furiosamente pelo integralismo e pelo regime de Vargas – principalmente depois das revoltas de 1935 –, ainda não se definia muito bem, já que a ideologia comunista não era suficientemente ameaçadora para merecer reação imediata; e, de uma forma geral, a tônica do início dos anos 1930 era a inquietação daqueles que desejavam engajar-se em algo, mesmo sem definição muito clara. Sendo assim, a literatura produzida nesses anos buscou refletir essas inquietudes por meio da dúvida que pairava sobre as personagens e o ambiente ficcional.32 Assim como em diferentes contextos, não há como dissociar a literatura do momento político-social vivido pelo país; na década de 1930, em especial, há um momento importante para a modernização e para o momento vivido pós-primeira guerra, o que indicou os caminhos de uma polarização entre o mundo ocidental e a União Soviética. Os acirramentos políticos e 31LEBENSZTAYN, Ieda; SALLA, Thiago Mio (Orgs.). Graciliano Ramos: Conversas. Rio de Janeiro: Record, 2014. p. 216. 32BUENO, Luís. A inquietação: 30 antes da polarização (1930-1932). In: Uma História do Romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 2006. p. 103-157. 26 sociais ocorridos mundialmente acabaram dando força e espaço para os projetos de organização social e de poder, caracterizados por regimes totalitários inspirados em nacionalismo, racionalidade, desenvolvimento e ordem. Para que as produções do período se firmassem como literatura autêntica, deveriam se apresentar como inovadoras diante das produções naturalistas nordestinas presentes desde o final do século XIX, que desumanizavam e descaracterizavam a figura do retirante ao representá-los em blocos unificadores, ou seja, reduzindo-os e tornando-os iguais. É justamente neste quesito em que reside o diferencial de A bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, considerado o marco inicial do romance de 30: a narrativa não se fixa na história dos retirantes, mas numa fazenda que não é destruída pela seca. Há também a rivalidade entre os sertanejos e os brejeiros, indicando diferenças entre grupos e afirmando que um único grupo social não daria conta de uma realidade tão complexa. No entanto, é preciso pontuar que obras publicadas em momentos anteriores também remeteram a algum aspecto definidor da literatura de 30, como é o caso de O estrangeiro (1926), primeiro romance de Plínio Salgado. A escolha por A bagaceira se dá pelo fato de esta obra conter, com maior presença, traços definidores da literatura de 30, como a preferência pela representação de uma pobreza pouco poetizada, o conflito entre o campo e a cidade, e o seu tom de depoimento, ora artificialmente pungente, ora prezando a economia de expressividade e sentimentalismo.33 Publicados em 1930 e em 1932, respectivamente, O Quinze, de Rachel de Queiroz, e Menino de engenho, de José Lins do Rego, criaram uma imagem menos conciliatória do Brasil no presente, afirmando uma ficção que permitia aos seus contemporâneos uma vívida experiência da realidade brasileira.34 Em tais obras, passou-se a ter uma linguagem que se distanciava da gramática e se aproximava da fala; os termos regionais coloquiais foram mais bem incorporados ao texto, perdendo o caráter de artificialidade. Embora essa linguagem fosse “menos ousada” que a proposta e experimentada pelos modernistas da década de 1920, era igualmente eficaz ao compor as narrativas de 1930.35 A produção dos anos seguintes, principalmente de 1933 a 1936, além de dar destaque às massas, também sugeria que o proletário representado nelas estivesse inclinado a fazer a revolução; para tanto, davam voz ao engajamento direto, inserido no enredo. As narrativas 33BUENO, Luís. Antes de 30. In: Uma História do Romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da Unicamp, 2006. p. 83-102. 34CANDIDO, Antonio. A revolução de 30 e a Cultura. In: A educação pela noite e outros ensaios. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. p. 187. 35BUENO, Luís. Op. cit. p. 83-102. 27 deveriam ir além de retratar o drama coletivo e, por meio da ação das massas, representar a rebeldia necessária para construir a revolução. O romance proletário também iria na contramão da moral burguesa, abolindo o senso de imoralidade ao tratar as cenas com a crueza da realidade. A proposição de um romance esvaziado de algumas categorias narrativas – a despreocupação com o enredo e o destino do herói – prega o rompimento com o elemento definidor do romance burguês,36 isto é, o conflito entre um sujeito, o protagonista, e os valores da coletividade.37 1.2.1. A ESTREIA PELA LIVRARIA SCHMIDT EDITORA: CAETÉS (1933) A história de publicação do primeiro romance do autor alagoano remonta ao período em que ele trabalhava como diretor da Imprensa Oficial do Estado e, entre os despachos da profissão, intercalava a revisão de seus manuscritos. Depois de um minucioso trabalho, Graciliano encaminhou os originais de Caetés a Augusto Schmidt ainda em 1930. O aguardo pela publicação recheou-se de grandes expectativas devido aos elogios que recebeu de seu editor quando enviou as versões preliminares de alguns capítulos. Antes, porém, de mencionar o romance em si, é importante pontuar que o momento de estreia de Graciliano acabou por reunir algumas polêmicas; todas elas estavam em torno da figura de Schmidt. A partir da Revolução de 30, o país se abriu para novas perspectivas nos mais diversos aspectos. A burguesia representava a classe socioeconômica em ascensão e os ideais nacionais estavam voltados à noção de modernidade. Movidos pela preocupação com o meio cultural brasileiro, alguns intelectuais aventuraram-se em projetos editoriais; dessa forma, nasceu o empreendimento de Augusto Frederico Schmidt: a Livraria Schmidt Editora, situada à rua Sachet, número 27, no Rio de Janeiro.38 Munido de um “dom” em reconhecer escritores talentosos, Schmidt logo se tornou um dos editores mais importantes da nova geração de romancistas brasileiros. O primeiro volume publicado pela editora foi Oscarina (1931), uma coletânea de contos sobre a vida das camadas mais pobres da população carioca, do autor Marques Rebelo – 36Conceito empregado no ensaio de György Lukács, em: LUKÁCS, György. O romance como epopeia burguesa. Ensaios ad hominem, n. 1, t. 2. São Paulo: Estudos e edições Ad Hominem, 1999. p. 87-117. 