Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Instituto de Artes THOMAZ DA SILVA BARRETO NÃO-CONTEMPORANEIDADE COMO CRÍTICA DO PROGRESSO NO FOLCLORISMO BARTOKIANO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO São Paulo 2024 THOMAZ DA SILVA BARRETO Não-contemporaneidade como crítica do progresso no folclorismo bartokiano Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de São Paulo – como exigência final para obtenção do título de Mestre em Música. Área de concentração: Música: processos, práticas e teorizações em diálogos. Orientadora: Profa. Dra. Lia Vera Tomás. São Paulo 2024 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP. Dados fornecidos pelo autor. B273n Barreto, Thomaz da Silva, 1998- Não-contemporaneidade como crítica do progresso no folclorismo bartokiano / Thomaz da Silva Barreto. -- São Paulo, 2024. 104 f. : il. color. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lia Vera Tomás. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Música folclórica - Europa, Leste. 2. Música - Filosofia e estética. 3. Música - Análise, apreciação. 4. Bartók, Béla, 1881-1945. 5. Compositores - Hungria. I. Tomás, Lia Vera. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 780.92 Bibliotecária responsável: Catharina Silva Gois - CRB/8 11323 THOMAZ DA SILVA BARRETO NÃO-CONTEMPORANEIDADE COMO CRÍTICA DO PROGRESSO NO FOLCLORISMO BARTOKIANO Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Música no Curso de Pós-Graduação em Música, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – Unesp, com a Área de concentração em Música: processos, práticas e teorizações em diálogos, pela seguinte banca examinadora: __________________________________________ Prof. Dra. Lia Vera Tomás – Orientadora Instituto de Artes/UNESP __________________________________________ Prof. Dr. Rodrigo Antonio de Paiva Duarte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/UFMG __________________________________________ Prof. Dr. Mário Rodrigues Videira Junior Escola de Comunicação e Artes/USP São Paulo, 27 de Setembro de 2024 AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente à minha orientadora, Lia Tomás, por ter acendido a chama do meu interesse em Adorno anos atrás e por abrir espaço para a realização dessa pesquisa. Aos meus pais, Telma e Gereba, pelo apoio infindável e irrestrito que venho recebendo desde que nasci. Ao meu primeiro professor de música, João Paulo Nascimento, por ter me apresentado aos quartetos de Bartók e permanentemente “descarrilhado” minha trajetória musical. Ao Prof. Maurício de Bonis, por ter marcado minha formação como compositor e pesquisador desde os primeiros anos da graduação e pela participação na banca de qualificação deste trabalho. Aos queridos Matheus, Heloisa, Caio M., Davi e Laura, pela cândida amizade e pelos tantos momentos de troca e aprendizado. Ao Ramon, pelas longas conversas sobre dialética que marcaram uma fase significativa de minha trajetória. Aos prezados da V. Nation, pelos anos de amizade e por sempre manterem a porta aberta. Aos significantes Leonardo, Isabela e Euclides, pela presença, amizade e camaradagem na caminhada pela filosofia. Ao Eder, pela camaradagem e parceria na jornada acadêmica e paciência com nossa amizade. Ao Caio Csizmar, meu irmão na composição, por tantas vezes me fazer tornar a encontrar sentido no ofício de compositor. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), por fornecer o suporte material sem o qual essa pesquisa seria indubitavelmente impossível, por meio da bolsa relativa ao processo 2022/05035-6. Aqui, contudo, neste livro, um novo começo é posto, e a herança não-perdida toma posse de si; aquilo que brilha no mais profundo interior aqui não é um covarde “e se”, não é um comentário supérfluo; antes, o que surge, mais do que qualquer disfarce e cultura expirada, é o único, aquilo que se sempre foi buscado, o único pressentimento, a única certeza, a única salvação: eleva-se de nosso coração - não-partido, apesar de tudo -, da mais profunda, ou seja, mais real, parte de nossos sonhos diurnos; isto é, da última coisa que nos resta, a única digna de permanecer. (BLOCH, 2000, p. 3) RESUMO O presente trabalho teve como objetivo investigar a obra do compositor húngaro Béla Bartók de forma a caracterizar qual a especificidade do seu tratamento de materiais musicais provenientes da música folclórica do leste europeu, entendendo essa manipulação como um uso crítico de elementos pré-tonais passível de ser compreendido como um modo de relação com o passado específico. Interpretado através do conceito de Ernst Bloch de não-contemporâneo, o folclorismo bartokiano se situaria enquanto uma crítica ao conceito de progresso tal qual a formulada por Walter Benjamin no interior da dialética do material musical. Por fim, passando pela crítica de Theodor W. Adorno sobre o conceito de progresso, apresentou-se como possível considerar a música bartokiana como uma alternativa válida à solução pantonal proposta por Arnold Schönberg para a crise do tonalismo, situando o projeto de Bartók no contexto do modernismo como distinto de outras formas de folclorismo neoclássico. Palavras-chave: filosofia da música; estética; Béla Bartók; Theodor W. Adorno; não-contemporaneidade; crítica do progresso. ABSTRACT The aim of this work was to investigate the work of Hungarian composer Béla Bartók in order to characterize the specificity of his treatment of musical materials from Eastern European folk music, understanding this manipulation as a critical use of pre-tonal elements that can be understood as a mode of relationship with the specific past. Interpreted through Ernst Bloch's concept of non-contemporary, Bartokian folklorism would be situated as a critique of the concept of progress as formulated by Walter Benjamin within the dialectic of musical material. Finally, going through Theodor W. Adorno's critique of the concept of progress, it was presented as possible to consider Bartók's music as a valid alternative to the pantonal solution proposed by Arnold Schönberg to the crisis of tonalism, situating Bartók's project in the context of modernism as distinct from other forms of neoclassical folklorism. Keywords: philosophy of music; aesthetics; Béla Bartók; Theodor W. Adorno; non-contemporaneity; critique of progress. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Hungria tripartite no final do século XVI ……………………………………...p. 13 Figura 2 - Grupos étnicos na Hungria no século XVIII ………….………….….….……..p. 16 Figura 3 - A Hungria no Império Habsburgo depois das guerras Napoleônicas ………….p. 22 Figura 4 – Quatro primeiros compassos da 4ª das 14 Bagatelas op. 6. ………….….……..p. 37 Figura 5 – Sujeito do primeiro movimento de Música para Cordas, Percussão e Celesta....p. 38 Figura 6 – Primeiro contrassujeito, entrada dos violinos 3 e 4 ……………………………p. 39 Figura 7 – Estrutura expositiva do primeiro movimento de Música para cordas percussão e celesta. ……………………………………………………………………………………..p. 41 Figura 8 - os três eixos……………………………………………………………………. p. 43 Figura 9 - introdução do 1o mov. da Sonata para dois pianos e percussão ………………..p. 49 Figura 10 - segundo sistema da introdução …………………………………………….….p. 51 Figura 11 - compassos finais da introdução………………………………………………. p. 52 Figura 12 - Tema do primeiro movimento da Suíte de Danças …………………………... p. 89 Figura 13 - Segunda iteração do tema do primeiro movimento da Suíte de Danças ……...p. 90 Figura 14 - Fragmentação motívica no 1º movimento Suíte de Danças …………………..p. 91 Figura 15 - Tema do Ritornelo no 1º movimento da Suíte de Danças……………………. p. 93 Figura 16 - Versão estável do Tema do Ritornelo …….………….….………….…………p. 93 Figura 17 - Material derivado do ritornelo…………………….………..….….…………. p. 93 Figura 18 - Ritornelo no segundo movimento ……………………….…….….….……….p. 94 Figura 19 - Ritornelo no quarto movimento ………….…….……….…………………….p. 95 Figura 20 - Relações intervalares entre os temas da Suíte de Danças……………………. p. 96 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 9 1.1 “ASIEN FÄNGT AUF DER LANDSTRASSE AN” 12 1.2 A SITUAÇÃO MUSICAL DOS ANOS 20 SOB O PRISMA DOS PRIMEIROS ESCRITOS MUSICAIS DE THEODOR W. ADORNO 26 2 BÉLA BARTÓK 31 2.1 SONATA PARA DOIS PIANOS E PERCUSSÃO 46 3 FOLCLORISMO COMO UM MODO DE RELAÇÃO COM O PASSADO 53 3.1 PASSADO E NÃO-CONTEMPORANEIDADE 53 3.2 IMAGEM DIALÉTICA E CRÍTICA À NOÇÃO DE PROGRESSO 59 3.3 NÃO-CONTEMPORANEIDADE E MÚSICA FOLCLÓRICA 65 4 MATERIAL MUSICAL, PROGRESSO E ESCLARECIMENTO 68 4.1 SOBRE O CARÁTER NÃO-DETERMINISTA DO PROGRESSO DO MATERIAL – RETROATIVIDADE E NEGAÇÃO DETERMINADA 72 4.2 SCHÖNBERG - TONAL, ATONAL, PANTONAL 79 4.2.1 Negação determinada 83 5 SUÍTE DE DANÇAS 87 6 CONCLUSÃO – POR UMA MÚSICA BARTOKIANA 99 Referências 101 9 1 INTRODUÇÃO O que significa escrever sobre Béla Bartók - um compositor nascido antes do aparentemente já distante século XX - hoje, em um momento no qual mesmo o pós-modernismo parece passado e frente ao qual mesmo as grandes revoluções dos meios técnicos musicais no modernismo podem parecer modestas? O que é discutir sobre o compositor folclorista, que buscava sua inspiração de materiais musicais remotos até a seus contemporâneos, abordando-o justamente através de um ferramental teórico-filosófico também do início do século XX? Posto que o nome de Bartók dispensa apresentações, capítulo impossível de ignorar na história do modernismo musical, não se trata aqui de fazer uma defesa ou simples apologia a seu tratamento da música folclórica, objetivo que seria tão ocioso quanto desnecessário. Se por um lado é certo que a discussão sobre folclore segue atual, não aqui o intento de reconstruir (para em seguida sugerir a aplicação de) um suposto método bartokiano que seria válido ainda hoje. A aposta primeira do presente trabalho é, em verdade, tentar mimetizar o procedimento empreendido por Bartók com relação a tais materiais arcaicos: buscar no mais antigo uma força renovada para recolocar questões do presente, não puramente em prol de sua exegese “adequada”, como que cientificamente conhecendo o passado com mais precisão, mas tentando trazer à luz um modo de relação que permita fazer frutíferos esses passados, não como algo passado, mas como algo que segue influenciando e reconstruindo o presente. É com vistas a esse espírito que buscamos congregar alguns outros personagens que, a nosso ver, pareciam compartilhar dele: Ernst Bloch e Walter Benjamin - e, talvez de forma mais arriscada, também Theodor W. Adorno. Tão gritantes quanto sejam as diferenças entre as propostas filosóficas dos autores, do Princípio da Esperança à Dialética Negativa, buscamos fazer entrever também uma afinidade (talvez não-tão-secreta): a aposta naquilo que foi escamoteado pela história, naquilo que o progresso estava certo de já ter superado, segundo a qual “diante do simples up-to-date, o avançado sempre é também o antigo” (ADORNO, 2018, p. 308). Aqui o passado se bifurca em dois sentidos de certa forma distintos. De um lado, frente à natureza pré-tonal dos materiais musicais folclóricos, esse material era antigo, algo que por sua organização interna remetia a uma era anterior ao tonalismo clássico-romântico que estruturava a música europeia até o século XX, e, nessa medida, rememora seu advento e 10 possivelmente uma quebra com sua pretensão de naturalidade. Do outro lado, de um ponto de vista concreto, essa música antiga não era qualquer antigo, como cantos gregorianos ou ambrosianos elegidos por uma sorte de afinidade eletiva, mas Bartók se baseava num material preciso: a música folclórica da região em que nasceu, do Reino da Hungria. Por conta da realidade social do país no início do século XX, em verdade essas tradições musicais não pertenciam a qualquer forma de antiguidade remota, mas estavam vivas e se transformando a cada momento nas pequenas cidades e vilas do interior rural do então amplo território da Hungria no Império Austro-Húngaro, que hoje se encontra dividido entre Hungria, Romênia, Eslováquia, Sérvia, Croácia, Áustria, etc. Ao mesmo tempo, a