UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - CAMPUS DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DANILO ANDREATTA A INQUIETUDE DO HOMEM SEGUNDO AGOSTINHO UM ESTUDO DO TEMA NAS CONFISSÕES, LIVROS I, VIII e X MARÍLIA 2014 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS - CAMPUS DE MARÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DANILO ANDREATTA A INQUIETUDE DO HOMEM SEGUNDO AGOSTINHO UM ESTUDO DO TEMA NAS CONFISSÕES, LIVROS I, VIII e X Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista - UNESP - campus de Marília, como requisito para a obtenção do título de mestre em filosofia. Orientador: Dr. Andrey Ivanov. MARÍLIA 2014 Andreatta, Danilo. A557i A inquietude do homem segundo Agostinho: um estudo do tema nas Confissões, Livros I, VIII e X / Danilo Andreatta. – Marília, 2014. 75 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, 2014. Bibliografia: f. 72-75 Orientador: Andrey Ivanov. 1. Agostinho - Santo, Bispo de Hipona, 354-430. 2. Inquietude. 3. Vontade. 4. Amor. 5. Memória. I. Título. CDD 189.2 DANILO ANDREATTA A INQUIETUDE DO HOMEM SEGUNDO AGOSTINHO UM ESTUDO DO TEMA NAS CONFISSÕES, LIVROS I, VIII e X BANCA EXAMINADORA Coorientador:_________________________________________________ Dr. Sinésio Ferraz Bueno (UNESP - Marília) 2º examinador:________________________________________________ Drª. Mariana Paolozzi Sérvulo Cunha (Univ. Federal de Santa Catarina) 3º examinador:________________________________________________ Dr. Matteo Raschietti (UNESP - Marília) 1º suplente:___________________________________________________ Dr. Joel Gracioso (Faculdade de São Bento - São Paulo) 2º suplente:___________________________________________________ Dr. Reinaldo Sampaio Pereira (UNESP - Marília) Marília, 25 de Novembro de 2014 AGRADECIMENTOS Agradeço, de maneira muito especial … … a Deus, que me chamou à vida e me deu a graça de realizar este trabalho. Agradeço de modo particular pessoas que estimo muito … … ao meu orientador Andrey Ivanov, que com muito zelo e dedicação se empenhou nesta pesquisa. Grato pela paciência que teve em minhas dificuldades filosóficas e atrasos. … à minha esposa Daniela, que sempre me incentivou na dedicação aos estudos, sempre fazendo o possível para que chegasse até aqui. ...à professora Mariana Palozzi Sérvulo da Cunha, que na sua leitura minuciosa destacou com rigor pontos essenciais da filosofia de Agostinho. ...ao professor Matteo Raschietti, pela nossa amizade e incentivo nesta etapa de formação. … aos meus familiares, que sempre demonstraram preocupação para com o término deste trabalho. ... aos meus amigos, que me apoiaram no caminho do magistério. … enfim, agradeço a todos que de forma particular ajudaram-me a chegar ao final desta etapa. RESUMO Santo Agostinho considera que homem possui naturalmente a vontade da vida feliz e da verdade. Ele se reconhece como um ser inquieto e que quer encontrar o repouso. Na obra Confissões, relata o seu erro e as etapas da sua conversão. Investigando a sua própria interioridade, encontra Deus na memória e, simultaneamente, como aquele que a transcende. Enquanto espera a posse da beatitude, vive o perigo das concupiscências. Palavras-chave: Inquietude. Vontade. Amor. Memória. Agostinho, Santo (354-430). ABSTRACT Saint Augustine considers that man naturally possesses the will of happy life and truth. He recognizes himself as a restless being and that wants to find the rest. In the work Confessions, reports his error and the steps of his conversion. Investigating his own interiority, finds God in memory and simultaneously as one that transcends it. While waiting the possession of beatitude, lives the danger of concupiscences. Keywords: Inquietude. Will. Love. Memory. Augustine, Saint (354-430). SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................. 1 1. A INQUIETUDE DO HOMEM.................................................................................. 3 1.1. O itinerário pessoal............................................................................................... 4 1.2. A nostalgia do coração.......................................................................................... 6 1.3. A desordem da vontade......................................................................................... 14 2. DA PERVERSÃO DA VONTADE À CONVERSÃO.................................................. 26 2.1. O movimento de interiorização e a conversão da mente...................................... 29 2.2. A vontade pecadora............................................................................................. 33 2.3. A libertação através da graça............................................................................... 46 3. DA MEMÓRIA AO AMOR A DEUS......................................................................... 50 3.1. A vontade de conhecer a Deus.............................................................................. 51 3.2. Da realidade sensível à realidade espiritual.......................................................... 54 3.3. A presença de Deus na memória........................................................................... 56 3.4. O perigo da tríplice concupiscência e a mediação do Cristo................................ 66 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................... 70 BIBLIOGRAFIA............................................................................................................ 72 1 Introdução Em seus escritos, Santo Agostinho reconhece sua vontade pelo infinito. Poderíamos dizer que sua vida resume-se a uma longa busca de Deus. O próprio homem possui uma inquietude enquanto não atinge o repouso. O texto das Confissões configura um diálogo com Deus, no qual Agostinho expressa suas misérias e limitações, ao mesmo tempo em que faz ressaltar a misericórdia divina. Tudo resume-se ao amor a Deus, sendo que na divindade está o repouso almejado. O ente criado vive, com efeito, na região da dessemelhança (regio dissimilitudinis), marcada pelo erro e, por isso, distante do ente criador. No entanto, o homem possui em si a vontade de felicidade e de verdade. Esse é o pressuposto de Agostinho para a sua busca. A inquietude nasce do fato de a criatura sentir uma nostalgia do criador, e querer unir-se a ele, mas ao mesmo tempo sente-se incapaz devido ao seu erro. Entretanto, permanece o vínculo ontológico com Deus e as criaturas não estão abandonadas. Assim, Deus cria e sustenta a sua criação. O itinerário de Agostinho consiste numa vivência de crises e de paradoxos. Não se trata apenas de um questionamento, mas de um exame interior. A leitura do Hortênsio, faz com que Agostinho desperte por meio da vontade da verdade e da sabedoria. Nessa procura, cai em diferentes correntes de pensamento, como o maniqueísmo e o estoicismo. Nosso trabalho, é composto de três capítulos. O primeiro capítulo diz respeito ao início do livro I, destacando o tema da vontade natural humana. Agostinho mostra que a criatura humana é naturalmente inquieta e busca o repouso. Depois, salientamos o estado de perversão da vontade no primeiro parágrafo do livro III, de maneira que o objeto do amor são as criaturas em vez do criador. Detectamos nisso o pecado e o esquecimento parcial de Deus como primeiro princípio de todos os seres. Mas o homem toma consciência da mutabilidade dos seres e de seu estado doentio, por isso, busca sua própria conversão. No segundo capítulo, sublinhamos a necessidade da conversão. O erro provoca a perversidade da vontade (livro II), da inteligência (livro III) e da sensibilidade (livro IV). Enfatizamos a abordagem no final do livro VII, onde Agostinho trata da conversão 2 da mente, e no livro VIII, em que esboça o processo de conversão da vontade. Ora, se antes o orgulho fora a causa da perversão, agora a humildade é a condição essencial para a conversão. Porém, o homem sozinho não é capaz de realizar esse processo e necessita do auxílio divino, que vem em seu socorro, restaura a vontade, sem afetar o livre-arbítrio. Enfim, no terceiro capítulo, encontramos a vontade sob o influxo da graça. Agora quer-se encontrar a Deus. Analisamos o livro X, seguindo os passos que Agostinho desenvolve ao procurar a Deus na memória, relacionando a memória do esquecimento com o erro. Procuramos mostrar como o homem encontra a Deus na memória, e ao mesmo tempo a transcende. No entanto, a criatura humana permanece no seu estado de criatura, propensa a todas as tentações das concupiscências, que a todo momento a rodeiam. Daí a necessidade da mediação do Cristo. 3 1. A inquietude do homem Ao tomarmos as Confissões como texto de base do presente trabalho, sobressai seu plano de retórica. Trata-se da obra mais conhecida de Agostinho, que desafia o leitor a descobrir o percurso realizado por meio de narrações, comentários e preces. Não se trata de um itinerário que possa ser apreendido como sequência linear. Daí resulta que a obra Confissões constitui-se de encontros de experiências do passado com expectativas de um futuro, numa espécie de movimento pendular. Neste capítulo, examinaremos o livro I das Confissões1 no tocante às revelações de um Agostinho inquieto e a sua cupidez (cupiditas),2 que procura nos bens finitos o repouso da sua inquietude. O texto possui um sentido mais profundo do que nos parece à primeira vista. Na antiguidade, reconhecer e confessar eram principalmente atos levados diante de um tribunal. Aqui, confissões referem-se a relatos de uma vida, em que os acontecimentos narrados mostram tropeços e acertos, desde os atos mais comuns até à expressão do que está na interioridade. A trama dos acontecimentos faz das Confissões um certo encadeamento temático sugerido pela história particular e que pode ser inferida para o homem em geral: “A quem conto isso? Não é a ti, meu Deus. Mas é na tua presença que eu conto isto aos da minha espécie, o gênero humano.”3 Confessar significa aqui reconhecer a miséria humana diante da misericórdia divina. Trata-se de estabelecer um diálogo humilde com Deus, e de retornar a ele através da alma. Mesmo a sagacidade humana gera uma inquietude: “E quem é o homem, qualquer homem, sendo homem?”4 Para que o homem volte-se para si, é necessário que se afaste de tudo o que se apresenta como superficial e exterior. Entretanto, a busca pela 1 AGOSTINHO, S. Confissões. Tradução Portuguesa de Arnaldo do Espírito Santo, João Beato e Maria Cristina de Castro-Maia de Souza Pimentel. 2ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da moeda, 2004. 2 Amor mundi, amor huius saeculi cupiditas dicitur [Amor ao mundo, o amor deste mundo é chamado de cobiça] En. in Ps. XXXI, 2. Assim, Cupiditas é um termo geral, que envolve todos os tipos de cobiça. Cf. Conf. X, 41, 66. 3 Conf. II, 3, 5: Cui narro haec? Neque enim tibi, Deus meus, sed apud te narro haec generi meo, generi humano. 4 Ibid. IV, 1, 1: Et quis homo est, quilibet homo, cum sibo homo? 4 interioridade não despreza e nem desconsidera o mundo exterior, pois os homens servem-se da própria experiência e das coisas sensíveis.5 A beleza deste percurso enriquece-se enquanto se perscruta o que existe de mais íntimo no homem. O que pode haver, aliás, de mais inquietante para o homem senão a pergunta sobre o sentido da sua existência? Agostinho não formula respostas instantâneas, antes vai ao cerne das questões querendo compreendê-las através da sua própria experiência. Ele combina sua autobiografia com uma reflexão sobre os temas suscitados na narrativa. Na medida em que avançamos na leitura, somos interpelados e surpreendidos com interrogações que amplamente visam perscrutar sua interioridade. Essa procura, ou movimento ascensional da alma, não é opcional ou facultativa. O homem possui em si o amor a Deus, uma vez que ama a verdade e a vida feliz.6 Resulta que ele tem por vocação a consumação da sua felicidade em Deus. Mas para isso, precisa necessariamente seguir um percurso, voltar-se para si e abrir sem reservas o coração.7 É um aproximar-se de Deus e de si mesmo, uma vez que Deus é mais íntimo que o seu próprio íntimo.8 Isto fica evidente quando tomamos o itinerário de Agostinho no texto das Confissões. 