NO RUMO(R) DO POEMA: ESTUDO DE UM DRUMMOND IgorROSSONI 1 • RESUMO: Busca-se refletir sobre a potencialidade do texto poético a partir da análise do poema "No meio do caminho" de Carlos Drummond de Andrade. • PALAVRAS-CHAVE: Poema; Processo Analítico; Estranhamento; Repetição; Vislum- bramento. Introdução O processo analítico de uma obra de arte requer tratamento específico por parte do investigador. Em primeira instância se institui o ato de olhar para ela. Mais que isso, a intenção e a postura ao, efetivamente, executar a mirada. Muitas variantes entram em jogo a partir de então. U m universo diferenciado está ali - à frente - a espera de ser penetrado. Por isso existe e se fez: para comunicar/significar. Neste momento é que o método assume função: o norteamento. Entretanto, o investigador de posse única e exclusiva dessa determinação, ainda assim, não se qualifica para solucionar a empreitada pretendida. Isto se dá porque ainda não penetrou naquele universo específico. Portanto, mesmo de posse de um método pré-selecionado de investigação, encontra-se diante de grande impasse; na verdade, a primeira e mais objetiva barreira a ser transposta: o sujeito frente ao objeto e uma pergunta - por onde penetrar neste complexo para, a partir de então, iniciar o trabalho investigativo? Assim, sobre uma folha de papel, um produto artístico permanece "estát ico" a inquirir/instigar com sua eloqüente significância. É o caso de interesse deste estudo - o poema "No Meio do Caminho" de Carlos Drummond de Andrade (1976, p.12): No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra 1 Universidade Estadual Paulista- UNESP/Assis. Itinerários, Araraquara, 15/16:287-296,2000 287 Igor Rossoni Não basta, simplesmente, de maneira afoita ou despretenciosa lançar-se a ele. É necessário encontrar uma passagem real, um canal de acesso que possibilite efetivamente mergulhar naquele complexo de significações. Assim, observa-se - em aparência - se tratar de um texto simples, oriundo de uma construção equivalente. Numa primeira mirada, até despretenciosa e de relativa consistência reflexiva. Pode-se, ainda, de posse de conhecimento rudimentar dos princípios de conotação, efetuar algumas tentativas preciptadas de leitura: a mesmice vagarosa e constante da vida e seus percalços/obstáculos; a realidade do homem em sua trajetória etc. Entretanto, efetivamente, ainda não se penetrou no próprio poema e, sim, somente se adaptou o universo particular e extra-ficcional ao universo do poema. A l i , não está o poema. E mais, não é o poema. O poema tem vida p róp r i a , autenticidade, intensidade e, principalmente, uma função preponderante e dominante: a de comunicar ser exclus ividade de m o t i v a ç õ e s a r t í s t i c a s . A s s i m , para se revelar, exige do invest igador um trabalho e um olhar que se coadunem com sua natureza o r ig iná r ia . No entanto, o problema ainda n ã o f o i solucionado. A chave Drummond (1976, p.77), em outro texto, vem ao auxílio: Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? Repare: ermas de melodias e conceito \ elas se refugiaram na noite, as palavras. A í sim, uma vez posta em prá t i ca a a f i r m a ç ã o / s u g e s t ã o , percebe-se que algo, no tecido ar t í s t ico , sempre soa de modo estranho. Como a parecer que, em certos pontos, uma coisa não se conecta a outra de maneira convencional, ou pelo menos esperada. Lembra-nos o poeta: "Penetra surdamente no reino das palavras" (Drummond, 1976, p.77, grifo meu). Em termos normais, como se pode penetrar surdamente no reino das palavras? A l g o sobressai de estranho dessa c o m b i n a ç ã o e toca a ferida nossa de modo exemplar. O sujeito se vê diante de um abismo de s ign i f icações e, aparentemente, n ã o encontra ponto de apoio seguro. Quer dizer, encontra-se diante do inusitado: uma c o n s t r u ç ã o