UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA EM REDE NACIONAL Laís Regina da Silva Paiva GESTAÇÃO JUVENIL, FALANDO DE UM LUGAR: UMA ESCOLA PÚBLICA DE ARAÇATUBA/SP MARÍLIA 2020 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA EM REDE NACIONAL Laís Regina da Silva Paiva GESTAÇÃO JUVENIL, FALANDO DE UM LUGAR: UMA ESCOLA PÚBLICA DE ARAÇATUBA/SP Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Sociologia em Rede Nacional (PROFSOCIO), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Sociologia. Área de concentração: Ensino de Sociologia. Linha de pesquisa: Educação, escola e sociedade. Orientadora: Prof.ª Dra. Lídia Maria Vianna Possas. MARÍLIA 2020 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. 1. Gravidez juvenil. 2. Sexualidade. 3. Política educacional. I. Título. Paiva, Laís Regina da Silva GESTAÇÃO JUVENIL, FALANDO DE UM LUGAR : UMA ESCOLA PÚBLICA DE ARAÇATUBA/SP / Laís Regina da Silva Paiva. -- Marília, 2020 167 p. : il., tabs. Dissertação (mestrado profissional) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília Orientadora: Lídia Maria Vianna Possas P149g LAÍS REGINA DA SILVA PAIVA GESTAÇÃO JUVENIL, FALANDO DE UM LUGAR: UMA ESCOLA PÚBLICA DE ARAÇATUBA/SP Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia em Rede Nacional da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP, campus de Marília, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Sociologia. Área de concentração: Ensino de Sociologia. Linha de pesquisa: Educação, escola e sociedade. BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________ Orientadora: Prof.ª Dra. Lídia Maria Vianna Possas Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília _______________________________________________________ Prof.ª Dra. Sueli Guadelupe Mendonça Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Filosofia e Ciências, Campus de Marília ______________________________________________________ Prof.ª. Dra. Ângela Inês Liberatti Centro Universitário Toledo, Campus de Araçatuba. Marília, 17 de abril de 2020. AGRADECIMENTOS É chegado o fim um ciclo de muito crescimento profissional e pessoal. Sendo assim, agradeço a todos que fizeram parte desta etapa da minha vida. Agradeço àqueles/àquelas que marcaram essa minha existência enquanto mãe, companheira, filha e pessoa. Primeiro e com muita emoção, agradeço as pessoas mais especiais dessa caminhada, minha filha Larissa e o meu esposo Murilo, pelo apoio incondicional que ofereceram a mim ao longo dessa jornada. Sou muito grata pelo carinho e amparo de vocês em todos os momentos, especialmente pela compreensão que tiveram com as minhas horas de ausência. O amor de vocês é o que me move! Essa conquista também lhes pertence! Amo muito vocês! Agradeço aos meus pais que estão sempre presentes em minha vida, obrigada por toda dedicação e empenho de vocês na minha educação e formação. Sei o quanto foram generosos comigo em todos os aspectos para que eu conseguisse chegar até aqui. Meus agradecimentos aos amigos Alexandre Darros, Luís Birello, Jamilly Nicácio, Carolina Fernandes e Carlos Santiago, por serem corresponsáveis, de uma forma ou outra, dessa conquista. Eterna gratidão à minha professora da graduação Ângela Liberatti, que de forma muito afetuosa tem sido minha mentora e companheira a mais de uma década. Agradeço também a essa instituição e aos meus professores, em especial a minha orientadora Lídia Vianna, pela dedicação e carinho durante o desenvolvimento desse trabalho, a professora Sueli Guadalupe e a professora Ana Paula Cordeiro, pessoas que levarei eternamente dentro do meu coração. Gratidão aos meus familiares e amigos, especialmente Marlene Donizete, Mara Helena, família Sanda, família Araújo e aos pais e chefes da Alcateia Samurai por participarem ativamente do grupo de pessoas que ajudaram a cuidar da minha filha para que eu pudesse estudar e tornar esse sonho uma realidade. Grata por ter convivido com Daniely Nascimento, Adriana Ronchi, Ana Carolina Oliveira, Wilian Marques Dias e Valéria Botaro, companheiros de luta e pessoas sem as quais essa etapa teria sido quase impossível. Também agradeço à equipe gestora e agentes de organização da escola que serviu de lócus para esse estudo - especialmente Loize Bernadete Carvalho e Doralice Ravani - e a todos que direta ou indiretamente contribuíram ou não para a realização dessa pesquisa. Também agradeço aos meus alunos e alunas que me inspiram cotidianamente, especialmente Ana Beatriz Ribeiro, Raiane Dias e Andressa Porto que se tornaram mais que alunas e participaram da rede de solidariedade que me deu suporte durante o processo de pesquisa. Manifesto minha gratidão à Willian Casari, Marly Garcia, Aparecida Casari, e Nilza Frazatti Garcia, pela dedicação e compreensão comigo e com minha pesquisa. Muito obrigada à todxs! RESUMO A pesquisa procura entender os enunciados discursivos que envolvem questões de gênero, sexualidade e gestação na juventude. Procuramos compreender como a sexualidade e a reprodução juvenil têm sido abordadas em diferentes práticas discursivas. A partir de análises de documentos oficiais e de organizações internacionais sobre o tema, levantamento da legislação pertinente, de pesquisas sobre reprodução e sexualidade juvenil das área da saúde, educação e humanidades, e de uma obra escolar intitulada Gravidez na adolescência – gravidez não é brincadeira, produzida em 2013 com textos e ilustrações de estudantes e docentes de uma escola pública do interior do Estado de São Paulo, além de entrevistas semiestruturadas com profissionais da escola que produziu a obra analisada, procurou-se compreender a visão que a comunidade escolar tem sobre a sexualidade e reprodução juvenil. A referida publicação também permitiu evidenciar como a problemática da gravidez na juventude está presente na escola, sendo, na época de sua produção, uma preocupação do cotidiano escolar. Observamos que as práticas sexuais entre os entre os jovens ainda estão repletas de estereótipos, medos, proibições e relações assimétricas de gênero, em que há predominância da figura masculina; ao mesmo tempo em que as moças são implicitamente responsáveis pela reprodução e contracepção. Embora essa temática já esteja superficialmente contemplada em algumas propostas curriculares, identificamos a urgência e a necessidade de se abrir espaço nos currículos escolares para a discussão sobre educação em sexualidade, principalmente de Sociologia e de outras disciplinas escolares da área das Ciências Humanas. A juventude, entendida como uma etapa de transformações físicas, sociais e econômicas na vida dos indivíduos, de passagem da infância para o mundo adulto, coloca mais do que nunca a exigência de que a geração de jovens seja adequadamente preparada para enfrentar as conjunturas atuais e os fenômenos sociais e culturais que interferem na sua formação como pessoa e cidadãos/cidadãs. Palavras-chaves: Gravidez juvenil. Educação em Sexualidade. Ensino de Sociologia. ABSTRACT The research seeks to understand the discursive markers that involve issues of gender, sexuality and pregnancy at a young age. We seek to understand how sexuality and youth reproduction have been covered in different discursive practices. Based on analyzes of official documents and international organizations on the matter, evaluation of appropriate legislation, research on reproduction and youth sexuality in the areas of health, education and humanities, and a school work entitled Teenage Pregnancy - pregnancy is not a joke. , produced in 2013 with texts and illustrations by students and teachers of a public school in the countryside of São Paulo state, in addition to semi-structured interviews with professionals from the school that produced the analyzed work, we sought to comprehend the vision that the school community has on youth sexuality and reproduction. Such publication also granted a possibility to show how the problem of pregnancy in youngsters is present at school, therefore being, at the time of its production, a concern in the school routine. We observed that sexual practices among young people are still full of stereotypes, fears, prohibitions and asymmetric gender relations, in which there is a predominance of the male figure; whilst girls are implicitly responsible for reproduction and contraception. Even tough this topic is already superficially covered in some curricular proposals, we identified the urgency and the need to open space in school curriculum for the discussion on sexuality education, most importantly in Sociology and other school subjects in the Human Science area. Young people, interpreted as a stage of physical, social and economic transformations in the individuals lives, moving from childhood to the adult world, places more than ever the requirement that the generation of young people be properly prepared to face the current scenario and the social and cultural phenomena that interfere in their upbringing as a person and as citizens. Keywords: Juvenile pregnancy. Sexuality Education. Sociology Teaching. LISTA DE TABELAS E FIGURAS Tabela 1 ................................................................................................................................ 1097 Figura 1 ............................................................................................................................... 10909 Figura 2 ................................................................................................................................. 1100 Figura 3 ................................................................................................................................. 1122 Figura 4 ................................................................................................................................. 1133 Figura 5 ................................................................................................................................. 1155 Figura 6 ................................................................................................................................. 1222 Figura 7 ................................................................................................................................. 1233 Figura 8 ................................................................................................................................. 1277 Figura 9 ................................................................................................................................. 1288 Figura 10 ............................................................................................................................... 1300 Figura 11 ............................................................................................................................... 1322 Figura 12 ............................................................................................................................... 