1.1. O itinerário pessoal Desde sua juventude, ele esteve empenhado na busca da satisfação da própria vontade. Os acontecimentos narrados da sua vida são marcadamente fundantes. A sua inquietude é demonstrada na leitura do Hortênsio de Cícero.9 Depois, por influência da sua mãe, teve um contato com as Escrituras, mas não as compreende e prefere os textos 5 Ibid. X, 6, 8. 6 A vontade da vida feliz é universal nos homens. Nas confissões, assinala-se que a felicidade deve ser mediada pela noção de verdade. Ibid. X, 23, 34: Tamen etiam sic, dum miser est, veris mavult gaudere quam falsis. [Apesar de eles amarem a vida feliz, que não é senão a alegria que vem da verdade.] 7 Ibid, I, 14, 23: Didici vero illa sine poenali onere urgentium cum me urgeret cor meum ad parienda concepta sua. [Aprendi sem a carga penosa de ninguém que me obrigasse, sendo o meu coração a obrigar- me a produzir os seus conceitos.] 8 Ibid. III, 6, 11. 9 Ibid. III, 4, 7: Ille vero liber mutavit affectum meum et ad te ipsum, Domine, mutavit preces meas et vota ac desideria mea fecit alia. [Esse livro contém uma exortação à filosofia e intitula-se Hortênsio. Foi esse livro que mudou os meus afetos e voltou para ti, Senhor, as minhas preces, e fez outros os meus votos e os meus desejos.] 5 de Cícero, onde encontra uma linguagem mais refinada.10 Tendo sido frustrado o encontro com as Escrituras, sente-se seduzido pelo maniqueísmo.11 Os maniqueus pretendiam explicar a existência do mal no mundo, e sua explicação o atraiu, pois era uma questão que sempre o incomodara. É, porém, em Cartago, onde reside, que encontra Fausto, bispo maniqueu, através do qual vê inconsistências no maniqueísmo.12 Após esta decepção, vincula-se aos acadêmicos em Roma.13 O seu período cético é consideravelmente breve.14 Depois, descobre em Milão o neoplatonismo,15 que acredita ser um caminho seguro para superar o materialismo e mais adiante encontrar o cristianismo16 através de Paulo apóstolo, com o qual funda sua filosofia e sua teologia, ressaltando a força da graça para o socorro do homem. Ele considera que os platônicos estão mais próximos do pensamento cristão. Concebem um exame interior do ser humano e elaboram uma metafísica capaz de superar o materialismo. Uma metafísica que compreende o mal como não-ser, corrupção do bem, tendo como origem a própria corrupção do livre-arbítrio.17 Mas se o platonismo o ajudou a superar o materialismo, também possui suas insuficiências; segundo os platônicos, poderíamos apenas contemplar a vida feliz ou beatitude, não a 10 Ibid. III, 5, 9 11 Os maniqueus professavam uma doutrina fundada por Mani ou Manés, e que afirmava a existência de dois princípios cosmológicos: um mundo da Luz e o outro da Escuridão. Fundamentando-se na concepção dualista, os dois princípios, Bem e Mal, são absoluta e substancialmente opostos. Cf. COSTA, 2002, p.97. 12 Fausto era conhecido por sua eloquência. Agostinho tinha muitas perguntas para serem feitas, e frustra- se porque ele não as respondeu. Pouco a pouco, vai se distanciando dessa doutrina que substancializava o mal. Cf. Conf. V, 7, 12. 13 Depois de Agostinho envolver-se com os acadêmicos, escreve o Contra acadêmicos, cujo objetivo consiste em refutar o ceticismo. Cf. GILSON, 2006, p.84. 14 Conf. V, 10, 19. 15 Sobre este aspecto, Marrou comenta: “Para os católicos de Milão, o Neoplatonismo era o que será o aristotelismo para os escolásticos do século XIII, ou seja, a filosofia, a verdade racionalmente estabelecida, uma filosofia retocada aqui e ali, ou transposta, revela-se capaz de ajudar a fé cristã e tomar consciência interna da sua elaborar-se como teologia.” (MARROU, 1958, p.31). 16 Conf. V, 13, 23: Et veni Mediolanum ad Ambrosium episcopum, in optimis notum orbi terrae, pium cultorem tuum, cuius tunc eloquia strenue ministrabant adipem frumenti tui et laetitiam olei et sobriam vini ebrietatem populo tuo. Ad eum autem ducebar abs te nesciens, ut per eum ad te sciens ducerer. [E fui para Milão, para junto do bispo Ambrosio, famoso entre os melhores em toda a terra, teu devoto admirador, cujos discursos naquele tempo distribuíam ao teu povo zelosamente a flor do trigo, e a alegria do azeite, e a sóbria ebriedade do vinho. Para junto dele era conduzido por ti e sem saber, a fim de que por ele, cientemente, fosse conduzido a ti.] 17 GRACIOSO, 2010, p.26. 6 possuir. Daí ele dar importância às cartas de São Paulo para pensar a restauração da liberdade à vontade.18 O itinerário acima refere-se à dimensão intelectual. Mas o itinerário existencial é relatado a partir de sua infância até a idade adulta. O seu coração, cedendo ao orgulho e à vaidade, passou a amar aquilo que não lhe era próprio, causando um afastamento dele próprio como criatura em relação ao criador. Não é distanciamento ontológico, isto é, segundo a dependência das criaturas ao seu criador, mas um distanciamento moral. Agostinho destaca-se na história da filosofia por buscar na própria interioridade o conhecimento de si mesmo e de Deus. Com ele, a filosofia e a teologia adquirem o sentido da interioridade, do que é o homem interior, a possibilidade de entrar em si mesmo e aí buscar a Deus.19 Podemos constatar seu itinerário da inquietude do I ao IX livro das Confissões, onde parte de Tagaste à Cartago, depois à Roma, Milão, Cassisíaco e Óstia. Aos poucos, vai abrindo os caminhos da sua “paisagem interior”, que será descrita no livro X das Confissões. A noção dessa trajetória dentro das Confissões identifica-se com a busca de um fim, que é o sumo bem. O ser humano na sua inquietude busca a vida feliz, que corresponde ao sumo bem. Com efeito, o que o faz sair da sua ignorância e buscar a felicidade é a vontade. Isto configura uma trajetória ascendente, tendo no fim o sumo bem. Mas só alcança a felicidade quando possui o objeto da vontade. Então, como o princípio deve ser buscado? 1.2. A nostalgia do coração O termo cor (coração), presente desde a primeira página das Confissões, é uma imagem que expressa a sede da sensibilidade, da inteligência e da vontade.20 As 18 GILSON, 1991, p.185. 19 GILSON, 2006, p.61. 20 Cor aparece 1726 vezes na obra latina das Confissões. A palavra adquiriu dois sentidos principais: em sentido próprio, é o coração físico (órgão); em sentido moral, é a sede da alma e das suas faculdades. Em Agostinho, o coração é responsável por invocar a Deus e acolhê-lo no seu íntimo. Porém, o homem sofre uma cisão, pois está ocupado e febril pelos desejos terrestres, quando deveria estar empenhado na busca de Deus. Cf. BOCHET, 1982, p.176. 7 Escrituras também apresentam essa imagem. Mesmo que não haja um conhecimento explícito de Deus, quem orienta o coração humano é ele como seu princípio.21 As imagens bíblicas do coração são compartilhados por Agostinho: o coração reto (rectus corde), referindo-se ao justo; o coração atribulado (conturbatus corde), como exemplo do ser que se distanciou do seu primeiro princípio; o coração bom (bonus corde), que acolhe a semente semeada. Assim, o coração é o lugar da luta interna, que estremece todo o nosso ser, que sofre com o pecado e que, por fim, contém em si mesmo um chamado para ser restaurado.22 Não se pode confundir o coração com a afetividade (affectio)23. É, para além disso, o lugar onde se encontram todas as operações humanas. Daí a inteligência e a vontade estarem no coração, que julga e delibera.24 O homem precisa voltar a esse coração, pois é por meio dele que encontrará o caminho para chegar a Deus. No primeiro parágrafo das Confissões, constata-se precisamente a inquietude do coração (cor inquietum). Que inquietude é essa, qual o seu movimento, e qual a sua condição? Em primeiro lugar, Agostinho ressalta a grandeza de Deus e a pequenez das criaturas: Senhor, tu és grande e digno de todo louvor. Grande é a tua virtude e a tua sabedoria não tem limites. Quer o homem louvar-te, ele que uma parte da tua criação, o homem que irradia a sua mortalidade, que irradia o testemunho do seu pecado e o testemunho de que tu resistis aos orgulhosos: e contudo quer louvar-te, porque tu nos fizeste para ti, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em ti.25 21 ZILLES, 1997, p.88. 22 BOCHET, 1982, p.81. 23 Affectio refere-se às paixões e sua relação com o corpo, ou seja, emoções, sentimentos ou até mesmo perturbações. Já cor é o centro interior do homem. Cícero traduzia o termo grego pathé por perturbações (perturbationes), mas outros latinos preferiam traduzir por afetos (affectiones ou affectus). Cf. BERMON, 2008, p.200. O uso pejorativo que aplicaram a perturbationes não deve ser imposto à affectio. Agostinho esforça-se para reavaliar as paixões e reabilitá-las para o bom uso. Cf. BOCHET, 1982, p.71-72. 24 A atividade do coração, que não se restringe à afetividade, está muito perto da atividade da mens enquanto princípio do pensamento e do juízo, capaz de discriminar o bem do mal, o útil do inútil. Além disso, é o princípio de escolhas livres e do amor, ou seja, uma força interior que o movimenta na direção do bem. Nisso, há uma correlação entre o coração e a vontade (voluntas). Cf. GRACIOSO, 2010, p.49. 25 Conf. I, 1, 1: Magnus es, Domine, et laudabilis valde: magna virtus tua et sapientiae tuae non est numerus. Et laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae, et homo circumferens mortalitatem suam, circumferens testimonium peccati sui et testimonium, quia superbis resistis; et tamen laudare te vult homo, aliqua portio creaturae tuae. Tu excitas, ut laudare te delectet, quia fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te. 8 Por um lado, Deus é digno de louvor por sua grandeza infinita e sua sabedoria incomensurável, por outro, é o homem que quer louvá-lo, um ser pequeníssimo, que carrega o jugo da morte advinda do pecado pelo orgulho. Drasticamente, percebe-se o abismo ontológico e o afastamento moral que impede a criatura humana de prestar o louvor perfeito ao criador. Mas Deus incita o homem a louvá-lo, pois deixou nele uma vontade pelo sumo ser. O texto latino oferece esta interpretação quando notamos o uso de duas expressões: ad te e in te. Deus não apenas nos cria, mas nos cria para ele; e na sequência, a necessidade da posse do que queremos consiste em repousar nele. Em outros termos, Deus é a causa eficiente e a causa final do homem; enquanto não houver o repouso, isto é, a consumação do amor a Deus, seu coração permanece inquieto. Pois, é através do reconhecimento da sua inquietude que Agostinho faz uma análise da sua interioridade. Embora ele seja uma pequena parcela do conjunto dos seres criados, sente dentro de si uma nostalgia do criador. A sua existência é paradoxal, pois, por um lado, encontra a vontade do repouso em Deus e, por outro, sua condição mortal por ser pecador. Uma característica que mostra sua permanente inquietude, refere-se ao seu procedimento interrogativo. Ele almeja saber o que vem primeiro: o louvor ou a invocação.26 Se para invocar, primeiro deve conhecer, ou se invoca para depois conhecer? Por um lado, deve conhecer para invocar, pois senão acaba invocando outro que não é digno. Por outro lado, como pode conhecer se antes não invocar? A invocação aparece para o conhecimento. Mas o que vem primeiro, a invocação ou o conhecimento? Num primeiro momento, parecem momentos distintos e opostos. Mas deve haver um conhecimento prévio para que, por meio da invocação, chegue-se ao conhecimento da verdade. A procura amorosa da verdade passa pela análise e comparação das concepções filosóficas anteriores.27 Mesmo que a busca do conhecimento de Deus passe por essa consideração, Agostinho ressalta a necessidade da fé.28 A fé é necessária para alcançar aquilo podemos alcançar: “Que eu te procure, Senhor, invocando-te, e te invoque 26 Ibid. I, 1, 1. 