37BUENO, Luís. Em plena polarização: o auge do romance social (1933-1936). In: Uma História do Romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 2006. p. 159-399. 38HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2017. p. 466. 28 pseudônimo do jovem Eddy Dias da Cruz.39 Schmidt também abriu as portas para Otávio de Faria com a publicação de seu livro, Maquiavel e o Brasil (1931), para José Geraldo Vieira, com A mulher que fugiu de Sodoma (1931), e para o estreante Jorge Amado, com O país do carnaval (1931). O sucesso alcançado por Rachel de Queiroz com a publicação de O Quinze (1930) fez com que Schmidt firmasse uma parceria com a cearense para o lançamento de seu segundo romance, João Miguel (1932). A polarização política da década também motivou algumas publicações da editora, como foi o caso de O que é o Integralismo (1933), de Plínio Salgado, e o célebre Casa grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre. Embora tenha sido responsável por publicar grandes obras dos anos 1930 e por revelar grandes escritores, o empreendimento de Schmidt não durou muito. A possível causa para a falência da Livraria Schmidt Editora foi a falta de dinheiro. Existem, também, acusações de que Schmidt investia em pequenas edições que não lhe rendiam o suficiente, e que não dava atenção para a divulgação das obras que seriam publicadas pela editora.40 Mesmo com a falência de seu empreendimento editorial, Augusto Schmidt continuou intelectualmente ativo como escritor e crítico. No caso de Caetés, alguns diziam que o editor não iria publicar por conta de sua fé católica e suas preferências conservadoras,41 mas o fato é que Schmidt havia perdido os originais do romance de Graciliano.42 A demora no preparo dos originais e, consequentemente, da publicação era resultado da busca pelos manuscritos. Na tentativa de remediar a situação com o autor, que ficava cada vez mais complicada e insustentável, Schmidt e seu secretário, Rômulo de Castro, se propunham a inventar desculpas para o atraso. Contudo, o discurso não havia convencido Graciliano; em carta à esposa, Heloísa, o autor anunciava o pedido pelos originais: Promessas como essa o Schmidt tem feito às dúzias: não valem nada. Escrevi a ele rompendo todos os negócios e pedindo a devolução duma cópia que tenho lá. Assim é melhor. A publicação daquilo seria um desastre, porque o livro é uma porcaria. Não me lembro dele sem raiva. Não sei como se escreve tanta besteira. Pensando bem, o Schmidt teve razão e fez-me um favor.43 39Ibid. p. 468. 40Ibid. p. 471. 41BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da Unicamp, 2006. p. 229. 42MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 94. 43RAMOS, Graciliano. apud MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 94. 29 Mesmo sob circunstâncias nebulosas, havia grande expectativa pelo volume, como comprovado em O Jornal, de dezembro de 1931, no anúncio “Schmidt-Editor”: “Caetés, de Graciliano Ramos – O grande romance do Norte, ansiosamente esperado”.44 Movido pelas cobranças e após uma minuciosa busca, Schmidt finalmente encontrara os originais do romance: estavam escondidos em sua capa de chuva.45 Resolvida a polêmica com Graciliano, a Livraria Schmidt Editora publicou Caetés em dezembro de 1933, cuja edição era estampada por uma belíssima ilustração de Santa Rosa. Figura 1: Primeira edição de Caetés (1933), ilustrada por Tomás Santa Rosa Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em: . Acesso em 20 de abr. 2021. No entanto, diante de autores como Armando Fontes e Jorge Amado, Graciliano não emplacou grande aprovação a princípio; sua produção só recebeu a devida atenção ao fim da década de 30, no inquérito sobre os dez melhores romancistas brasileiros promovido pela Revista Acadêmica, entre 1940 e 1941, em que o autor conquistou o terceiro lugar.46 Apesar da estreia sob circunstâncias tumultuadas, Graciliano conseguiu boa recepção de parte da crítica, que passou a considerar em primeiro plano a figura do escritor. É possível perceber tais traços no seguinte trecho de uma apreciação crítica feita por Cavalcanti Freitas, publicada no periódico Boletim de Ariel, em 1933: 44CAETÉS, de Graciliano Ramos. O Jornal. Rio de Janeiro, p. 3. 13 dez. 1931. 45MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 95. 46É relevante mencionar que esta, talvez, seja uma das primeiras manifestações da grandeza da figura literária de Graciliano, uma vez que ocupou a terceira posição do inquérito e ficou à frente de Jorge Amado e José Lins do Rego, que ocuparam, respectivamente, o sexto e o quarto lugares. In: BUENO, Luís. Op. cit., p. 228. 30 [...] adquiriu, entretanto, o autor de Caetés um raro prestígio de seriedade que envelheceu o seu romance antes de tempo, porque nele o escritor já existia antes do livro. Sim, o escritor já existia antes do livro. Sim, o escritor maior do que o romancista. Um escritor dos mais sérios que têm aparecido no Brasil [...].47 Quando publicou Caetés, Graciliano tinha completado 41 anos e, portanto, já era um homem e escritor de maturidade reforçada. A experiência adquirida na vida pública e na publicação em periódicos demonstrou-se suficientemente forte para a construção de um romance de estreia amplamente elogiado pelos mais variados críticos. O texto de Cavalcanti Freitas aponta justamente a figura madura de um escritor estreante. Mesmo que, comparado a outros autores do período, Graciliano não tenha sido plenamente aclamado desde o início, deve- se dizer que seu primeiro romance estabeleceu solidamente sua carreira literária. Caetés apresenta uma narrativa cristalizada sob a ótica do protagonista, João Valério, que se define como alguém que se destaca diante da sociedade mesquinha de Palmeira dos Índios, numa reprodução da tragédia individual em frente a um meio restritivo, como apontavam os romances realistas do século XIX. A busca pela vida intelectual e o cultivo das letras, uma vez que o protagonista se propõe a escrever