1333 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AIDS Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (do inglês acquired immunodeficiency syndrome) AMB Associação Médica Brasileira ATPC Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo BNCC Base Nacional Comum Curricular CIOMS Council for International Organizations of Medical Siences CNE Conselho Nacional de Educação DCNEM Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio DPU Defensoria Pública da União ECA Estatuto da Criança e do Adolescente EERP/USP Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo EF Ensino Fundamental EM Ensino Médio ES Espírito Santo FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação GDE Projeto Gênero e Diversidade na Escola GRAVAD Gravidez na adolescência. Gênero e Sexualidade: Estudo multicêntrico sobre Jovens, Sexualidade e Reprodução no Brasil GO Goiás HIV Human Immunodeficiency Virus IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDEB Índice de Desenvolvimento da Educação Básica IDH Índice de Desenvolvimento Humano IMS/UERJ Instituto de Medicina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro IMS/UFBA Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia INED Institut National d’Études Démographiques INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira IST Infecções Sexualmente Transmissíveis LDB Lei de Diretrizes e Bases LGBT Lésbicas, gays, Bissexuais e Travestis, Transexuais e Transgêneros LGBTTQI Lésbicas, gays, Bissexuais e Travestis, Transexuais, Queers e Intersexuais MEC Ministério da Educação e Cultura (1953) MESP Movimento Escola Sem Partido MG Minas Gerais MS Ministério da Saúde NUPACS/UFRGS Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul OCN Orientações Curriculares Nacionais OMS Organização Mundial da Saúde ONU Organização das Nações Unidas OPAS/OMS Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde PBSH Programa Brasil Sem Homofobia PCN Parâmetros Curriculares Nacionais PCNEM Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio PDDE Programa Dinheiro Direto na Escola PSC Partido Social Cristão PSDB Partido da Social Democracia Brasileira PL Partido Liberal PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PNE Plano Nacional de Educação PR Partido da República, atualmente conhecido como Partido Liberal PROEMI Programa Ensino Médio Inovador PROFSOCIO Programa de Pós-Graduação em Sociologia em Rede Nacional PROS Partido Republicano da Ordem Social PSC Partido Social Cristão PT Partido dos Trabalhadores PTB Partido Trabalhista Brasileiro PUC Pontifícia Universidade Católica SARESP Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar de São Paulo SBT Sistema Brasileiro de Televisão SEE/SP Secretaria de Educação do Estado de São Paulo SP São Paulo SPE Programa Saúde e Prevenção nas Escolas SINASC Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina UECE Universidade Estadual do Ceará UFF Universidade Federal Fluminense UFSC Universidade Federal de Santa Catarina UNAIDS Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNESP Universidade Estadual Paulista UNFPA United Nations Population Fund (Fundo de População das Nações Unidas) UNICAMP Universidade Estadual de Campinas UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância USP Universidade de São Paulo UTFPR Universidade Tecnológica Federal do Paraná SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................. 14 1 AS RELAÇÕES DE PODER E SABER SOBRE OS CORPOS.................. 21 1.1 O dispositivo da sexualidade.......................................................................... 22 1.2 Verdade e poder.............................................................................................. 27 1.3 Gênero e relações de poder-saber.................................................................. 30 2 REPRESENTAÇÕES E JUVENTUDE........................................................ 35 2.1 Representações e formas de análise da categoria Juventude....................... 36 2.2 Juventude e o olhar sociológico...................................................................... 39 2.3 Juventude, Sexualidade e Reprodução.......................................................... 43 3 GRAVIDEZ, JUVENTUDE E SEXUALIDADE FEMININA.................... 47 3.1 Discursos sobre gestação juvenil e as relações de poder e saber sobre os corpos............................................................................................................... 51 3.1.1 Gestação juvenil e riscos biomédicos e psicossociais....................................... 53 3.2 Alertas da Política de Saúde Mundial e Nacional......................................... 57 3.3 Considerações sobre reprodução juvenil e educação em sexualidade........ 62 4 GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS VOLTADAS PARA A EDUCAÇÃO EM SEXUALIDADE.............................................. 73 4.1 Parâmetros e Orientações Curriculares para a Sociologia e Educação em Sexualidade..................................................................................................... 74 4.1.1 Parâmetros Curriculares Nacionais................................................................. 78 4.1.2 Orientações Curriculares Nacionais................................................................ 82 4.2 Orientação sexual nas escolas e a onda conservadora no país.................... 84 4.3 Alternativas para o enfrentamento............................................................... 98 5 ESCOLA E INICIATIVA DE ENFRENTAMENTO: GRAVIDEZ NA ADOLESCENCIA – GRAVIDEZ NÃO É BRINCADEIRA (2013).......... 102 5.1 O livro Gravidez na adolescência: gravidez não é brincadeira (2013)........ 106 5.1.1 Capa e páginas iniciais..................................................................................... 109 5.1.2 Textos produzidos pela equipe de profissionais................................................ 111 5.1.2.1 Dedicatória, Agradecimento e Apresentação................................................... 112 5.1.2.2 Textos informativos.......................................................................................... 113 5.1.3 Textos produzidos por estudantes..................................................................... 123 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................... 136 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................... 141 APÊNDICE A –Transcrição da Entrevista I................................................ 151 APÊNDICE B –Transcrição da Entrevista II............................................... 153 APÊNDICE C –Transcrição da Entrevista III............................................. 155 APÊNDICE D –Transcrição da Entrevista IV............................................. 158 APÊNDICE E –Transcrição da Entrevista V............................................... 160 APÊNDICE F –Transcrição da Entrevista VI............................................. 162 APÊNDICE G –Transcrição da Entrevista VII........................................... 165 14 INTRODUÇÃO Para início de conversa, gravidez não é brincadeira! Só é possível compreendermos a os fenômenos reprodutivos, em especial a reprodução juvenil, se, antes de qualquer coisa, também analisarmos as alterações pelas quais a categoria juventude passou nos últimos tempos, levando-se em consideração as próprias transformações no comportamento sexual, especialmente dos jovens, e perceber as modificações ocorridas nas relações familiares e nas manifestações de sexualidade nas últimas décadas. Tais alterações nos comportamentos sexuais conflitam com costumes tradicionais, notadamente no que se refere a questões de sexualidade, gênero e padrões corporais; e em como esse processo histórico é perpassado por relações de poder e de normalização das condutas, especialmente no entendimento atual sobre o casamento, maternidade e reprodução juvenil. Esses temas são bastante atuais tanto nos meios acadêmico e científico, quanto no senso comum. Quando se trata de um ambiente escolar a questão passa a ser encarada com mais atenção, podendo tornar-se alvo de ações educativas internas. O que pôde ser constatado por mim desde que me juntei a equipe de uma escola pública na cidade de Araçatuba, interior do Estado de São Paulo. Segundo dados do censo do IBGE de 2010, o município de Araçatuba contava com uma população cerca 181 mil pessoas. Estima-se que atualmente o município conte com quase 200 mil habitantes (IBGE, 2010). Ainda segundo o IBGE, em 2015 o município contava com 7.452 matrículas no Ensino Médio, 578 docentes no mesmo seguimento de educação, distribuídos em 37 escolas que atendem a esta última etapa na educação básica (IBGE, 2015). Especificamente sobre o Ensino Médio na rede pública, segundo membro do quadro de apoio escolar da unidade analisada, a Diretoria de Ensino de Araçatuba é responsável diretamente por 33 escolas públicas, distribuídas em 6 cidades – Araçatuba, Bento de Abreu, Guararapes, Rubiácea, Santo Antônio do Aracanguá e Valparaíso. Somente no município de Araçatuba são 22 escolas, nas quais em 2018 estão matriculados cerca de 7mil alunos no Ensino Médio (Membro do quadro de apoio escolar da unidade analisada (Entrevista I. [jun. 2018]. Entrevistadora: Laís Regina da Silva Paiva. Araçatuba, 2018. A entrevista na íntegra encontra- se transcrita no Apêndice A desta dissertação, p. 152-153). O cenário desta pesquisa foi uma escola pública situada na área urbana do município de Araçatuba. De acordo com dados coletados na unidade escolar, no ano de 2019, esta possuía cerca de 600 alunos matriculados e destes pouco mais de 220 estavam no Ensino Médio. Os 15 alunos estavam distribuídos em 19 turmas, sendo 11 de Ensino Fundamental (EF) e 8 de Ensino Médio (EM); além de 4 turmas de inclusão atendidas na sala de recursos. Todas as aulas eram ministradas no período diurno, uma vez que a escola já não funciona no período noturno desde o ano de 2015. As aulas do 6º ao 8º ano do Ensino Fundamental ocorriam no período vespertino e os alunos do 9º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio eram recebidos no período matutino. À época da pesquisa, a escola atendia alunos do bairro onde se situa, mas boa parte dos discentes residiam em locais mais afastados da unidade e bastante distante do centro da cidade. Localizados nos arredores do município, os bairros em que habitavam parte considerável dos alunos da unidade são residenciais relativamente recentes e ainda carecem de muitas obras públicas de infraestrutura. Como até 2019, data em que se encerrou a pesquisa, tais localidades ainda não possuíam escolas que atendessem os estudantes de 6º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio, estes eram deslocados em ônibus fretados pela prefeitura para escolas de outros bairros mais antigos (Membro do quadro de apoio escolar da unidade analisada (Entrevista II. [set. 2019]. Entrevistadora: Laís Regina da Silva Paiva. Araçatuba, 2019. A entrevista na íntegra encontra-se transcrita no Apêndice B desta dissertação, p. 154-155). Após minha aprovação no concurso público para professores de Educação Básica de 2013, assumi um cargo como professora de História na já mencionada unidade em 2014. Passei a lecionar aulas para o Ensino Fundamental, sempre no período vespertino, pois durante as manhãs eu atuava em escolas da rede privada. Apenas em 2016 assumi algumas aulas de Sociologia na escola, lecionando aulas de História no período vespertino para turmas do Ensino Fundamental e algumas turmas de História ou Sociologia no período matutino para alunos do Ensino Médio. A partir de então passei a ter mais contato com estudantes e docentes de ambos os ciclos desta unidade escolar. Desse momento em diante, foi possível perceber que os/as professores/professoras e a equipe gestora sempre demonstravam bastante preocupação diante de notícias que anunciavam uma nova gestação entre as estudantes da escola. No fim do ano letivo de 2016, a partir das informações recebidas nas reuniões de professores, chamadas de Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPC), contabilizei informalmente cinco alunas que engravidaram nesse período. No ano de 2017, chegou ao conhecimento da equipe gestora e dos professores, por meio de relato de familiares e responsáveis, os