27 “Há séculos de distância se compreendeu finalmente que Agostinho trabalhou arduamente entre as ruínas do mundo antigo na construção do mundo novo, e seu pensamento se tornaria um alicerce do paradigma nascente como cristandade latina.” (SUSIN, 2009, p.9). 28 Agostinho compreende a fé a partir de Paulo como um dom concedido por Deus mediante o Cristo. A fé consiste então naquele conhecimento prévio e minimo para invocar. 9 crendo em ti.”29 A invocação pressupõe a fé, na medida que só é possível invocar quando antes há o crer. E antes do crer, deve haver a pregação.30 A fé relaciona-se, portanto, com a inteligência e com o amor, pois esses três incluem-se na inquietude, uma vez que a própria vontade perpassa toda a nossa existência na busca do repouso. Assim, o problema da invocação ou louvor parece ter-se resolvido. Porque a invocação pressupõe a fé, a qual provém da pregação. Ao fim de tudo vem o louvor. A invocação antecede porque devo procurar, para depois encontrar e finalmente louvar: “Pois quem o procura encontra-o, e quem o encontra louvá-lo-á.”31 Daí o ser humano procurar a Deus, iniciando pela fé que vem do Cristo, e assim o invocar. Mas o problema agora se configura na presença de Deus em nós. Se Deus está no homem e o homem está em Deus, então porque a necessidade de invocá-lo se ele já está presente?32 Em primeiro lugar, Agostinho responde afirmando que, a rigor, somente Deus é o ser. Mas ele na sua imensa bondade concede a cada uma das suas criaturas a participação no ser. As criaturas são porque Deus é. Ele concede gratuitamente o ser a cada indivíduo: “E observei as restantes coisas abaixo de ti e vi que nem em absoluto são, nem em absoluto não são: na verdade, são, porque procedem de ti, mas não são, porque não são aquilo que tu és.”33 Em segundo lugar, o criador é distinto e superior às criaturas, não se caindo então no panteísmo.34 Ora, essa presença de Deus no homem não pode ser compreendida fisicamente, mas ontologicamente como vínculo contínuo entre o criador e a criatura. É contínuo 29 Conf. I, 1, 1: Quaeram te, Domine, invocans te etinvocem te credens in te. Segundo Lima Vaz, trata-se de uma inteligência orante, capaz de conciliar a fé e razão não medindo esforços em busca do mesmo objeto. “A experiência de Agostinho é uma experiência do espírito mais rigorosa (...) onde é superada a contingência do empírico, e os dados parciais tomam sentido numa estrutura de valor.” (LIMA VAZ, 2001, p. 77-78). Mediante a finitude do humano e a infinitude de Deus, o ser humano vive uma inquietude e uma certa desordem interior, que não se acalma com os dados da Revelação, e por isso uma inteligência orante. 30 Agostinho fundamenta-se na Epístola de Paulo aos Romanos: “Mas como poderiam invocar aquele em quem não creram? E como poderiam crer naquele que não ouviram? E como poderiam ouvir sem pregador?” (Rm. 10, 14). 31 Conf. I, 1, 1: Et laudabunt Dominum qui requirunt eum. Quaerentes enim inveniunt eum et invenientes laudabunt eum. 32 Cf. BOCHET, 1982, p.178. 33 Conf. VII, 11, 17: Esse quidem, quoniamabs te sunt, non esse autem, quoniam id quod es non sunt. Id enimvere est, quod incommutabiliter manet. 34 Ibid. IV, 12, 18: Hunc amemus: ipse fecit haec et non est longe. Non enim fecit atque abiit, sed ex illo in illo sunt. Ecce ubi est: ubi sapit veritas. Intimus cordi est, sed cor erravit ab eo. [Amemo-lo: foi ele quem fez essas coisas e não está longe. Porque ele não se foi embora depois de criar, mas é graças e ele que existem nele. Eis onde ele está: está onde está o sabor da verdade. É íntimo ao coração, mas o coração afastou-se dele.] 10 porque Deus não somente cria, mas sustenta a criação. Tudo tem o ser em Deus e por Deus. Mesmo que o pecado interfira na realidade humana, o vínculo ontológico com Deus está garantido. Com o pecado, há um distanciamento e um esquecimento da criatura em relação ao criador, mas que não é não total. Isso no âmbito moral. Embora o homem tenha preferido o mundo, aí também encontra a presença de Deus, uma vez que ele está em tudo.35 Assim, o homem está em Deus porque antes Deus está nele; o vínculo ontológico permanece. Com efeito, Deus possui o homem na perspectiva de que um dia o homem possa possuir a Deus, contemplando-o numa fruição perfeita. Por meio desse vínculo ontológico, o homem possui uma notícia de Deus na sua interioridade. Invocar significa “chamar de dentro”, não de fora para dentro, pois se Deus não estivesse no íntimo do homem, não haveria razão para invocá-lo. Mas é a partir da interioridade que a invocação deve ser realizada. É através do conhecimento prévio que se dá a procura e a invocação. Mas a partir do que se realiza essa invocação? De dentro e daquele que já está dentro, pois há a presença íntima de Deus, que é mais íntima que o próprio homem.36 Entretanto, não basta apenas voltar-se para dentro. Se para invocar é preciso um conhecimento prévio, então a invocação irá aprofundar esse conhecimento. Faz-se necessário tornar explícito esse conhecimento que estava implícito, fazendo com que o homem recorde-se dessa presença que foi parcialmente esquecida.37 A postura do homem deve ser humilde e confessional. A postura humilde corresponde ao ato de dialogar com Deus, ressaltando sua grandeza e as misérias da vida humana. O ser humano é incompleto, considera Agostinho. Na sua própria busca do repouso, essa incompletude aparece: “Quem me fará repousar em ti? Quem fará com que venhas ao meu coração e o inebries para eu esquecer os meus males e te abraçar a ti, meu único bem?”38 Depois, ao cantar as perfeições de Deus, confessando seus atributos,39 contrários aos atributos humanos: “Então, que és tu, meu Deus? Que és, pergunto, senão Senhor e Deus?”40 A resposta é dada em pares opostos: 35 Ibid. I, 3, 3. 36 Ibid. III, 6, 11: Tu autem eras interior intimo meo et superior summo meo. [Mas tu eras mais interior do que o íntimo de mim mesmo e mais sublime do que o mais sublime de mim mesmo.] 37 GRACIOSO, 2010, p.23. 38 Conf. I, 5, 5: Quis mihi dabit adquiescere in te? Quis dabit mihi, ut venias in cor meum et inebries illud, ut obliviscar mala mea et unum bonum meum. 39 Ibid. I, 4, 4: Summe, optime, potentissime, omnipotentissime, misericordissime et iustissime. [Ó sumo e ótimo Deus, potentíssimo, omnipotentíssimo, misericordiosíssimo e justíssimo.] 40 Ibid. I, 4, 4: Quid es ergo Deus meus? Quid, rogo, nisi dominus Deus? 11 movimento/repouso, novo/antigo, carência/completude. Daí a incompletude humana não se dar pelo ato do criador, uma vez que Deus é perfeitíssimo. A carência de ser no homem acontece porque ele é criatura e não possui o modo mais perfeito do ser.41 Embora o homem reconheça seu lugar na obra criadora de Deus,42 o próprio Deus concedeu a ele uma participação no seu ser, mas que não atinge toda a plenitude do ser: “Outros hão-de passar e receber também a forma de existirem. Tu, porém, és sempre o mesmo.”43 No reconhecimento da contingência humana, ocorre a permanente busca pela verdade. Agostinho reconhece a dessemelhança na qual se encontra: “Mas que quero eu dizer, Senhor, a não ser que não sei de onde vim para aqui, para esta vida mortal, digo, ou para esta morte vital?”44 Na região da dessemelhança (regio dissimilitudinis), no desassossego doloroso do coração, ele quer o repouso. Trata-se de um drama, de uma tensão, ele quer contemplar seu primeiro princípio e, simultaneamente encontra-se ainda na vida mundana, marcada pelo afastamento moral.45 Na região da dessemelhança, ele detecta, pelas desventuras de sua infância, a estreiteza da sua alma. Esta encontra-se doente por causa do erro.46 Uma vez que Agostinho possui a certeza de que é carne, cheio de dores, percebe que está afastado e esquecido moralmente do seu primeiro princípio: “E eis que pouco a pouco comecei a sentir onde estava e a querer manifestar as minhas vontades àqueles que as podiam satisfazer, mas não conseguia, porque elas estavam dentro de mim e eles fora, não 41 GILSON, 2007, p.174. Um salto é necessário para a compreensão daquilo que Agostinho denomina incompletus. Deus cria todas as coisas não por necessidade, mas levado unicamente pela plenitude da sua bondade. A imperfeição desagrada ao criador que é perfeito; ver: Conf. XIII, 4, 5. No livro XI, 4, 6, constata-se que todas as coisas criadas possuem breve existência, uma vez que degeneram com a mutabilidade do tempo. Ibid, XI, 1, 1: Te confitendo tibi misérias nostras et misericórdias tuas super nos, ut liberes nos omnimo, quoniam coepisti. [Confessar a Deus todas as nossas misérias e as vossas misericórdias, a fim de que ponhais termo à obra já começada.] As criaturas, que não são acabadas ou perfeitas, buscam clamar a Deus que complete nelas a obra começada. Cf. Sl 137, 9. 42 Ao lembrar-se da infância e da juventude, Agostinho toma consciência de que entrara em profundidade na tempestuosa sociedade da vida humana. Cf. Ibid. I, 8, 13. 43 Ibid, I, 6, 10: Ex illo acceperunt modos et utcumque extiterunt, et transibunt adhuc alii et accipient et utcumque existent. 44 Ibid. I, 6, 7: Quid enim est quod volo dicere, Domine, nisi quia nescio, unde venerim huc, in istam dico vitam mortalem an mortem vitalem. 45Ibid. I, 6, 7. 46 Ibid. I, 5, 6: Angusta est domus animae meae, quo venias ad eam: dilatetur abs te. Ruinosa est: refice eam. [Estreita é a morada da minha alma para que venhas até ela: seja alargada por ti. Está em ruínas: reconstrói-a.] 12 podendo por nenhum dos sentidos entrar em minha alma”.47 Ele, na sua infância, encontrava dificuldades para expressar sua vontade (voluntas),48 mas desde muito cedo, compreendia que ela referia-se a algo interior, e não exterior. Trata-se de um ato interno, algo vivo e forte capaz de empenhar todas as forças em vista da sua realização: “Eis que a minha infância já morreu há muito tempo e eu continuo a viver”.49 Desde as primeiras inquietudes de infância, ele relembra no livro I, passo a passo seu crescimento, desde o cuidado materno, das amas, indo para o balbuciar das primeiras palavras, o ingresso na vida escolar, chegando até aos conflitos da vontade e as pequenas faltas na busca pela verdade. E assim, surge a desordem na busca, a manifestação do mal moral: “O meu pecado era procurar, não nele, mas nas suas criaturas, em mim e nos outros, prazeres, grandezas e verdades, e assim me precipitava na dor, na confusão e no erro.”50 Em outra passagem, referente à mesma idade, ele descreve a desordem que o erro provoca, mesmo que ainda não estivesse consciente do seu estado: “Digo-te e confesso-te, meu Deus, aquilo em que era elogiado por aqueles: agrada-lhes era então viver honestamente. Pois não via o abismo de torpeza em que era lançado longe do seu olhar.”51 Este é um diagnóstico de que se congrega e reúne ambiguamente as afeições da alma: “Portanto, estar em afeição luxuosa, o mesmo que tenebrosa, é estar longe do teu rosto.”52 Na primeira parte das Confissões, embora tenha um conhecimento prévio de que o objeto do seu desejo (appetitus)53 consiste em algo interno, ele ainda titubeia 47 Ibid, I, 6, 8: Et ecce paulatim sentiebam, ubi essem, et voluntates meas volebam ostendere eis, per quos implerentur, et non poteram, quia illae intus erant, foris autem illi nec ullo suo sensu valebant introire in animam meam. 48 Voluntas é o poder de fazer escolhas, o livre arbítrio; ver: Retrac. I, 15, 3. Essa definição já estava sendo gestada por Aristóteles. Cf. BOCHET, 1982, p.111. Na Ética a Nicômaco, III, 1-7, Aristóteles atribui à vontade as escolhas do ato livre (proairesis). O problema é que a vontade nem sempre é totalmente livre, uma vez que o vício e o pecado a tornam escrava. Cf. De civ. Dei XIV, 11, 1. Da distinção entre livre arbítrio e liberdade, trataremos no segundo capítulo. 