de cará te r a m b í g u o . Assim, mediante uma mirada mais atenta e vigilante, algo retém os olhos para a reflexão, supera a passividade e instiga a mente ao trabalho 288 Itinerários, Araraquara, 15/16:287-296,2000 No rumo{ r) do poema: estudo de um Drummond e prolifera numa rede de re l ações que estende uma ponte entre o olhar/mente e o questionamento: "Trouxeste a chave?" (Drummond, 1976, p.77). Pronto. A chave se posta, agora, à mão . O olhar voltado sobre si - introjeta- se - o acesso disposto à frente, exatamente revelado a partir do momento em que a consc i ênc i a detecta uma c o n d i ç ã o de ambigüidade instaurada. A partir de en t ão o texto se abre, revela-se o universo das outras faces sob a aparente. O trabalho ganha m o t i v a ç ã o , cons i s t ênc i a e liames de originalidade, uma vez que es tá o investigador diante da possibilidade de contribuir pessoalmente para o universo de s ign i f icações daquele jogo de estranhamentos ao efetuar um trabalho criativo - não de mera in terpre tação, mas de cr iação no ato de recepção . O exercício criativo Deste modo, volta-se para o texto originário de aplicação e busca-se esse ponto. De imediato ele se apresenta, em letras destacadas, logo no início do discurso poético: "No Meio do Caminho". A ambigüidade emerge a partir do jogo que a construção lingüística encerra. Trata-se da verificação de um conflito latente em que forças determinantes digladiam interruptamente por refletirem anseios de determinação versus indeterminação. O conflito acaba por estimular um ciclo interminável e produz uma vibração - tensão/ contenção - que pulsa, pulsa, pulsa e confere vida, espírito, intensidade ao que a coisa é: manifestação de ordem artística. Ora vejamos. Por um lado, a construção "no meio do caminho" expressa uma idéia de indeterminação uma vez que não é possível - de posse apenas dessa combinação de signos - identificar-se concretamente, com valores qualitativos, a precisão da mensagem. Por outro lado, a presente construção sígnica, independente de uma provável extensão, aponta para uma fixação espácio-temporal - em termos quantitativos - que, de certo modo - determina uma região específica em função do lexema "meio". Na verdade, não se trata nem de antes nem de depois, é um ponto exato: no meio. Desse jogo de intenções é que emerge do interior da expressão o status do estranhamento. Ou seja, o ponto de ambigüidade que permite o acesso ao universo próprio deste texto poético e a investigação de seus substratos fundamentais. Assim, ao mesmo tempo em que a expressão em destaque evidencia uma indeterminação, encerra uma determinação que possibilita a substituição de todo o conjunto por um único termo, que o irá representar - semelhante e funcionalmente - assumindo todas suas potencialidades normativas. Trata-se de agentes fixadores da natureza de: ali, lá, aqui etc. Então: no meio do caminho = ali, ou no meio do caminho - lá, ou no meio do caminho = aqui...etc Itinerários, Araraquara, 15/16:287-296,2000 289 Igor Rossoni Deste modo, mantém toda qualidade tensiva do princípio de ambigüidade e ainda oferece vazão para a continuidade investigativa rumo ao universo dos signos motivados: o próprio poema. Mais uma vez vêm à recordação as palavras do poeta (Drummond, 1976, p.77): Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralizados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Portanto, agora, deparamos com a expressão semelhante: A l i tinha uma pedra Demoremo-nos um pouco observando a natureza do termo destacado. Antes de assumir a condição de adjunto adverbial de lugar, dentro da estrutura sintagmática, ele expõe sua função inerente e fundamental: ser um dêitico2. E, por isso mesmo, um determinante de instâncias referenciais do universo da organização do discurso, ou seja, do processo de enunciação. Deste