casos de pelo menos seis jovens grávidas apenas entre as estudantes do Ensino Médio. Destes casos, também segundo professores e equipe gestora, 50% das meninas concretizaram uniões com seus parceiros. Em 2018, os relatos apontaram para seis novos casos de gravidez entre as adolescentes da escola. Destas, duas já coabitavam com o companheiro, 16 duas concretizaram uniões com o pai do bebê e as demais mantiveram-se morando com suas famílias de origem. As práticas discursivas sobre a gravidez juvenil, considerada como “precoce” pela equipe de profissionais da escola, era assunto recorrente na sala dos professores e em reuniões ATPC, de planejamento e replanejamento. Não era incomum que a gestação entre jovens fosse associada a carências de toda sorte (afetivas, emocionais, sociais, econômicas), a pobreza (aí as falas dos docentes incluem o que era chamado de pobreza material e cultural), bem como ausência de base familiar “estruturada” e projeto de vida. Diante do exposto foi iniciado um levantamento bibliográfico em meios acadêmicos sobre a temática e no acervo da Sala de Leitura da escola. O intuito era compreender os aspectos socioemocionais que envolviam os índices de fecundidade entre as alunas da referida unidade escolar. No início de 2018 fui aprovada na seleção para o Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional (PROFSOCIO) e passei a ter aulas em um dos polos do Programa, a Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Filosofia e Ciências na cidade de Marília/SP. A partir de então a pesquisa foi se materializando e ganhando forma dentro da linha de pesquisa Juventude e Questões Contemporâneas. Nesse estudo foram abordadas diversas considerações sobre a sexualidade e reprodução juvenil presentes em pesquisas acadêmicas e livros sobre a temática. Observamos como orientações de organizações nacionais e internacionais bem como do poder público abordam a temática. Analisamos como normas, parâmetros, orientações e leis abordam esse assunto no Brasil. Além de realizar observações e levantamento de informações in loco, atuando como professora/pesquisadora. Foram reunidos dados tanto entre membros da equipe de profissionais como entre os estudantes, dando especial atenção às alunas gestantes matriculadas na escola no ano de 2018. Inicialmente, essa pesquisa objetivava colher da comunidade estudantil, por meio de entrevistas e questionários, suas visões e expectativas quanto a sexualidade, reprodução e contracepção. Contudo, foi encontrada na Sala de Leitura da escola uma obra especialmente significativa produzida pelos próprios estudantes e docentes da unidade escolar, intitulada Gravidez na adolescência: gravidez não é brincadeira (2013). Essa publicação reúne diversos textos e ilustrações produzidas por estudantes e docentes da escola durante o ano letivo de 2012. A leitura dos textos e imagens proporcionou uma visão mais abrangente sobre como a comunidade escolar encarava a gravidez durante a juventude. O livro mostrou-se uma importante fonte de pesquisa e a partir do conjunto de produções que contém pudemos analisar 17 a gestação juvenil dentro de um ambiente escolar específico, bem como as ações tomadas para o enfrentamento da situação. Embora a preocupação com a chamada gravidez na adolescência1 seja uma realidade contemporânea, nem sempre foi assim. A idade considerada ideal para uma mulher iniciar-se na vida reprodutiva passou por variações significativas ao longo do tempo, especialmente no último século. Atualmente, tornar-se mãe nos anos iniciais da juventude pode não ser mais uma ideia amplamente aceita socialmente. O exercício da maternidade nessa fase da vida poder ser considerado como um obstáculo à trajetória escolar e profissional ou um desperdício de oportunidades na vida da jovem mãe. Sua prevenção, além de estar a cargo da família e implicitamente a outras instituições como a Igreja, passou a ser uma responsabilidade política do Estado. A sexualidade e a reprodução juvenil têm sido alvo de diversas ações em campos variados no Brasil, daremos especial atenção àquelas que produziram efeito ou foram propostas diretamente para a Educação. Alguns fatores como o aumento do índice de fecundidade entre jovens e dos casos doenças sexualmente transmissíveis, especialmente o HIV2, ainda nos anos 1980 podem ter sido influenciadores para a inclusão em 1996 da orientação sexual como tema transversal nos Parâmetros Curriculares Nacionais. No tocante a educação em sexualidade no Brasil, observaremos ao longo deste trabalho como as políticas públicas educacionais têm se posicionado nas últimas décadas. Após a redemocratização do país, o Brasil viveu na primeira metade dos anos 1990 várias iniciativas curriculares. Em 1997, no ano seguinte a aprovação da última Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)3 (Lei 9.394/96), o Ministério da Educação e do Desporto lançam os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental e Médio. A orientação sexual 1O estudo realizado por Heilborn et tal (2006) entende por gravidez na adolescência aquela ocorrida até os 20 anos incompletos. A nomenclatura obedece a classificação oficial da OMS, que define adolescência o período compreendido entre os 10 e os 19 anos. Nessa pesquisa empregaremos gravidez na adolescência, gestação juvenil e gravidez na juventude como referências ao mesmo fenômeno, pois esses foram os principais termos utilizados nos estudos analisados. Embora não haja uma padronização muito rígida no uso de categorias como adolescência e juventude, neste estudo compreendemos por gravidez na adolescência aquela ocorrida entre os 12 e os 17 anos. Segundo o Art. 2º da Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990, Estatuto da Criança e do Adolescente, considera-se criança a pessoa até 12 anos incompletos, e adolescente entre 12 e 18 anos (BRASIL, 1990). 2 Segundo página na internet mantida pelo Ministério da Saúde HIV é a abreviatura em inglês de Human Immunodeficiency Vírus. Refere-se ao vírus causador da AIDS, Acquired Immunodeficiency Syndrome, ou Síndrome da Imunodeficiênica Adquirida. O HIV age no sistema imunológico dos indivíduos infectados, reduzindo a capacidade de defesa do organismo. Ser portador do vírus não é a mesma coisa que ter AIDS. Alguns soropositivos podem vivem anos sem manifestar qualquer sintoma, mas continua sendo transmissor do vírus, mesmo sem desenvolver a doença. Relações sexuais desprotegidas estão entre as principais formas de transmissão (BRASIL, 2019?). 3 Lei de Diretrizes e Bases é a Legislação que regulamenta todos os níveis do Sistema Educacional brasileiro, público ou privado, em consonância com a Constituição (BRASIL, 1996). 18 entra nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)4 como tema transversal que propõem que esse assunto seja trabalhado em todos os ciclos de escolarização pelas mais diversas áreas e não como conteúdo de apenas uma disciplina5. Contudo, apesar da relevância dos PCN, que apoiou a abordagem da temática da sexualidade e reprodução nas escolas, esses conteúdos continuam sendo considerados tabus e, às vezes, evitados pelas unidades escolares. Ou quando estão presentes no contexto escolar ainda se apresentam como fruto e esteio de discursos bio-médico- psicológicos, estando principalmente relacionados aos conteúdos de Ciências e/ou Biologia. Ao tratarem a temática da reprodução juvenil, por exemplo, as escolas muitas vezes pautam seus argumentos e observações em possíveis desdobramentos negativos de uma gestação na juventude, especialmente em seus anos iniciais, como os riscos à saúde física e psicológica e os riscos sociais que pode trazer a vida dos/das jovens, especialmente das garotas. São raras as vezes que as subjetividades dos/das estudantes quanto a sexualidade e gravidez, bem como suas trajetórias de vida e círculos pessoais, são levados em consideração. A presente pesquisa tem por objetivo compreender o que mudou no discurso social quanto a idade ideal para se ter filhos a partir de uma abordagem inspirada nos estudos foucaultianos sobre discurso, disciplina, biopolítica e biopoder. Nesse sentido, a análise é focada em como se dão as manifestações de sexualidade entre os jovens - permeadas de estereótipos, proibições e relações assimétricas de gênero - atreladas aos discursos sobre a reprodução e sexualidade juvenil. Consideramos a relação entre poder, sexualidade e gênero a partir das obras de Michel Foucault, onde o poder é tido como instrumento normalizador de comportamentos, corpos e subjetividades dos indivíduos e das populações. Segundo esse autor, 4 Os Parâmetros Curriculares Nacionais foram apresentados como um referencial de qualidade para a educação Brasileira, necessidade de referenciais a partir cujo objetivo é “garantir que, respeitadas as diversidades culturais, regionais, étnicas, religiosas e políticas que atravessam uma sociedade múltipla, estratificada e complexa, a educação possa atuar, decisivamente, no processo de construção da cidadania, tendo como meta o ideal de uma crescente igualdade de direitos entre os cidadãos, baseado nos princípios democráticos” (BRASIL,1997, p.13). Primeiro o Ministério da Educação e Desporto (MEC) criou os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental - nos anos de 1997 e 1998, e, posteriormente em 1999 foram criados os PCN para o Ensino Médio. 5 Os PCN apontam que a sexualidade é parte integrante do indivíduo e de sua formação, estando intrinsecamente relacionada a valores sociais e, portanto, o seu estudo coliga contribuições de diversas áreas, que vão desde a Educação, Psicologia, Antropologia, História, Sociologia, Biologia e até a Medicina (BRASIL, 1998, p. 295). Pelo documento, os assuntos que envolvem a sexualidade devem ser tratados primordialmente pela família e propõe que a Orientação Sexual oferecida a crianças e os jovens pela escola trate sobre os efeitos das mensagens transmitidas pela mídia, pela família e pelas demais instituições sociais com o objetivo de preencher lacunas nas informações que os alunos já têm, oferecendo-lhes a possibilidade de desenvolver conceito a respeito do que lhes é ou foi apresentado. A abordagem deve ser feita sempre de forma científica, direta e esclarecedora (BRASIL, 1998, p. 299-300). Segundo os PCN, a escola deve debater dentro do termo sexualidade as diferenças, estereótipos, tabus, preconceitos, conceitos e crenças, porém mantendo um distanciamento das opiniões e aspectos pessoais do/da professor/professora. Mas o que tem sido trabalhado nas escolas - quando é trabalhado - é a prevenção de doenças, uso de preservativo, e conceitos científicos do corpo, como a função do sistema reprodutor (BRASIL, 1998, p. 302). 