todo momento essa realidade antiga se confrontava com a modernidade capitalista que ali ainda estava emergente, que se impunha enquanto o que era verdadeiramente contemporâneo. Desta forma, essa música folclórica1 se apresentava como não apenas algo antigo, mas como algo passível de ser compreendido sob a guisa do conceito blochiano de não-contemporâneo. Tentando tornar plausível essa articulação, iniciamos o texto com um capítulo que não é tanto um ponto de partida, mas, antes, o plano de fundo que a todo momento é remetido materialmente pela música de Bartók: um breve panorama da história da Hungria, no intuito de minimamente nos situar quanto aos objetos investigados, dada a distância a que nos situamos tanto físico-temporal quanto histórico-culturalmente das problemáticas em que se insere a obra do compositor. Trata-se de um sobrevoo relativamente aforístico, visando não minimizar a complexidade e as nuances dos problemas em questão, mas buscando ao menos caracterizar três dimensões essenciais: A) o relativo atraso sócio-econômico da Hungria com relação à Europa Ocidental, B) a posição desprivilegiada da Hungria com relação à Áustria e C) a questão das minorias étnicas na Hungria. Mas Bartók não foi nem o único e sequer o primeiro compositor a se valer de materiais musicais de matriz popular ou folclórica. É notório, por exemplo, o emprego de materiais assumidamente folclóricos por compositores nacionalistas do século XIX, e em momento algum esses materiais pareciam se chocar com o sistema tonal e com o projeto nacionalista das emergentes burguesias europeias. De outro lado, contemporaneamente a 1 Antes de prosseguir, há de se fazer um breve comentário quanto à opção pelo termo “música folclórica”. Apesar do termo “folclórico” nos últimos anos ter sido relativamente problematizado frente ao seu caráter exotizante, que possivelmente colocaria a música popular dos povos como algo ou fetichizado ou inferior à “música erudita” ou “música arte”, optamos por manter o termo por duas razões: a) etimologicamente a raiz folk é significante para o texto e b) é o termo usado majoritariamente pela bibliografia empregada (folk music, Volkmusik, népzene). Por vezes foi utilizado também o termo “música popular”, visando dissipar essa carga negativa associada ao termo. Enfatizamos, pois, que aqui não há qualquer intenção pejorativa no uso do termo “folclórico”. 11 Bartók surge algo que Adorno chamou de “escola folclorista”, que empregava os materiais musicais folclóricos como um meio de “re-estabelecer a ordem perdida” na composição musical após o advento do atonalismo e da ruptura estética promovida pelo modernismo. Foi tomando essa problemática como ponto de partida que chegamos à pergunta central de nossa pesquisa: o que há de sui generis no tratamento bartokiano dos materiais musicais folclóricos que possivelmente o distinguiria tanto dos nacionalistas do século XIX como dos compositores neoclássicos-folcloristas? Para responder essa pergunta, formulada no capítulo 1.2. através de um breve resumé crítico de alguns escritos de Adorno dos anos 20-30 sobre o tema, nos debruçamos no capítulo 2 sobre a própria obra de Bartók, buscando demonstrar tanto teórica como analiticamente de que maneira os materiais musicais folclóricos incidem profundamente no seu pensamento composicional e numa direção crítica ao tonalismo e à tradição musical europeia corrente da época - com diferença ao folclorismo neoclássico, no qual o folclore apareceria como um meio de restaurar as formas mortas da tradição. Já o capítulo 2.1. é um breve excurso abordando uma dimensão pouco estudada na bibliografia brasileira sobre o tema, relativo ao uso da percussão em Béla Bartók, que apesar de relativamente marginal à linha argumentativa central do texto, colabora na direção do argumento por representar outro momento em que o modo bartokiano de se relacionar com os materiais musicais de origem folclórica aponta a soluções musicais modernistas. No capítulo 3 buscamos estabelecer o terreno interpretativo para abordar a pergunta sob uma outra ótica, a saber, através do aparato conceitual da filosofia de de Ernst Bloch e Walter Benjamin, na linha da argumentação esboçada alguns parágrafos acima. Entendendo o folclorismo bartokiano como um uso crítico da não-contemporaneidade, o objetivo central era, acima de tudo, dar subsídio filosófico para uma compreensão mais aberta de tempo histórico, no qual o antigo pode aparecer como tão válido quanto o mais novo, desde que mediado pelo presente crítico através de um gesto ativo de rememoração e reconfiguração do elemento passado. Ou seja, através desta interpretação, seria possível distinguir a empreitada bartokiana de um uso neoclássico do passado, que o toma como um alvo a ser alcançado ou restabelecido, não de forma crítica. A hipótese aqui é que esse esse modo de relação com os materiais folclóricos poderia ser interpretado enquanto uma manifestação dentro do âmbito musical de um horizonte de crítica ao conceito de progresso, tal qual aquela formulada por Walter Benjamin em suas Teses sobre o conceito de história e no Passagens - sugerindo que a crítica à perpetuação dos 12 modelos esgotados do tonalismo clássico-romântico seria análogo à recusa do presente que o historicismo congela como consequência unívoca de um passado também congelado, afirmando o capitalismo como único mundo possível. A partir do capítulo 4, partindo da crítica dialética de Adorno ao conceito de progresso, que apesar da afinidade - e também dívida - com a crítica benjaminiana, em muito dela difere, encaminhamos para a discussão final do texto, que situa essa crítica ao progresso não só frente ao tonalismo, enquanto crítica a sua pretensão de naturalidade, mas tentando também situar o projeto bartokiano no panorama do modernismo em si. Através do estudo da discussão adorniana do progresso, buscamos tornar possível uma leitura na qual o folclorismo de Bartók pode ser compreendido também como uma consequência da crise do tonalismo, recusando uma leitura na qual a escola de Schönberg é entendida como a única resposta válida ao “estado mais avançado do material musical”. Para tanto, no capítulo 4.2 investigamos a discussão de Schönberg sobre os conceitos de Atonalidade e Pantonalidade, de forma a revelar como essa saída não deve ser assumida como a única plausível. Por fim, no capítulo 5 buscamos corporificar as diversas dimensões discutidas nos capítulos anteriores em mais um último esforço analítico da obra de Bartók, nos debruçando sobre a Suíte de Danças Sz. 77 (1923), antes de encaminhar para as conclusões do trabalho. 1.1 “ASIEN FÄNGT AUF DER LANDSTRASSE AN” Na alvorada da era moderna, o sultão otomano Suleiman o Magnífico marchou Danúbio acima partindo da recém-capturada Nándorfehérvár (atual Belgrado) para saquear Buda depois de derrotar o exército real da Hungria na Batalha de Mohács. Embora tenha sido somente 15 anos mais tarde (em 1541) que os otomanos efetivamente ocuparam a capital húngara, Mohács marca o fim do Reino da Hungria unificado como era em seu auge medieval, evento que levou à divisão do território histórico da Hungria em três: (1) A Hungria Otomana, que se estendia principalmente pela centro da grande planície húngara, de Pécs a Temesvár, no sul, até Buda e Esztergom no norte; (2) o Reino Oriental da Hungria, mais tarde o principado da Transilvânia, um estado vassalo otomano (hoje parte da Romênia); e (3) a Hungria Real, posse da dinastia Habsburgo do Sacro Império Romano Germânico, que consistia da região norte (atualmente parte da Eslováquia contemporânea) e oeste do território da Hungria. 13 Figura 1 - Hungria tripartite no final do século XVI Divisão do território histórico do Reino da Hungria após a conquista otomana. Fonte: KONTLER (2021), p. 213 A ocupação otomana durou quase 150 anos e em diversos sentidos diferiu do modelo em que se deu nos Bálcãs, região majoritariamente sob domínio otomano desde o início do século XV. Mesmo com a fragmentação de seu território e morte do rei e de porcentagem significativa da nobreza durante a batalha de Mohács, as estruturas sociais e políticas nativas do reino húngaro se mostraram um terreno mais resistente à uma incorporação ao Império Otomano, o que implicou numa preservação parcial das estruturas sociais húngaras mesmo durante a longa ocupação turca. Segundo László Kontler, Diversamente dos Bálcãs, onde a consolidação do domínio turco envolveu, entre outras coisas, um alto índice de conversões ao Islã e a ascensão de muitos “renegados” a altos postos (mesmo ao de grão-vizir), no exército ou na administração local, na Hungria, especialmente depois da decepção com as políticas de Szapolyai, a cooperação com as autoridades turcas era mínima. (KONTLER, 2021, p. 219) Contudo, mesmo levando em conta a tolerância religiosa sem paralelos nos padrões europeus de época e o aparentemente brando modelo ocupacional, a ocupação otomana teve 14 seu custo em sacrifícios materiais e humanos - encravada entre dois impérios, o que restava da Hungria ou era diretamente palco dos confrontos militares entre as duas potências, ou pagava a conta destes via tributo. A Hungria Real sob domínio Habsburgo tampouco era um paraíso: elevada a uma zona tampão para proteger Viena das investidas turcas mas munida precariamente com fortificações incapazes de aguentar o fogo da artilharia otomana por mais que dois dias, o custo previsto para a modernização das estruturas e manutenção dos exércitos girava entre 800 mil e um milhão de florins por ano, sendo que a receita total do tesouro da Hungria figurava menos de metade desse valor (KONTLER, 2021, p. 216). O final feliz no qual os “bárbaros invasores otomanos” são expulsos e a civilização austríaca-europeia heroicamente salva a Hungria não faz parte desta história. Vislumbrando a oportunidade de expulsar os turcos da Hungria após uma vitória decisiva contra o exército do grão-vizir Kara Mustafa no cerco de Viena de 1683, o imperador Habsburgo Leopoldo I se alia com os exércitos poloneses e venezianos graças a mediação do papa Inocêncio XI e lança uma campanha para conquistar o território restante da Hungria. O esforço de guerra foi bem sucedido e a cada ano fortalezas posteriores no território ocupado caiam sob o estandarte da Santa Liga de 1684, até que a integridade do antigo Reino da Hungria estava sob posse dos Habsburgos. Os custos dos esforços de guerra, contudo, foram arcados em grande parte pelos próprios húngaros: A cada ano de guerra, cerca de 50% a 70% dos tributos dos países dos Habsburgos eram coletados na Hungria, sem contar o fornecimento de guarnições às fortalezas, as doações privadas de magnatas e a força de trabalho que era enviada para o transporte de munições, a construção de muralhas ou escavação de trincheiras; sem falar, ainda, nas cobranças arbitrárias dos exércitos, cujas demandas superavam até mesmo as mais caras exigências. No século XVII, a bestialidade dos soldados rasos desfavorecidos e de oficiais gananciosos era lugar comum. [...] Apenas a oppidum de Debrecen, onde as tropas do famoso general Antonio Caraffa ficaram aquarteladas no inverno de 1986, pagou como um simples resgate perto de um milhão de florins, mais do que o total da Türkenhilfe2 dos três distritos mais ricos do Império Germânico. Um ano depois, Caraffa abateu-se sobre a cidade de Eperjes, onde instalou uma corte marcial; e, sob acusações falsas de conspiração em favor de Thököly, fez com que 24 nobres e burgueses (todos eles protestantes e ricos) fossem sentenciados a perder a vida e os bens. A europa repercutiu as notícias das pilhagens da Hungria, (enquanto, paradoxalmente, a propaganda de Leopoldo, o apresentava como o herdeiro do status de “baluarte da cristandade” da Hungria [...] (KONTLER, 2021, p. 267-268) 2 A Türkenhilfe (literalmente “ajuda turca”) foi um tributo especial cobrado pelo Sacro Império Romano de suas províncias durante as Guerras Turcas para financiar o combate ao Império Otomano, tido como inimigo comum dos povos cristãos. 