modo, começa-se a perceber que, no caso, um simples arrolar de frases - versos - aparentemente despretenciosos, congregam em si uma intenção contundente e amplificada: Ali - no âmbito da organização discursiva; no substrato fundamental do processo de comunicação estruturado por Roman Jakobson; no âmbito da mensagem, à qual o formalista referencia como a que expressa a função dominante da linguagem artística - "tinha uma pedra". Quer dizer, o processo de articulação compositiva que, por ser de natureza artística, sugere uma infinidade de sentidos, continha um obstáculo a ser superado. O que mais desperta a atenção é a convicção do poeta em utilizar o verbo "ter" sempre e, exclusivamente, no passado. Deste modo, materializa o sentido de algo já superado, uma vez que o poema existe - logo, explode vida própria e identidade. A mensagem cumpre seu objetivo: comunica. Fervilha a natureza poética da linguagem e o poema se globaliza/integraliza na unidade. O obstáculo referido vem simbolizado pelo lexema pedra: atributo de rudez, angulosidade, brutalidade, definível e, por isso mesmo, passível de lapidação. Lapidar, transpor, transgredir pedra é tirar o que de "pedra" a pedra possui, ou seja, elevá-la à condição de "não-pedra" sem que ela deixe de o ser. Quer dizer, torná-la cada vez mais desreferencializada, mais "minada" e, assim, prenhe de significações próprias - porém 2 "A diferença das anáforas (ou das catáforas) que, no interior dos discursos remetem a unidades, ou a segmentos dados, os dêiticos (ou indicadores, para E. Benveniste) são elementos lingüísticos que se referem à instância de enunciação e às suas coordenadas espácio-temporais: eu, aqui, agora. Podem, então, servir de dêiticos os pronomes ("eu", "tu"), mas também os advérbios (ou locuções adverbiais), os demonstrativos, etc. Trata-se, no caso, como se vê, da enunciação enunciada, tal como se lhe pode apanhar o mecanismo através dos procedimentos de debreagem e de embreagem que simulam a interposição ou a supressão de uma distância entre o discurso-enunciado e a instância de sua emissão". (Greimas & Courtes, 1979, p.103). 290 Itinerários, Araraquara, 15/16:287-296,2000 No rumo(r) do poema: estudo de um Drummond inusitadas - desta nova/diversa qualificação. O poeta nos socorre: "Em vão me tento explicar, os muros são surdosJSob a pele das palavras há cifras e códigos" (Drummond, 1976, p.78). Então, é necessário minar/desreferencializar o que o texto, como um todo, tem de pedra em sua acepção ordinária, o que ele tem como artefato fundamental de composição: a palavra. Desreferencializar a "pedra no caminho" no texto poético é minar a palavra e elevá- la à condição de signo motivado, totalmente diferenciado de seu envoltório aparente e superficial/ referencial. E retirar da palavra a' 'pele da palavra''. E elevá-la à potencialidade de significância que encerra os liames da "não-palavra" e, assim, possibilitar que o estado sublime da imagem poética impregne todo o espaço interno e externo do poema 3.0 que há, então, é a integridade do poema como poema. Não como algo "a serviço de", mas simples/plenamente como poema Deste modo, o texto em questão comunica (uma vez mais incrementando o teor ambíguo): " A l i há uma palavra" - no tempo verbal presente - pois já não é uma palavra qualquer e, sim, a palavra interferida/lapidada/transgredida a fim de exponenciar sua variada gama de significações. Daí a manutenção constante daqueles verbos no passado4. O discurso poético assim a endereça e a consciência sígnica do poeta a liberta: o trabalho da criação. O ato consciente de minar a palavra, no caso, ocorre pelo assédio ao artifício da repetição. Ora vejamos: a palavra pedra é utilizada quatro vezes na primeira estrofe (composta por quatro versos) e três vezes na segunda (composta "aparentemente" por seis versos). Além disso, a