19 o poder age pela positividade, incentivando, por meio de práticas discursivas, condutas consideradas “normais” e desaprovando comportamentos tidos como desviantes. Sendo assim, as subjetividades dos sujeitos, bem como seus comportamentos, são construídas nas relações de poder com outros sujeitos. Logo, os discursos que tratam a reprodução juvenil como algo “precoce” ou “indesejado” podem ser enquadrados dentro dessa análise. Assim, ao analisarmos algumas práticas discursivas sobre “gravidez na adolescência”, sexualidade juvenil e juventude é preciso considerar a origem desses enunciados. Quem fala? De onde fala? Quais instituições e saberes representa? Que status o enunciador ocupa na sociedade? Ponderar sobre essas indagações ao analisarmos qualquer enunciado facilita o estabelecimento de conexões entre as práticas discursivas e os contextos históricos e sociais que as produziram e que elas reproduzem. Também buscamos compreender como o poder interfere na construção das identidades de gênero. Muito embora, essa não tenha sido uma temática na qual Foucault se debruçou, seus estudos foram relevantes para as teorias feministas a partir do século XX. Dessa forma, compreendemos que a medida em que as relações de poder controlam o corpo, as subjetividades e a sexualidade, constroem também as percepções e os papéis de gênero. Sendo assim, este trabalho centra-se nas práticas sociais que envolvem educação, sexualidade e múltiplos significados de uma gestação juvenil. Dada a complexidade dos comportamentos sociais, propõem-se uma reflexão estruturada sobre o tema, em que o intuito é contribuir para as discussões sobre esse assunto. No próximo capítulo trataremos dos discursos sobre gestação juvenil e as relações de poder e saber sobre os corpos. Para Michel Foucault (1999), o corpo está diretamente mergulhado num campo político e de relações de poder que o marcam e sujeitam-no a trabalhos e cerimônias, principalmente quanto a sua utilização econômica, o corpo como força produtiva está envolto em relações de poder e de dominação. Dessa forma, segundo Foucault (1999), “o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso” (FOUCAULT, 1999, p. 29). Aborda-se como a reprodução juvenil é tratada pelo discurso médico e os desdobramentos da análise médica para as políticas públicas e controle do exercício da sexualidade que atuam na produção de corpos jovens produtivos e submissos. O segundo capítulo abordará algumas concepções sobre a juventude e como os discursos sobre o exercício da sexualidade, especialmente dos jovens, e sobre reprodução foram passando por modificações nos últimos tempos. No capítulo seguinte tratamos como a gestação nessa faixa etária foi recebida em um passado não tão distante e como é encarada atualmente. Apontamos algumas das construções sociais das concepções atuais acerca de gravidez, 20 juventude e sexualidade, e como estas têm sido interpretadas e reinterpretadas, tanto pelo senso comum como pelo meio acadêmico. Também são trazidos à baila os posicionamentos do Fundo de Populações das Nações Unidas e do Ministério da Saúde sobre a temática. Em suma, procura-se compreender como autoridades brasileiras e organizações internacionais traçam o perfil da jovem que engravida e as consequências da gestação juvenil. Também fazemos apontamentos acerca de orientações internacionais voltadas para a educação em sexualidade. As observações dessas instituições assinalam que uma das formas de preparar os jovens para a vida adulta é lhes propiciar espaços para o diálogo sobre temas que envolvem as manifestações de sexualidade, abordando preconceitos e tabus, que cercam essa temática para que os/as jovens possam usufruir de suas sexualidades de maneira saudável, prazerosa e segura. O penúltimo capítulo, aponta para as questões de gênero e políticas públicas brasileiras voltadas para a educação em sexualidade, levanta-se algumas ações governamentais voltadas para a educação em sexualidade, como os PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), o PNE (Plano Nacional de Educação) e a BNCC (Base Nacional Comum Curricular). No Brasil, analisa-se a sociedade fortemente marcada pela assimetria de gênero, e de que modo a onda conservadora que o Brasil vivencia atualmente trouxe consequências para as políticas públicas voltadas para a educação em sexualidade. Aponta-se para a necessidade urgente de abrir espaço nos currículos escolares para a discussão sobre educação em sexualidade, que atualmente tem encontrado resistências na política educacional. A última parte, isto é, o capítulo cinco, da pesquisa é destinada a análise de alternativas adotadas pela escola pública que foi cenário deste estudo para enfrentar as estatísticas de reprodução juvenil, em especial o livro Gravidez na Adolescência: Gravidez Não é Brincadeira, produzido por estudantes e profissionais de uma escola pública e publicado em 2013. O material chama atenção para incidência de gestações entre as estudantes matriculadas na unidade, especialmente nos anos de 2011-2013, e aponta para as ações tomadas pela escola diante de tal conjuntura. O intuito principal do presente estudo é compreender como as relações entre as categorias juventude, sexualidade e gênero são vivenciadas no âmbito desta unidade escolar, especialmente quando se trata de estudantes grávidas. Durante a pesquisa reconhecemos a gestação juvenil não é um tema fácil de abordar. Embora esse seja um tema relevante em nossa sociedade e nos currículos de Sociologia no Ensino Médio, ainda percebemos que existe bastante dificuldade em tratar esse assunto dentro das unidades escolares, especialmente na escola que foi o local dessa pesquisa. 21 1 AS RELAÇÕES DE PODER E SABER SOBRE OS CORPOS Não é possível falar de reprodução juvenil sem antes falar sobre exercício da sexualidade. Parte-se da premissa de que a problemática analisada - um tanto complexa, pois envolve as noções de juventude, gênero, sexualidade e maternidade - será melhor interpretada se articulada ao conceito de cultura, uma vez que todas as categorias acima citadas podem ser tidas como constructos históricos e sociais. Primeiro trataremos de uma abordagem sobre a sexualidade a partir dos estudos foucaultianos. A metodologia de Foucault, análise genealógica6, não tem o intuito de propor uma nova interpretação do objeto de estudo, mas busca compreender aquilo que foi cristalizado como verdade, descrevendo as diversas interpretações que foram feitas e as verdades por elas impostas. A genealogia é a história das morais, dos ideais e dos conceitos (FOUCAULT, 1979). Embora este estudo não se trate de uma genealogia da sexualidade e reprodução juvenil, compreende a problemática como um constructo socio-histórico-cultural e busca algumas explicações e convenções construídas socialmente acerca do assunto presentes em discursos atuais. Talvez uma das principais preocupações de Michel Foucault foi compreender a formação do sujeito moderno. Para o autor, os sujeitos são formados a partir das relações de poder e saber que são postas em funcionamento pelos discursos. “Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados que se apoiem na mesma formação discursiva” (FOUCAULT, 1986, p. 135). Também cabe ressaltar que o discurso não é algo que existe a priore dessas relações, ele é produzido e reproduzido por elas. Assim, as relações e os discursos estão intimamente relacionados e ao analisar um discurso pode-se encontrar em seu interior as relações históricas e sociais que o construíram. As práticas e ações dos sujeitos, bem como a sua própria forma de enxergar a si e aos outros, seriam norteadas por um discurso. O discurso escolhido, por sua vez, não estaria livre de interesses políticos e/ou econômicos. Logo, se todo o campo social, bem como os próprios sujeitos, é produzido a partir enunciados e relações de poder e saber, que o discurso faz funcionar, ao se analisar as práticas discursivas sobre “gravidez na adolescência”, também se está avaliando as relações de poder e 6 Para Foucault (1979), a genealogia seria o acoplamento do conhecimento com os saberes locais “que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas atuais” (p. 171). Para o autor, a genealogia seria, portanto, um método para libertar os saberes históricos da sujeição dos discursos científicos, verdadeiros, unitários e formais. Reativar os saberes menores, locais. Foucault explica que genealogia é uma batalha dos saberes contra os efeitos de poder do discurso científico. “A questão de todas estas genealogias é: o que é o poder” (p. 174), quais são os seus dispositivos, seus mecanismos e efeitos. 22 saber sobre sexualidade e reprodução juvenil que foram histórica e socialmente construídas e estão presentes nos discursos, mesmo que nem sempre seja de forma muito visível. A partir de agora abordaremos como o conjunto de regras, práticas, valores e normas de produção de enunciados sobre sexualidade foram construídos a partir do pensamento de Foucault; em um segundo momento pretendemos compreender como as práticas discursivas sobre reprodução juvenil foram produzidas dentro das relações e como estas permitem ao indivíduo a consciência de si e dos outros. 1.1 O dispositivo da sexualidade Em História da Sexualidade I: A Vontade do Saber (1988), Michel Foucault analisa de que forma houve uma “colocação do sexo em discurso” na passagem do século XVIII para o XIX (FOUCAULT, 1988). Afirma que a sexualidade é construída culturalmente em consonância com os objetivos políticos da classe dominante, e enxerga como que, a partir da formação do sistema capitalista e a ascensão política e econômica da burguesia no Ocidente, surgiu um conjunto amplo de discursos sobre o sexo e a sexualidade. O autor evidencia a importância da pastoral cristã para a produção de discursos e saberes sobre o sexo, pelo exercício da confissão e pelo autopoliciamento das pessoas que esta prática provoca. O sexo passou a ser constantemente examinado, não devendo ser mencionado sem prudência, tornando-se pela confissão e pelo exame de si, motivo de interesse público. Mas, sobretudo, por que atribui cada vez mais importância na penitência – em detrimento, talvez de alguns pecados – a todas as insinuações da carne, pensamentos, desejos, imaginações voluptuosas, deleites, movimentos simultâneos da alma e do corpo, tudo isso deve entrar agora, e em detalhe, no jogo da confissão e da direção espiritual (FOUCAULT, 1988, p. 23). Segundo o autor, essa sociedade fez florescer o pensamento de que “deve-se falar de sexo, e falar publicamente” (FOUCAULT, 1988, p. 27). A colocação do sexo em discurso a partir do autoexame, possibilitado pela confissão, evidenciou condutas e desejos íntimos dos sujeitos que, a partir de então puderam ser reorientados. O essencial é bem isso: que o homem ocidental há três séculos tenha permanecido atado a essa tarefa que consiste em dizer tudo sobre seu sexo; que, a partir da época clássica, tenha havido uma majoração constante e uma valorização cada vez maior do discurso sobre o sexo; e que se tenha esperado desse discurso, cuidadosamente analítico, efeitos múltiplos de deslocamento, de intensificação, de reorientação, de modificação sobre o próprio desejo (FOUCAULT, 1988, p. 25). 