15 O sentimento geral húngaro de época não não era propriamente de vitória, tampouco profundamente otimista quanto ao que viria a seguir da “libertação”. Segundo Kontler, Na Hungria, considerava-se que se pagou mais aos germânicos [durante os saques] do que aos otomanos em um século e meio. Sem dúvida, isso é um exagero grosseiro; ainda assim, é também sugestivo, e contribui para explicar a amargura do sentimento anti-Habsburgo que aflorava no país ao fim da guerra de libertação. (KONTLER, 2021, p. 268) Sentimento este que pouco mais de 10 anos depois eclodiu na Guerra de Independência de Racokzi, movimento húngaro de luta por autonomia nacional que só terá equivalente na história do país na Revolução Húngara de 1848. Ambas as tentativas, em verdade, fracassam, e como é sabido, a Hungria permanece posse imperial dos Habsburgos até a Ausgleich (Compromisso) de 1867, quando o Império Austríaco se torna Império Austro-Húngaro - mudança antes de tudo nominal, dado que a coroa húngara permanece na mão do imperador austríaco, que se torna também“Rei da Hungria”. Devastada pelo século de ocupação e pelas últimas duas sangrentas guerras de libertação, a situação da Hungria no início do século XVIII era deplorável. Apenas 2,4% do território dotado de vastos terrenos férteis estava sendo cultivado e para se ter parâmetro do quão desocupada se tornou a Grande Planície Húngara, apenas dois dos cerca de cem assentamentos e vilarejos que se espalhavam pelo condado de Heves sobreviveram. Ao passo que a Europa Ocidental chegava na Era das Luzes após um século de crescimento populacional (cerca de 60% entre o século XVI e XVII), a Hungria se encontrava estagnada em 3,5 milhões de habitantes, dos quais se estima que cerca de um sexto faleceu durante os dois últimos confrontos supracitados (KONTLER, 2021, p. 283). Graças ao período de relativa paz e estabilidade que se seguiu ao longo do século XVIII e de políticas de estímulo à imigração e repopulação promovidas pelos Habsburgos na Hungria, sua população cresce ao ponto de quase quadruplicar - concomitantemente, a porcentagem de magiares no total da população do país caiu de 50% para 40%, ironicamente colocando a etnia ligada ao nome do reino em status de minoria demográfica (em termos absolutos). Enquanto a maioria dos imigrantes eram germânicos, romenos e sérbios, grupos significativos de eslovacos, rutenos e croatas também aumentaram nas regiões em que historicamente ocupavam no território histórico da Hungria (beirando ou efetivamente constando como maioria étnica). 16 Figura 2 - Grupos étnicos na Hungria no século XVIII Fonte: KONTLER (2021), p. 281 É nesse contexto em que começa a surgir a construção de uma imagem multiculturalista e multiétnica do Reino da Hungria. Segundo o historiador eslovaco Peter Šoltés em seu estudo “‘Europe in Miniature’: Representations of Ethnic Diversity of Hungary in Statistics and Homeland Studies Until the Revolution of 1848 – 1849”, “A diversidade étnica única da Hungria era um fato bem conhecido entre os estudiosos. Ela foi documentada no final do século XVII na obra de Krištof Paršič [Christophorus Parschitius] Descriptio Hungariae de 1697, na qual a Hungria é descrita como o reino de muitas nações” (ŠOLTÉS, 2013, p. 28, grifo nosso). Paršič é um caso curioso por datar de uma época significativamente anterior ao estabelecimento do Alemão como língua oficial da burocracia húngara, que até então se dava principalmente em Latim e, consequentemente, também anterior ao importe de disciplinas acadêmicas de outros reinos germânicos parte do Sacro Império Romano pelos Habsburgos. O autor é citado por diversos intelectuais posteriores de importância como Samuel Timon no Imago antique Hungariae (1730) e mais tarde por Michael Horváth em seu Statistica regni Hungariae (1794). Enquanto a diversidade étnica no Reino da Hungria não foi um advento do final do século XVIII, como a obra de Krištof Paršič atesta, a construção da narrativa de que “a 17 Hungria é o reino de muitas nações” é mais própria deste. “No discurso letrado húngaro do final do século XVIII, havia uma ideia amplamente disseminada do Reino da Hungria como um país onde as pessoas falavam muitos idiomas e professavam muitas religiões” (ŠOLTÉS, 2013, p. 28). A menção à instauração da língua alemã como língua oficial da burocracia não é casual: é conjuntamente com a disseminação desse ideário de heterogeneidade e diversidade linguística, étnica e religiosa que começam a chegar na Hungria conceitos de Volk, Nation, e Völkerschaft, termos que traduzimos aproximadamente por povo, nação e nacionalidade mas que, como Šoltés aponta, são terreno de disputa e discussão desde o século XIX. Na virada do século XVIII e XIX, uma controvérsia envolveu a monarquia danubiana quanto à nomenclatura para denominar os diferentes grupos populacionais. Como na época o alemão era a linguagem das disputas científicas não apenas na Áustria, mas também na Hungria, os termos de conteúdo disputado eram Nation, Volk, Völkerschaft e suas formas derivadas Volkstamm, Volksgruppe, etc. (ŠOLTÉS, 2013, p. 30). Segundo o autor, contudo, não se trata apenas de uma disputa linguística, mas é possível enxergar os itinerários de sentido de tais conceitos como manifestação do processo de “nacionalização da sociedade e transformação de sua estrutura nos Estados” (ŠOLTÉS, 2013, p. 30), fenômeno do século XIX, posto que no século XVIII tais termos como povo, nação, folk e etc. eram utilizados com menos rigor, por vezes de forma até intercambiável, conforme indicado por Šoltés: No discurso do século XVIII, tais termos eram usados de forma pouco rigorosa, sem um significado bem definido. Na enciclopédia mais extensiva em língua alemã do século XVIII, o Universallexicon de Zedler, os eslavos são alternativamente referidos enquanto nação (Nahme mächtigen einer Nation) como diferentes povos [folks] eslavos (Slavischen Völker, böhmisches Volk), enquanto os Székely (Zeckler, eine Nation in Siebenbürgen) e os russos (Russi oder Rhosi, eine mächtige scythische Nation) são identificados como nações - mas, de acordo com o Lexicon, os sérvios (Serben, Sebri), por exemplo, são referidos como Volk. O Ratio educationis distingue sete nações na Hungria (em latim, septem nationes), que correspondem às sete línguas provinciais introduzidas no ensino nas escolas trivium. De forma similar, o Guia Geográfico do Estado Austríaco, de Ignaz de Luca (1791), usava o termo Nation exclusivamente para descrever a população da Hungria no sentido de um grupo etno-linguístico. Ele categoriza alemães, húngaros, mas também croatas, checos e eslovacos como nações. (ŠOLTÉS, 2013, p. 30) Enquanto isso, já nas primeiras décadas do século XIX era possível notar a mudança de paradigma: se afastando da acepção mais aberta de Nationen como referente a vários 18 povos, alguns autores passam a empregar o conceito de Nation como referente principalmente ao Reino Húngaro e o povo etnicamente húngaro. Um dos exemplos trazidos por Šoltés para ilustrar esse processo é uma reedição de 1809 do Statistik des Königreichs Ungern (1798)3, de Martin Schwartner, no qual o autor substitui o termo Nationen (nações) por Völkerschaften (que traduzimos por nacionalidades, mas que está ligado à ideia de Völk/Folk/Povo, não apenas num sentido burocrático de “nascer em certo país”, mas como ser parte de um tal grupo étnico e o sentido amplo de “povo”) em uma passagem em que exalta a diversidade de línguas e nações (1798) / nacionalidades (1809) presentes na Hungria - mudança sutil, mas que abre a porta para que o uso do conceito de “ungrische Nation” (nação húngara) seja associado diretamente com o próprio “Reino da Hungria”, enquanto os outros povos aparecem como Völkerschaften. Nessa tensão de distinguir o que eram os “húngaros de verdade” num sentido étnico dos outros povos que, não obstante, faziam parte da “Hungria”, outra dicotomia que assumiu significância no período era a de Hungarus (exônimo do latim) vs. Ungarn (alemão), que posteriormente acabou se refletindo também na oposição Ungarn e Magyar (este sim o etnômio com que os húngaros se autodenominam): a oposição entre um conceito de húngaro enquanto habitante do reino da hungria vs a etnia húngara (magyar). Uma problemática tal não deve ser subestimada no contexto de um país que, como constatado anteriormente, é historicamente habitado por diversas etnias distintas. Enquanto que mesmo durante a ocupação otomana e também durante o período de domínio por parte do Império Austríaco esse território sempre foi remetido em matéria de direito histórico à “Coroa de São Estevão” - primeiro rei da Hungria, santificado (legitimado) pelo Vaticano como Sanctus Stephanus -, a realidade social profundamente multiétnica das regiões norte, sul e leste da Transleitânia (nome informal do território histórico do Reino da Hungria durante o Império Austríaco) contam uma história bem distinta do registro oficial dos impérios e coroas. O impulso original do conceito de Hungarus (muito propagado pelo próprio Schwartner) era, contudo, esclarecido, no sentido Iluminista: segundo Šoltés, “O conceito [de Hungarus] advogava a igualdade de todos os cidadãos da Hungria, independentemente de filiação com Estados, língua, religião ou qualquer outra diferença.” (ŠOLTÉS, 2013, p. 32). Quando Ján Čaplovič (1780-1847) define o Reino da Hungria como uma “Europa em 3 “Estatísticas do Reino da Hungria”, estudo que foi marco de época tanto pela abrangência de tópicos contemplados (distribuição étnica, religiosa, profissional, renda, condições habitacionais, etc.) como por ter sido “o primeiro estudo sistemático das principais características do estado [Hungáro]” (KONTLER, 2021, p. 318). 19 miniatura” (Das Königreich Ungern ist Europa in Kleinendz) (ŠOLTÉS, 2013, p. 29) sua intenção não é a mera constatação passiva da diversidade linguística e cultural dos habitantes do reino, mas também participa do ideário Iluminista de um “homem universal” e igualdade dos homens frente às suas diferenças linguísticas/culturais. Segundo Šoltés, os defensores do conceito de Hungarus “distinguiam consistentemente entre os conteúdos étnicos e políticos dos termos Magyar (Magyaren) e Húngaro (Ungarn), e enfatizavam o fato de que os direitos de um indivíduo na Hungria nunca foram dependentes do pertencimento a uma nação [Nationen] em particular”(ŠOLTÉS, 2013, p. 38), propondo que seria constitutivo ao Reino da Hungria ser um composto de diversas nações desde que São Estevão pronunciou que “O reino de uma só língua e maneira é fraco e frágil” (ŠOLTÉS, 2013, p. 38). Ou seja, podia-se constatar um programa sistemático de defesa do caráter multi-étnico do reino ao menos em parte da intelligentsia húngara do período de virada do século XVIII - XIX. Essa tendência, contudo, não demorou a sucumbir frente às transformações radicais que o século XIX instaurou. O crescente sentimento de nacionalismo se retroalimentava entre os diversos grupos etno-linguísticos do reino húngaro - que sequer possuía plena autonomia política e administrativa frente a Viena - apontando a um estado de conflito, antes de cooperação possível. Como em outros países europeus, as Guerras Napoleônicas [1803-1815] levaram a uma expansão de políticas estatais de incentivo ao patriotismo na monarquia austríaca. Seu objetivo primário era fortalecer a lealdade de sua população, diversa tanto étnica, religiosa quanto culturalmente, que estava enfraquecida pelo processo de nacionalização da sociedade e pela turbulência política que atravessava o mapa europeu. Com o abrandamento da censura e estabilização da situação política uma nova geração Romântica de intelligentsia nacional se formou (Vuk Karadžić, Ján Kollár, Mihály Vörösmarty, Pavol Jozef Šafárik) e disputas entre aristocratas húngaros, círculos intelectuais e movimentos nacionais emergentes de sérvios, croatas, romenos e eslovacos começaram a se intensificar. (ŠOLTÉS, 2013, p. 37) Tanto quanto o ideário iluminista de tais setores esclarecidos