primeira estrofe está contida - por se repetir - integralmente dentro da segunda. Os pontos de interesse não findam somente na estrutura destacada. Observa-se que a primeira estrofe inicia com uma consoante maiúscula (N) e termina por ponto final. A segunda estrofe, como um todo, executa percurso quase semelhante. Entretanto, algo diverso ocorre nesta estruturação. O primeiro verso, desta, também se inicia com a mesma consoante maiúscula (N) e sugere remeter à repetição materializada da idéia apresentada ao longo da primeira estrofe uma vez que, somado ao verso conseqüente, encerram uma unidade de sentido própria, além de também encerrar-se por ponto final. Por sua vez, o terceiro verso nela contido assume idêntica estruturação à da primeira estrofe. Portanto, o modo de cons t rução praticado pode viabilizar o desmembramento da segunda estrofe em duas, sem prejuízo sintático-semântico ao conjunto do texto. Veja-se esquematicamente: N 3 Ver "A Imagem" in: O arco e a lira, Octávio Paz. 4 Notar que o outro verbo que ocorre no poema - esquecer - aparece no futuro (nunca me esquecerei ..."). No entanto, ele vem condicionado a uma idéia impregnada de passado. De modo que a intenção do poeta se conserva e se concretiza ao longo de todo o texto. Itinerários, Araraquara, 15/16:287-296,2000 291 Igor Rossoni Este mecanismo de desdobramento assume função de veículo de acesso e condução à prática da repetição da primeira estrofe, agora, na terceira criada, por intermédio da estrofe intermediária (composta por dois versos), abstraída da estrutura aparente do poema, agindo, por assim dizer, como eixo de rebatimento. Deste modo, o poeta consegue provocar um esvaziamento no âmbito do conteúdo dos lexemas repetidos e abri-los à plenitude da plurissignificação. A palavra minada. O poema integralmente constituído. Note-se t ambém que, segundo essa nova configuração, a úl t ima palavra, tanto do primeiro como do quarto versos da primeira estrofe encerram o mesmo enunciado: pedra. As palavras finais dos versos da, agora, segunda estrofe destoam e encerram, respectivamente, acontecimento e fatigadas. E as da terceira estrofe, caminho e, circularmente, pedra. Evidencia-se pois, com isso, um incremento em direção à unidade do poema, centrado no lexema "pedra" sob uma gestão sugerida pelo lexema "caminho". Com intuito de conferir consistência ao dispositivo acima evidenciado, veja-se o que segue. Do mesmo modo todos os versos do poema iniciam por consoantes que se alternam e se repetem: N e T . E ainda mais, estabelecem e propiciam uma relação especular perfeita, que t ambém licencia pensar-se no desdobramento há pouco sugerido: N t t primeira estrofe n N estrofe intermediária (ligação/articulação) n N t t terceira estrofe n 292 Itinerários, Araraquara, 15/16:287-296,2000 No rumo{r) do poema: estudo de um Drummond Do mesmo modo, como o poeta aponta a i m p o r t â n c i a e a supremacia do processo de e n u n c i a ç ã o sobre o enunciado logo e a partir do t í tu lo do poema, repetindo-o no início da primeira estrofe, ainda outra vez - empenho de atividade consciente - re força tal procedimento, quando da e s t r u t u r a ç ã o do pr imeiro verso da segunda estrofe - agora - desmembrada. Veja-se: "Nunca me esquecerei desse acontecimento" (grifo meu). Essa atitude novamente concede à estrutura frásica uma a m b i ê n c i a ambigua. Primeiro por se valer de outro dêitico. Ass im, fixa e reforça , mais uma vez p r e p o n d e r â n c i a enunciva. No entanto, o faz de modo especial. E a í que se instaura a a m b i g ü i d a d e . A o invés de aproximar e, portanto, particularizar o fato referido - o acontecimento e spec í f i co - e para isso deveria se valer do pronome deste, n ã o o u t i l i z a . A o c o n t r á r i o , o desaproxima, o desparticulariza, r ea l çando o fato como n ã o somente rea