23 Para o autor, a ascensão da burguesia e de seus padrões de comportamento, marca uma fase em que a sexualidade era tida como algo a ser reprimido. As práticas discursivas sobre as manifestações de sexualidade limitavam-se ao sexo e a sua função reprodutiva dentro do casamento; o casal procriador passa a ser a norma, o modelo. Todos os outros enunciados tornam-se fora da norma, ou anormais. Contudo, o autor ressalta que o discurso repressivo sobre sexualidade funcionava com outros discursos e a repressão tornou-se uma forma de proliferar a vontade de saber sobre o sexo. Desde, então multiplicaram-se as práticas discursivas sobre sexualidade. Cumpre-se falar de sexo como uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir no sistema de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga, apenas administra-se. Sobreleva-se ao poder público; exige procedimentos de gestão; deve ser assumido por discursos analíticos (FOUCAULT, 1988, p. 27) Dessa forma, de acordo com o autor, na sociedade burguesa, a relação entre sexo e poder presentes em discursos normativos consolida-se a partir da normalização de condutas vistas como positivas – “o casal procriador” -, a medida em que comportamentos considerados anormais são reprimidos e/ou reorientados mediante discursos úteis e públicos7. Segundo Foucault, “no século XVIII o sexo se torna uma questão de polícia” (FOUCAULT, 1988, p. 27). Todavia, a “polícia do sexo” não se refere ao sentido literal de simplesmente transformar comportamentos “anormais” em crimes e puni-los com ações policiais, mas sob a lógica de “regular o sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição” (FOUCAULT, 1988, p. 28). Para Foucault essas modificações ocorreram a partir do século XVIII, pois nesse momento histórico “os governos percebem que não tem mais que lidar com sujeitos, nem mesmo com um povo, mas com uma população” (FOUCAULT, 1988, p. 28). É o surgimento da população como um problema econômico e político. O Estado passará a gerir a população, levando-se em consideração questões como taxas de fecundidade e mortalidade, expectativa de vida, saúde populacional, entre outros; visando a sua maximização enquanto uso e recurso, ou o que o autor chamou de “população-riqueza” ou “população mão-de-obra”. Surgem diversos discursos científicos, cujas análises sobre sexualidade intercruzam aspectos biológicos e 7 No segundo capítulo do livro História da sexualidade I: a vontade de saber (1988), Michel Foucault aborda algumas questões sobre o sexo considerado anormal no trecho A implantação perversa. O autor ressalta que mesmo o sexo dentro do casamento, cujo objetivo era a procriação, era regido por muitas regras que visavam tornar o ato sexual mais estéril e produtivo. Todo o resto, como relações homossexuais, atos sexuais fora do casamento, bestialidade, sedução de religiosas, incesto, casamento sem consentimento dos pais, entre outras práticas, eram considerados atos abomináveis. Em alguns casos essas sexualidades periféricas acabaram sendo alvo de legislações que as criminalizaram (FOUCAULT, 1988, p. 37-49). 24 econômicos (FOUCAULT, 1988). Nesse momento, segundo o autor, a população passa a ser vista como um dado, um campo de intervenção. Surge aí a sociedade disciplinar. O poder passa a ser exercido sobre os corpos dos indivíduos. O Estado moderno elaborou um arsenal de discursos científicos quanto a sexualidade infantil, o exercício da sexualidade feminina, o controle da população, a atuação psiquiátrica em comportamentos sexuais considerados desviantes por meio da tecnologia do sexo8, utilizando-se de três interlocutores: a pedagogia, a medicina e a demografia. Dentro do discurso normalizador da sociedade disciplinar, o Estado, com base em discursos científicos tidos como verdade, passa a ter um maior controle sobre a reprodução humana, e sobre diversas manifestações discursivas da sexualidade. A temática passou a ser valorizada pelo Estado, que passa a se utilizar de discursos científicos sobre “taxa de natalidade, a idade dos casamentos, nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relações sexuais” com finalidades políticas e econômicas (FOUCAULT, 1988, p. 28). É a primeira vez em que, pelo menos de maneira constante uma sociedade afirma que seu futuro e sua fortuna estão ligados não somente ao número e à virtude dos cidadãos, não apenas às regras de casamento e à organização familiar, mas a maneira como cada qual usa o seu sexo (FOUCAULT, 1988, p. 29). A partir daí busca-se o controle da massa populacional por meio de estatísticas e previsões, visando um planejamento de resultados na população. Ao mesmo tempo, tecnologias disciplinadoras para normalização de corpos e condutas serão utilizadas com o objetivo de moldar corpos dóceis e produtivos e disciplinar aqueles sujeitos considerados anormais (ou fora da norma). O autor pondera que a partir da ascensão da sociedade disciplinar o exercício do poder se reconfigurou e será caracterizado como “um poder que se exerce, positivamente, sobre a vida, que empreende sua gestão, sua majoração, sua multiplicação, o exercício, sobre ela, de controles precisos e regulações de conjunto” (FOUCAULT, 1988, p. 129). Logo, entende que o Estado que exerce seu poder por meio da apreensão das vidas e dos corpos, “o confisco”, passará a exercer novas funções “de controle, de vigilância, de majoração e de organização das forças que lhe são submetidas”, cujo objetivo é a produção de forças, “a fazê-las crescer e a ordená-las mais do que a barrá-las, dobrá-las ou destruí-las” (FOUCAULT, 1988, p.128). 8Embora não tenha uma frase em que o autor especifique claramente o que seria “tecnologia do sexo”, no decorrer das páginas de História da Sexualidade: A Vontade de Saber, Michel Foucault narra uma série de táticas elaboradas desde o século XVIII que se combinam, em várias proporções e aspectos diferentes, cujo objetivo é a disciplina dos corpos e a regulação das populações. 25 Para Foucault, o Ocidente vê nesse momento surgir a biopolítica, que possui como características as “disciplinas do corpo e as regulações da população”. A função da disciplina é produzir corpos dóceis que possam ser moldados e configurados de acordo com as necessidades sociais. [...] no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos — tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano (grifos do autor) (FOUCAULT, 1988, p.130). Para que o poder disciplinar funcione, afirma que, foram criadas as instituições disciplinares como as escolas, os hospícios, as prisões e os quartéis. Nessas instituições, as pessoas são agrupadas e, ao mesmo tempo, individualizadas. Logo, é maior o controle sobre o corpo dos indivíduos a fim de discipliná-lo para que se possa tirar dele o máximo que tenha a oferecer. Há também, segundo o autor, “o aparecimento, no terreno das práticas políticas e observações econômicas, dos problemas de natalidade, longevidade, saúde pública, habitação e migração” (FOUCAULT, 1988, p. 131). O que, segundo o autor, será como uma “explosão de técnicas diversas e numerosas para obterem a sujeição dos corpos e o controle das populações” (FOUCAULT, 1988, p. 131). Consolidada a tecnologia do poder disciplinar, o biopoder se constituirá em uma nova categoria de exercício de poder. Ele se exerce sobre um grande número de indivíduos, esses já disciplinados que formam as populações dos Estados. Enfim, caracteriza-se pelas possibilidades de interferência do Estado no corpo do indivíduo, em que objetivo é a manutenção da vida. Não se trata de ações desconexas e individuais, mas de agenciamentos concretos de normalização dos corpos. A sexualidade torna-se um dos principais campos dessa regulação. De fato, sua articulação não será feita no nível de um discurso especulativo, mas na forma de agenciamentos concretos que constituirão a grande tecnologia do poder no século XIX: o dispositivo de sexualidade será um deles, e dos mais importantes (FOUCAULT, 1988, p. 132). Nessa modalidade de exercício de poder, o governo se encarrega das pessoas em suas mais variadas relações, “seus costumes, seus hábitos, suas formas de agir ou de pensar” (FOUCAULT, 1999, p. 282). Teoricamente, para Foucault, “na junção entre o ‘corpo’ e a ‘população’, o sexo tornou-se o alvo central de um poder que se organiza em torno da gestão da vida, mais do que da ameaça da morte” (FOUCAULT, 1988, p. 138). 26 O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie. Servimo-nos dele como matriz das disciplinas e como princípio das regulações. É por isso que, no século XIX, a sexualidade foi esmiuçada em cada existência, nos seus mínimos detalhes; foi desencavada nas condutas, perseguida nos sonhos, suspeitada por trás das mínimas loucuras, seguida até os primeiros anos da infância; tornou-se a chave da individualidade: ao mesmo tempo, o que permite analisá-la e o que torna possível constituí-la. Mas vemo- la também tornar-se tema de operações políticas, de intervenções econômicas (por meio de incitações ou freios à procriação), de campanhas ideológicas de moralização ou de responsabilização: é empregada como índice da força de uma sociedade, revelando tanto sua energia política como seu vigor biológico. De um polo a outro dessa tecnologia do sexo, escalona-se toda uma série de táticas diversas que combinam, em proporções variadas, o objetivo da disciplina do corpo e o da regulação das populações. (FOUCAULT, 1988, p. 137). Foucault afirma que uma economia política das populações será estabelecida a partir de uma teia de observações sobre o sexo (FOUCAULT, 1988, p. 29). Sexo torna-se um discurso da pedagogia, da economia, da medicina e da justiça. Há um conjunto de discursos vindos de vários pontos e várias instituições que deram origem a uma ciência do sexo. Contudo, o autor ressalta que os discursos científicos sobre o sexo se mantiveram subordinados à imperativos morais, que aparecem nos enunciados sob forma de normas médicas (FOUCAULT, 1988). Foucault afirma que o que torna a confissão uma prática tão utilizável pela sociedade disciplinar e que esta é “um ritual onde a verdade é autenticada” (FOUCAULT, 1988, p. 61). Sem citar a Psicologia ou a Psicanálise, Foucault aponta que essa prática, até então típica de círculos religiosos, passa a ser utilizada pela ciência. Essa apropriação da confissão como um processo científico, segundo o autor, ocorre através de diversos procedimentos que envolvem o autoexame por meio da fala (FOUCAULT, 1988). Para o autor, há uma rede de relações envolvendo os discursos sobre o sexo que vão muito além do sexo em si. “[...] um dispositivo que abarca amplamente a história, pois vincula a velha injunção da confissão aos métodos da escuta clínica. E, através desse dispositivo, pôde aparecer algo como a ‘sexualidade’ enquanto verdade do sexo e seus prazeres” (FOUCAULT, 1988, p. 67). Ao se analisar a produção de discursos e saberes sobre o sexo, Michel Foucault ressalta que é preciso que isso seja feito a partir da perspectiva do poder. A sexualidade humana não deve ser inserida dentro de aspectos repressivos e legais, mas como algo que se estabelece dentro das relações de poder. 27 1.2 Verdade e poder Para Michel Foucault, cada sociedade dispõe de um regime próprio de verdade, isto é, cada sociedade, dentro de um recorte de tempo e espaço, adota um tipo de discurso como sendo verdadeiro. No primeiro capítulo de Microfísica do Poder, publicado inicialmente em 1979, Michel Foucault esclarece o seu conceito de verdade quando escreve: Por ‘verdade’, entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados. A ‘verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. ‘Regime’ da verdade (FOUCAULT, 1979, p. 14). O autor é contundente em relacionar a “verdade” ao poder. Aponta que “a verdade não existe fora do poder ou sem poder [...], é deste mundo; ela é produzida nele graças as múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder” (FOUCAULT, 1979, p. 12). Assim, a “verdade” está intrinsecamente relacionada a sistemas de poder, que é fruto e esteio desta, e a efeitos de poder, que ela induz e que a reproduz. Dessa forma, a vinculação entre poder e verdade aparece em todos os discursos, atuando como regimes de verdade. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir entre sentenças verdadeiras e falsas, os meios pelos quais cada um deles é sancionado; as técnicas e procedimentos valorizados na aquisição da verdade; o status daqueles que estão encarregados de dizer o que conta como verdadeiro (FOUCAULT, 1979, p. 12). Para Michel Foucault o poder não é uma instituição ou uma estrutura que algo ou alguém detém. Para ou autor, o poder nem mesmo seria apenas um conjunto de instituições e aparelhos que garantem a sujeição das populações aos Estados. Quando trata de poder e seus efeitos, Foucault não o faz como sendo este algo pura e simplesmente repressivo; pelo contrário, confere positividade ao poder, não no sentido deste ser positivo; mas entendendo-o como uma “rede produtiva”, aquilo que produz e modifica verdades, fomentando resultados e efeitos de verdade. O que faz com que o poder se mantenha e seja aceito é simplesmente que não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa o corpo social muito mais do que instância negativa que tem por função reprimir (FOUCAULT, 1979, p. 8). Além disso, para Foucault, o poder não se dá, nem se troca, nem se retoma, mas se exerce e “só existe em ação” (FOUCAULT, 1979, p. 175). O autor entende que o poder é imanente às relações, algo que se exerce nelas, pois só tem sentido em exercício; ou seja, no 28 funcionamento de seus dispositivos, técnica e normas. Em suma, o poder nos produz. O poder produz sujeitos à medida que permeia todas as relações, os colocando em correlação de forças com as sociedades em que vivem. Onde há relações há manifestações de poder. Não engloba tudo, mas provém de todos os lugares. Para Foucault “o poder está em toda parte” (FOUCAULT, 1988, p. 89). Se tomarmos como princípio que todas as relações e concepções humanas são fruto de processos historicamente produzidos e passíveis de ressignificações pelas sociedades, cada escolha coletiva por valores, normas e modelos ideais de comportamento seria, então, a verdade de uma determinada sociedade em um certo período. Foucault (1979), destaca que na sociedade ocidental a “verdade” possui algumas características historicamente importante: a) apoia-se no discurso científico e nas instituições que o produz; b) é necessária tanto para a produção econômica quanto para o poder político; c) a “verdade” circula pelas diversas esferas da sociedade é produzida e difundida sob controle, não-exclusivo, de grandes aparelhos políticos e/ou econômicos; e) é objeto de debate e enfrentamento político/social (FOUCAULT, 1979, p. 13). Em suma, para Foucault, a verdade é produzida com base nas relações de poder e modifica-se com o passar do tempo. Isto posto, o poder e saber estão profundamente relacionados, porque não há poder sem saber e não há saber sem poder. As relações de poder impõem o saber, e a verdade, e este por sua vez, legitima o poder. Temos antes que admitir que o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder (FOUCAULT, 1999, p. 30). Nesse ínterim, a noção foucaultiana de poder se faz bastante profícua e esclarecedora para a análise do discurso e dos jogos de poder envolvidos no fenômeno da gravidez juvenil, dentro e fora do ambiente escolar. Haja visto que o corpo, e a regulação deste, encontra-se correlacionado com as relações de poder. Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso (FOUCAULT, 1999, p. 29). 29 Assim a medida consideramos reprodução juvenil, utilizando a sexualidade como categoria de análise segundo os estudos de Michel Foucault, é possível perceber que práticas discursivas que envolvem esta temática buscam justificar-se a partir de argumentos científicos, pautando-se nas instituições que produziram estes saberes, especialmente na medicina. Assim, a reprodução juvenil e a rotulação de gestações nessa faixa etária como “precoces”, “de risco” e/ou “indesejadas” aproxima-se de uma perspectiva mais biomédica do assunto, muito utilizada por estudos nas áreas da psicologia e medicina. É sob esse prisma que o exercício de poder se torna tão relevante para se compreender a gestação juvenil e a sua construção como um problema social nos discursos médicos. Uma vez que passa a ser encarado como uma questão de Estado, tornando-se um campo de intervenção deste. A ideia foucaultiana de poder está muito presente quanto a normalização dos comportamentos sexuais e reprodutivos juvenis: na forma como se divide o que é considerado normal; a juventude como período de preparação para o exercício da maturidade; e o que é tido como desviante; a assunção de responsabilidades a partir de uma gestação que interromperia essa fase preparatória. A maternidade, objetivo maior dos indivíduos do sexo feminino de outrora passa a ser visto como algo que deve ser evitado, pelo menos, na adolescência. Esse discurso contemporâneo sobre a gravidez adolescente, teria o intuito de disciplinar, controlar e/ou retardar, a sexualidade juvenil, em especial das garotas. A partir da compreensão de que os corpos femininos, seus comportamentos sexuais e reprodutivos, são disciplinados por meio de discursos especializados que definem qual o momento ideal para que o exercício da maternidade se concretize de forma normalizada e responsável, implica que a mulher não tenha filhos durante a fase inicial da juventude, governando a sua própria sexualidade, desejos e impulsos. Também é possível observar que foi criada toda uma “economia da sexualidade” que colocou a reprodução juvenil como foco de ações, tanto para a produção econômica quanto para o poder político. Observa-se uma crescente preocupação do Estado em produzir saberes sobre a “gravidez na adolescência” ou apropriar-se de enunciados que foram produzidos sobre o tema para destacar a necessidade de sua prevenção devido os efeitos nocivos que uma gestação entre adolescentes pode trazer, especialmente as jovens gestantes. Consequências estas que envolvem tanto riscos à saúde materno-infantil, como implicações para as suas trajetórias de vida, como dificuldade para continuar a vida escolar, acadêmica e profissional, e a perpetuação da pobreza. A sexualidade e a reprodução juvenil são assuntos presentes em enunciados discursivos que circulam pelas diversas esferas sociais, desde o senso comum até a produção de saberes 30 científicos em meios acadêmicos. Ao mesmo tempo, saberes sobre sexualidade e reprodução juvenil são produzidos e difundidos por grandes aparelhos políticos e/ou econômicos. E, por último, mas não menos importante, os saberes produzidos sobre sexualidade e reprodução juvenil são objeto de debate e enfrentamento político/social, frutos de forças heterogêneas que disputam espaço entre si. 1.3 Gênero e relações de poder-saber O poder disciplinar e o biopoder tornam-se bastante relevantes para a compreensão do fenômeno da gravidez na juventude. À medida que a reprodução juvenil se constituiu como um problema social nos discursos especializados, especialmente da área da saúde, passou a influir na relação que os indivíduos estabelecem consigo mesmos, quanto a regulação das própria sexualidade e trajetória de vida. Logo, para melhor compreender esse conjunto de prescrições acerca das trajetórias de vida, sexualidade e maternidade femininas é preciso também observar como os conceitos de gênero e juventude foram construídos e/ou modificados ao longo do tempo. Faz-se relevante ressaltar que Foucault nunca utilizou o termo gênero em suas análises, mas a sexualidade e as relações de poder sempre foram temáticas recorrentes em seus estudos. Por meio da obra de Michel Foucault, é possível ter acesso a subsídios metodológicos e teóricos para analisar as relações de gênero, os discursos e as práticas sociais na contemporaneidade em campos epistemológicos diversificados. Dessa forma, suas contribuições foram muito relevantes para os desdobramentos acadêmicos das teorias feministas, especialmente para o entendimento de gênero como categoria analítica. Rachel Soihet e Joana Maria Pedro (2007) tratam da apropriação do termo “gênero” pelas Ciências Sociais e os desdobramentos que seu uso trouxe para análises posteriores. Essa categoria foi tomada de empréstimo à gramática. Em seu sentido original, gênero é o fenômeno da presença em algumas línguas (por exemplo, as indo- européias) de desinências diferenciadas para designar indivíduos de sexos diferentes ou ainda coisas sexuadas. Gênero, nas ciências sociais, tomou outra conotação, e significa a distinção entre atributos culturais alocados a cada um dos sexos e a dimensão biológica dos seres humanos. O grande impacto que vem produzindo nas análises sociais funda-se em ter chamado a atenção para o fato de que uma parte da humanidade estava na invisibilidade – as mulheres –, e seu uso assinala que, tanto elas quanto os homens são produto do meio social, e, portanto, sua condição é variável (SOIHET; PEDRO, 2007, p. 288). De acordo com Carvalho (2011), “o termo foi inicialmente apropriado por autores e autoras de língua inglesa, a partir da palavra gender, que, como em português, era utilizada no 31 âmbito da gramática para designar palavras femininas e masculinas (ou neutras)” (CARVALHO, 2011, p. 101). A construção do conceito de gênero como categoria analítica está intimamente relacionada ao movimento feminista, que pode ser observado em três fases/ondas. Marta Ferreira Santos Farah em seu artigo Gênero e Políticas Públicas trabalha com a ideia de que o termo gênero foi utilizado de forma diferente por diversas correntes feministas. Ela pontua pelos menos três vertentes de análise feitas pelo “feminismo da igualdade”, “feminismo da diferença” e pela “corrente pós-estruturalista” (FARAH, 2004). A primeira onda feminista ocorreu mais ou menos entre o final do século XIX até a década de 1930, inicialmente chamada de “Sufragismo”, objetivava a extensão do direito ao voto às mulheres. Movimento ligado às mulheres de classe média brancas, posteriormente, reivindicou oportunidades de estudo e acesso a determinadas profissões. O alcance desses objetivos, mesmo que em um número reduzido de países, arrefeceu o movimento (LOURO, 1997). Segundo Farah, para essa fase do movimento feminista - que ela denomina como “feminismo da igualdade” - as únicas diferenças que, de fato, existem entre homens e mulheres são biológicas, e aspectos culturais fundados relações de opressão seriam os responsáveis pelas demais diferenças que deveriam ser extintas e abrir espaço para relações entre seres ‘iguais’ (FARAH, 2004, p. 48). A segunda onda, iniciada no final da década de 1960 (ano de 1968 como referência: “marco da rebeldia e contestação”), “além das preocupações sociais e políticas, irá se voltar para as construções propriamente teóricas” (LOURO, 1997, p. 15). A obra “O Segundo Sexo”, da filósofa francesa Simone de Beauvoir, foi uma das grandes influências dessa fase do movimento feminista. Nesse momento, segundo Carvalho (2011) e Louro (1997), o termo gênero ganha maior visibilidade. Contudo, “sua utilização está baseada na distinção binária entre natureza (representada pelo sexo) e cultura (gênero) ” (CARVALHO, 2011, p. 101), sendo empregado pelas teóricas feministas da época “contra a naturalização das desigualdades entre homens e mulheres e contra os determinismos dela resultantes” (CARVALHO, 2011, p. 101- 102). Para as estudiosas ligadas a essa vertente, o sexo seria a base natural/biológica sobre a qual as concepções culturais do que significa ser um homem ou uma mulher são construídas (CARVALHO, 2011; FARAH, 2004). Essa corrente teórica, segundo Farah (2004), foi substituída entre as décadas de 1970 e 1980 pelo feminismo da diferença. Carvalho (2011) afirma que dentro dessa vertente, sexo passou a ser associado ao corpo e a biologia, enquanto gênero passou a identificar as características de comportamento construídos socialmente dentro de relações de poder que 32 diferenciam homens e mulheres. Segundo a autora, ainda hoje essa é uma das formas de emprego do conceito de gênero mais comuns (CARVALHO, 2011, p. 102). Para as teóricas e os teóricos da diferença, o conceito de gênero remete a traços culturais femininos (ou, no polo oposto, masculinos) construídos socialmente sobre a base biológica. Constrói-se assim uma polarização binária entre os gêneros, em que a diferença é concebida como categoria central de análise, fundamental na definição