49 Ibid, I, 6, 9: Ecce infantia mea alim mortua est et ego vivo. 50 Ibid. I, 20, 31: Hoc enim peccabam, quod non ipso, sed in creaturis eius, me atque ceteris, voluptates, sublimitates, veritates quaerebam, atque ita erruebam in dolores, confusiones, errores. 51 Ibid. I, 19, 30: Dico haec et confiteor tibi, Deus meus, in quibus laudabar ab eis, quibus placere tunc mihi erat honeste vivere. Non enim videbam voraginem turpitudinis, in quam proiectus eram ab oculis tuis. 52 Ibid. I, 18, 28: In affectu ergo libidinoso, id enim est tenebroso atque id est longe a vultu tuo. 53 Appetitus pode ser traduzido como “tendência”, “aspiração”, “impulso”, “desejo”. No grego, apetite é designado por ormé. Agostinho emprega no latim o termo equivalente appetitus, que designa uma inclinação natural, um ímpeto instintivo característico de todo ser e necessário para a ação. Entretanto, no livro XIX da Cidade de Deus, encontra-se a expressão: impetus vel appetitus actionis, que confere à 13 entre as concupiscências, isto é, busca aquilo que é externo pensando que fosse garantir seu repouso.54 A sua inquietude aparece desde o nascimento: “Ora, fui concebido em iniquidade.”55 Deus quer criar, e assim cria todas as coisas do nada: “Foram feitas por Vós do nada, não porém da vossa substância ou de certa matéria pertencente a outrem ou anterior a Vós, mas da matéria concriada.”56 Quer criar, e assim o faz pelo poder da sua Palavra.57 Ora, ao mesmo tempo em que o homem foi criado à imagem e semelhança do criador, este o criou na inquietação. Trata-se de um depósito no coração, de uma vontade que define o homem enquanto tal, criatura mais elevada na ordem dos seres visíveis.58 Na sua integralidade, o ser humano foi feito para o louvor.59 Provido de uma alma intelectiva, deve buscar aquilo que convém a ela mesma: o universal. A busca pelo mutável e contingente, ao contrário, torna a alma desassossegada, em agitação, pois não encontra nos bens finitos o repouso desejado.60 Dado que o homem possui uma vontade livre, pode querer o que não é digno de ser o fim último.61 palavra appetitus o sentido geral de tendência: o agir com impulso cego, ou, ao contrário, o desejo consciente. Cf. BOCHET, 1982, p.148-150. Se o apetite não for submetido a razão, torna-nos infelizes. Cf. BERMON, 2008, p.207. 54 Trataremos das concupiscências no terceiro capítulo. 55 Conf. I, 7, 12: Quod si et in iniquitate conceptus sum. 56 Ibid. XIII, 33, 48: De nihilo enim a te, non de te facta sunt, non de aliqua non tua vel quae antea fuerit, sed de concreata. Deus não cria as coisas da sua essência. Quando cria, faz ao mesmo tempo a forma e a matéria, simultaneamente e sem intervalo. Daí, a criação de Deus ser um ato de inteligência e revelação da sabedoria divina. Primeiro, no entendimento divino estão presente as ideias externalizadas pela vontade de criar que visa sua própria bondade. Cf. GILSON, 1991, p.175. 57 GUITTON, 1959, p.325. 58 A atitude de amar a Deus é uma marca profunda que existe na alma humana, ou em outras palavras, o homem tem por vocação amar a Deus. Enquanto não contemplar a face do criador, que é princípio e realização dessa vontade, permanecerá inquieta a alma humana. Cf. BOCHET, 1982, p. 81. 59 Conf. I, 7, 12. 60 Ibid. I, 1, 1. 61 É possível distinguir dois tipos de liberdade no ser humano. Uma antes da perda ou queda do estado edênico e outra depois dela. Antes da queda, a sua liberdade era perfeita, total e sem a influencia de Deus era capaz de praticar o bem. Depois da queda, o homem encontra-se entre o bem e o mal, segundo as regras naturais de corrupção e degeneração. Se faz o bem, o faz com ajuda da graça. Cf. De vera rel. 2002, p.49. 14 1.3. A desordem da vontade Agostinho constata no próprio itinerário das Confissões que a vontade após o pecado encontra-se pervertida. Mas como se deu a inversão/perversão, se outrora nossa vontade tendia naturalmente ao criador? Ele elabora então um diagnóstico da vontade pecadora, mas antes examina como a perversão da vontade desordenou os movimentos da alma. No livro I das Confissões, lembra que enquanto criança teve um despertar do desejo (desiderium) para o mundo externo.62 Faz referência ao desejo sensível, como a criança que deseja o peito da mãe.63 Um apetite sensível e original, que consiste na conservação da espécie. A inversão do desejo acontece mesmo desde a mais tenra idade: “Em que pecava eu então? Será porque sofregamente buscava os peitos chorando?”64 Procura saber quando foi o início do seu erro. Para isso, tomemos o primeiro parágrafo do primeiro capítulo do livro III: Vim para Cartago e estralejava à minha alma volta, de todos os lados, a sartago (frigideira) dos amores criminosos. Ainda não amava e amava amar, e em tão profunda indigência detestava-me por ser menos indigente. Procurava que coisa amar, amando amar e odiava a segurança, e o caminho sem armadilhas, porque tinha fome dentro de mim, do alimento interior, de ti mesmo, meu Deus, e, nessa fome, não senti fome, mas estava sem desejo dos alimentos corruptíveis, não porque estivesse saciado deles, mas porque quanto mais vazio estava tanto mais fastio tinha. E, por isso, a minha alma não estava em boa 62 Desejo (desiderium) aqui não é sinônimo de vontade (voluntas). Desiderium designa concupiscentia (concupiscência) na medida que libido é o termo geral para indicar todas as formas de desordens, tanto intelectual como espiritual. Libido é uma manifestação da concupiscência, significa a satisfação das paixões, goza de um arbítrio revoltado, daí nascerem os atos perversos, os desejos desregrados, que desordenam os movimentos da alma. Pela definição de libido, podemos compreender como sinônimos desiderium e concupiscentia. Agostinho distingue três tipos de concupiscências: a concupiscência da carne, que corresponde aos movimentos desordenados da alma; a concupiscência dos olhos, que procede da curiosidade; e a concupiscência do orgulho, que é a raiz de todas as outras. Cf. BERMON, 2008, p.201; 210. Nas Confissões, o termo desiderium é substituído pelo de concupiscentia. Apenas um aspecto pode distinguir desiderium de concupiscentia, a saber, desiderium significa a relação com o objeto ausente, enquanto concupiscentia significa a relação com o objeto que se possui. A vontade possui certa eminência sobre o desejo, por isso deve ceder à vontade uma vez que esta segue a razão. Cf. BOCHET, 1982, p.38; Conf. III, 4, 7; X, 30, 41; 35, 54. 63 Ibid. I, 7, 11. 64 Ibid. I, 7, 11: Quid ergo tunc peccabam? An quia uberibus inhiabam plorans? 15 saúde, e atirava-se, ulcerosa, para fora de si, ávida de se roçar miseravelmente no contacto das coisas sensíveis.65 Este texto pode ser lido em três diferentes níveis.66 À primeira vista parece uma descrição da sua chegada a Cartago. A chegada do adolescente de dezessete anos na cidade é marcada por uma crise interna. Ele sente o desejo de amar e ser amado, pois não gostando de amar, já amava. Expressão que designa o amor como estado inerente da alma. Ao buscar um objeto para o seu amor, ele foi impelido por uma necessidade secreta, que o rebelou contra si mesmo e atenuou a fome pelo amor verdadeiro. Numa segunda leitura, além desse acontecimento, sobressai um aspecto fundamental que é o do símbolo. Evoca-se o ardor excessivo das paixões67, como imagem da imundície: “ávida de se roçar miseravelmente no contato das coisas sensíveis.” Expressão que mostra a impureza e a sensualidade do desejo. Também indica o último resultado da doença da alma, a escravidão: “minha alma não estava de boa saúde, e atirava-se, ulcerosa, para fora de si.” O diagnóstico do desconforto de Agostinho acontece devido à desordem interna, isto é, a uma alma que se encontra doente, coberta de chagas. A importância desse registro simbólico pode ser explicada pela insuficiência do repertório de conceitos para expressar a sua situação. Uma terceira leitura aponta para uma análise ontológica da condição do pecador. O ser humano, com efeito, encontra-se em indigência. Esta indigência é característica do estado do que está separado do seu primeiro princípio, que é Deus. E, portanto, está condenado a interpretar mal a si mesmo por desejar as coisas sensíveis, uma vez que está disperso. Essa indigência ou pobreza pode ainda ser mais acentuada quando se trata de uma fome interior. Ele encontra-se com fome, pois objetivamente perde o que é 65 Ibid. III, 1, 1: Nondum amabam et amare amabam et secretiore indigentia oderam me minus indigentem. Quaerebam quid amarem, amans amare, et oderam securitatem et viam sine muscipulis, quoniam fames mihi erat intus ab interiore cibo, te ipso, Deus meus, et ea fame non esuriebam, sed eram sine desiderio alimentorum incorruptibilium, non quia plenus eis eram, sed quo inanior, fastidiosior. Et ideo non bene valebat anima mea et ulcerosa proiciebat se foras, miserabiliter scalpi avida contactu sensibilium. Sed si non haberent animam, non utique amarentur. 66 Cf. BOCHET, 1982, p.25-27. 67 Pathe, que se traduz como paixões, para o antigos gregos designava os movimentos da alma. Agostinho adota a classificação estóica das paixões: cupiditas (desejo), metus (medo), laetitia (alegria) e tristitia (tristeza). Para os estóicos, as paixões são distúrbios ou doenças da alma, ímpetos violentos que desviam a alma do seu equilíbrio natural. Por isso, o sábio deveria ser a-pático. Longe de negar as paixões, Agostinho quer reabilitá-las para o bom uso. Cabe à vontade (voluntas) aceitar ou rejeitar as afeições da alma. As paixões não são más em si mesmas, mas tornam-se más quando o orgulho desordena seu movimento original e as transforma em concupiscência da carne. Recebem o nome de libido somente quando são experienciadas com concupiscência. Cf. BERMON, 2008, p.215. 16 absolutamente necessário para a vida. Isto fica claro ao concluir o segundo livro: “Afastei-me de ti e andei errante na adolescência, meu Deus, muitíssimo fora do caminho da tua estabilidade, e tornei-me para mim mesmo um terreno de indigência.”68 Explica-se isso quando se analisa essa privação segundo duas imagens: comida interior e alimento incorruptível. A comida interior é uma imagem que se usa frequentemente para Deus; indica a conexão íntima e vital entre Deus e o homem. Deus é o primeiro princípio do homem e, consequentemente, sua ausência gera necessariamente um estado de indigência. Por outro lado, o amor a Deus não é transitório decorrente de uma fase da vida, mas fundamental para o homem. Mas quando tal vontade é frustrada, perde sua força. Daí o homem não ter mais essa fome, não ter vontade por alimentos incorruptíveis. Agostinho sente um desgosto pelas realidades espirituais, e isso é confirmado pela narrativa a respeito do seu desejo pelas coisas sensíveis. O resultado só pode ser o desgosto, na medida que o desejo envolve a experiência com o objeto desejado. Em suma, o homem afasta-se de Deus a ponto de perder sua força ou a intensidade do amor à divindade, escapa para um estado vazio, de inquietude, em que avidamente quer buscar os seres sensíveis. As coisas apenas podem aumentar ainda mais sua indigência, estando cada vez mais longe do lugar de encontro com seu primeiro princípio. A alma humana está doente, principalmente como uma doença do seu querer. Os sintomas do desejo consistem então na ganância sensível e no desgosto de Deus. O primeiro parágrafo do livro III da Confissões nos dá uma primeira descrição do erro do desejo. O diagnóstico a respeito do homem é de estado doentio, termo muito geral, às vezes aparece como doente (aeger),69 fraco (infirmus),70 ou alcançados por todos os tipos de doenças (languores).71 Agostinho faz uso de imagens para especificar seu estado. A ganância sensível é “como uma ulcera”72 que corre o risco de inflamar, ou 68 Conf. II, 10, 18: Defluxi abs te ego et erraui, deus meus, nimis deuius ab stabiltate tua in adulescentia et factus sum mihi regio egestatis. 