tivesse alguma articulação com os rumos da política e administração do reino - como atesta a influência do Statistik des Königreichs Ungern de Martin Schwartner na Dieta de 1825-1827 (KONTLER, 2021, p. 318) -, os rumos efetivos tomados ainda estavam na mão da elite econômica-aristocrática: “Dentre as diversas alternativas para consolidação da situação interna do Reino da Hungria, incluindo o conceito de Hungarus, foi instaurada justamente a 20 abordagem estatista de uma nação política húngara homogênea”. (ŠOLTÉS, 2013, p. 37). A saída tomada, que não agradou em nada aos crescentes setores nacionalistas das outras nacionalidades presentes no Reino da Hungria: Os temores quanto à dominação cultural germânica e o medo de se dissolver no “mar eslavo” foram pontos de partida de uma situação na qual a parte dominante da elite húngara começou a se inclinar para a opinião de que homogeneização linguística e cultural seria a solução ideal para garantir a integridade da Coroa de São Estevão. (ŠOLTÉS, 2013, p. 37) O dito “medo de se dissolver no ‘mar eslavo’” remonta à “previsão de Johann Gottfried Herder [1744 - 1804], o filósofo alemão do nacionalismo popular romântico, de que a nação húngara acabaria se diluindo no oceano dos povos vizinhos - eslavos, germânicos e romenos” (KONTLER, 2021, p. 326). Segundo Kontler, apesar da defesa do idioma magyar como língua oficial envolver um “conflito latente com seus colegas pertencentes aos povos não-magyares do país, bem como uma tendência a transformar o patriotismo “hungarus”, mais abrangente, no mais restrito nacionalismo magyar, em rivalidade com os nacionalismos romeno, sérvio croata e eslovaco” (KONTLER, 2021, p. 326), tal tendência se apoiava objetivamente na disparidade material de forças entre tais agentes, posto que, à exceção dos croatas, tais setores praticamente sequer possuíam uma elite feudal, quanto mais voz no palco político do Império Austríaco. Do outro lado do rio Leithe, também na Áustria se falava de “europas em miniatura”: fundado pelos Habsburgos quase às pressas depois de Napoleão colocar em xeque a legitimidade do Sacro Império Romano (cujo trono foi ocupado exclusivamente por imperadores da dinastia Habsburgo desde Frederico III, coroado em 1452), o próprio Império Austríaco - enquanto uma estrutura política “antiquada” em relação ao emergente estado-nação moderno do século XIX da Europa Ocidental - comportava em seu cerne também a contradição aparentemente insolúvel de aspirar a uma totalidade enquanto unidade territorial-política mas não poder comportar em sua alcunha “Austríaco” a miríade de povos e nações sob seu domínio. Tanto quanto as elites húngaras em certa medida se acostumaram à posição que ocupavam no Império Austríaco ao longo do século XVIII, parcialmente com vista às derrotas militares do século anterior e o subsequente período de estabilização e desenvolvimento econômico, não é verdadeiro que essa relação foi sem atritos. Tais tensões acumuladas ao longo das décadas começaram a se pronunciar mais manifestamente na virada do XIX, e a 21 insatisfação da aristocracia húngara foi respondida negativamente em maio de 1812 por Francisco José I, imperador da Áustria, com a dissolução da Dieta (assembleia nacional húngara que era convocada trienalmente) (KONTLER, 2021, p. 323). Somada a outras medidas e exigências extremamentes impopulares relativas a recrutamento e impostos, o descontentamento húngaro era palpável e, aconselhado por Klemens von Metternich, primeiro-ministro austríaco, Francisco I recapitula e convoca, “com relutância”, a Dieta de 1825. Segundo Kontler, Tornava-se evidente, mais uma vez, que mesmo se os adversários do absolutismo [austríaco] pudessem ser temporariamente silenciados e a maioria da nobreza [húngara] pudesse ser manipulada segundo uma orientação conservadora, não haveria uma base ampla para o absolutismo na Hungria, cujos interesses regionais eram, devido a seu considerável tamanho [mais de 50% do território dos domínios Habsburgos], demasiado importantes para que Viena pudesse ignorá-los. (KONTLER, 2021, p. 324-25) A despeito de sua dimensão territorial, é precipitado superestimar a importância da Hungria no panorama econômico do Império Austríaco. Kontler aponta que tão notável quanto seja o fato de que na década de 1840 a produção industrial húngara tenha quadruplicado em relação à época de José II, no final do século passado, com a emergência de uma classe trabalhadora industrial beirando o número de trinta mil pessoas, o montante de sua produção ainda era apenas 7% do total do Império Austríaco, que por sua vez também estava substancialmente atrasado com relação a países como Inglaterra, Bélgica ou França no quesito desenvolvimento industrial (KONTLER, 2021, p. 330-331). A maioria da economia húngara seguia fortemente baseada em um sistema de agricultura latifundiária, com 60% do campesinato sendo rendeiros de terras dos magnatas, e mesmo que a população das cidades livres por volta de 1840 chegava a mais de 600 mil habitantes, apenas um terço vivia de comércio ou da indústria (KONTLER, 2021, p. 330). 22 Figura 3 - A Hungria no Império Habsburgo depois das guerras Napoleônicas Fonte: KONTLER (2021), p. 324 Se por um lado há de se conceder que em matéria de escala o Império Austríaco não foi um participante ativo do colonialismo como entendemos que outras potências europeias da época como Espanha ou Inglaterra foram (as colônias dos Habsburgos historicamente não passaram muito de alguns esforços pontuais de curta duração), Matthew Rampley em seu artigo “Decolonizing Central Europe: Czech Art and the Question of 'Colonial Innocence'” brevemente levanta uma outra linha interpretativa, protagonizada pelos pesquisadores do projeto “Habsburg postcolonial”4, que “sugere ser apropriado abordar as dinâmicas políticas e culturais da Áustria-Hungria em termos de relações coloniais” (RAMPLEY, 2022, p. 3), contestando a noção de que o império Habsburgo possuiria a tal “Inocência Colonial” que 4 C.f. FEICHTINGER, J., PRUTSCH, U. e CSÁKY, M.. eds., Habsburg postcolonial: Machtstrukturen und kollektives Gedächtnis. Vienna: Studien Verlag, 2003. 23 países contemporâneos como Albânia ou Macedônia do Norte poderiam mais razoavelmente reivindicar. Segundo Rampley, seria plausível observar um paralelo entre a relação do velho mundo com as colônias e a dinâmica imperial Austríaca, sugerindo que esta seja considerada em termos de um processo de “colonização interna”, o que implica tanto um domínio e exploração econômico - o que, no caso húngaro, como pudemos notar até aqui, até certo ponto procede dado que apesar de não se comparar plenamente com a exploração colonial das Américas ou da África, possui uma analogia razoável na relação metrópole-industrial vs. colônia-agrícola5 - como também se apoiaria em uma “clara hierarquia de povos e culturas” (RAMPLEY, 2022, p. 3), na qual participariam todo o rol de exotismos e mistificações que os povos da Europa Oriental estavam sujeitos (e, em certa medida, até hoje ainda estão): o autor destaca escritos como o de Johann Pezzl, autor do esclarecimento vienense, em seu Sketch of Vienna (1786), no qual a Europa Oriental é retratada como lar de figuras como O húngaro, de passo rígido, com seu Dólmã forrado de pele, suas calças justas chegando quase nos tornozelos, e seu longo rabo de cavalo; ou o polaco de rosto redondo e cabelo de monge com suas mangas esvoaçantes: ambas as nações morrem em suas botas - Armênios, Valacos e Moldavos, com suas vestimentas semi-orientais, não são incomuns - Os sérbios, com seus bigodes retorcidos… os judeus poloneses, enfaixados em preto, seus rostos barbados e cabelos torcidos em nós, parecendo espantalhos: uma sátira ambulante da Raça Escolhida - Camponeses boêmios com suas longas botas; carroceiros húngaros e transilvanos com seus sobretudos de pele de ovelha. (PEZZL, apud RAMPLEY, 2022, p.4) Que os magiares são tomados como “exóticos” por autores europeus não é particularmente uma novidade histórica, e que o trajeto migratório que foi percorrido até assentarem na Bacia dos Cárpatos é pouco ortodoxo para algo entendido como um povo europeu certamente inegável. Estima-se que as tribos úgricas (das quais faziam parte os ancestrais dos magiares) deixaram os Montes Urais (cordilheira de montanhas que historicamente demarcava o lado europeu e asiático da Rússia) por volta do século X a VIII a.c., passando pelas margens do Mar do Aral e do Mar Cáspio ao longo de quase um milênio até enfim ocupar a região que hoje chamamos de Grande Planície Húngara. Disso decorre a perceptível peculiaridade da língua húngara, radicalmente distinta das línguas latinas e 5 KONTLER (2021), por sua vez, considera inadequado o emprego do termo “colonial”, mas reconhece que os austríacos não particularmente estimularam o desenvolvimento da manufatura e indústria na Hungria e que a dependência econômica gerada por essa dinâmica era do interesse do Império (C.f. KONTLER, 2021, p. 296-297) 24 germânicas por conta de sua matriz urálica, que possui mais parentesco com finlandes ou estoniano do que com o alemão ou francês - e apesar dos magiares já terem se estabelecido na região desde o final do século IX, só foram reconhecidos como um reino cristão (sob a alcunha supracitada de “Terras da Coroa de São Estevão”) no século XI. Conforme se segue ao sul, a exotização dos povos balcânicos gradualmente começa a se misturar com o profundo sentimento anti-otomano da europa central e o verniz de passividade do discurso que expõe povos de terras remotas como “curioso” se dissolve na repulsa contra o “Outro”, tomado como primitivo ou selvagem, quando não diretamente subhumano. Enquanto em determinados pontos da história os austríacos duvidavam da capacidade autolegislativa dos húngaros por conta das revoltas frequentes6, “o domínio Habsburgo da Bósnia se entendia explicitamente como uma missão civilizatória” (RAMPLEY, 2022, p. 3). Não seria plenamente exagerado sugerir a presença do componente ideológico de um certo “Balkanismo” - conceito formulado pela historiadora búlgara Maria Todorova a partir do “Orientalismo” de Edward Said - austríaco, no qual sua identidade fundamental enquanto “europeus” se apoiava na exotização dos povos balcânicos e do leste europeu, em constante associação com o mundo otomano e/ou com a Ásia: Rampley destaca como exemplo o diário de viagem à Galicia e Bukiovina de um popular autor austríaco, Karl Franzos (1848 - 1904), publicado sob o título Aus Halb-Asien (1876), “Da meia-Ásia”. Um tal espírito de época austríaco foi sintetizado com transparência pela confusão histórica no qual a famosa frase “Asien fängt auf der Landstraße an!” - “A Ásia começa em Landstrasse” (Landstrasse é um bairro historicamente na região leste de Viena) é errôneamente atribuída ao primeiro ministro austríaco Klemens von Metternich, fato que até hoje passa relativamente incontestado provavelmente graças à facilidade com que se pode imaginar um cenário em que tal frase seria enunciada por um político austríaco do século XIX. Na realidade, a primeira aparição dessa frase se deu no livro Siegelringe. Eine ausgewählte Sammlung politischer und kirchlicher Feuilletons (1874) de Ferdinand Kürnberger, endereçada ao jornalista vienense não por Metternich, mas por seu tutor: Porque um dia quando eu disse minha palavra [Viena é a cidade-fronteira entre a Europa e a Ásia] ao homem que era tutor do Príncipe Metternich, ele respondeu: Então você concorda com o velho cavalheiro que costumava dizer: A Ásia começa em Landstrasse! (‘Landstrasse é o subúrbio mais a leste de Vienna em direção à Hungria) (KÜRNBERGER, 1874, p. 222) 6 C.f. KONTLER (2021), p. 282 25 Era certo que apesar da Hungria ocupar uma posição relativamente privilegiada no interior do Império Austríaco, esta ainda era subalterna política e economicamente - além de estar para lá de Landstrasse. A insatisfação das elites húngaras aliada aos setores esclarecidos da intelligentsia, irradiados pelo iluminismo e banhados no