de estratégias de ação. As diferenças entre homens e mulheres são enfatizadas, estabelecendo-se uma polaridade entre masculino e feminino, produção e reprodução e público e privado. Para o feminismo da diferença, o poder concentrar-se-ia na esfera pública, estando nessa polaridade a origem da subordinação das mulheres (FARAH, 2004, p. 48). A partir de 1970, a interseccionalidade aparecerá entre as questões de gênero. Pode-se dizer que este termo se origina no final da década de 1970, no seio no “Feminismo Negro” - mulheres negras pobres rebelaram-se contra o feminismo branco, de classe média, heteronormativo. Elas contestavam a homogeneidade do gênero feminino. Pois, além do binômio homem/mulher, existem outras formas de opressão e subordinação que se intercruzam, tais como classe social, raça e etnia (FARAH, 2004). Por fim, na década de 1990, viu emergir a terceira onda feminista. Segundo Carvalho (2011), essa fase representa uma ruptura do sistema binário de gênero: homem/mulher; masculino/feminino. “Emerge a afirmação de novas identidades de gênero, e inclusive a ideia de desconstrução da identidade de gênero, colocando em seu lugar a ideia de fluidez e performances de gênero” (CARVALHO, 2011, p. 9). A corrente pós-estruturalista analisa o caráter histórico da construção das diferenças entre os gêneros. Pensadoras como Joan Scott, enfatizavam que nenhuma percepção de corpo existe fora das relações sociais. Scott (1995) concebe o gênero como uma categoria analítica permeada de relações assimétricas de poder. Segundo a pesquisadora, há uma predominância masculina. Joan elucida que a respeito do conceito de gênero, “o seu uso comporta um elenco tanto de posições teóricas, quanto de simples referências descritivas às relações entre os sexos” (SCOTT, 1995, p. 4). Minha definição de gênero tem duas partes e várias subpartes. Elas são ligadas entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder. (SCOTT, 1995, p. 21). O ponto central dessa concepção de gênero é como as diferenças são construídas a partir de signos e significados culturais, que lhes conferem sentido e os posicionam dentro de relações hierárquicas de poder. 33 [...] gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder. As mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre à mudança nas representações de poder, mas a direção da mudança não segue necessariamente um sentido único (SCOTT, 1995, p. 21). Observando a ideia de que as diferenças de gênero são histórica e socialmente construídas dentro de relações de poder e dominação, Farah (2004) ainda ressalta que “o padrão dominante nas identidades de gênero de adultos envolve uma situação de subordinação e de dominação das mulheres, tanto na esfera pública como na privada” (FARAH, 2004, p. 48). O gênero, enquanto categoria analítica e constructo social e cultural, é relacionado às técnicas sociais e discursos normativos sobre a sexualidade que incidem diretamente no projeto moderno de sociedade. [...] a ‘mulher’ é uma categoria heterogênea, construída historicamente por discursos e práticas variados, sobre os quais repousa o movimento feminista. Dependendo do contexto conjuntural e das exigências políticas, esta categoria é usada para articular as mulheres politicamente. Contudo, ela possui diferentes tempo realidades e densidades, existindo em relação a outras categorias igualmente instáveis (COSTA apud SOIHET; PEDRO, 2007, p. 295-296). Toma-se como norteador o princípio de que os conceitos de juventude, gênero, sexualidade e maternidade são socialmente construídos e, desse modo, variáveis de acordo com o tempo histórico e as condições socioculturais, a idade socialmente aceita para o ingresso na vida sexual e reprodutiva também o é. Procuramos, assim, compreender os processos histórico- culturais que norteiam a concepção sobre sexualidade e reprodução juvenil, bem como o embasamento social contemporâneo para a idade ideal para uma mulher ter filhos, estão presentes na publicação Gravidez na adolescência: gravidez não é brincadeira (2013). Um dos fatores norteadores dessa pesquisa é entender como se processam os discursos e as práticas, tanto individuais quanto coletivas – marcados por relações assimétricas de gênero - no tocante à sexualidade e gestação juvenil. Foi utilizado para tanto as contribuições e conceitos estruturados por Michel Foucault, ainda estudados por adeptos dessa corrente teórica. Conceitos como verdade, discurso, poder e biopoder serão muito relevantes no decorrer deste estudo. Desse modo, ao tratar sobre o processo de transformação na gravidez juvenil em um problema social com efeitos diretos nos discursos de instituições, governos e indivíduos, analisaremos alguns discursos sobre a sexualidade juvenil, especialmente no que se refere ao comportamento sexual feminino. Destarte, buscamos compreender como os/as estudantes de uma escola específica produzem e reproduzem discursos e verdades sobre sexualidade e 34 reprodução juvenil. Buscamos identificar discursos e práticas embutidos em um material sobre a temática, produzido por docentes e estudantes de uma escola pública localizada no interior do Estado de São Paulo. Não nos circunscrevemos apenas aos conteúdos implícitos dos escritos, mas também aquilo que foi escrito, normalizado e tido como verdade por parte dos autores. Bem como, considera-se por meio dos discursos, dentro e fora do âmbito escolar, que tipo de sujeito feminino a sociedade contemporânea anseia e produz. É importante frisar que como a publicação analisada foi produzida por uma escola que atende estudantes das camadas populares, nossa análise será feita a partir das concepções sobre gestação juvenil para essa classe social. Não é o nosso objetivo analisar como a reprodução entre jovens é observada em diferentes classes sociais. De que forma o saber atual sobre gestação entre jovens, muitas vezes baseado em noções médicas, interfere na visão de estudantes e professores? Como esse discurso aparece na publicação Gravidez na adolescência: gravidez não é brincadeira (2013)? De que maneira as relações desiguais e assimétricas de gênero aparecem nos textos e ilustrações deste livro? Essas, entre outras, são algumas das questões que esse estudo tenta compreender embasando-se nos conceitos foucaultianos. Dá-se enfoque ao poder disciplinar, que se materializa na normalização dos corpos e do biopoder e que se aplica à vida da população dentro do conceito de biopolítica; conceitos que serão mais aprofundados a seguir. Dentro da análise adotada por este estudo, o poder opera na regulação dos fenômenos da vida dos jovens, especialmente no que diz respeito a relações de gênero, sexualidade, fecundidade e natalidade. 35 2 REPRESENTAÇÕES E JUVENTUDE Em título de uma entrevista que posteriormente tornou-se parte de um livro, Pierre Bourdieu (1983) afirmou que A ‘Juventude’ é apenas uma palavra (BOURDIEU, 1983, p. 112). Seu intuito era indicar como as divisões entre as idades seriam arbitrárias, fruto de uma construção social. O autor também sinaliza que essas mesmas divisões são construídas “socialmente nas lutas entre jovens e velhos” (BOURDIEU, 1983, p. 113). O sociólogo francês aponta que, “somos sempre o jovem ou o velho de alguém” (BOURDIEU, p. 113). Pois, para este autor, a idade é “um dado biológico socialmente manipulado e manipulável” (BOURDIEU, p.113). Portanto, segundo Bourdieu, juventude e velhice não seriam dados, mas constructos sociais que não fazem sentido isoladamente, apenas em contraposição entre os mais novos e/ou os mais velhos. Diversos estudos sobre a categoria juventude, especialmente os da História e da Sociologia enfatizam seu caráter simbólico e mutável ao longo do tempo nas mais diversas sociedades (ABRAMOVAY; ANDRADE; ESTEVES 2007; BOURDIEU, 1983; DAYRELL, 2003; GROPPO, 2017; HEILBORN, 2002, HEILBORN; AQUINO; BOZON; KNAUTH, 2006), enquanto as pesquisas das Ciências Médicas e da Psicologia abordam a temática sob um viés mais orgânico e universalizante (ERIKSON, 1987; MOREIRA; VIANA; QUEIROZ; JORGE, 2007; REIS; OLIVEIRA-MONTEIRO, 2007). A própria nomenclatura que se refere a categoria apresenta divergências dependendo da corrente teórica em que é objeto de análise. Enquanto as pesquisas do campo da Saúde e Psicologia utilizam com mais frequência a palavra adolescência, o termo que as Ciências Sociais consideram mais apropriado é juventude. Com as devidas distinções, esta pesquisa se utiliza tanto dos termos adolescência quanto juventude como parte do mesmo fenômeno discursivo e sócio-histórico-cultural, todavia guardadas as suas pluralidades enquanto categoria social. O objetivo é observar a juventude como categoria de análise sociológica, considerando as diversas formas de vivencia-la e a construção de uma visão positiva para a educação em sexualidade nas escolas brasileiras. Neste capítulo, serão apresentados: I) representações e formas de análise da juventude, II) a juventude sob a perspectiva sociológica, III) análises sobre a gestação entre jovens e IV) orientações internacionais voltadas para a educação em sexualidade. 36 2.1 Representações e formas de análise da categoria Juventude Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a adolescência é o período compreendido entre 10 e 19 anos. No Brasil o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considera adolescente o indivíduo de 12 a 18 anos de idade. Assim como Dayrell (2003), tomaremos adolescência - haja visto que essa palavra é bastante comum nos documentos oficiais de órgãos governamentais e não-governamentais - como termo que “representa o momento do início da juventude, um momento cujo núcleo central é constituído de mudanças de corpo, dos afetos, das referências sociais e relacionais” (DAYRELL, 2003, p. 62). As transformações hormonais da puberdade que culminam em mudanças corporais são encaradas como o marco inicial visível da juventude/adolescência. No Brasil, essa faixa etária é muitas vezes entendida como uma fase de preparação para o mundo adulto. Seria o momento em que os jovens precisam aproveitar as oportunidades de melhoria nas suas condições sociais abertas pela possibilidade de expansão da escolaridade9: cujo objetivo é a melhor inserção no mercado de trabalho, o que lhe possibilitaria autonomia frente à sua família de origem, permitindo, simultaneamente, a construção de seu próprio lar e família (GALLAND, 1997 apud HEILBORN, 2002). Dentro dessa construção social em que a adolescência é apresentada como um momento de grandes e muitas possibilidades, a gestação pode ser vista como um desvio ou um fator que dificulta a trajetória de jovens envolvidos nesse fenômeno. A juventude é considerada a melhor fase da vida e, simultaneamente, uma fase de grande risco. O primeiro caso enaltece a disposição e o ‘estado de espírito’ enquanto no segundo, se acentuam, em especial, os possíveis anos para a saúde. Duas esferas aparecem como palcos desses riscos: a da sociabilidade, em que se teme a exposição a violência e as drogas, e a da sexualidade, em que se problematiza a iniciação sexual precoce, a Aids e a ‘gravidez na adolescência’. Esse conjunto de concepções, bastante difundido pelo senso comum e pela mídia, apresenta os jovens como inconsequentes e irresponsáveis em relação aos seus comportamentos, e, frequentemente, como incapazes de gerir a própria vida afetiva e sexual. Enfim, a imagem dominante mostra ‘os jovens de hoje’ levando uma vida sexual e afetiva desregrada, na qual predominam os relacionamentos efêmeros, sem qualquer tipo de vínculo 9Segundo o ECA (BRASIL, 1990), o adolescente é um indivíduo que está em plena fase de desenvolvimento de suas capacidades para exercício de sua cidadania e para o mercado de trabalho. A LDB (BRASIL, 1996), também aponta o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho como uma das finalidades do processo de educação regular - Lei nº 9.394, art. 4º, inciso II – versa sobre a progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao Ensino Médio. O texto original passou por duas correções. A primeira postula a “universalização do Ensino Médio gratuito” (Redação dada pela Lei nº 12.061, de 2009) e a segunda garante a obrigatoriedade e gratuidade do Ensino Médio (Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013). 