69 Ibid. X, 28, 39: Ei mihi! Ecce vulnera mea non abscondo: medicus es, aeger sum; misericors es, miser sum. [Ai de mim! Eis que não oculto as minhas feridas: tu és o médico, e eu estou doente; tu és misericordioso, eu sou um miserável.] 70 Ibid. X, 31, 47: Numerans me inter infirma membra corporis sui. [Contando-me entre os membros enfermos do seu corpo.] 71 Ibid. X, 33, 50: In cuius oculis mihi quaestio factus sum, et ipse est languor meus. [tu, a cujos olhos me tornei para mim mesmo numa interrogação, e é essa a minha doença.] 36, 58: Sanes omnes languores meos. [Curares todas as minhas fraquezas.] 41, 66: Vidi enim splendorem tuum corde saucio et repercussus. [Com efeito, com o coração ferido, vi o teu explendor.] 72 Ibid. III, 1, 1. 17 como um vendaval vergonhoso que “provoca em mim a inflamação do tumor, a podridão e o pus repelente.”73 Chegando ao ponto de amar a dor em si: “Mas eu, então um infeliz, amava sofrer e procurava ter de sofrer”.74 A doença invadiria progressivamente todo o seu ser, se não fosse sanada. Como as doenças oculares simbolizam a cegueira do pecador, que não compreende as realidades espirituais: “seja odiosa a luz, que é aprazível para os olhos dos sãos.”75 No mesmo sentido: “o rosto demasiado inchado cerrava-me os olhos.”76 O inchaço corresponde ao orgulho, sendo capaz de desviar os olhos da verdadeira luz. O termo “doença”, afirma Bochet, significa um estado genérico que afeta todo o homem, desde seu corpo, que é para a morte, até à vontade fraca, enferma, que cega sua mente, tornando-a ignorante. Este estado de doença pode durar a vida toda e começa desde a juventude.77 Nascido em um corpo mortal, torna-se doente. No livro I das Confissões, mostra-se claramente que não podemos falar de uma inocência infantil: É essa a inocência das crianças? Não, por certo que não é, meu Deus. Pois estas são as mesmas coisas que, começando nos pedagogos, nos professores, nas nozes, nos berlindes e nos passarinhos, acabam, quando se chega a adulto, nos prefeitos, nos reis, no dinheiro, nas propriedades, nos escravos, tal como às vergastas sucedem maiores castigos.78 Os gritos de uma criança no berço já são sinais de desordem e ganância. O amor ao jogo, a vaidade, estão coligadas como os distúrbios mais graves nos adultos.79 Em suma, não importa a idade do homem, estará sempre no estado de pecado, todos sem exceção: “Mas de onde me vinha esta disposição senão do pecado e da vaidade da vida.”80 No máximo, podemos distinguir graus de doença: “não se ria de eu, doente, ser 73 Ibid. III, 2, 4. 74 Ibid. III, 2, 4: At ego tunc miser dolere amabam et quaerebam, ut esset quod dolerem. 75 Ibid. VII, 16, 22: Qui sano suavis est, et oculis aegris odiosa lux, quae puris amabilis. 76 Ibid. VII, 7, 11: Et nimis inflata facies claudebat oculos meos. 77 En. in. Ps. CII, 6. 78 Conf. I, 19, 30: Istane est innocentia puerilis? Non est, Domine, non est, oro te, Deus meus. Nam haec ipsa sunt, quae a paedagogis et magistris, a nucibus et pilulis et passeribus, ad praefectos et reges, aurum, praedia, mancipia, haec ipsa omnino succedentibus maioribus aetatibus transeunt. Sicuti ferulis maiora supplicia succedunt. 79 Ibid. I, 7, 11. 80 Ibid. I, 13, 20: Unde tamen et hoc nisi de peccato et vanitate vitae. 18 sarado pelo médico que lhe proporcionou a ele não estar doente ou, antes, estar menos doente.”81 Desde a idade mais pueril, o homem reconhece que sua existência abarca a vontade. Quando criança, Agostinho encontrava-se na dificuldade de exprimir sua vontade como “um menino que precipitava a balbuciar algumas palavras.”82 Antes mesmo que ele tivesse o conhecimento das letras, procurava exprimir o que o criador impôs no seu coração: “Mas eu próprio, com a mente que me deste, meu Deus, com gemidos e vários sons e vários gestos, queria exprimir os sentimentos do meu coração, para que obedecessem à minha vontade.”83 Mais tarde, conta com a ajuda das palavras e da voz para exprimir o que sua alma deve aceitar ou rejeitar.84 Por seu livre-arbítrio, escolheu amar as coisas em vez do criador: “E todavia eu pecava, Senhor e Deus, ordenador e criador de todas as coisas naturais.”85 O pecado ou mal moral consiste na desobediência à ordem estabelecida pelo criador. Diz Agostinho no Sobre o livre-arbítrio: “Eu já admito que Deus nos concedeu vontade livre. Mas não te parece, pergunto-te que se ela nos foi dada para fazermos o bem, não deveria poder levar a pecar?”86 Trata-se de fazer por capricho, ou seja, de fazer o que não havia necessidade alguma de fazer, mas o quis, por gostar de fazer o mal e ser por ele atraído. Deste modo, rompe a ordem divina. Aquilo que é causa de perversão da vontade atrai os olhos do homem. Coisas atraentes, temporais, e falsas para levar ao repouso da vontade, conduzem Agostinho a querer o bem menor em vez do bem maior. Isto não ocorre apenas devido à vontade livre, mas também pelo fato de as coisas desejadas serem bens, mesmo que inferiores ao criador: “Mas todas essas coisas são dádivas do meu Deus. Não fui eu que as dei a mim mesmo: não apenas são coisas boas, mas, além disso, todas essas coisas sou eu. É bom 81 Ibid. II, 7, 15: Non me derideat ab eo medico aegrum sanari, a quo sibi praestitum est, ut non aegrotaret, vel potius ut minus aegrotaret. 82 Ibid, I, 8, 13: Et memini hoc, et unde loqui didiceram, post adverti. Agostinho lança fundamentos para uma filosofia da linguagem e suas correlações com a ciência dos afetos, dando atenção devida à linguagem do corpo. Cf. CONTALDO, 2011, p.64. 83 Ibid. I, 8,13: Sed ego ipse mente, quam dedisti mihi, Deus meus, cum gemitibus et vocibus variis et variis membrorum motibus edere vellem sensa cordis mei, ut voluntati pareretur. 84 Ibid. I, 8, 13. 85 Ibid. I, 10, 16: Et tamen peccabam, Domine Deus, ordinator et creator rerum omnium naturalium. 86 De lib. arb. I, 2, 4: Praescriptum enim per prophetam gradum, qui ait, Nisi credideritis, non intellegetis, tenere nos, bene nobis conscii sumus. 19 quem me fez.”87 Trata-se de bens que só existem na medida que Deus lhes dá o ser. A curiosidade é como um belo espetáculo, que atrai olhares e simultaneamente ofusca a visão que se teria da face do criador: “mas por amor da brincadeira, buscando, nos desafios, o orgulho da vitória e encher meus ouvidos de pequenas fábulas mentirosas, para que com mais comichão eles ardessem em desejos, brilhando nos meus olhos a mesma curiosidade pelos espetáculos”.88 A procura por saciar a vontade com as coisas (res), fez Agostinho cair no pecado. Ele chama a atenção para o cuidado da alma, o pecado prejudica-lhe a saúde: “Quanto melhor não seria que eu fosse logo curado e fizesse comigo com que, por meu empenho e dos meus familiares, a salvação da minha alma, uma vez recebida, fosse colocada a tua proteção, de ti que ma tinhas dado”.89 Ainda mais, tratando do apego dos bens inferiores no lugar dos superiores, ele salienta o abandono do cuidado com a alma e a entrega às paixões: “Mas não se preocupa em eliminar do meio dos homens outro homem, com o furor da sua mente.”90 O objeto do amor, que deveria ser o criador, está nas coisas mutáveis. A raiz dessa inversão ou desordem consiste na soberba, pois enquanto criança, a busca pelo estudo somente para a sua própria glória é soberba.91 A soberba é causa de mortalidade, por Agostinho amar aquilo que não merece seu amor: “Outrora desejei ardentemente saciar-me das baixezas durante a minha adolescência e ousei embrenhar-me em variados e sombrios amores.”92 Ao entregar-se à satisfação de desejos torpes, ele se encastela na própria mortalidade: “Ensurdecera com o ranger da cadeia da minha mortalidade, castigo para a soberba da minha alma.”93 87 Conf. I, 20, 31: At ista omnia dei mei dona sunt. Non mihi ego dedi haec: et bona sunt et haec omnia ego. Bonus ergo est qui fecit me. O homem, para Agostinho, é uma obra inacabada, uma construção cuidadosa e cuidada, um eu constitutivo de bens maiores e menores. Ele recorda o salmo 127, 8: Não abandones a obra de tuas mãos! 88 Ibid. I, 10, 16: Sed amore ludendi, amans in certaminibus superbas victorias et scalpi aures meas falsis fabellis, quo prurirent ardentius, eadem curiositate magis magisque per oculos emicante in spectacula. 89 Ibid. I, 11, 18: Quanto ergo melius et cito sanarer et id ageretur mecum meorum meaque diligentia, ut recepta salus animae meae tuta esset tutela tua, qui dedisses eam. 90 Ibid. I, 18, 29: Et ne per mentis furorem hominem auferat ex hominibus, non cavet. 91 Ibid. I, 12, 19. Ibid. I, 13, 22: Peccabam ergo puer, cum illa inania istis utilioribus amore praeponebam vel potius ista oderam, illa amabam. [Pecava eu, embora menino, quando, por gosto, antepunha aquelas vacuidades a estas coisas mais úteis, ou melhor, quando aborrecia estas e amava aquelas.] 92 Ibid. II, 1, 1: Exarsi enim aliquando satiari inferis in adulescentia et silvescere ausus sum variis et umbrosis amoribus. 93 Ibid. II, 2, 2: Obsurdueram stridore catenae mortalitatis meae, poena superbiae animae meae. 20 Outra consequência da soberba da alma é apontada como dor e desassossego: “e eu continuava a afastar-me de ti atrás de várias e várias estéreis sementes de dor, com um orgulhoso abatimento e um desassossegado cançaso.”94 Quanto mais soberba no coração, mais inquieto ele se torna. A busca pela satisfação dos desejos torna Agostinho disperso, afastando-o do ser que lhe garante repouso. Com a dispersão da vontade, passa a amar aquilo que não é digno do seu amor: “enquanto eu, na maior desgraça, Deus, minha vida, de olhos enxutos, me suportava a mim próprio morrendo afastado de ti por estas coisas.”95 Amando mais as criaturas que o criador, houve uma desordem no seu desejo. Assim, ele encontra-se no estado de pecado, sempre mais longe de Deus. Não se trata de uma distância física, mas moral: “Pois, estar longe do teu rosto é estar em afeto tenebroso. Na verdade, não é com os pés nem com o afastamento local que nos vamos embora de junto de ti ou voltamos a ti.”96 Mesmo no erro moral: “Eu, pobre criança, jazia no limiar destes hábitos”,97 ele quer a Deus, pois o vínculo ontológico permanece, a volta para o absoluto é possível; constata que sua vontade está ao avesso, e permanecerá inquieta enquanto não for saciada em seu objeto natural. O movimento da vontade é uma busca inquietante. É preciso tirá-la da condição em que se encontra, voltado para o exterior, e trazê-lo para o interior, pois é aí que a alma pode encontrar a Deus.98 Embora, ainda na condição de pecadores, mesmo na luxúria que se instaurou no coração, Agostinho ainda quer imitar os homens: “enganando com inumeráveis mentiras, o pedagogo, os professores e os meus pais por amor da brincadeira, pelo desejo de ver espetáculos frívolos e imita-los.”99 Muito embora estivesse em caminhos perversos, o amor a Deus nunca se aniquila da sua alma: “enquanto te confesso o que quer a minha alma, meu Deus, e me comprazo em repreender os meus maus caminhos para poder amar os teus bons caminhos.”100 94 Ibid. II, 2, 2: Ego ibam porro longe a te in plura et plura sterilia semina dolorum superba deiectione et inquieta lassitudine. 95 Ibid. I, 13, 20: Cum interea me ipsum in his a te morientem Deus, vita mea, siccis oculis ferrem miserrimus. Ainda na mesma perspectiva continua o próximo parágrafo: Ibid. I, 13, 21: Non te amabam et fornicabar abs te. [Não te amava e, longe de ti, cometia adultério para contigo.] 96 Ibid. I, 18, 28: Nam longe a vultu tuo in affectu tenebroso. Non enim pedibus aut spatiis locorum itur abs te aut reditur ad te. 97 Ibid. I, 19, 30: Horum ego puer morum in limine iacebam miser. 