um romance sobre os índios caetés, são vistos por Antonio Candido como um espaço alternativo que o abriga do desgaste da vida social, já que, por meio do romance, Valério busca um refúgio contra as decepções da vida.48 O caráter inovador contido na produção de Graciliano Ramos relacionava-se puramente à estrutura de composição: o autor, de modo especial, passou a unir o romance estritamente psicológico com o romance social, contrariando o que havia sido produzido até então, que, enquanto literatura, se manifestava de maneira ora psicológica, ora social.49 Embora, em geral, a crítica literária tenha recepcionado bem Graciliano e seu João Valério, é importante pontuar que outra parte da crítica considerou o romance como “velho” diante da ampla produção dos anos 1933. O que é importante dizer, porém, é que se os originais tivessem sido publicados em 1931, como pretendido, Caetés talvez não fosse alvo de tais críticas; como foi publicado tempos depois, em que tais inovações não eram assim tão novas, Caetés acabou perdendo seu lugar de destaque dentre outras obras. Mesmo combatido pelo tom de incompreensão, o romance afirmou inovações literárias que acabariam se tornando procedimentos importantes durante toda a década de 1930: a imbricação entre sociedade e 47FREITAS, Cavalcanti. Cahetés. Boletim de Ariel. Rio de Janeiro, p. 160. mar. 1933. 48CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012. p. 21. 49BUENO, Luís. Op. cit., p. 228. 31 psicologia individual, a escolha por tratar de uma sociedade mesquinha, e uma linguagem literária que se afastava da formalidade e se aproximava da oralidade.50 Caetés figura como um exercício de técnica literária que o autor adotaria nos livros posteriores. Graciliano, de certa forma, é ainda praticante de sua própria experimentação literária, já exemplar, voltada para a construção de romances profundos e dolorosos51 – tais como os vindouros S. Bernardo (1934) e Angústia (1936). 1.2.2. S. BERNARDO (1934) E A EDITORA ARIEL Os dias como diretor da Imprensa Oficial do Estado estavam contados para Graciliano; além da rotina exaustiva e burocrática, o alagoano não suportava viver sob o autoritarismo desmedido dos interventores. Sendo assim, em dezembro de 1931, Graciliano pediu demissão e teve de voltar a Palmeira dos Índios com os filhos pequenos, desempregado e sem perspectivas. Ainda em 1931, ao mexer em papéis e documentos antigos, Graciliano encontrou um conto escrito em 1924, intitulado “A carta”; era o início de S. Bernardo.52 Graças a sua amizade com o padre Macedo, Ramos obteve livre acesso à sacristia da igreja para compor a narrativa do romance. Conforme a escrita fluía, Graciliano foi se distanciando do antigo conto e se apropriando de uma narrativa maior e mais complexa. Nessa crítica situação voltou-me ao espírito o criminoso que, em 1924, havia-me afastado as inquietações – um tipo vermelho, cabeludo, violento, de mãos duras, sujas de terra como raízes, habituadas a esbofetear caboclos na lavoura. [...] E, sem recorrer ao manuscrito de oito anos, pois isto prejudicaria irremediavelmente a composição, restaurei o fazendeiro cru a lápis, na sacristia da igreja enorme que o meu velho amigo padre Macedo andava a construir. Surgiram personagens novas e a história foi saindo muito diversa da primitiva.53 Enquanto compunha o romance, Graciliano sofreu uma séria queda e teve de ser levado ao hospital em Maceió devido às dores na perna direita. O diagnóstico indicou psoíte – uma inflamação do músculo na região abdominal. Para o tratamento, não havia outra saída senão a 50BUENO, Luís. Op. cit., p. 236-237. 51CANDIDO, Antonio. Op. cit., p. 18-19. 52MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 83. 53Graciliano Ramos apud MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 84. 32 cirurgia. A lenta recuperação resultou num momento intenso de composição literária para o alagoano, que se dedicou à produção de contos posteriormente reunidos em Insônia (1947).54 Durante o restabelecimento, em crises de febre, Graciliano compôs o capítulo 19 de S. Bernardo, talvez o mais emblemático da obra. Também em meio aos delírios, o alagoano compôs um dos capítulos de seu futuro Angústia.55 Em diversas cartas enviadas à esposa, Heloísa, em 1932, o autor comentava passo a passo sobre o processo de composição do romance. É interessante notar, por exemplo, o cuidado com o qual Graciliano dedicava-se a construir seu romance, principalmente em relação à linguagem: Encontrei muitas coisas boas da língua do Nordeste, que nunca foram publicadas, e meti tudo no livro. Julgo que produzirão bom efeito. O pior é que há umas frases cabeludíssimas que não podem ser lidas por meninas educadas em convento. Cada palavrão do tamanho de um bonde. Desconfio que o padre Macedo vai falar mal de mim, na igreja, se o livro for publicado. [...] Realmente suponho que sou um sujeito de muito talento.56 A linguagem que se afasta da norma e se aproxima da oralidade é uma marca e uma conquista do romance dos anos 1930 para a literatura brasileira. Na fala de Graciliano, é notável sua preocupação em imprimir tal experimentação em seu romance, uma vez que, dessa forma, humanizaria os personagens e tornaria a experiência de leitura mais vívida. Ao fim do processo de escritura do romance, o alagoano comenta sobre o resultado satisfatório em relação à linguagem: O S. Bernardo está pronto, mas foi escrito quase todo em português, como você viu. Agora que está sendo traduzido para o brasileiro, um brasileiro encrencado, muito diferente desse que aparece nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto, com uma quantidade enorme de expressões inéditas, belezas que eu mesmo nem suspeitava que existissem. Além do que eu vou passando para o papel. O velho Sebastião, Otavio, Chico e José Leite me servem de dicionários. O resultado é que a coisa tem períodos absolutamente incompreensíveis para a gente letrada do asfalto e dos cafés. Sendo publicada, servirá muito para a formação, ou antes para a fixação da língua nacional.57 Diferentemente de seu primeiro romance, cuja publicação demorou mais de três anos para ser concluída, S. Bernardo ganhou rápido interesse de Gastão Cruls, – proprietário da editora Ariel e responsável pelo periódico Boletim de Ariel – que, numa carta enviada em março 54Ibid. p. 86. 