37 e comprometimento (HEILBORN; AQUINO; BOZON; KNAUTH, 2006, p. 399). Primeiro, é importante ressaltar que a categoria juventude não é entendida pelas Ciências Sociais como algo homogêneo e, portanto, não existe um padrão que define essa “fase” da vida, seja em termos biológicos ou psíquicos. Dessa forma, é relevante observar algumas representações sobre a juventude. Algumas abordagens observam a juventude como um período de experimentação e preparação para o desempenho de responsabilidades adultas, como já mencionado. Por conseguinte, os jovens estariam incumbidos de se prepararem para tal exercício, pessoal e profissional. Nessa perspectiva, esse período das vidas dos indivíduos torna-se alvo de ações que visam a “proteção” da saúde reprodutiva dessa camada da população, uma vez que, como supracitada, a gestação pode ser um fator “desviante” de suas trajetórias. Outro prisma de análise da gestação juvenil é o viés bio-médico-psicológico que partilha de ideais higienistas, e, cuja principal meta, é evitar as consequências que uma gravidez na tenra idade pode trazer, sendo a maioria das vezes observadas como gestações de alto risco, “precoces” e/ou “indesejáveis”, concepção comum nos documentos oficiais sobre a temática. Abramovay e Esteves afirmam que embora haja uma certa valorização de características juvenis pela sociedade, como a plasticidade dos corpos jovens, existe uma grande dificuldade social em enxergar o indivíduo jovem “como sujeito de identidade própria, oscilando entre considerá-lo adulto para algumas exigências e infantiliza-lo para outras tantas circunstâncias” (ABRAMOVAY; ESTEVES, 2007, p. 26). Segundo os autores, existe concepções mais comuns quanto ao que se entende socialmente por ser jovem: a) “De maneira dualista e maniqueísta”. Onde ao mesmo tempo em que os jovens são encarados como os “responsáveis pelo advir”, também são vistos como imaturos e irresponsáveis no presente. (ABRAMOVAY; ESTEVES, 2007, p. 26); b) “De maneira adultocrata”. Baseia-se nas relações assimétrica entre jovens e adultos em que posturas conservadoras limitam o diálogo entre as gerações. (ABRAMOVAY; ESTEVES, 2007, p. 26); c) “Imputados de culpa”. Na qual os jovens são constantemente relacionados à delinquência, criminalidade e ameaça social. (ABRAMOVAY; ESTEVES, 2007, p. 26-27). 38 Dayrell (2003) aponta que diversas imagens sobre essa categoria convivem umas com as outras. Citando diversos autores, salienta outras maneiras comuns de analisar a juventude: a) “como se este fosse um período de experimentações e possibilidades”. O período seria, portanto, marcado pela busca de satisfações pessoais e pela irresponsabilidade (DAYRELL, 2003, p. 40); b) “como um momento de crise, uma fase difícil, dominada por conflitos com a autoestima e/ou com a personalidade” (DAYRELL, 2003, p. 41). Nas leituras citadas e a fim de prosseguir a análise sobre a visão socialmente construída sobre a juventude; conclui-se, resumidamente, que a adolescência/juventude pode ser socialmente tidas como: a) Fase de transformações. Dado as mudanças físicas, hormonais, cognitivas e sociais vivenciadas pelo indivíduo; b) Fase de transição. Pois seria o período da vida do indivíduo em que este abandona o corpo e os comportamentos e, paulatinamente, aprende a vivenciar o mundo adulto; c) Fase de crises. Diante de tamanhas mudanças e por ainda estar em busca do seu lugar na sociedade, o indivíduo passaria por um distanciamento familiar e experimentaria dores e angústias emocionais/psicológicas decorrentes do seu amadurecimento; d) Fase da permissividade. Levando-se em consideração que o indivíduo ainda não concluiu a sua jornada rumo à maturidade, são permitidos alguns “deslizes” e experiências antes que que se complete a sua formação enquanto pessoa adulta, cuja responsabilidade por seus atos será cobrada; e) Fase perigosa. Os jovens são apontados como pertencentes a uma faixa etária com uma certa predisposição a desvios e transgressões que podem comprometer tanto a sua integridade individual bem como de toda a sociedade. As definições sobre adolescência/juventude variam, tanto no senso comum quanto no meio acadêmicos, e constroem consequências a respeito da gravidez na adolescência. Dentro desses “modelos” de juventude socialmente construídos que relacionam à um contexto de formação e continuidades ou a momento de crise e distanciamento familiar, a “gravidez precoce” muitas vezes é representada como uma situação adversa e conflitante para as jovens, ainda estudantes, que precisam assumir uma maternidade “involuntária” sem qualquer 39 planejamento familiar em um período de sua vida que ainda se encontram em processo de amadurecimento físico, psicológico e intelectual. Segundo Dayrell (2003), a maioria das análises acerca da juventude tendem a encarar os jovens de forma negativa, pois enfatizam peculiaridades que lhes faltam para se enquadrarem em um determinado padrão sobre o que é “ser jovem”. Para o autor, há dificuldade em observar o/a jovem como sujeito social, que constrói um determinado modo de ser jovem baseado em suas próprias experiências cotidianas, especialmente se os jovens analisados forem das camadas populares. Seguimos em uma tentativa de mesclar essas acepções sobre juventude/adolescência e o posicionamento do discurso quanto a incidência de gravidezes nessa fase da vida. 2.2 Juventude e o olhar sociológico Para uma análise mais aprofundada sobre a gravidez entre adolescentes, é necessário pontuar sobre o conceito de juventude para as Ciências Sociais. Apresentar uma definição da categoria juventude não é fácil porque os critérios que a constituem são construídos socialmente. Deve-se considerar diferentes formas de ser jovem, de acordo com fatores como o tempo histórico, as condições sociais, culturais ou de gênero do indivíduo (BOURDIEU, 1983; DAYRELL, 2003). Partindo desse princípio, é relevante que se faça uma breve análise sobre a formação do conceito de “juventude”. Durante o medievo, o marco final da infância ocorria quando a criança era desmamada, o que acontecia por volta dos seis ou sete anos. A partir de então, ela passaria a conviver com adultos do mesmo gênero, convivendo nos mesmos círculos sociais, desempenhando funções laborais e frequentando os mesmos ambientes, inclusive noturnos. Em um de seus mais famosos estudos, Philippe Ariès (1981) trabalha o surgimento do conceito de infância como um processo que se concluirá somente na Idade Moderna. Para esse autor, entre os séculos XV e XVII, há uma clara relação entre a valorização da educação e a criação das noções de infância e juventude como fases do desenvolvimento humano apartadas do mundo adulto, pois “a juventude escolar foi separada do resto da sociedade, que continuava fiel à mistura das idades, dos sexos e das condições sociais” (ARIÈS, 1981, p. 170). Ariès afirma que somente no século XIX ocorreu a separação entre a segunda infância e a adolescência/ juventude: A nova necessidade de análise e de divisão, que caracterizou o nascimento da consciência moderna em sua zona mais intelectualizada, ou seja, na formação 40 pedagógica, provocou por sua vez necessidade e métodos idênticos, quer na ordem do trabalho – a divisão do trabalho, quer na representação das idades – a repugnância em misturar espíritos, e, portanto, idades muito diferentes (ÁRIES, 1981, p. 173-174). A compreensão do conceito de juventude como um constructo socialmente produzido facilita o seu entendimento pelo senso comum e pela comunidade científica, além de servir de parâmetro para políticas públicas. Por sua vez, Dayrell aponta que a juventude é, concomitantemente, uma condição social e um tipo de representação: o próprio conceito de juventude varia muito de uma sociedade para outra. Por isso, concepções sobre juventude elaboradas pela Sociologia apresentam variações entre si. Debater alguns princípios norteadores para a formação da categoria juventude em pesquisas sociológicas não é uma missão fácil. Entretanto, é de extrema importância apresentar algumas de suas principais tendências definidoras. Segundo Groppo (2017), estão agrupadas em teorias tradicionais, críticas e pós-críticas da juventude. Groppo (2017) aponta que as teorias tradicionais da juventude atingiram o auge em meados do século XX. De acordo com o autor, os pensadores dessa corrente apresentavam a juventude, da mesma maneira que a infância, a maturidade e a velhice como faixas etárias - quase que - determinadas por questões bio-psicológicas. A juventude aparece como uma fase de transição entre a infância e a vida adulta; logo, a socialização secundária seria a principal característica da juventude. Para Dayrell (2013), embora a juventude não deva ser encarada simplesmente como um momento de preparação; esta é uma concepção muito presente na escola. É possível observar que essa visão coloca a escola como importante instituição socializadora, cujos objetivos são “preparar” e “aprimorar” o sujeito em documentos norteadores da educação brasileira. Segundo a LDB10 de 1996, o Ensino Médio11, etapa da educação básica que compreende a formação do indivíduo durante parte da juventude, deve fornecer as bases para que o educando prossiga seus estudos e aprimoramentos profissional e humano: 10 Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9394/96) é a legislação que organiza e regulamenta todo o sistema educacional brasileiro, da educação básica ao ensino superior, quer seja na rede pública ou privada de ensino.Revogou todas as leis e decretos-lei que versavam sobre educação antes da data de sua publicação em 23 de dezembro de 1996, incluindo: a LDB de 1961 (nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961) a primeira LDB que regulamentava todos os níveis de educação promulgada no Brasil; e a LDB de 1971 (nº 5.892, de 11 de agosto de 1971) que estabelecia as diretrizes para apenas 1º e 2º graus de educação – Nomenclatura alterada pela Lei nº 7.044, de 1982 que estabelecia Ensino Primário a educação correspondente ao ensino de 1º grau e, por Ensino Médio, o de 2º grau. Atualmente, equivalem respectivamente ao Ensino Fundamental e ao Ensino Médio (BRASIL, 1996). 11 A nomenclatura “Ensino Médio” foi utilizada em substituição a “Segundo grau” após a aprovação e implementação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9394/96) revendo a LDB 5692/71, para designar a última etapa da educação básica (BRASIL, 1996). 41 Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades: I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; II - A preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; IV – A compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina (BRASIL, 1996, s. p.). Segundo Dayrell, dentro desse panorama há uma propensão de se analisar negativamente essa fase da vida, na qual o jovem é um “vir a ser”. Essa concepção está muito presente na escola: em nome do ‘vir a ser’ do aluno, traduzido no diploma e nos possíveis projetos do futuro, tende-se a negar o prese