98 A presença de Deus no interior do homem será abordada no terceiro capítulo. 99 Ibid. I, 19, 30: Fallendo innumerabilibus mendaciis et paedagogum et magistros et parentes amore ludendi, studio spectandi nugatoria et imitandi ludicra inquietudine. 100 Ibid. I, 13, 22: Dum confiteor tibi quae vult anima mea, Deus meus, et adquiesco in reprehensione malarum viarum mearum, ut diligam bonas vias tuas. 21 Mesmo que sua alma busque saciar sua vontade nos seres, continua inquieta, uma vez que possuir algo de mutável gera o temor de perder o conquistado. Ora, Deus fez boas todas as coisas. Toda coisa é um bem. O pecado reveste-se do desejo de alcançar os bens inferiores. Esses bens possuem certo deleite, mas um deleite incapaz de garantir repouso para o coração. Há dois movimentos da alma opostos: caritas e cupiditas. Cupiditas é muitas vezes traduzido como “concupiscência”. Cupiditas é um termo geral que pode abranger todas as formas de concupiscência.101 Mas esse mesmo termo pode ser usado para designar o desejo violento, a paixão, o amor ao ganho: “Mas, quando passo do desconforto da necessidade ao conforto da saciedade, na mesma passagem o laço da concupiscência arme-se ciladas.”102 Por outro lado, cupiditas pode ser usado, não em sentido negativo, mas para designar o desejo simplesmente. Isto ocorre quando Agostinho trata das paixões da alma: desejo, alegria, medo ou tristeza.103 Mas quando se chega à posse do bem desejado, o desejo transforma-se em temor (metus). Pois o temor, que é antecedido pelo desejo da coisa temporal (temporales), é o medo subsequente de perdê-la: “As pessoas não têm dúvidas de que o medo tem apenas por objeto a perda do que amamos, se o obtivermos, ou a sua obtenção, se o esperarmos obter.”104 Agostinho observa, porém, que costumeiramente não se tomou cuidado em dissociar cupiditas de concupiscentia se não é indicado o objeto desejado. O uso da linguagem desenvolveu-se de tal forma que quando se diz “concupiscência”, a palavra não é entendida senão em mau sentido.105 Ora, cupiditas e concupiscentia são dois termos análogos, pois ambos designam um apetite e uma atração imoderada aos bens temporais. No entanto, cupiditas tem um sentido mais amplo, pois concupiscência é usada para referir a concupiscência carnal, e pode ter o sentido mais restrito de apetite sexual. Daí concupiscência, nesse caso, ser equivalente a libido: “Amar e ser amado 101 Ver supra nota 62. 102 Conf. X, 31, 44: Sed dum ad quietem satietatis ex indigentiae molestia transeo, in ipso transitu mihi insidiatur laqueus concupiscentiae. Ibid. II, 2, 2: Sed exhalabantur nebulae de limosa concupiscentia carnis et scatebra pubertatis et obnubilabant atque offuscabant cor meum. [Do lodo da concupiscência da carne e do borbulhão da puberdade, e obnubilavam-me e ofuscavam-me o coração.] Ibid. IX, 2, 4: Quia recesserat cupiditas, quae mecum solebat ferre grave negotium. [Pois já se tinha ausentado de mim a cobiça do ganho que me ajudava a desempenhar a dura ocupação.] 103 Ibid. X, 25, 36. Percebe-se claramente a influencia da classificação estóica das paixões que Cícero realizou em duas obras: De finibus e Tusculanes. 104 De div. quaest. 83, qu. 33: Nulli dubium est non aliam metuendi esse causam nisi ne id quod amamus aut adeptum amittamus aut non adipiscamur speratum. 105 De Civ. Dei. XIV, 7. 22 era-me mais doce, se gozasse também do corpo de quem me amava. Por isso, manchava o veio da amizade com as imundícies da concupiscência.”106 É comum empregar ou nomear o apetite sexual como libido. Este termo sempre indica uma desordem moral, uma vez que a libido é resultado da veemência, para além do controle de uma vontade. Mais amplamente, este termo pode indicar um mau desejo, isto é, um apetite que contraria a ordem da natureza humana. Os desejos que contrariam essa ordem são: o desejo de agir mal, o desejo de dominar, e o desejo de vingança.107 O distúrbio da concupiscência faz com que Agostinho experimente o fracasso da sua relação com Deus. Ele vive nas paixões desordenadas, afasta-se de Deus.108 No entanto, este afastamento não é total, uma vez que permanece o vínculo ontológico. Ora, o erro tem de duas consequências: primeiramente, faz Agostinho esquecer-se de Deus, que é o único e verdadeiro objeto da vontade; em segundo lugar, torna-se um ser preso às coisas: “eu, sopro errante, não voltava a ti, e, caminhando, caminhava para aquilo que não é em ti nem em mim, nem no corpo.”109 Certamente não é estranho que ele esteja atolado à toda sorte de concupiscências e esqueça-se de Deus. Coisas como a concupiscência carnal (libido), a curiosidade e a cobiça polarizam e potencializam todos os movimentos do homem que possui os apetites do conhecimento e do poder. Mas como o desejo das coisas poderia tomar o lugar do amor a Deus? Para simbolizar essa vontade sufocada, Agostinho utiliza duas imagens que se aplicam ao corpo, ou seja, a saciedade e a sonolência: “Aquele que está saciado, qualquer coisa que lhe ofereça, ele rejeita porque está saciado.”110 Com efeito, a abundância de riqueza e de saúde fecha o coração humano, pois pensa-se não precisar de Deus. Mas não importa a situação econômica, e sim a situação real. Tanto os pobres como os ricos estão vazios uma vez que seu coração está ocupado por desejos temporais e não esperam nada de Deus. Comete-se o pecado pela propensão imoderada aos bens inferiores, embora sejam bens.111 106 Conf. III, 1, 1: Amare et amari dulce mihi erat magis, si et amantis corpore fruerer. Venam igitur amicitiae coinquinabam sordibus concupiscentiae. 107 Ibid. III, 8, 16. 108 Ibid. I, 18, 28. 109 Ibid. IV, 15, 26: Caro carnem accusabam et spiritus ambulans nondum revertebar ad te et ambulando ambulabam in ea, quae non sunt neque in te neque in me neque in corpore. 110 En. in Ps. 131, 24: Qui plenus est, quidquid illi daturus es, respuit, quia plenus est. 111 Cf. Ibid. II, 5, 10. 23 A outra imagem corporal usada como resposta consiste na sonolência. Esta ideia está presente nas Confissões, sobretudo, no livro VIII. Trata-se do sono da alma, que vive no estado de inércia, embora seu peso a impeça de ir em direção ao objetivo da sua vontade de completude: “vencidos por um sono profundo, voltam a mergulhar nele. (...) e todavia quase sempre o homem adia sacudir do sono, quando tem nos membros um pesado torpor.”112 O homem, assim, esquece-se do que deveria ser a sua primeira preocupação, passando a viver numa segurança temporal, não buscando verdadeiramente, uma vez que essa vida um dia terá um fim. Daí não existir nenhuma razão para sair dessa situação de não-querer. Em suma, o seu mundo está acabando enquanto seu coração113 e sua inteligência estão fechados: “Mas dela não se alimenta quem está a dormir: porque está a dormir.”114 Agostinho não compara o sensível a um mundo de sonhos. Apenas afirma que o mundo são sonhos de aparente felicidade de homens adormecidos. O sono da alma significa o esquecimento de Deus, pois toda alma que se esqueceu do seu primeiro princípio, dorme. Expressa-se aqui a maneira pela qual o homem passa a fabricar seus ídolos. Não é certamente um querer que se eleva a Deus, uma fome e uma sede de verdade.115 Mas ele está necessariamente preso em suas concupiscências e trata Deus como objeto de sua própria concupiscência. Agostinho, portanto, busca o princípio pela carne e não pela inteligência: “debatendo-me e inquietando-me com a falta da verdade, embora te procurasse, meu Deus ... com que me fizeste ser superior aos animais irracionais, mas segundo o sentir da carne.”116 O sentido da carne, que é comum também aos animais, oferece a ele as imagens sensíveis. São imagens que podem ser de um objeto conhecido, ou mantido na memória como fantasia. Daí ele imaginar Deus de forma corpórea, longe de aceitar a sua verdade, escolhe continuar na construção da sua imaginação. 112 Ibid. VIII, 5, 12: Qui tamen superati soporis altitudine remerguntur. Differt tamen plerumque homo somnum excutere, cum gravis torpor in membris est 113 Ver supra: nota 20. 114 Ibid. III, 6, 10: Quo tamen dormientes non aluntur: dormiunt enim. 115 Ibid. III, 6, 10: O Veritas, Veritas, quam intime etiam tum medullae animi mei suspirabant tibi. [Ó Verdade, Verdade, quão intimamente a medula da minha alma suspira por ti.] 116 Ibid. III, 6, 11: Quippe laborans et aestuans inopia veri, cum te, Deus meus ... cum te non secundum intellectum mentis, quo me praestare voluisti beluis, sed secundum sensum carnis quaererem 24 Em outra passagem das Confissões, ele explica como imaginou que Deus cometera um erro por necessidade. Deus teria se sentido prisioneiro das suas paixões, mas manteve a vontade de perfeição: “E porfiava que a tua incomutável substancia era obrigada a errar, de preferência a confessar que a minha, que era mutável, se tinha desviado por si própria, e por castigo errava”117 Para evitar ver-se como culpado pelo erro, Agostinho preferiu atribuir a Deus uma passividade diante do mal. Em consequência, forja um ídolo que não tem nada de semelhante a Deus, uma vez que é uma projeção de si. No livro I, cita Homero quando atribuía aos deuses os vícios humanos: “mas atribuindo coisas divinas a homens maus, para que as más ações não parecessem más, e para que todo aquele que as praticasse parecesse imitar, não homens perdidos, mas deuses celestiais.”118 Mas o apreço pelas ficções poéticas não têm a pretensão de ser a verdade.119 Ele, então, parece incapaz de acolher a Deus na sua autoridade radical, argumentando e reduzindo tudo a si mesmo. A idolatria o encastela em si próprio, quando, na verdade, o querer o coloca para além de si. Uma ou outra atitude, inevitavelmente chega ao fracasso. Isso pode ser percebido por suas reações diante da morte de seu amigo, descrevendo a dor, o desespero, e até mesmo o desgosto de viver.120 Este sofrimento o atingiu profundamente, porque tinha amado um ser que estava sujeito à morte, como se ele nunca fosse morrer:121 Mas não queria e nem podia, tanto mais porque tu não eras para mim algo de sólido e firme quando pensava em ti. Na verdade não eras tu, mas um vão fantasma, e o meu erro era o meu Deus. Se tentava coloca-la aí, para que repousasse, ela escorregava pelo vazio e de novo se precipitava sobre mim, e eu ficara a ser para mim mesmo um lugar infeliz onde não podia estar nem de onde me podia ir embora.122 117 Ibid. IV, 15, 26: Et contendebam magis incommutabilem tuam substantiam coactam errare quam meam mutabilem sponte deviasse et poena errare confitebar. 118 Ibid. I, 16, 25: Sed verius dicitur, quod fingebat haec quidem ille, sed hominibus flagitiosis divina tribuendo, ne flagitia flagitia putarentur et ut quisquis ea fecisset, non homines perditos, sed caelestes deos videretur imitatus. 119 Ibid. III, 6, 11. 120 Ibid. IV, 4, 7-9. 121 Ibid. IV, 8, 13: Nisi quia fuderam in harenam animam meam diligendo moriturum ac si non moriturum? [Amando um mortal como se ele não houvesse de morrer?] 122 Ibid. IV, 7, 12: Sciebam, sed nec volebam nec valebam, eo magis, quia non mihi eras aliquid solidum et firmum, cum de te cogitabam. Non enim tu eras, sed vanum phantasma et error meus erat deus meus. Si conabar eam ibi ponere, ut requiesceret, per inane labebatur et iterum ruebat super me, et ego mihi remanseram infelix locus, ubi nec esse possem nec inde recedere. 25 Há pouco a fazer, pois como uma construção quimérica da imaginação poderia efetivamente ser o consolo pela perda do amigo querido?123 A decepção é dupla: os bens deste mundo são fugazes e os ídolos sem consistência. Assim, o seu desejo é frustrado. A decepção ou frustração do desejo consiste na busca de coisas vãs. Vaidade, palavra que se aplica também à busca dos bens deste mundo, é produto da imaginação: “Para que amais a vaidade e buscais a mentira?”124 Ainda não basta afirmar que o desejo concupiscente e vaidoso é levado à frustração. Vanitas e cupiditas são termos correlatos,125 porque tratam do amor orientado para as coisas. A construção do homem do que não tem consistência, faz com que ele próprio perca consistência, tornando-se semelhante às coisas vãs. 123 Ibid. IV, 4, 9. 