55Ibid. p. 86. 56RAMOS, Graciliano. Cartas. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 169-170. 57Ibid. p. 179. 33 de 1934, propôs a Graciliano a publicação do romance ainda no mesmo ano. Datilografado por Valdemar Cavalcanti, S. Bernardo foi publicado em novembro de 1934.58 Pouco tempo depois que Augusto Schmidt abriu seu empreendimento editorial, outras editoras também quiseram garantir seu espaço dentro do mercado de livros, que se encontrava em expansão. A parceria entre Gastão Cruls e Agripino Grieco resultou na criação da editora Ariel, que publicou não só literatura brasileira, mas também literatura estrangeira traduzida e outras obras jurídicas. O fato de a Ariel não estar vinculada a uma livraria – como era o caso do empreendimento de Augusto Schmidt – fez com que os proprietários pensassem em outros meios de divulgação para suas publicações.59 Dessa forma, Cruls e Grieco conceberam o periódico Boletim de Ariel (Rio de Janeiro, 1931 – 1939)60 para a divulgação das publicações da editora e para movimentar a atividade da crítica literária, uma vez que os textos de apreciação crítica circularam amplamente entre a intelectualidade. Com a prosperidade dos negócios, a Ariel conseguiu aliar-se aos escritores de grande nome da década de 1930, como Jorge Amado, Cornélio Penna, Marques Rebelo, José Lins do Rego, Lúcia Miguel Pereira e Raul Bopp.61 Porém, mesmo com as publicações de sucesso nos anos iniciais, a Ariel encerrou suas atividades em 1939, num declínio progressivo desde 1934. O início da falência da editora pode estar ligado com a mudança da José Olympio para o Rio de Janeiro – editora que se tornaria o principal e o mais prestigioso nome do mercado de livros da época.62 Assim como Caetés, o segundo romance de Graciliano gerou expectativa em seu lançamento, sendo anunciado no Diário de Notícias, em 11 de março de 1934, na seção de livros recém-publicados. Livre, porém, dos mesmos julgamentos que o primeiro romance de Graciliano recebeu, S. Bernardo figurou em um lugar de maior prestígio entre as obras publicadas à época, como ilustra o excerto abaixo da crítica de Octavio Tarquínio de Sousa: Nenhum livro é menos ‘roman-fleuve’ que S. Bernardo. Nessas duzentas e dezoito páginas secas, estritas, concentradas, o sr. Graciliano Ramos, pôs apenas o essencial. Grande inimigo do supérfluo, do derramado, em S. Bernardo não há nada inútil, não 58MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 97. 59HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2017. p. 474. 60Para um estudo mais completo do periódico, ver: LUCA, Tania Regina de. Periódicos lançados por editoras: o caso do Boletim de Ariel (1931-1939). História, Franca, v. 36, e. 32, 2017. Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2020. 61HALLEWELL, Laurence. Op. cit., p. 475. 62Ibid. p. 475. 34 há tempo perdido. Nenhuma paisagem para enfeitar, nenhum quadro que pudesse ser dispensado.63 Figura 2: Primeira edição de S. Bernardo (1934), publicada pela Ariel Fonte: Miguel Salles Escritório de Artes. Disponível em: . Acesso em 20 de abr. 2021. O enredo de Paulo Honório ressalta a personalidade forte e dominadora de seu narrador, que entremeia sempre a impressão de total redução do outro diante de si mesmo, isto é, a tudo aplica a visão de que apenas o interesse pessoal conta. A função utilitária da necessidade do outro é logo anunciada: sem mulher não há herdeiros para S. Bernardo – a fazenda administrada por Honório. É importante pontuar que o outro é especialmente desconhecido e, por isso, difícil de se submeter. O desejo de Paulo Honório é de se casar com uma criatura que ficasse reduzida à sua fragilidade.64 Ao contrário de João Valério, que se lança numa aparente busca pela erudição e cultivo da intelectualidade, Paulo Honório devota enorme desprezo pela atividade intelectual, mesmo assumindo as rédeas de seu próprio romance. Portanto, na contramão de Caetés, que se horizontaliza na mediocridade de seus personagens, S. Bernardo é centralizado pela explosão de uma personalidade dominante, enfurecida por um sentimento dominador. Honório corporifica uma paixão dotada essencialmente de ciúmes. No estudo – patológico até certo 63SOUSA, Octavio Tarquinio de. Vida literaria. O Jornal. Rio de Janeiro, p. 4. 17 fev. 1935. 64BUENO, Luís. Graciliano Ramos. In: Uma História do Romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 2006. p. 597-664. 35 ponto – dos sentimentos humanos, expostos por Caetés e S. Bernardo, Graciliano sugere que a maneira de viver condiciona o modo de ser e pensar.65 Vale ressaltar, também, que S. Bernardo não ficou imune às críticas articuladas, em grande parte, pela esquerda. Segundo Aderbal Jurema,66 o romance seria melhor que Caetés, mas ainda faltariam os ingredientes principais: o movimento de massas, o espírito de revolta e o enfoque documental sobre a vida dos humildes. Havia, já nessa época, um modelo bem claro de romance de esquerda (bem próximo ao estilo de Cacau, de Jorge Amado); com as questões literárias em segundo plano, S. Bernardo certamente não fazia parte desse modelo, como apontado pela “crítica de esquerda”.67 A partir de uma construção introspectiva aliada à preocupação social, S. Bernardo se coloca no centro da história do romance de 30, indicando os caminhos que as melhores obras do período vão acabar seguindo. Graciliano Ramos se destaca, dessa maneira e desde a estreia com Caetés, como um dos mais importantes romancistas da década, ao aprofundar-se em questões psicológicas e sociais sem a intenção de agradar a crítica dos intelectuais próximos a ele, nem de abdicar de sua posição política sempre evidente – que se intensificaria com sua prisão em 1936.68 Entendendo, assim, que havia uma crescente evolução (em níveis de composição, estética e temática) de Caetés, seu primeiro romance, a S. Bernardo, havia uma atmosfera de expectativa diante de seu próximo romance. Seguindo a construção literária da época, em torno da figura do proletário, Graciliano era alvo dos questionamentos da crítica de esquerda que não entendia as razões pelas quais o autor preferia dar voz a personagens da pequena burguesia e até a um proprietário de terras em vez de mergulhar diante da vida do proletariado. Tais questionamentos são de suma importância para entender o trabalho literário do autor, que se empenhava em construir histórias que não perdessem a profundidade, nem caíssem em estereótipos ou populismo. Sobre esta problemática, cabe pensar que – talvez – não seja responsabilidade da literatura ter autoridade ou propriedade para se escrever sobre algo de maneira eficaz, porém, ao refletir sobre como o intelectual – que escreve o romance de 30 e não está nas camadas sociais mais baixas – teria a propriedade para mergulhar na figura do outro, 65CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2012. p. 31-38. 