l i zação deste exercíc io particular ao qual o poeta se volta, mas para todo acontecimento poético em si. De modo consciente se vale de toda potencialidade que o pronome selecionado - desse - enseja. Em termos metód icos repete e reafirma a cond ição e a consc i ênc i a das necessidades própr ias do signo e da c o n s t r u ç ã o ar t í s t ica : reforça, duplica, intensifica, acontece. A o rea lça r o acontecimento, que na es t ru turação do poema assume função de elemento/eixo de a r t i cu lação entre as duas e s t â n c i a s que se repetem, ainda outra vez faz uso do processo de estranhamento: Nunca me esquecerei desse acontecimento Na vida de minhas retinas tão fatigadas. Observe-se que o poeta promove uma espécie de deslocamento focal que suscita um fenômeno de desconecção de um "eu" consigo mesmo. Quer dizer, sugere conferir vida au tônoma a uma parte de si mesmo: uma parte essencial. Ou ainda, é como se, de si se desdobrasse em "outro" e a esse "outro", coubesse uma importância relevante dentro do processo de incrementação poét ica: o ver com olhos fatigados que no processo de des-montagem assim pode ser esquematizado: Primeiro verso: primeiro plano: presentificação e atuação do "eu". Segundo verso: o primeiro plano parece ser assumido pelo "outro" = "vida das retinas" (forma autônoma). Somente num segundo momento o "eu" se presentificaria: "minhas". O processo de estranhamento se repete e se duplica no e para o "outro" fato que, deste procedimento, destina-se ao lexema que encerra a estrofe de ligação: fatigadas. O olhar - volta-se ao início: o ato de olhar - mais que isso, as retinas - "a mais interna das três camadas de cada globo ocular, que tem continuidade, posteriormente, de cada lado, com o nervo ópt ico" (Ferreira, s. d.), ou seja, o canal que de certo modo capta o objeto e o transporta, em imagem, diretamente à reflexão, à consciência - t ambém agora - FATIGADA. Essa instância remete à ideação Itinerários, Araraquara, 15/16:287-296,2000 293 Igor Rossoni apresentada por Baudelaire: o sentido do olhar do convalescente5. Este então parece ser o sentido de um olhar cujas retinas estão fatigadas. Deste modo, tanto o espírito do poeta, ao exercer sua atividade manipuladora, quanto o outro, revestido da figura do receptor/investigador, necessitam vivenciarem um mesmo estado: senso de atribuição tanto à criação quanto à fruição, integrais. Não por acaso, pensamos, o lexema "fatigadas" encerra a segunda estrofe desmembrada, logo abaixo de "acontecimento". Todos os termos dialogam entre si e se interpenetram convulsiva e recorrentemente como elos indissociáveis de um mesmo complexo: o poema. Assim, o poema - como um ser total - nasce/renasce constante e infinitamente em si e de si mesmo. Parece não haver dis t inção entre início e termo, causalidade e efeito, forma e fundo, ser e não ser. O poema é em si. Retido, apenas, pelo estar na consciência , primeiro de seu criador, depois de seus possíveis investigadores. Em virtude desse enfoque desenvolvido, o que aparentemente parecia uma simples brincadeira ou imposição retórica, na verdade, expressa todo o potencial da qualidade criativa e mais, denuncia uma profunda consciência do fazer e do ser poét ico: a arte plenamente consti tuída. O Trabalho do poeta Retomando e, de certo modo, abusando da prática da transcrição, observe-se uma re-montagem de alguns versos de " A Flor e a Náusea" (Drummond, 1976, p.77- 8) organizados com o intuito de ilustrar, ainda uma vez, essa tal consciência: As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase, (verso 14) ... galinhas em pânico, (verso 47) Façam completo silêncio, paralisem os negócios, (verso 38) garanto que uma flor nasceu, (verso 39) E feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. (verso 48) 5 "Atrás das vidraças de um café, um convalescente, contemplando