124 Ibid. IX, 4, 9: Ut quid diligitis vanitatem et quaeritis mendacium? 125 Ibid. III, 6, 10. 26 2. Da perversão da vontade à conversão No itinerário de Agostinho, o apego à exterioridade provoca a desordem da vontade. Sob o peso da concupiscência, ela tende a almejar o inferior. Através do erro, encontra-se num estado de debilidade e doença. Nesta condição, tratamos da desordem da vontade através da concupiscência e de Deus como o primeiro princípio esquecido. Este esquecimento de Deus, porém, não é total, uma vez que o vínculo ontológico não é totalmente rompido. A inquietude do coração é sinal disso. O amor a Deus não se consuma, uma vez que a vontade não é capaz de realizar o bem que quer, mas o mal que não quer. Por isso, analisaremos a condição da vontade e a sua conversão. Para a filosofia agostiniana, o homem toma consciência de seu estado doentio, e por isso procura desvencilhar-se do erro. Precisa libertar-se da escravidão, trilhando um novo percurso que faça consumar sua vontade. A perversão da vontade distancia moralmente a criatura do criador, desviando-a do seu primeiro princípio. Mas essa perversão é concebível na medida que a vontade passou a ser experimentada de forma desordenada. No entanto, para que a vontade seja curada, o homem necessita de uma profunda e radical transformação. Isso ocorre lentamente, purificando o que de exterior foi buscado pela alma, que é por natureza interior. De forma que, toda alienação ou escravidão vai sendo remediada em vista dessa libertação. Essa transformação, Agostinho denomina “conversão” (conversio), uma nova criação. Mas o ser humano é incapaz de fazer toda esta transformação por si mesmo. Ele necessita da graça. Daí, essa cura ser totalmente impossível sem a intervenção de Deus. Podemos falar de uma conversão da vontade em Agostinho, quando compreendermos que ela é dinâmica e move-se para a sua realização. A compreensão da vontade é fundamental uma vez que ela vai fundamentar a liberdade. Porém, a vontade transformou-se em concupiscência uma vez que a sua condição estava pervertida pelo orgulho. Assim, é preciso saber experimentar as paixões de modo ordenado. As paixões más (libidines) são afecções do querer que podem ser 27 experimentadas de modo louvável.126 Além disso, no De civitate Dei é afirmado: “O que importa é saber qual é a vontade do homem, porque, se for perversa, tornará esses movimentos perversos. Se ao invés, é reta, não somente eles são irrepreensíveis, mas são louváveis”.127 Por este motivo, no presente capítulo, abordaremos a condição da vontade após o pecado e sua conversão. Para chegarmos à conversão da vontade, necessariamente temos que passar pela conversão da mens, que o autor trata no final do livro VII das Confissões. E sobre a vontade e a sua conversão, que se encontram no livro VIII da mesma obra. Ao narrar a sua conversão, estabelece simultaneamente a ascensão da alma para Deus. Esse percurso ascensional desenvolve-se a partir da certeza de que Deus está presente na interioridade.128 Trata-se de uma via de retorno da criatura ao criador, que é sua origem e a consumação da sua vontade. Não há como negar que esta ideia de conversão chegou até Agostinho pelos platônicos.129 Em Plotino, encontramos os dois momentos da processão e da conversão. O Uno é a realidade primeira, ou seja, a primeira hipóstase, da qual dependem ontologicamente todas as outras. Tudo provém dele. Sua perfeição gera um transbordamento sem perda de unidade e sem exteriorizar-se, resultando em algo diverso de si mesmo, procedendo o nous (inteligência). Ela é a segunda hipóstase e, ontologicamente, é inferior ao Uno. Mas é preciso a conversão para que ela se torne ela mesma, movimento de retorno ao princípio gerador. Da inteligência origina-se a alma. Pois, pela conversão, a inteligência imitou o uno, que a transborda, sendo capaz de gerar a alma. Essa é a terceira hipóstase, que possui duas direções: se contempla a realidade superior é preenchida, se não contempla o superior exterioriza-se gerando a realidade sensível. Mas a dependência ontológica ao primeiro princípio é garantida. Na descida, contrária à origem, o exercício da vontade pode provocar o esquecimento de si e desse princípio.130 Agostinho é influenciado pela noção de conversão que recebeu de Plotino, pois a conversão é necessária para a realização do ser. Mas o que vem a ser esta realização? As 126 BERMON, 2008, p.221. 127 De civ. Dei XIV, 6: Interest autem qualis sit voluntas hominis; quia si perversa est, perversos habebit hos motus; si autem recta est, non solum inculpabiles, verum etiam laudabiles erunt. 128 BOCHET, 1982, p.123. 129 Conf. VII, 9-10. 130 PLOTINO, Enéadas, 2007, p.102-105. 28 criaturas devem a sua existência pelo ato divino de criar (creatio): “Com efeito, da plenitude da tua bondade a tua criatura recebeu o ser.”131 Mas ainda não possui a forma, aliás, é o Verbo quem chama as criaturas para a unidade do criador: “Assim, essas criaturas dependiam do vosso Verbo, e ficariam informes, se ele mesmo as não houvesse chamado à vossa unidade e lhes não desse uma forma.”132 Não encontra merecimento nas criaturas para tão grande favor divino. Não somente cria, mas pelo verbo, as chama à semelhança: “Se o vosso verbo não conduzisse ao mesmo verbo que a criou, e não iluminasse e transformasse em luz – luz não igual ao verbo, mas semelhante a sua beleza.”133 Desse modo, a criatura adquire uma forma acabada por meio da conversio. A formatio aponta para a realização do ser. É perceptível a diferença entre criação e formação, mas não entre formação e conversão. Em suma, no ato criativo de Deus, as criaturas recebem o ser (creatio), e recebem a formatio pelo dom do chamado do Verbo, que as faz voltar ao criador (conversio). Mas como a criatura finita e contingente pode retornar ao seu primeiro princípio, sem o merecimento do Verbo que ilumina a nossa história? Ilumina a situação de trevas do homem e os chama para a luz, chamando-as a retornar.134 O homem, porém, precisa dar respostas à iniciativa divina, para sair da situação de dessemelhança e viver de maneira mais sábia.135 No entanto, Agostinho rejeita a ideia plotiniana de processão. Pois, Deus cria a partir do nada (ex nihilo). A criatura humana não é gerada a partir de Deus, mas criada a partir do nada,136 não sendo ela de natureza divina, mas humana. Segundo as disposições e as capacidades conferidas pelo criador à criatura, ela pode fabricar coisas a partir do que já existe. Enquanto em Plotino as hipóstases estão ordenadas de maneira desigual, em Agostinho há uma igualdade a ser guardada, pois na geração da Trindade há o mesmo poder e a mesma essência. Assim, a própria palavra “criação” implica a 131 Conf. XIII, 2, 2: Ex plenitudine quippe bonitatis tuae creatura tua substitit. 132 Ibid. XIII, 2, 2: Atque ita penderent in tuo verbo informa, nisi per idem verbum revocarentur ad unitatem tuam. 133 Ibid. XIII, 2, 3: Tui dissimilis, nisi per idem verbum converteretur ad idem, a quo facta est, atque abe o illuminata lux fieret, quamvis non aequaliter tamen conformis formae. 134 ELIADE, 1981, p.390. 135 Conf. XIII, 2, 3. 136 Ibid. VII, 7, 7. 29 distinção entre a criatura e o criador. No próprio ato de criar, está implícito o formar e o converter, bastando o homem responder ao chamado divino.137 A noção de graça em Plotino não faz sentido, pois ao adquirir as virtudes, a alma volta ao seu princípio originário. Em Agostinho, o homem é incapaz de converter-se mediante seu próprio esforço. Sem a ajuda do Verbo, é incapaz de criar sua forma e curar sua vontade. A partir da conversão da vontade, mesmo que o abismo ontológico permaneça, o homem deseja contemplar face a face o seu primeiro princípio, e essa contemplação consiste na felicidade verdadeira.138 2.1. O movimento de interiorização e a conversão da mente A partir da leitura dos platônicos, Agostinho percebeu a necessidade de examinar a si mesmo, em concordância com a antiga herança grega do conhece-te a ti mesmo. O ser humano sempre foi um mistério para si próprio. A vontade de conhecer a Deus conduz antes ao conhecimento da alma.139 O conhecimento do primeiro princípio passa pelo conhecimento de si. Daí, a busca desse conhecimento dar-se na interioridade. No livro VII das Confissões, Agostinho esboça a condição do coração debilitado e da mente perversa: “Assim, eu, com o coração deturpado.”140 Em outro trecho: “E assim, tentando arrancar do abismo do olhar do meu espírito, afundava-me de novo, e muitas vezes tentava e me afundava uma e outra vez.”141 E mais uma vez afirma: “Contudo, ai ao encontro do teu ouvido tudo o que rugia por causa do gemido do meu coração, e diante de ti estava o meu desejo, e a luz dos meus olhos não estava comigo.”142 A cura progressiva da inteligência ocorre mediante o voltar-se para si mesmo. Utiliza-se a imagem da visão como aquela que sofria na obscuridade da ignorância: 137 BOCHET, 1982, p.194. 138 Conf. XIII, 4, 5. 139 Sol. 1, 2, 7. 140 Conf. VII, 2, 2: Ego itaque incrassatus corde. 141 Ibid. VII, 3, 5: Itaque aciem mentis de profundo educere conatus mergebar iterum et saepe conatus mergebar iterum atque iterum. 142 Ibid. VII, 7, 11: Totum tamen ibat in auditum tuum, quod rugiebam a gemitu cordis mei, et ante te erat desiderium meum et lumen oculorum meorum non erat mecum. 30 E impelias-me com os teus aguilhões interiores, para que estivesse inquieto, até que, através da visão interior, tu para mim fosse uma certeza. E o meu tumor decrescia graças a mão oculta da tua medicina, e a vista conturbada e obscurecida da minha mente de dia para dia ia sarando, mercê do penetrante colírio das dores salutares.143 O movimento de interiorização consiste num processo em que o homem vai se voltando cada vez mais para o próprio íntimo: “E, admoestado a voltar daí para mim mesmo, entrei no mais íntimo de mim, guiado por ti, e consegui, porque te fizeste meu auxílio.”144 Agostinho entra em seu interior e vê, acima da visão interior da alma e acima do espírito (spiritus),145 a luz imutável. Ela não possui um brilho vulgar, mas brilha muito mais clara. Esse olhar da mente (animus)146 corresponde ao que o homem tem de mais elevado e perfeito. Ela não corresponde à totalidade da alma (animus), mas contém a parte mais nobre que é a razão (ratio)147 e a inteligência (intelligentia)148: “A mente contém naturalmente a razão e a inteligência.”149 Assim, a mente é a dimensão mais elevada da alma, uma vez que contempla a verdade por meio de uma visão 143 Ibid. VII, 8, 12: Et stimulis internis agitabas me, ut impatiens essem, donec mihi per interiorem aspectum certus esses. Et residebat tumor meus ex occulta manu medicinae tuae aciesque conturbata et contenebrata mentis meae acri collyrio salubrium dolorum de die in diem sanabatur. 144 Ibid. VII, 10, 16: Et inde admonitus redire ad memet ipsum intravi in intima mea duce te et potui, quoniam factus es adiutor meus. 145 Spiritus é um termo que possui dois sentidos diferentes. Ambos chegam a Agostinho por meio de Porfírio ou das Escrituras. No significado porfiriano, spiritus designa o que denominamos por imaginação reprodutiva ou memória sensível; portanto, é superior à vida (anima) e inferior à mente (mens). Na Sagrada Escritura, spiritus designa, ao contrário, a parte intelectiva da alma. Cf. GILSON, 2007, p.95-96. 