66JUREMA, Aderbal. S. Bernardo de Graciliano Ramos. Boletim de Ariel, dezembro de 1934. 67BUENO, Luís. Uma História do Romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 2006. p. 238-241. 68Ibid. p. 243. 36 Graciliano questionou a existência de romances e autores populares no Brasil e pontuou a incapacidade de penetração nas massas: Acho que as massas, as camadas populares não foram atingidas e que nossos escritores só alcançaram o pequeno-burguês. Por quê? Porque a massa é muito nebulosa, é difícil interpretá-la, saber de que ela gosta. Além disso, os escritores, se não são classe, estão em uma classe, que não é, evidentemente, a operária. E do mesmo jeito que não puderam penetrar no povo, não podem dizer o motivo pelo qual não conseguiram isso. [...] Talvez seja isso mesmo: talvez porque um escritor não sente os problemas como o povo, este não o deixe penetrar nele. [...] Um burguês só pode fazer contrafação quando trata um tema proletário.69 Jorge Amado (autor de Cacau e Suor, por exemplo) lidou bem com essas questões pontuadas pela crítica. Assumindo sua preferência política pelo comunismo e tornando-se ativista da causa operária, criou romances em que a questão social partia de dentro dos movimentos proletários. Deu voz aos oprimidos e obteve sucesso em superar as distâncias que havia entre o intelectual e o trabalhador por meio de seus estudos da realidade social desenvolvidos de forma quase jornalística. Em Suor, a distância é criada pelo intelectual, de modo voluntário, como representação de um orgulho elitista.70 Por tal feito, foi considerado um expoente da literatura dessa época, que buscava dar destaque às massas. Graciliano, desde Caetés, traz essa problemática para a ficção. Diante da figura de candidato a escritor de João Valério, o autor explicita a divisão entre o aspirante a intelectual aos mendigos, que são vistos com horror e desprezo pelo protagonista.71 Analisando o fazer literário de Graciliano, é importante considerar tais inquietações – tanto em nível de construção do romance, quanto no nível da crítica literária – para os romances futuros do autor. Se Caetés figura como elemento inicial e preambular de uma técnica literária que se desenvolveria plenamente ao longo da produção de Graciliano e S. Bernardo mostra-se como realização, mesmo que em partes, dessa técnica que une o social e o psicológico, é preciso considerar a expectativa e a receptibilidade da crítica para o próximo romance. 1.3. OS ANOS DE 1936 A 1938: TENSÕES POLÍTICAS E ESTABILIDADE LITERÁRIA 69Graciliano Ramos em entrevista a Ernesto Luiz Maia. Cf. LEBESZTAYN, Ieda; SALLA, Thiago Mio (Orgs.). Graciliano Ramos: conversas. Rio de Janeiro: Record, 2014. p. 140. 70BUENO, Luís. Uma história do Romance de 30. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da Universidade de Campinas, 2006. p. 248-249. 71RAMOS, Graciliano. Caetés. Rio de Janeiro: Record, 2019. p. 212-213. 37 Levando em conta o autoritarismo que guiou as políticas públicas brasileiras no Governo Vargas e estabeleceu medidas restritivas e de censura ao que era considerado subversivo e representava uma ameaça aos moldes conservadores, torna-se importante dar atenção ao período em que o terceiro romance de Graciliano – Angústia – é publicado, que coincide, sem surpresas, com a sua prisão sob a acusação de “comunismo”. É interessante, também, observar o movimento da crítica diante do auge do romance social, ao mesmo tempo em que as forças políticas protagonizam a clara polarização entre esquerda e direita. A análise do romance estará acompanhada de textos críticos e será baseada, fundamentalmente, nas apreciações feitas por Antonio Candido em Ficção e confissão; contudo, será somente apresentada no terceiro e último capítulo desta dissertação. Por enquanto, é interessante compreender o processo de composição do romance e o seu tenso momento de publicação no ano de 1936. Ao lado de Angústia (1936), está o quarto romance de Graciliano, Vidas secas (1938). A exposição do momento de escrita e publicação da narrativa “desmontável” nos dá subsídios para entender e considerar o movimento de consagração literária do alagoano em nossa literatura. 1.3.1. PRISÃO, ANGÚSTIA (1936) E A CÉLEBRE EDITORA JOSÉ OLYMPIO Com a publicação de S. Bernardo em 1934, Graciliano deu continuidade ao seu ofício literário partindo para a composição de um terceiro romance. Naquela época, trabalhava como diretor da Instrução Pública de Alagoas, tendo sido nomeado em janeiro de 1933 pelo novo interventor, Afonso de Carvalho, misto de militar e literato. Em carta à esposa Heloísa, em meados de março de 1935, Graciliano revelou as primeiras referências ao novo romance: [...] Em seguida retomarei o trabalho interrompido há cinco meses. Julgo que continuarei o Angústia, que a Rachel [de Queiroz] acha excelente, aquela bandida. Chegou a convencer-me de que eu devia continuar a história abandonada. Escrevi ontem duas folhas, tenho prontas 95. Vamos ver se é possível concluir agora esta porcaria.72 A fala do autor aponta o entusiasmo de Rachel de Queiroz para a continuidade de seus escritos. É interessante relacionar tal fato à rede de sociabilidade da qual Graciliano fazia parte; os membros intelectuais, em sua maioria autores, colaboravam para a produção do grupo, apoiando romancistas e incentivando os processos de composição de novas obras. Além de 72RAMOS, Graciliano. Cartas. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 187. 38 Rachel de Queiroz, é comum a menção a Jorge Amado e José Lins do Rego nas correspondências de Graciliano quando descreve o processo de escrita de seus romances. Ainda durante a troca de cartas com Heloísa no ano de 1935, Graciliano volta a escrever sobre suas experiências diante da composição de Angústia, ora em menção ao número de páginas que tinha escrito, ora em relação aos aspectos da narrativa. [...] Marina continua em vergonhosa atracação com o Julião Tavares. O ciúme de Luís da Silva é uma doença horrível. O marido de d. Rosália apareceu ultimamente, creio que já lhe disse. Depois castrou-se um moleque nos paralelepípedos. [...] Ontem à noite Luís da Silva tirou da raiz da mangueira dezessete mil-réis em prata e duas libras esterlinas que Vitória tinha enterrado. [...] Quinta-feira passei o dia numa excitação dos pecados. [...] Nunca trabalhei assim, provavelmente um espírito me segurava a mão. [...] Estou em grande atrapalhação para matar Julião Tavares. Cada vez me convenço mais de que não tenho jeito para assassino. Ando procurando uma corda, mas, pensando bem, reconheço que é uma estupidez enforcar esse rapaz, que não vale uma corda.73 No trecho, é interessante notar o profundo envolvimento de Graciliano com o processo de escrita. Mescladas aos outros acontecimentos pessoais narrados em carta, as revelações sobre o romance figuram quase como confissões; isto é, a proximidade de Graciliano com a própria narrativa é tanta, que as realidades das vivências do autor juntam-se às realidades vividas pelos personagens da obra. Tamanha relação com a composição indica a total dedicação ao seu próximo romance; para escrever Angústia, Graciliano impôs a si mesmo quase um retiro espiritual aos fins de semana.74 A profunda dedicação do escritor acabou acentuando seu vício por aguardente, já que, durante a escrita, estava sempre acompanhado de café, alguns maços de cigarro Selma – seu favorito – e cachaça. Anos depois, o filho Ricardo confirmaria que a composição de Angústia teria sido um fator relevante ao agravo do vício alcoólico de Graciliano graças ao tom sofrido de sua narrativa.75 Há, inclusive, um episódio curioso sobre a composição do romance: num momento alucinatório, – talvez por conta da bebida – o autor acabou jogando os manuscritos originais numa lata de lixo no quintal de casa. Heloísa, que se viu em desespero, pediu a ajuda de Rachel de Queiroz para recuperar os papéis. Rachel relembrou o episódio, dizendo: Angústia era movido a cachaça. Uma manhã, Heloísa, muito apreensiva, me chamou lá e fomos procurar os originais. Ele os havia jogado fora depois de uma noite especialmente angustiado. Afinal, achamos os papéis, bastante sujos, no meio de uma cesta com restos de frutas e legumes, no quintal. Limpamos os papéis e passamos uma descompostura muito grande nele.76 73Ibid. p. 203-204. 74MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 100. 75Ibid. p. 103. 76Rachel de Queiroz apud MORAES, Dênis. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 103. 39 Conforme já mencionado, a rede de sociabilidade de Graciliano era muito forte e muito presente em sua vida literária. Rachel de Queiroz ajudara Heloísa a recuperar os originais e José Lins do Rego passara a intermediar o contato entre Graciliano e a editora José Olympio para a publicação de Angústia. Jorge Amado, que trabalhava no setor de publicidade da editora, ficou responsável por pedir os originais, já que a José Olympio planejava publicar o romance ainda em 1935.77 Próximo ao fim da composição do romance, Graciliano relatou a Heloísa que José Lins do Rego e Jorge Amado haviam pedido cópias do texto, afim de tirar as primeiras impressões de leitura e encaminhá-lo ao editor: [...] O Angústia vai indo. Estão emendadas duzentas e quatro páginas. Dentro de um mês estará concluído e datilografado. Recebi novas cartas do Zélins [José Lins do Rego] e do Jorge [Amado] pedindo-o. Ainda não dei resposta, mas vou dizer que mandarei os originais quando o editor enviar os cobres. Não tenho confiança nos editores, uns ratos.78 Na mesma carta, Graciliano pontuou – de forma descontraída – que só mandaria os originais depois que recebesse o pagamento, pois não confiava nos editores. O escritor havia passado por duas editoras até então; em Caetés (1933) com Augusto Frederico Schmidt, e em S. Bernardo (1934) com a Ariel, de Gastão Cruls e Agripino Grieco. Para a publicação de Angústia, Graciliano havia recebido uma boa proposta da editora José Olympio. A Casa José Olympio era situada à célebre rua do Ouvidor, número 110, quase em frente à Livraria Garnier, no Rio de Janeiro. Criada em São Paulo, a José Olympio se estabeleceu na capital carioca por volta de 1934 com a intenção de dedicar-se à publicação de literatura brasileira. Contudo, de início, a editora publicou obras de autores já estabelecidos – como foi o caso da reedição de A ronda dos séculos, de Gustavo Barroso – e textos sobre a psicanálise, que muito atraía os leitores brasileiros. Era uma estratégia para minimizar os riscos que envolviam o mercado editorial.79 Ao longo dos anos 1930, a José Olympio conseguiu firmar parceria com os grandes autores do momento, como José Lins do Rego, Jorge Amado, Oswald de Andrade, Lúcio Cardoso, Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre e Lúcia Miguel Pereira. Tais alianças foram fundamentais para que a casa se tornasse a editora de maior prestígio da época, publicando as 77Ibid. p. 103. 78RAMOS, Graciliano. Cartas. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 215. 79HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2017. p. 482. 