espírito revolucionário do século XIX e o crescente nacionalismo húngaro se provaram uma combinação explosiva: em 3 de março 1848, aproveitando-se da fragilidade interna da Áustria após a revolução em Viena e conflitos nos territórios italianos dos Habsburgos, explode a Revolução Húngara de 1848 em Peste, reivindicando um governo Húngaro independente, além do fim da censura e liberdade de imprensa, igualdade plena perante a lei para todos os cidadãos, criação de um exército nacional, abolição da servidão, etc. Encabeçada por Lajos Kossuth e protagonizada por círculos intelectualizados da baixa nobreza, a revolução era profundamente iluminista e liberal em sua natureza, marcando um primeiro esforço na direção de modernização do estado húngaro, abolindo privilégios da nobreza e representando um passo na direção da transição do feudalismo ao capitalismo. Ao mesmo tempo, não só um conjunto de reformas estruturais, enquanto uma revolução conduzida por elites húngaras, representou um ponto marcante do ponto de vista da imaginação coletiva de uma “Hungria” num sentido não só abstratamente étnico ou enquanto reino histórico, mas propriamente enquanto uma coletividade nacional. Esse “despertar nacional” não foi recebido com entusiasmo pelos setores organizados das minorias étnicas que, como comentado anteriormente, percebiam no ideal universalista do conceito de hungarus ou uma perpetuação de sua posição subalterna no interior do sistema reino/império, no melhor dos casos, ou risco de assimilação compulsória, no pior. Viena, que havia sido obrigada a ceder à pressão húngara e atender a contragosto às reivindicações revolucionárias, não era ignorante dessa conjuntura: mesmo antes de mobilizar exércitos e começar o esforço de guerra, os Habsburgos nomeiam Josip Jelačić, “um fiel oficial do exército Habsburgo e ardente patriota croata” (KONTLER, 2021, p. 356) ban da Croácia, instaurando uma instância “independente” da Hungria e em conexão direta com Viena, medida que enfureceu o recém-formado governo Húngaro. A relação do centro húngaro com os grupos étnicos minoritários das periferias de seu território deste ponto em diante só se agravou. Em 10 de maio de 1848 o Congresso eslovaco começa a exigir uma assembleia nacional eslovaca independente e autonomia territorial. Três dias depois, o Congresso declarou autonomia política da voivodia sérvia dentro da monarquia Habsburgo e entre 15 e 17 de maio foi criada uma comissão nacional romena, também 26 reivindicando autonomia. A cada momento o ideal esclarecido de imaginar a Hungria como uma nação-política no qual os magiares continuariam na posição de administradores sucumbia frente ao clamor do despertar nacional-étnico. Rapidamente junto com esse projeto sucumbia também a própria revolução: tão cedo a situação nos territórios Habsburgos do norte da Itália se estabilizou, Viena mobilizou suas tropas e, com auxílio do Império Russo, esmaga o projeto revolucionário com imensa violência e severas retaliações. Embora o nome do acordo que consagra a transição de “Império Austríaco” para a monarquia dual “Império Austro-Húngaro” seja o “Compromisso” (Ausgleich) de 1867, e de fato tal dificilmente teria sido alcançado não fosse o esforço revolucionário de 1848, Kontler (2021) ressalta que para Viena a preservação parcial de algumas das conquistas da revolução foram antes uma moeda de troca barata para estabilizar a já obsoleta estrutura dinástica-imperial austríaca frente às ameaças externas que eram o Império Russo e do emergente Império Alemão. É num Império Austro-Húngaro tal que, em 1881, Nagyszentmiklós, nasce Béla Bartók. 1.2 A SITUAÇÃO MUSICAL DOS ANOS 20 SOB O PRISMA DOS PRIMEIROS ESCRITOS MUSICAIS DE THEODOR W. ADORNO7 Não muito mais que cinco décadas após a unificação da Alemanha sob o Império Alemão e do Ausgleich no Império Austro-Húngaro, a Europa assistia o colapso de tais estruturas políticas na maré revolucionária que varreu a virada dos anos 10-20 após a derrota dos poderes centrais na primeira guerra mundial. Pouco depois do início da Revolução Russa de 1917, em novembro de 1918 eclode a Revolução Alemã e, pouco depois, a Revolução dos Crisântemos na Hungria, marcando em um prazo estreito o fim de três grandes impérios do centro e leste europeus. Todas as promessas reprimidas desde 1848 pareciam eclodir em um furor generalizado apontando na direção de pensar uma sociedade diferente e, talvez, um mundo mais justo. No fronte artístico, desde os anos 10 se desenhava um dos mais agudos momentos de ruptura das primeiras vanguardas com a tradição musical europeia, o modernismo. Abandonando os pilares estruturantes do sistema tonal que sustentavam a música de concerto 7 Parte substancial dessa seção e de outras do presente escrito são reformulação de elementos discutidos no TCC do autor. 27 desde o período barroco, as novas possibilidades musicais abertas pela ruptura estética representavam tanto uma crítica aguda dos modelos clássico-românticos como também novos meios de se estruturar o pensamento musical, não só no sentido de sua articulação formal, mas também quanto ao material musical empregado. Em uma rápida sucessão o mundo da música de concerto viu nascer Pierrot Lunaire (1912), de Arnold Schönberg, Sagração da Primavera (1913), de Igor Stravinsky, O Príncipe de Madeira (1917), de Béla Bartók, até Wozzeck (1914-1925), de Alban Berg, dentre diversas outras obras que marcaram o período. A todo lado e de diferentes maneiras, compositores de diferentes nacionalidades buscavam modos de responder adequadamente às indagações que a caótica realidade europeia do período colocava - respostas que, nesse momento, iam principalmente na direção da crítica do que há muito estava velho e estabelecido. Mas tão cedo quanto a virada da década os horizontes revolucionários gradualmente minguaram. Em 1919 o Levante Espartaquista é suprimido na Alemanha e se estabelece a República de Weimar. Na Hungria, o breve regime socialista que suplantou a Primeira República Húngara não durou mais que 133 dias, e o “terror vermelho” foi seguido violentamente pelo “terror branco”, que culminou na restauração do Reino da Hungria sob a regência de Miklós Horthy em 1920. Observando esse processo de restauração da ordem e estabilização da sociedade europeia, em agosto de 1927 um jovem filósofo Frankfurtiano, Theodor W. Adorno publica um texto intitulado “A Música Estabilizada”8, refletindo sobre as obras apresentadas no festival da IGNM9 desse mesmo ano. Observando cada vez mais compositores recorrendo a convenções do passado (como uso de formas pré-clássicas ou materiais musicais de origem popular) em suas peças, o autor identifica esse recuo em relação às soluções musicais propostas pelo atonalismo expressionista como um reflexo da situação social em que a Europa se encontrava. Como podemos observar neste escrito de 1927 - em passagens como “A música se estabiliza com o mundo; há de se espantar que assim fique pior?” (ADORNO, 2014, p. 99) - para Adorno, esse processo é acompanhado também de um reacionarismo musical, o que o leva a tomar emprestado o termo cunhado por Hanns Eisler10 para indicar a dupla face desta 10 C.f. EISLER, H., “Relative Stabilisiserung der Musik”, em Materialien zu einer Dialektik der Musik, Leipzig, Reclam, 1976, p. 46 – 48. 9 “Internationale Gesellschaft für Neue Musik” ou Sociedade Internacional para a Música Nova, fundada em 1922. 8 ADORNO, “La música estabilizada” (1927), em ADORNO (2014), p. 98. 28 estabilização musical: tanto uma estabilização da música do ponto de vista de sua relação com a sociedade quanto uma estabilização no nível do material musical em si, enquanto recuo frente os novos meios propostos pelo expressionismo; Não foi por acaso que a sociedade [a IGNM] tomou seu impulso na caótica Viena do período da inflação; a possibilidade da revolução social iluminava o horizonte da revolução estética. Mas a Europa está tranquila, e a secessão tomou o rumo de toda secessão em uma ordem estabelecida; ela se consolidou, admitindo as necessidades da sociedade existente e sendo admitida, como recompensa, por essa sociedade (ADORNO, 2014, p. 99).11 Um dos principais alvos da crítica do texto de 1927 é o “Concerto para Piano” de Béla Bartók. A severidade desta é quase surpreendente, considerando que ao longo dos anos 20 em diversas ocasiões Adorno se mostrou otimista quanto à obra de Bartók, sobre o qual escreve um ensaio em 1922, afirmando que Bartók “sem dúvida se conta entre os músicos essenciais do presente” (ADORNO, “Béla Bartók”, 1922, em ADORNO, Escritos musicales V, 2011, p. 288). Segundo ele, “Bartók recaiu em uma forma ingenuamente folclorista de fazer música que, propriamente falando, já havia deixado atrás há muito tempo” (ADORNO, 2014, p. 104). É visível o tom de decepção nas palavras do autor alemão: “Talvez Bartók se encontre em um estado de pausa, de recuperar suas forças” (ADORNO, 2014, p. 104). A problemática da estabilização musical é desenvolvida num ensaio homônimo12 escrito em 1928, onde o autor categoriza duas vertentes desse novo estilo que vinha se estabelecendo, a saber, uma classicista e outra folclorista - e aponta a incapacidade destas de enfrentar os problemas técnicos gerados pelos novos meios, cada uma a sua maneira. Na tentativa de recuperar vínculos sociais e uma “objetividade musical” supostamente perdida na ruptura expressionista, os compositores associados a essas vertentes buscavam uma solução para a crise composicional da época por meio da retomada de materiais barrocos/clássicos ou folclóricos (respectivamente) – ao invés de “produzir desde o início com a força da fantasia e o controle impiedoso da consciência tornada livre” (ADORNO, “La música estabilizada”, 1928, em ADORNO, 2011, p. 756), caminho possibilitado pela ruptura expressionista. De um ponto de vista exterior, parece curioso, pois, Bartók ser enquadrado como parte da escola folclorista, quando no escrito de 1922 Adorno distinguia seu uso do material folclórico de uma tentativa de recuo a um modo seguro de se fazer música: “Mas nunca lhe ocorreu uma ‘utopia regressiva’, jamais atuou de maneira ingênua, voltando-se aos bons 12 ADORNO, “La música estabilizada” (1928), em ADORNO (2011, p. 755). 11 Tradução de Jorge de Almeida, disponível em ALMEIDA (2007), p. 224. 29 velhos tempos” - do ensaio “Béla Bartók”, de 1922 (ADORNO, 2011, p. 289). Ou como também podemos observar em outro escrito sobre a obra de Bartók, de 192513, em que o autor alemão enfatiza a maneira própria com que Bartók emprega os materiais musicais de origem folclórica: Nas obras de Bartók o que é próprio da canção popular nunca se coloca como um elemento estilístico discretamente ressaltado; antes, é em toda parte apreendido pelo processo compositivo subjetivo, sendo perpassado por ele como apenas na realidade o Eu e a objetividade se perpassam (ADORNO, 2011, p. 296).14 A situação se complexifica ainda mais quando levamos em conta textos posteriores ao “Música estabilizada”, como “O Terceiro quarteto de cordas de Béla Bartók”15, de 1929, no qual Adorno avalia a peça composta em 1927 pelo húngaro em termos veementemente positivos, enquanto em seu ensaio “Bartók”16, de 1930, Adorno volta a reafirmar as limitações do novo estilo folclorista-neoclássico do compositor. O problema é, afinal, o folclorismo em si, por vezes elogiado, por outras, duramente criticado, ou não? Estaria Adorno aqui sendo incoerente, oscilando entre um otimismo e crítica quanto ao tratamento bartokiano do material musical folclórico, ou meramente num momento inocente de juventude, em que ainda está em processo de formação de opinião? No capítulo “Estabilização” de seu livro “Crítica dialética em Theodor Adorno: música e verdade nos anos 20”17, Jorge de Almeida desenvolve alguns aspectos que permitem localizar melhor essa problemática dentro do pensamento estético adorniano. Primeiramente, segundo o autor, Adorno reconhece, antes da estabilização, a existência de um folclorismo genuíno nos países do Leste europeu e na Península Ibérica, representado por músicos que incorporavam a tradição musical desses países como contraponto, e não solução, à crise das formas que afetava a “grande música” burguesa (ALMEIDA, 2007, p. 232). O sentido discutido aqui é retratado por Almeida ao citar a posição de Adorno sobre a reprodução de esculturas africanas no Blaue Reiter, onde “a antiguidade mais remota tornava-se um meio de luta da vanguarda contra o status quo”18, e, como o autor brasileiro 18 ADORNO, “Aforismos musicales” (1931), em ADORNO (2011), p. 15. 