com prazer a multidão, mistura-se mentalmente a todos os pensamentos que se agitam à sua volta. Resgatado das sombras da morte, ele aspira com deleite todos os indícios e eflúvios da vida; como estava prestes a tudo esquecer, lembra-se e quer ardentemente lembrar-se de tudo. Finalmente, precipta-se no meio da multidão à procura de um desconhecido cuja fisionomia, apenas vislumbrada, fascinou-o num relance. A curiosidade transformou- se em paixão fatal, irresistível! Imagine-se que estivesse sempre, espiritualmente, em estado de conva­ lescença e se terá a chave do caráter de G.. Ora, a convalescença é como a volta a infância. O convalescente goza, no mais alto grau, como a criança, da faculdade de se interessar intensamente pelas coisas, mesmo por aquelas que aparentemente se mostram as mais triviais.... A criança vê tudo como novidade, ela sempre está inebriada. Nada se parece tanto com o que chamamos inspiração quanto a alegria com que a criança absorve a forma e a cor...". "O Artista, Homem do Mundo, Homem das Multidões e Criança" in: O pintor da vida moderna. 294 Itinerários, Araraquara, 15/16:287-296,2000 No rumof r) do poema: estudo de um Drummond Vamos a ela: No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra. A í está o poema. Por si e de si estruturado. A posição do poeta parece não se apresentar de imediato, acomodando-se em segundo plano. Só uma voz surda a conter e romper o escudo do cotidiano, feito uma "chirimia" melancólica e existencial. Propaga-se, repetitivamente, texto a fora a ponto de, tamanha amplidão, escalar um senso de inominável, de repleto vazio, sem imposição de pessoa qualquer. O que há, então? Pela constância, verifica-se a iconização de algo que, ao mesmo tempo que é particular, não o é. Coletiviza-se. Generaliza-se na ampl idão . Só mesmo o pulsar desse "algo" expandido no tempo e no espaço : "no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho". N ã o mais u m a voz, mas A V O Z - a coisa, o retorno ao rud imen to de carac ter ização dos objetos, o instante da formação , a volta ao referente. O poema, assim, j á o é, antes mesmo de emergir/ser emergido. O poeta bem o sabe: Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. ... Aceita-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço. (Drummond, 1976, p.77) Portanto, sugere-se mesmo que, só num segundo momento, o poeta se insere e ainda de modo apropriado ao sistema: "nunca me esquecerei...", quer dizer, a imposição de pessoa, na figura do poeta, retoma o sentido de particular/coletivo uma vez que destina a esse "eu" um estado dialógico, o reflexo de uma condição de um eu-coletivo para um eu-particularizado que se perdem na confluência emaranhada da efervescência poética. Confrontam-se, amalgamam-se, copulam-se. Itinerários, Araraquara, 15/16:287-296,2000 295 Igor Rossoni Assim, o poema rompe o asfalto e nasce/brota feito chama "antieuclidiana" (Drummond, 1976, p.92) de si mesmo: o despertar do signo. O poeta o vislumbra e o registra. ROSSONI, I . In the rumor of the poem: a study of a Drummond. Itinerários, Araraquara, n. 15/16, p. 285-296, 2000. • ABSTRACT: A reflection on the poem "No meio do caminho" by Carlos Drummond de Andrade is the objetive of the present study. • KEYWORDS: Poem, analytical process, strangeness, repetition, glimpse. Referências Bibliográficas ANDRADE, C. D. de. Reunião. 7.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. BAUDELAIRE, C. O pintor da vida moderna, s.n.t. JAKOBSON, R. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1978. Bibliografia FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s.d. GREIMAS, A. J., COURTES, J. Dicionário de semiótica. 9.ed. Trad. Vários. São Paulo: Cultrix, 1979. PAZ, O. O arco e a lira. 2.ed. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. 296 Itinerários, Araraquara, 15/16:287-296,2000