40 grandes obras da década. Além do expressivo mercado editorial, a José Olympio também formou uma rede de sociabilidade coesa, reunindo em seu ambiente desde autores estreantes aos experientes, que se dedicavam a discutir política, literatura e amenidades. Em depoimento sobre a José Olympio, Graciliano Ramos declarou: Há ali crentes e descrentes, homens de todos os partidos, em carne e osso ou impressos nos volumes que se arrumam nas mesas, muitos à esquerda, vários à direita, alguns no centro. O editor é liberal. Se tem simpatia para qualquer extremidade, oculta-a. Aparentemente está no meio: aceita livros de um lado e de outro, acolhe com amizade pessoas de cores diferentes ou sem nenhuma cor. Os acadêmicos são raros.80 A fala de Graciliano deixa claro o caráter diplomático de José Olympio em relação aos autores que faziam parte da editora; publicava os de esquerda (como Jorge Amado e o próprio Graciliano) e os de direita (como Plínio Salgado), sem definir sua posição diante da polarização. Em relação ao Estado Novo, mesmo que José Olympio fosse uma figura respeitada, a casa não passou ilesa à censura; não só as publicações foram hostilizadas, mas os autores considerados “subversivos” foram perseguidos e presos – como foi o caso de nosso escritor alagoano conforme veremos adiante. No entanto, a postura de neutralidade de José Olympio não impediu que o mesmo continuasse publicando obras de autores de esquerda nos períodos de repressão. No caso de Jorge Amado, por exemplo, depois de solto, além de ter seus romances publicados, passou a fazer parte da equipe editorial da casa.81 A história de sucesso da José Olympio perdurou por décadas e abraçou inúmeras obras e prestigiosos autores brasileiros, como Guimarães Rosa.82 Contudo, em meados de 1980, a situação financeira e o mercado editorial entraram em crise devido às altas nos preços de papel. Tais dificuldades causaram o declínio da José Olympio, que apesar dos percalços conseguiu resistir até o fim da década de 1990. Em 2001, todo o catálogo (que contava com mais de seis mil títulos) foi comprado pelo grupo editorial Record.83 Voltando ao período que nos interessa: durante o ano de 1935, as tensões políticas e sociais no Brasil se intensificaram de modo muito claro. Conforme o Governo Vargas avançava com sua política capitalista de industrialização, o contingente de trabalhadores urbanos crescia 80RAMOS, Graciliano apud LUCA, Tania Regina de. Leituras, projetos e (re)vista(s) do Brasil (1916-1944). São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 158. 81HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2017. p. 499. 82Sobre a relação amistosa entre José Olympio e Guimarães Rosa, ver: BORELLI, Dario Luis. José Olympio, editor de Guimarães Rosa. Estudos avançados, São Paulo, v. 20, n. 58, p. 65-72, dez. 2006. Disponível em: . Acesso em: 24 out. 2020. 83Idem, 2017. p. 535. 41 de modo proporcional. De forma a solidificar os amplos poderes do Estado, Getúlio afirmava acordos com as elites e diminuía progressivamente o direito de manifestação popular justamente no momento em que as reivindicações trabalhistas estavam em alta devido ao surto industrial. A ascensão do fascismo e do nazismo no cenário internacional colaborava positivamente para o fortalecimento dessa política getulista. O embate ideológico estava em torno de dois grupos emblemáticos para os anos 1930: a ANL (Aliança Nacional Libertadora, à esquerda do espectro político) e a AIB (Ação Integralista Brasileira, à direita do espectro político e pró-fascismo). Ao passo que as políticas de Vargas se intensificavam, a resposta combativa vinda da ANL também crescia. Não demorou muito para que o governo tomasse medidas autoritárias em relação à oposição. Por meio da Lei de Segurança Nacional, Getúlio Vargas decretou o fechamento da ANL como forma de calar opositores e evitar que outros movimentos se levantassem contra o poder. A crise política no Brasil era um dos principais assuntos das reuniões de literatos que aconteciam no Bar Central, em Maceió. Os membros se definiam como antifascistas e antigetulistas, mas compunham um quadro diverso em relação à esquerda política; Alberto Passos Guimarães era secretário regional do PCB; Rachel de Queiroz e seu esposo, José Auto, haviam rompido com o comunismo e se aproximavam do trotskismo; Graciliano possuía profunda afinidade com o marxismo e simpatizava com a ideologia da esquerda, mas ainda não se definia muito bem. O que é importante deter, neste momento, é que o grupo não simpatizava com a luta armada proposta pelos opositores do governo, que – com o fechamento da ANL –, se encontravam marginalizados e agiam na ilegalidade. Sobre a revolução, Graciliano afirmava, de forma irônica, que “a revolução social me levaria à fome e ao suicídio. Mas como, segundo o Evangelho, nem só de literatura vive o homem, é razoável que se procure o bem-estar dos outros trabalhadores”.84 Contrariando o desejo das camadas populares, a Internacional Comunista (IC) endossou a luta armada no Brasil a partir de um desejo de levante e revolução populares. Com a solidariedade do PCB, iniciaram-se movimentos para a derrubada do regime de Vargas em diversas áreas do país. Porém, como era de se esperar, todos os levantes foram neutralizados pelas forças armadas e seus participantes punidos. 84Graciliano Ramos apud MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 108. 42 Durante o acontecimento dos movimentos, Graciliano estava concentrado em finalizar Angústia e declarava-se alheio a tudo que acontecia fora de seu cômodo.85 A repressão aos comunistas foi severa. Vargas havia decretado estado de sítio e tal fato suspendia as garantias constitucionais. Logo, as casas de detenção abarrotaram-se de sindicalistas, intelectuais, professores universitários e quaisquer outros que fossem considerados subversivos. O clima de forte tensão política mexia com os nervos do alagoano, que passou a se preocupar com a instabilidade e, principalmente, com os rumos autoritários tomados pelo governo Vargas. Entretanto, precisava comprometer-se a finalizar a escrita de Angústia, enviar alguns contos para a Argentina86 e dar conta de seu expediente na Instrução Pública.87 No início do ano de 1936, o trabalho na Instrução Pública tornou-se mais pesado; Graciliano passou a receber ligações anônimas em busca de seu endereço. Tentou lidar com frieza, mas se preocupava muito. Ainda em 1935, uma coluna publicada na Gazeta de Alagoas, assinada por José Silveira, alegava irregularidades