17 ALMEIDA, “Crítica dialética em Theodor Adorno” (2007). 16 ADORNO, “Bartók” (1930), em ADORNO (2011), p. 305. 15 ADORNO, “El Tercer cuarteto para cuerdas de Béla Bartók” (1929), em ADORNO (2011), p. 301. 14 Trad. de Jorge de Almeida, disponível em ALMEIDA (2007) p. 232. 13 “Sobre algunas obras de Béla Bartók”, 1925 30 complementa; “A arte popular poderia adquirir um novo sentido ao desmentir a falsa pretensão de universalidade da arte burguesa, mas jamais substituí-la como meio de alcançar a universalidade perdida” (ALMEIDA, 2007, p. 231). Não solução positiva à crise do tonalismo, mas, antes, crítica do mesmo: temos aqui que Adorno não meramente descarta todo e qualquer uso do material folclórico como diretamente reacionário, sugerindo que, em certo emprego, tal pode aparecer como aliado às propostas composicionais modernistas. Nos anos 30, com a consolidação das escolas nacionalistas e do estilo neoclássico, algumas peças de Bartók acabam por assumir um estilo similar19, tal qual Adorno já sugeria em 192820. Parece-nos, contudo, que a crítica que Adorno estabelece é, antes, quanto a esses vestígios neoclássicos presentes da obra de Bartók, não propriamente ao emprego de materiais musicais folclóricos por si. Ao fim de seu último escrito sobre Bartók do período, o já citado “Bartók”, de 1930, o modo com que a questão é formulada já é quase como que batendo em retirada, mas ainda assim o filósofo frankfurtiano insiste no valor da proposta que foi empreitada por Bartók em sua fase vanguardista: Muito pouco resta do compositor e do que tem sido dito sobre ele: o compositor apenas oferece uma visão individual da música bartokiana, por assim dizer. A [visão] coletivamente mais ampla cabe de obter-se do investigador e arranjador de canções populares. [Esta] Foi capaz de nada menos que arrancar das ideias folclóricas a aparência romântica e fazer visível um modo sólido a relação entre o mais antigo e o mais novo, que o compositor fez frutífera como um fato ele mesmo historicamente objetivo [...] O folclorista exige uma valoração própria. Juntamente com o compositor, pertence a Europa: o rigor com que estabelece limites para si mesmo inadvertidamente explode seus limites, e seu dialeto tende para a própria linguagem da música (ADORNO, 2011, p. 308). Cabe aqui, pois, uma atenção mais detida à música bartokiana e à obra do compositor húngaro, de forma a avaliar através do próprio objeto o quanto a crítica procede e esmiuçar para além do nível abstrato qual a natureza particular do seu tratamento dos materiais musicais de origem folclórica. 20 “Bartók, um talento compositivo grande e original, alcançou em suas melhores obras uma altura ao fio da navalha entre a objetiva música popular e a subjetiva música artística, sem, contudo, cair de tal altura: seu paradoxal êxito voltou-se a cair abaixo novamente entre ao classicismo europeu genérico e o folclorismo não-mediado.”fragmento de “A música estabilizada”, 1928. (ADORNO 2011, p. 758). 19 No caso de obras como o 2º Concerto para piano (1930-1931) ou o 5º Quarteto de cordas (1934). 31 2 BÉLA BARTÓK Béla Bartók foi um compositor húngaro nascido em Nagyszentmiklós em 1881. O corpo de sua produção se deu na virada do século XIX ao XX e nas primeiras décadas deste último. Desde cedo interessado pela música folclórica de sua região, atuou amplamente como etnomusicólogo, registrando e catalogando milhares de canções do centro/leste europeu. Tal trabalho, desenvolvido ao longo de anos de pesquisa e viagem, contudo, não se resumiu à mera coleta, mas Bartók também desenvolveu arranjos e transcrições dessas canções, chegando até a utilizá-las como peças didáticas21. No trabalho de coleta, arranjo e manipulação de canções e músicas folclóricas de diversos povos, Bartók encontra um material que não o permitiu se restringir ao interesse etnomusicológico de registro e divulgação da música popular, mas que teve, segundo ele, [...] influência decisiva em meu trabalho, pois me libertou da tirania das tonalidades maiores e menores. A maior parte do tesouro coletado, e a parte mais valiosa, estava nos velhos modos eclesiásticos ou gregos, ou baseado em escalas pentatônicas mais primitivas, as melodias eram cheias das mais livres e variadas frases rítmicas e mudanças de tempi, tocadas tanto em rubato como em giusto. Ficou claro para mim que os velhos modos, que haviam sido esquecidos em nossa música, não haviam perdido nada de seu vigor (BARTÓK, “The Life of Béla Bartók”, Tempo, no. 13 (1949), p. 4-5). Segundo Paul Griffths, em seu livro “Bartók”, o compositor húngaro “[...] percebe que os camponeses húngaros lhe estavam dizendo as mesmas coisas que ele simultaneamente aprendia com Debussy: a ratificação parisiense das novas explorações rítmicas e harmônicas o ajudaram a dar uso àquilo que estava gravando nos vilarejos da Hungria” (GRIFFTHS, 1984, p. 46). E, como ele escreve logo depois, “pode ser difícil dizer o que Bartók estava pegando da música folclórica e o que de Debussy. E, de fato, talvez sequer faça sentido tentar fazer tal distinção, dado que ambas as influências o estavam afetando ao mesmo tempo, e na mesma direção” (GRIFFTHS, 1984, p. 47) - uma direção eminentemente crítica à linguagem tonal estabelecida da música clássico-romântica. Esse é um dos sentidos que distingue a intenção do compositor húngaro com relação aos compositores nacionalistas do século XIX, no qual a emergência do material supostamente folclórico se dava com fins antes de confirmação de uma identidade nacional 21 c.f. BARTÓK (1909), “For Children”. 32 por meio do classicismo musical, não enquanto um elemento crítico a ele - conforme Dahlhaus nota em seu ensaio “Nationalism and Music”, O que é bem mais característico do século XIX é a ideia de que o espírito nacional que se manifestava na música folclórica a um nível elementar era o mesmo espírito que finalmente produziu o classicismo. [...] O entusiasmo pela música folclórica e a aspiração ao classicismo eram complementares, não contraditórios. O Classicismo era visto como a expressão final e perfeita de algo que inicialmente tomou forma na música folclórica; a noble simplicité do estilo clássico representava a simplicidade da música folclórica, renovada e transformada (DAHLHAUS, 1980, p. 82) Falando em termos gerais, a crescente nacionalização da sociedade na Europa no século XIX deixou sua marca na maioria dos compositores do período clássico-romântico e mesmo compositores não associados diretamente a “escolas nacionais”22 inevitavelmente interagiam com o conceito de Nacionalismo, direta ou indiretamente: Schumann já em 1836 elogiava a obra de Chopin em termos de seu “forte e original nacionalismo” (DAHLHAUS, 1980, p. 84) e tanto a posição enfática de Wagner com relação à unificação da Alemanha como a fundação da Société nationale de musique na França atestam a isso. Entretanto, da mesma forma com que em verdade é difícil ou vago precisar quais são os traços unívocos que garantem que alguém pertença a uma nação específica no caso do conceito amplo de nacionalismo, no musical também muitas vezes os elementos tomados como característicos de uma nação não eram necessariamente tão substanciais quanto o discurso da época fazia parecer, muito menos garantidamente provenientes de uma “fonte popular originária”. Na direção inversa, “a suposição de que a música folclórica é sempre e acima de tudo a música de uma nação - uma visão que era considerada como verdade auto-evidente no século XIX - é questionável e mal fundamentada” (DAHLHAUS, 1980, p. 92). Ou seja, além de ser questionável se aquela música era efetivamente tão “popular” quanto a raiz Volk de Volksmusik desejava fazer parecer, ainda há de se notar que sequer há uma coincidência direta entre se um grupo étnico-cultural A pertence nacionalmente à unidade territorial-política B, como vimos em diversas instâncias no caso da Hungria e do Império Austríaco com relação às minorias étnicas. Segundo Dahlhaus, essa relação problemática entre tais tentativas de fundar um estilo clássico-nacional e a música folclórica também tinha um plano de fundo social: analogamente à vagueza do conceito de povo, “A apropriação da música folclórica pela burguesia, a fim de 22 Termo usualmente empregado com relação a escolas musicais marginais ao cânone germânico-francês-italiano. 33 se assegurar de que seus sentimentos nacionais tinham raízes e que sua própria existência tinha, portanto, uma autêntica “originalidade”, era um apelo atravessando barreiras sociais” (DAHLHAUS, 1980, p. 93), ou seja, uma tentativa de dissimular as diferenças materiais postas. Dahlhaus comenta que, segundo Walter Wiora, a música que era tomada como folclórica no século XIX não era exatamente a música popular que se escutaria no campo ou numa cerimônia de casamento de uma pequena família urbana, mas antes a música que circulava nos salões das elites performada por classes musicais especializadas. De acordo com Walter Wiora os tipos melódicos da música folclórica europeia eram transmitidos e circulavam “não entre os grupos étnicos, em sua maioria, mas entre grupos culturais e ocupacionais como pastores e menestreis”. (DAHLHAUS, 1980, p. 93). A complexidade da situação é tal: uma música que em tese é popular, com raízes que podiam ser traçadas de grupos étnicos que sequer necessariamente eram representativos do ponto de vista político-institucional, na verdade era performada por grupos musicais especializados, e, a partir desse material de segunda mão, era elegida como representativa do Volkgeist nacional. Tão contraditória quanto a situação pareça, do ponto de vista do emergente nacionalismo húngaro o estilo nacional que se fazia ouvir na música de Liszt bastava, não sendo uma preocupação científica avaliar o quão verdadeiramente populares eram os materiais musicais no qual ela se baseava. Formulando de forma sumária: enquanto a música cigana [cic] na Hungria fosse tomada como autenticamente húngara, ela era autenticamente húngara; o erro histórico deve ser tal qual ocorreu tomado como uma verdade estética, pois é necessário um acordo coletivo para marcar certos traços como nacionais, e no século XIX o acordo era influenciado por uma consciência nacional coletiva representada pelo desejo de afirmar uma identidade nacional. (DAHLHAUS, 1980, p. 92). A questão central é que, acima de tudo, a música folclórica era um meio para o estabelecimento de uma identidade nacional e para a construção mesma dos estados nacionais. Em grande medida, muitas dimensões objetivas de uma avaliação precisa sobre os materiais musicais empregados eram absolutamente prescindíveis, mas Dahlhaus alerta quanto à uma suposição de que é só uma questão de precisão científica: 34 Mas desprezar a interpretação nacionalista da música folcloria como um erro estético que somente agora está sendo corrigido graças à pesquisa empírica seria também um erro: um emprego equivocado das categorias. Esteticamente é perfeitamente legítimo chamar drones de gaita de fole e quartas sustenidas de tipicamente polonesas quando acontecem em Chopin e tipicamente norueguesas quando ocorrem em Grieg. (DAHLHAUS, 1980, p. 95). Um exemplo ilustrativo desse modo de relação com o material musical folclórico são as Slåtter (Canções Camponesas Norueguesas), Op. 72 (1902-1903) de Edvard Grieg (1843-1907). Uma das últimas peças escritas pelo compositor norueguês, a peça em certo sentido escapa da problemática que viemos apresentando por se basear em materiais