146 Gilson afirma que a terminologia de Agostinho é flutuante, por isso tenta fixar alguns sentidos sobre a natureza da alma. Anima designa o princípio de vida dos corpos. Os homens e os animais possuem anima. Animus é um termo empregado por Agostinho para designar a alma do homem, um princípio de vida que ao mesmo tempo é a substância racional. Nesse sentido, animus é a parte mais alta da alma e, por vezes, confunde-se com mens. Portanto, o que se chama mente não é a alma, mas o que há de mais excelente na alma. Cf. De trin. XV, 7, 11. “A mens, isto é, o pensamento é a parte superior da alma racional (animus); pois é o pensamento que adere aos inteligíveis e a Deus.” (GILSON, 2007, p.95-96). 147 Ratio est mentis motio, ea quae discuntir distinguendi et connectendi potens. [Razão é o movimento da mente, pelo qual pode percorrer distinguindo e conectando.] (De ordine, II, 11, 30). 148 Intelligentia ou intellectus são termos que possuem certa equivalência. Foram transmitidos a Agostinho pela Sagrada Escritura, e designam a atividade superior da razão (ratio). Intelligentia é aquilo que há no homem e na mens de mais eminente. Pela mesma razão, confunde-se com intellectus, que é uma faculdade própria da alma do homem, que pertence a mens e que é iluminada diretamente pela luz divina. (GILSON, 2007, p.96). 149 De civ. Dei. XI, 2. Mens, cui ratio et intellegentia naturaliter inest. 31 interior, e porque é imagem de Deus.150 A mente consiste naquilo que torna o homem mais próximo de Deus. Agostinho iniciou o movimento de interiorização porque recebeu ajuda divina, e agora no seu interior consegue descortinar algumas coisas. No entanto, a busca pela verdade ainda se dá por meio da visão da mente. Faz uma analogia com as imagens para garantir a transcendência total da luz imutável. Essa luz não é algo corpóreo ou físico, porém de uma grandeza incomensurável: “Ela não era isto mas outra coisa, outra coisa muito diferente de todas essas, nem tão-pouco estava acima da minha mente como o azeite sobre a água, nem como o céu sobre a terra, mas superior a mim, porque ela própria me fez, e eu inferior, porque feito por ela.”151 Aliás, foi essa luz quem nos chamou à existência, mas a distância ontológica é garantida uma vez que somos criaturas e dependemos do criador para ser. Mais adiante, ele assinala: “e quem a conhece [a verdade], conhece a eternidade. O amor conhece-a! Oh eterna verdade, e verdadeiro amor e amorosa eternidade!”152 Isto indica que o movimento de interiorização consiste num movimento para o superior. Deus não deixa de ser mais íntimo que seu próprio íntimo, mas transcende tudo que criou. Ultrapassa toda dispersão da sua inteligência, uma vez que não está mais voltada para as coisas; a unificação da sua inteligência dá-se mediante o objeto da sua interioridade, fora das categorias do tempo e do espaço.153 Tendo deslumbrado a fraqueza da sua íris, passa a conhecer e encontrar Deus no seu interior. Desse modo, Agostinho é levado a reconhecer a região em que habita, ou seja, a região da dessemelhança (regio dissimilitudinis): “e descobri que eu estava longe de ti.”154 Trata-se de uma distância ontológica entre criador e criatura. Além disso, manifestam-se as fraquezas, as limitações e as enfermidades do seu olhar, ou seja, da sua mens. O movimento de interiorização acontece quando Agostinho faz um 150 De Trin. XV, 7, 11: Por isso, cada homem individual, que é dito imagem de Deus não segundo todas as coisas que pertencem a sua natureza, mas apenas segundo a mente, é uma só pessoa e imagem da trindade na mente. 151 Conf. VII, 10, 16: Non hoc illa erat, sed aliud, aliud valde ab istis omnibus. Nec ita erat supra mentem meam, sicut oleum super aquam nec sicut caelum super terram, sed superior, quia ipsa fecit me, et ego inferior, quia factus ab ea. 152 Ibid. VII, 10, 16: Qui novit veritatem, novit eam, et qui novit eam, novit aeternitatem. Caritas novit eam. O aeterna veritas et vera caritas et cara aeternita. 153 Segundo Lima Vaz, a dispersão da inteligência fora superada devido ao encontro da presença no íntimo humano. Cf. LIMA VAZ, 2001, p.87. 154 Conf. VII, 10, 16: Et inveni longe me esse a te in regione dissimilitudinis. 32 diagnóstico preciso das enfermidades da sua alma, e propõe-se a fazer uma terapia interior. Na verdade, não se trata de um simples olhar para dentro de si mesmo: “Apreendemos o inteligível não porque o olho de nossa alma está voltado para ele, mas principalmente porque somos dirigidos pelo Mestre interior.”155 Mas como acontece o direcionamento pelo Mestre interior? Sobressai aqui um ponto fundamental: Agostinho não usa mais a visão, e sim a audição: “como se ouvisse a tua voz vinda do alto... E ouvi, tal como se ouve no coração, e já não havia absolutamente nenhuma razão para duvidar.”156 Ora, o ouvir pressupõe a fé, e como vimos, ela vem da pregação. Mas o problema está no que ele ouve. São duas frases que Agostinho ouve neste movimento de interiorização, sendo a primeira: “Eu sou o alimento dos adultos: cresce e comer-me-às. Tu não me mudarás em ti, como o alimento da tua carne, mas tu serás mudado em mim.”157 Em outros termos, Deus é o alimento dos adultos, e a criatura frágil não consegue comer. Mas quando recebe este alimento, é Deus quem o transforma e jamais pode ser o contrário. Trata-se de uma realidade espiritual e não física. O autor reconhece o peso que as iniquidades possuem neste processo devido à sua enfermidade, mas em todo percurso, compreende as correções e o auxílio divino. A segunda frase ouvida faz alusão ao livro do Êxodo: “Sim, eu sou o que sou.”158 A frase refere-se ao primeiro princípio como ser puro. A transformação da mente foi possível porque ele ouviu através do coração, sem a hesitação da dúvida.159 Tendo ocorrido a mudança da mente, Agostinho começa uma nova forma de pensar e compreender as coisas exteriores. Passa a perceber a bondade das criaturas160 e, consequentemente, e que a presença do mal no mundo não é uma substância, mas uma perversão da vontade, desviada da suma substância.161 A doença da sua mente aparece pela incapacidade de perceber a bondade das coisas. Confuso, procura em correntes filosóficas a verdade. Só a encontra, porém, quando procura mais perto de si mesmo, no 155 TAYLOR, 2005, p.180. 156 Conf. VII, 10, 16: Tamquam audirem vocem tuam de excelso ... Et clamasti de longinquo ... Et audivi, sicut auditur in corde, et non erat prorsus, unde dubitarem. 157 Ibid. VII, 10, 16: Cibus sum grandium: cresce et manducabis me. Nec tu me in te mutabis sicut cibum carnis tuae, sed tu mutaberis in me. 158 Ibid. VII, 10, 16. 159 Ibid. I, 2, 2: In me ipsum eum vocabo, cum invocabo eum. [uma vez que é para dentro de mim mesmo que o invoco, quando invoco.] 160 Ibid. VII, 21, 27: Et consideraveram opera tua et expaveram. [E meditava sobre as tuas obras, e ficava apavorado.] 161 Ibid. VII, 16, 22. 33 seu próprio interior.162 A manifestação da cura da mente dá-se pelo fato dele não possuir mais um olhar viciado pelas coisas, mas julga tudo a partir do criador. Após ter vislumbrado a luz imutável, ele vivencia outra crise neste processo de ascensão dolorosa. Pois, de um lado ele conhece e lembra da beleza de Deus. Por outro lado, é arrancado de Deus devido às suas enfermidades, tendo um impedimento para unir-se totalmente ao seu primeiro princípio.163 A ascensão ocorre por meio de vários graus, iniciando pelos corpos até chegar a inteligência, que contempla as realidades invisíveis, porém, ainda não consegue habitar nelas. A incapacidade de ainda não possuir ou habitar a pátria celeste164 revela-se pelo fato de ele ainda não ter completado o movimento de interiorização. É necessário a conversão da vontade. Sem essa conversão, ele não consegue satisfazer sua vontade do repouso, que consiste em habitar na verdade e na felicidade plena. 2.2. A vontade pecadora No último parágrafo do VII livro das Confissões, Agostinho constata que o que encontrou nos platônicos encontra também nas epístolas de São Paulo. Porém, Paulo demonstra a necessidade do auxílio divino para poder encontrar e contemplar a verdade. O auxílio divino faz Agostinho ver aquilo que enquanto criatura pode ver. Entretanto, esta visão vai melhorando a partir do momento em que ele começa a contemplar o criador, mudando o orgulho pelo exercício da humildade. O problema está em que o orgulho proporcionara um abismo entre o criador e a criatura. A vontade, após a queda, encontra-se cindida. Paulo não consegue querer o bem e realizá-lo, e consequentemente acaba fazendo o mal que não quer. Eis o estado da vontade pecadora, que ao se querer reivindicar a sua autonomia, esquece-se daquele que é a sua condução original, passando a considerar-se doente. Agostinho constata então uma cisão na vontade. O drama da vontade que quer e ao mesmo tempo não quer. Mas como aconteceu a alienação da vontade? 162 Ibid. X, 2, 2: Te enim mihi absconderem, non me tibi. [Na verdade, poderia esconder-te de mim, mas não esconder-me de ti.] 163 Ibid. VII, 17, 23. 164 Na metáfora da navegação, Agostinho, que utiliza fontes platônicas, salienta o auxílio divino para possuir a Deus. Cf. De beata vita II, 10, 12. 34 O livro II das Confissões nos permite ver um exemplo específico do que seja a perversão da vontade. O acontecimento narrado consiste no furto impetrado por Agostinho em seu aniversário de dezesseis anos.165 É interessante notar como Agostinho estende-se nesse fato. Ao mesmo tempo, tal fato causa na sua vida outros distúrbios mais graves.166 Mas o que importa não é tanto a materialidade da ação, mas a vontade que a anima. Desse ponto de vista, o episódio do furto das peras é o estereótipo do pecado: sem necessidade, é o mal que se quer para si. Agostinho afirma e reafirma: E eu quis cometer um furto e fi-lo sem ser impedido pela indigência, mas sim por penúria e fastio da tua justiça e fartura de iniqüidade. Com efeito, furtei aquilo que tinha com fartura e muito melhor, e não queria fruir daquilo que desejava obter com o furto, mas sim do próprio furto e do pecado167. E depois da narrativa da história do furto, ele contínua: A ponto de eu ser mal sem motivo, e a causa da minha maldade não ser senão a maldade. Era feia, e eu amei-a; amei perder-me; amei o meu defeito, torpe alma que saltavas fora da tua base firme par a morte, não desejando alguma coisa por indecência, mas a própria indecência.168 Ele toma o cuidado de não excluir qualquer outra motivação que não seja o próprio objeto, a fim de destacar que possuía uma vontade pelo mal, que era amada (a palavra amavi é repetida quatro vezes), a ponto de querer seu desfrute (frui). Eis a gravidade do mal que se torna sensível, e que é descrito pelos termos que designam este estado: malitia, foedus, perire, defectum. Assim, pela perversão da vontade, há em germe a possibilidade de todo delito, pois se o mal é amado por si mesmo, todos os pecados são possíveis, não existindo um limite para a ação má: “Que podia não ter feito eu, que amei até o crime gratuito?”169 Daí, o autor poder dizer que o pecador Catilina, 165 Conf. II, 6, 12. 166 Ibid. II, 1- 4. 167 Conf. II, 4, 9: Ego furtum facere volui et feci nulla compulsus egestate nisi penuria et fastidio iustitiae et sagina iniquitatis. Nam id furatus sum, quod mihi abundabat et multo melius, nec ea re volebam frui, quam furto appetebam, sed ipso furto et peccato. 168 Ibid. II, 4, 9: Quid ibi quaerebat, ut essem gratis malus et malitiae meae causa nulla esset nisi malitia. Foeda erat, et amavi eam; amavi perire, amavi defectum meum, non illud, ad quod deficiebam, sed defectum meum ipsum amavi, turpis anima et dissiliens a firmamento tuo in exterminium, non dedecore aliquid, sed dedecus appetens. 169 Ibid. II, 7, 15: Quid enim non facere potui, qui etiam gratuitum facinus amavi. 35 por mais que não amasse seus próprios crimes, cometia-os em vista do fim: “Nem o próprio Catalina amou os seus crimes, mas sim uma outra coisa, por cujo motivo os cometia.”170 Depois de dizer que no furto não amava nada mais a não ser o próprio mal, ele tenta explicar como tal perversão é possível. O que pode seduzir a v