na administração da Instrução Pública. Espantado com a suposta denúncia, Graciliano esclareceu os fatos a Silveira, com a intenção de dissipar as calúnias. Nesse sentido, também aproveitou para prestar contas dos serviços que estava realizando em prol da democratização da educação em Maceió. No entanto, os ataques a Graciliano demonstravam a pressão e a trama que se montava para derrubá-lo.88 Em fevereiro de 1936, o filho do governador de Alagoas, Rubem Loureiro, foi ao encontro de Graciliano em seu gabinete, alegando que seu pai precisava substituí-lo no cargo e não gostaria de demiti-lo sem razão. Pediu, então, que Graciliano se afastasse voluntariamente. Entendendo o cenário persecutório, Ramos não hesitou em recolher seus pertences e se retirar da função. A perseguição aos “comunistas” arquitetada por Getúlio Vargas havia chegado a Graciliano Ramos. Mais uma vez desempregado e sem perspectivas, o autor sabia que as políticas integralistas haviam tido grande influência em sua atual situação e que, consequentemente, não demoraria muito para ser preso. Em meio a todo caos político, Graciliano apressou-se para concluir os últimos ajustes em Angústia. Numa manhã de março 85Ibid. p. 109. 86Em 1935, o tradutor argentino, Benjamín de Garay, entrou em contato com Graciliano por meio de uma carta pedindo os exemplares de Caetés (1933) e Angústia. Benjamín se dedicava à difusão de nossa literatura na Argentina e já havia traduzido cerca de trinta livros. Ramos respondeu, enviando exemplares de Caetés (1933) e S. Bernardo (1934), e alegou estar na conclusão de Angústia. Em contatos seguintes, então, Garay pediu para que Graciliano lhe enviasse algum conto para publicação em uma revista ou um jornal de Buenos Aires. Em: MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 104. 87Ibid. p. 110. 88Ibid. p. 111. 43 de 1936, o escritor entregou os originais do romance à datilógrafa; à noite, no mesmo dia, recebeu a visita de um oficial do Exército: de fato, Graciliano estava preso. O motivo da prisão do autor pairou sobre uma nebulosa de incertezas, afinal, não havia concretudes que substanciassem tal fato. Nesse sentido, é preciso ter em mente os acontecimentos anteriores à prisão de Graciliano, principalmente os que dizem respeito ao levante de 1935. Após a neutralização dos opositores, Vargas encontrou a necessidade de perseguir e tirar de circulação todo e qualquer cidadão que representasse oposição ou insatisfação em relação ao governo; a intenção era livrar o país de uma “ameaça vermelha”. Segundo o depoimento de Nelson Werneck Sodré: Não foram os problemas sociais que determinaram a prisão de Graciliano; foram questões de ordem ideológica. Na Instrução Pública, ele seguia à risca os seus princípios, era igual para todos, premiava os que mereciam, defendia os professores – era um homem de primeira ordem. Havia desgostosos, pessoas que foram feridas em seus interesses. A tarefa de prendê-lo, o oficial a executou a mando do general Newton Cavalcanti, cujo nome eu evito declinar para que não sobreviva ao esquecimento. [...] Como comandante da 7ª Região Militar, e já adepto do integralismo, tratou de fazer uma limpeza de todos aqueles que suspeitava serem simpatizantes do comunismo. Nessa leva foi apanhado o Graciliano.89 De Maceió, os presos políticos foram levados a Recife e, posteriormente, ao Rio de Janeiro num navio. Durante a viagem, Graciliano teve contato com condições humanas, de higiene e alimentação bastante precárias. Quando chegaram à cidade carioca, foram encaminhados para a Casa de Detenção, situada à rua Frei Caneca.90 Neste momento, é de suma importância dar destaque à figura de Heloísa, que, aos 26 anos, enfrentou o Rio de Janeiro na tentativa de tirar o marido da prisão. Para tanto, percorreu a Chefatura de Polícia, o Palácio do Catete e os Ministérios da Justiça e da Guerra. Periodicamente, também fazia visitas a Graciliano, informando-o dos ocorridos. Foi também Heloísa quem se incumbiu de enviar o conto “A testemunha” para Buenos Aires e quem se responsabilizou por entregar o original datilografado de Angústia para a editora José Olympio. Graciliano recebera a notícia de produção de seu romance num misto de satisfação e preocupação, uma vez que não pôde revisar uma última vez os originais datilografados. Durante a prisão, Graciliano escreveu poucos bilhetes a Heloísa, já que estes passavam por censura. O teor dos recados era sempre muito objetivo ao redor dos desdobramentos do 89Nelson Werneck Sodré apud MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 115. 90Ibid. p. 121. 44 cárcere, e tratava, por vezes, das quantias de dinheiro que Graciliano recebia de Heloísa. Ainda assim, em algumas ocasiões, o autor chegou a pedir para que Heloísa guardasse os textos críticos sobre Angústia.91 Em meio a tantas inquietações sobre sua composição, Graciliano sentia-se desesperançoso em relação ao romance, dizendo: “Se não me engano, o Angústia morreu”.92 Ao contrário do que pensava Graciliano, o Angústia não estava morto; em agosto de 1936, o romance foi publicado pela José Olympio. É importante pontuar, porém, que o terceiro romance de Graciliano guarda diversos embates e tensões da crítica literária em sua história. Tamanha dose de introspecção, aliada a uma análise social das desigualdades causadas pela modernização tardia no Brasil, causou – tanto na crítica, como nos próprios depoimentos do autor – um estranhamento sem precedentes.93 Figura 3: Primeira edição de Angústia (1936), publicada pela José Olympio Fonte: Mundo Educação. Disponível em: . Acesso em: 20 de abr. 2021. O aparecimento de Angústia provocou, também, uma grande movimentação dos intelectuais envolvidos na imprensa em prol da liberdade de Graciliano. São os casos, por exemplo, de Murilo Miranda, Moacir Werneck de Castro e Octavio Tarquínio de Souza.94 Por 91RAMOS, Graciliano. Cartas. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 225. 92Ibid. p. 225. 93A relação entre a crítica e o romance Angústia será aprofundada e melhor delineada no terceiro capítulo desta dissertação. 94MORAES, Dênis de. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 141. 45