autenticamente populares. Mesmo assim, entretanto, há de se notar que há uma barreira intransponível estabelecida pelo compositor com relação a esse material, conforme ele escreve no prefácio da coletânea: “Meu objetivo em arranjar a música para piano foi elevar essas obras do povo a um nível artístico, ao dar-lhes o que eu poderia chamar de estilo da concordância musical, ou trazê-los sob um sistema de harmonia”. (GRIEG, 1991, p. 165, grifo nosso). Ou seja, mesmo nesse caso em que os materiais-base são autenticamente folclóricos, a direção estética dessa apreensão ainda é a conformação desses materiais exógenos no interior do sistema tonal. O que pode ser compreendido como diferente no projeto de Bartók de uso dos materiais musicais folclóricos com relação à música nacionalista do século XIX é precisamente essa dimensão: o objetivo primário de Bartók não seria a edificação de um projeto nacionalista dessa natureza, passando por cima dos materiais musicais populares ou os tomando meramente como meio. Outra diferença fundamental pode ser traçada diretamente de seus próprios escritos, na distinção entre música “campesina”, como Bartók se refere à música folclórica que encontrou no interior do então Reino da Hungria, e a versão citadina de música popular já incorporada pelo sistema tonal, que ele se refere como “composições de aparência popular” ou “música popular urbana” - performada na Hungria principalmente por grupos musicais profissionais romani. A distinção entre esses tipos de música popular é proposta primeiramente por Bartók em um texto de 1921, “A relação entre a música popular e o desenvolvimento da música erudita de hoje”. Segundo o compositor, 35 Os camponeses ou a classe camponesa perdem sua inocência e sua inconsciência sem preconceitos ao receber uma cultura urbana - ou semi-cultura -, sua capacidade artística transformadora se é perdida. Isso se dá porque há tempos não se pode falar de uma música camponesa strictu sensu no ocidente (BARTÓK, 2006, p. 123). Segundo ele, os compositores nacionalistas do século XIX se utilizaram, na verdade, em sua maioria, dessa música popular urbana, já incorporada pelo sistema tonal, que perdeu sua força original. Para Bartók, “quanto mais uma melodia é primitiva, mais sua harmonização ou acompanhamento pode ser peculiar" (BARTÓK, 2006, p. 204); ao compositor, simplesmente não fazia sentido harmonizar aquela música com acordes perfeitos sob os moldes das tonalidades maiores e menores, pois “nas melodias primitivas, não faz ver em lugar algum referência a tais encadeamentos estereotípicos de acordes perfeitos” (BARTÓK, 2006, p. 205). Antes, o interesse é justamente a ausência de limites que esse material pode oferecer ao compositor, chegando a apontar até um convite à politonalidade23, segundo ele – o que de forma alguma se dava da mesma forma na música popular urbana, já enquadrada no modelo tonal. Ao mesmo tempo, Bartók não se conformou em apenas repetir a música camponesa na qual se inspirava, tanto que sempre traçou uma linha clara entre o que era arranjo e suas composições, como Griffths indica: Mas em certas ocasiões, e elas são a maioria, a influência da canção folclórica vai além: Bartók não imita seu material campesino, mas, antes, o objeto para arranjo, imitação ou análise – foi certamente algo de que ele estava consciente nesses termos [...] Sua preferência era compor autonomamente com base na música folclórica, e de fato ele apenas usava melodias campesinas em peças que eram declaradamente arranjos, como na 1ª, 3ª, 6ª e 8ª das “8 Peças Fáceis” (GRIFFTHS, 1984, p. 47). Para o compositor húngaro, a invenção por sobre o estilo popular é longe de ser um demérito, pois tal qual ele aponta em seu ensaio “A influência da música popular na música erudita de hoje”, de 1931 (dialogando diretamente com o supracitado escrito de 1921), “é secundário o compositor se utilizar em suas obras temas de sua própria invenção ou temas [folclóricos] encontrados” (BARTÓK, 2006, p. 205), pois “Pode-se dizer que o compositor aprende a linguagem musical dos camponeses, que a manipula com a mesma perfeição que 23 Como podemos observar em peças como a primeira das 14 Bagatelas para Piano (op. 6 - Sz 38), como um caso de politonalismo e polimodalismo simultaneamente, ou (dentre diversos possíveis exemplos de polimodalismo) como podemos observar na sexta das Oito Canções Populares Húngaras (Sz. 64), c.f. ANTOKOLETZ (1990), p. 47. 36 um poeta fala em sua língua materna” (BARTÓK, 2006, p. 206). Podemos complementar citando o escrito de 1921: Se é uma questão de influência da música camponesa, tal não deveria ser vista como uma simples cobertura de verniz. Não é uma questão de adaptar melodias ou fragmentos melódicos e inseri-los na obra de maneira inorgânica. Ao invés disso, é uma questão de alcançar interiormente aquilo que é difícil de traduzir em palavras: o espírito da música dos camponeses. Quanto à maneira de se compreender tal espírito e de como traduzir tal compreensão em obras musicais, ela estará sempre intimamente relacionada com o talento musical e personalidade do compositor (BARTÓK, 2006, p. 125). Disso, outra observação de Griffths nos chama a atenção, num sentido de que a influência do trabalho com música folclórica se estende até o próprio pensamento composicional de Bartók: Sem dúvida Bartók era por sua própria natureza musical atraído pelo princípio da variação - isto fora evidente em Kossuth - mas sem dúvida também seu trabalho com música popular, que estava se transformando de um hobby em uma busca científica durante o tempo em que ele estava escrevendo o Primeiro Quarteto, acentuou o gosto natural. Pois parte de sua tarefa como etnomusicólogo era rastrear variantes, para decidir se uma melodia coletada de uma aldeia era criação independente ou uma versão alterada de uma melodia de outra aldeia. Colocar esta operação analítica em reverso proporcionou o aparato mental para a astúcia variacional exibida na final do Primeiro Quarteto e muitas outras peças posteriores (GRIFFTHS, 1984, p. 51). Nessa medida, temos que em Bartók a relação entre o material musical folclórico e sua música não só não se dá de maneira imediata como perpassa transversalmente seu pensamento composicional, para além dos momentos mais evidentemente referenciais ao folclore, como em arranjos e transcrições de canções populares. Noções do tipo também são destacadas pela vasta bibliografia de análise ao redor da música do compositor húngaro. Em seu livro capital sobre o tema, “The Music of Béla Bartók”, Elliott Antokoletz cita o escrito de Bartók de 1921 apontando justamente a medida em que o próprio material musical folclórico convida a um distanciamento do sistema tonal (ANTOKOLETZ, 1990, p. 4). Segundo Bartók, A música folclórica genuína da Europa Oriental é quase completamente diatônica e, em certas regiões, como na Hungria, até pentatônica. Em todo caso, é notável que, no início do século 20, ao mesmo tempo em que há uma busca de inspiração da música camponesa, curiosamente o suficiente, ao mesmo tempo uma tendência aparentemente oposta se torna visível: uma tendência em direção à emancipação dos doze semitons contidos na oitava, como são usados em nossa música erudita, em direção a sua emancipação de 37 toda a dependência de um sistema escalar […] O elemento diatônico na música folclórica da Europa Oriental de forma alguma entra em conflito com a tendência de equalizar o valor dos semitons. Tal tendência pode ser realizada tanto na melodia quanto na harmonia; mesmo que, ao se basear na música camponesa, apareçam formações diatônicas ou mesmo pentatônicas na escrita melódica, ainda há ampla margem na harmonização para se equalizar os doze semitons (BARTÓK, 2006, p. 125). No capítulo seguinte à citação, Antokoletz evidencia essa tendência do material folclórico de escapar das relações harmônicas tradicionais do tonalismo em sua análise de duas das Bagatelas para Piano (op. 6 – Sz 38)24, ambas harmonizações de melodias folclóricas. Na 4ª bagatela do ciclo, Bartók emprega o modo Ré eólio, o que por si só já enfraquece o movimento tonal, na medida em que a ausência da nota sensível (no caso, Dó#) implica em resoluções mais fracas mesmo em encadeamentos de acorde que levem do quinto grau da escala ao primeiro. Isso é colaborado pelo baixo, que se mantém majoritariamente numa pentatônica de Ré evitando adjacências de semitom – excetuando-se dois Sib, mas que por serem alcançados via salto de sexta menor a partir de Ré nos momentos em que ocorrem evidentemente não escapam do sentido geral de enfraquecimento do movimento tonal, ainda mais considerando que ambos aparecem como sexta do acorde de Ré menor. Segundo o autor, a sensação de prioridade da classe de nota Ré é obtida por meio do contorno melódico, que enfatiza a nota como a mais grave e mais aguda em três das quatro frases diferentes da peça, e da exposição temporal, enquanto nota final das quatro, em detrimento dos meios usuais ao tonalismo em que o centro tonal é apontado por meio das relações hierárquicas inerentes às escalas maiores e menores – relações estas que são efetivadas por meio da harmonia. Figura 4 – Quatro primeiros compassos da 4ª das 14 Bagatelas op. 6. Fonte: transcrição realizada pelo autor com base em BARTÓK, (1953). Contudo, como indicado anteriormente, ocorre na música de Bartók que mesmo em peças sem relação direta com materiais musicais folclóricos a influência destes aflora em 24 C.f. também ANTOKOLETZ (1981). 38 direção a construções musicais distintas das do tonalismo tradicional. Em Música para Cordas, Percussão e Celesta, uma das obras mais célebres do compositor, enquanto os movimentos tipicamente associados à influência folclórica são o segundo e o quarto, dotados de energia rítmica e fraseologia características de danças húngaras, tal influência também se faz presente (de forma mais obtusa) no primeiro movimento, uma fuga. Esta pode ser observada na construção do sujeito da fuga, no qual o agrupamento rítmico das colcheias alterna entre ternário e binário. No primeiro segmento de frase, no primeiro compasso 8/8, temos dois tempos de semínima pontuada e um de semínima, a despeito do sentido usual de 8/8 implicar 4 tempos em subdivisão binária, tradicionalmente. No segundo segmento de frase, no segundo compasso, o 12/8 é seguido à risca como 4 pulsos de semínima pontuada, assim como no terceiro compasso a mesma subdivisão de colcheias do outro 8/8 é repetida: 3 + 2 + 3. Contudo, no quarto segmento de frase, que se inicia no terceiro pulso (virtual) do terceiro compasso, a subdivisão é binária apenas nas primeiras duas semínimas do quarto compasso, em um agrupamento de 2 + 4 + 3 graças ao unusual compasso de 7/8. Figura 5 – Sujeito do primeiro movimento de Música para Cordas, Percussão e Celesta. Fonte: transcrição realizada pelo autor com base em BARTÓK, (1939). Vale ressaltar que, apesar de sutil, tal construção não é de forma alguma trivial, na medida em que a melodia em questão se trata de um sujeito de fuga, não apenas um tema a ser variado livremente no decorrer da peça. A arquitetura rítmica neste é essencial, dado que é base para todo o desenvolvimento contrapontístico do movimento em questão - não é hiperbólico dizer que mesmo mínimas diferenças em valores rítmicos num sujeito podem ter grande impacto na elaboração de um contrassujeito ou stretto, por exemplo. Tão logo quanto 39 no segundo compasso do primeiro episódio, após a viola terminar de tocar sujeito, já se pode sentir uma tensão polimétrica entre essa voz e a principal que está tocando o sujeito. Figura 6 – Primeiro contrassujeito, entrada dos violinos 3 e 4 Fonte: transcrição realizada pelo autor com base em BARTÓK, (1939). E ssa tensão rítmica entre as vozes, mesmo em consonância pelo quase onipresente denominador comum do valor de colcheia, se soma à uniformidade tímbrica da orquestra de cordas para tecer uma trama orquestral paulatinamente mais densa conforme o decorrer do movimento, seguindo o mesmo caminho de acumulação de tensão apontado pela harmonia (nas sucessivas apresentações do sujeito à distância de quinta justa)25. Através da transcrição de uma aula dada por Bartók em Harvard em 1943 fornecida por John Vinton em seu artigo “Bartók on his own music”, podemos traçar a origem desse procedimento rítmico na música folclórica do leste europeu: na verdade, Bartók indica nominalmente o primeiro movimento de Música para cordas, percussão e celesta como um dos casos eminentes em que empregou essa técnica de variação de compassos para gerar complexidade métrica. “O que mais nos interessava no rigid rhythm . . . eram as mudanças de [fórmula de] compasso. Eu explorei plenamente essas possibilidades . . . nas minhas primeiras obras, e nas posteriores com, talvez, certo exagero . .” [...] Bartók adiciona aqui: “milyen peldak I. suite? II. suite? kesobbiek? tanc-suite, Huiros hangsz. elso tetel?" [que exemplos: 1ª Suíte? 2ª Suíte? as posteriores? Suíte de Danças, Música para cordas primeiro movimento?]” (VINTON, 1966, p. 236). Com “rigid rhythm” (ritmo rígido) Bartók se refere ao que usualmente chamava de tempo giusto, onde os valores métricos são geralmente mais estáveis, mais presentes em músicas de dança, em oposição ao parlando-rubato, em que há mais flexibilidade rítmica, 25 C.f. ANTOKOLETZ, 1990, p. 126 40 mais típico em canções e próximo da prosódia da fala - ambas tipologias relacionadas com a música folclórica. Esse procedimento de variação métrica não é apenas um modo que Bartók encontra para gerar interesse rítmico no tempo giusto, mas sua origem é também dada na música folclórica. Benjamin Suchoff em seu “Ethnomusicological Roots of Béla Bartók’s Musical Language” corrobora essa teoria comentando a passagem supracitada: Em uma discussão sobre o tempo giusto Bartók afirma: “O que mais nos interessava no rigid rhythm eram as mudanças de [fórmula de] compasso. Eu explorei plenamente essas possibilidades nas minhas primeiras obras, e nas posteriores com, talvez, certo exagero” (Suchoff 1976:386). É na colinde Romena que ele observou pela primeira vez mudanças de fórmula de compasso tanto regulares como irregulares como um elemento característico da canção folclórica rural. A primeira tem uma alteração regular de 5/8 e 3/8, 3/4 e 3/8, 2/4 e 3/4, etc.; a outra, tais métricas não-alternadas como 2/4, 3/4, 4/4, e 3/8, 5/8, 2/4. (SUCHOFF, 1987, p. 55) Há de se notar que o sentido preciso da compreensão do emprego de compassos irregulares na música de Bartók é como diferenciação entre “tempo curto” e “tempo longo”, não apenas uma questão de duração geral do compasso ou contagem de semicolcheias - o pensamento é de agrupar as colcheias em pulsos de duração variada, conforme a divisão em linhas tracejadas na partitura de Música para cordas percussão e celesta enfatiza. Em outra passagem destacada por VINTON (1966) Bartók explica essa diferenciação: Nós temos, mesmo que não muito frequentemente, métricas de 5/8 ou 7/8 em nossa melodia [folclórica]. A diferença entre estas e o 2/4 regular não é essencial: é uma diferença, antes, derivativa. 5/8 pode ser explicado como uma dobra de uma das colcheias em um compasso de 2/4, e 7/8 como um compasso de 4/4 com uma colcheia cortada. Esses compassos estranhos me atraíram imensamente, e sua influência pode ser descoberta em vários lugares [em] minhas obras originais. (BARTÓK, apud VINTON 1966, p. 236) Ou seja, mesmo num caso em que aparentemente Bartók está dialogando unicamente com a tradição da música de concerto ocidental, a saber, numa fuga, estão presentes duas técnicas de variação rítmica provenientes da música folclórica (mudanças constantes de fórmula de compasso e compassos irregulares). Mas as relações entre material folclórico e técnica composicional moderna vão além disso. Segundo Antokoletz, Em Música para cordas, percussão e celesta, a prioridade tonal é estabelecida de acordo com dois princípios contrastantes. As seções cromáticas são organizadas primariamente ao redor de eixos de simetria, enquanto as diatônicas-modais são baseadas em centros tonais tradicionais. 41 Contudo, inter-relações significativas ocorrem entre esses métodos de estabelecer centralidade tonal aparentemente irreconciliáveis. (ANTOKOLETZ, 1984, p. 184). Uma dessas relações destacada pelo autor se dá entre o primeiro e quarto movimento da peça. No primeiro movimento, referenciando o procedimento apresentacional tradicional da fuga26, a resposta do sujeito se dá à distância de quinta justa acima, partindo de Mi (o sujeito começa em Lá). A terceira entrada do sujeito, contudo, se dá em Ré, quinta abaixo de Lá, ao invés da usual representação do sujeito na tonalidade da tônica. As entradas subsequentes do sujeito então seguem alternando entre sucessivas quintas acima ou abaixo das apresentações anteriores: a 4ª apresentação parte de Si (quinta acima de Mi), a 5ª parte de Sol (quinta abaixo de Ré), e assim por diante, gerando a seguinte estrutura: Figura 7 – Estrutura expositiva do primeiro movimento de Música para cordas percussão e celesta. Fonte: ANTOKOLETZ, 1984, p. 185 26 No qual a resposta do sujeito se dá na tonalidade da dominante, ou seja, 5ª acima da tônica no qual o sujeito foi apresentado. 42 Essa estrutura, que facilmente poderia ser tomada como um procedimento composicional puramente especulativo ou interpretado unicamente como um diálogo com a tradição clássico-romântica da fuga através de um uso criativo das relações de transposição de quinta justa, segundo Antokoletz, pode ser entendida sob outra ótica: a partir do procedimento de desdobramento de formações simétricas a partir dos modos folclóricos27. Antokoletz nota que na direção de quintas ascendentes a coleção gerada (Lá-Mi-Si-Fá#-Dó#-Sol#-Ré#/Mib) não é outra que um desdobramento organizado a partir de quintas justas do pitch content do modo A lídio (Lá-Si-Dó#-Ré#-Mi-Fá#-Sol#), justamente o modo do quarto movimento - “logo, as propriedades modais básicas do tema em Lá lídio do quarto movimento se encontram pronunciadas nas relações simétricas da fuga cromática do movimento de abertura da peça” (ANTOKOLETZ, 1984, p. 187). Esse imbricamento entre tonalidade e procedimentos simétricos é o que nos leva a um terceiro nível de abstração, no qual vamos nos debruçar sobre o modo particular com que Bartók equaliza os doze semitons, tal qual lhe era sugerido pela tendência imanente do próprio material musical folclórico. A solução aqui é distinta da dodecafônica, mas não deixa de representar um deslocamento significativo com relação ao tonalismo – enquanto são mantidas relações de ordem tonal entre acordes, a funcionalidade tonal é expandida de forma a englobar encadeamentos entre todas as doze notas do total cromático fornecendo á substitutibilidade tonal um estatuto próprio. Na música de Bartók, isso é obtido por meio do Sistema Axial, termo cunhado pelo teórico que propôs tal abordagem, Erno Lendvai. Segundo o autor, Visto historicamente, o Sistema Axial reflete o conflito ancestral entre tonalidade e equidistância, em que a gradual ascensão do último resultou na libertação e tratamento igual dos doze tons cromáticos (LENDVAI, 1979, p. 16) No sistema tonal clássico-romântico, é prevista uma relação de substitutibilidade entre acordes à distância de terça. O exemplo mais evidente é a noção de relativo, em que um acorde como Ré menor é considerado subdominante relativa (Sr)28 de Dó maior, posto que se 28 Siglas de Tonica Relativa, Subdominante Relativa e Dominante Relativa, respectivamente. Na harmonia funcional, os acordes de vi ii e iii grau (em tonalidade maior) são chamadas funções relativas, ou seja, mesmo sendo acordes diferentes, teriam funções análogas ou aproximadas à das funções principais de Tônica, Subdominante e Dominante. Aqui na axial theory tais acordes relativos se unem com os acordes relativos das funções principais em tonalidade menor - III, VI e VII, respectivamente tR (relativo maior 27 Técnica discutida extensivamente por Antokoletz ao longo do terceiro capítulo do livro, “Symmetrical Transformations of Folk Modes”. 43 localiza terça menor abaixo de Fá maior, a subdominante (S) de Dó. Assumindo uma subdominante menor, sua relativa é terça menor acima, ou seja, Láb maior é o relativo de Fá menor, que seriam subdominante relativa (sR) e subdominante menor (s) de Dó. O passo realizado por Bartók é estender esse princípio uma terça menor a mais de distância: terça menor acima de Láb e, simultaneamente, terça menor abaixo de Ré, temos a nota Si, que seria relativo de ambos. A mesma lógica se realizaria entre as notas com função de tônica, a saber, Mib e Lá (com relação à Dó), que dividem relação com Fá#, e entre as com função de dominante, e Mi e Sib, que são relativas de Sol, adicionando-se aqui também Réb. Projetando essas relações intervalares no círculo de quintas, temos a formação de três eixos distintos, como ilustrado por Lendvai (LENDVAI, 1979, p. 3): Figura 8 - os três eixos. Fonte: LENDVAI, (1979), p. 3 Por meio das relações entre as notas de cada eixo, Bartók efetivamente consegue empregar qualquer uma das doze notas sem uma relação de hierarquia pré-estabelecida mesmo sem abandonar a funcionalidade tonal: por mais que ainda se esteja operando com uma sensação de centro tonal, graças à substitutibilidade entre os acordes, mesmo acordes da tônica maior), sR (relativo maior da subdominante menor) e dR (relativo maior da “dominante menor”) - para formar os eixos secundários de cada função, como podemos ver a seguir na figura 2. 44 tonalmente distantes (como um acorde Fá# em Dó) podem ser empregados com a mesma plenitude de sentido que uma dominante. A substitutibilidade funcional e relações de terça não são um princípio impensado ao tonalismo: as modulações para região da mediante em peças tardias de Beethoven29 ou a obra Brahms30 são exemplos claros disso. Mas, em Bartók, não se trata de uma simples dedução destes princípios e sua extensão por meio da tradição tonal, tampouco uma tentativa abstrata de equalizar os semitons, mas essa construção se baseia em um princípio que, como vimos, Bartók extrai do material musical folclórico: o rompimento com a diferenciação estrita entre maior e menor. No tonalismo tradicional, como vimos anteriormente, a direção da terça menor na relação de relativo é definida pelo modo dos acordes relacionados. Pensando num eixo de subdominante da tonalidade de Dó maior o acorde relativo de Fá maior (S) é Ré menor (sR), terça menor abaixo. Se pensamos na tonalidade de Dó menor, a subdominante menor Fá menor (s) tem como relativo Lab maior (sR), terça menor acima. Da mesma forma, reciprocamente, Ré menor tem como relativo Fá maior, e Láb maior, Fá menor. Ora, se estamos pensando em campos harmônicos restritos à tonalidade de Dó, nem no caso maior nem no menor há uma relação de substitutibilidade possível de se estabelecer que chegaria num acorde de Si maior ou menor. A única maneira, na verdade, seria assumir Ré maior, cuja relativa seria então Si menor, ou Sol#(Láb) menor, que apontaria a Si maior, o que quebra a cadeia de relativos que se imaginaria numa estrutura tradicional, dado que nem Fá maior nem Fá menor possui Ré Maior como relativo. Colocando de outra maneira, a dissociação entre funcionalidade tonal e modalidade dos acordes é pressuposto para o estabelecimento destas relações de substitutibilidade - para encarar Si menor como um acorde de subdominante em Dó, um acorde de Fá maior precisa possuir um acorde de Ré como relativo, e este deve ao mesmo tempo ser (virtualmente) “menor” (para ser relativo de Fá maior) e “maior” (para ter como relativo Si menor), falando de um ponto de vista estritamente lógico-especulativo. Esta dissociação, por sua vez, emerge com facilidade na manipulação do material modal típico da música folclórica (mesmo pensando estritamente em modos diatônicos): o modo mixolídio, com seu sétimo grau rebaixado, nos leva a um acorde de dominante menor (em Dó, 30 Notavelmente, a relação entre os movimentos da Primeira Sinfonia, op. 68 ou em boa parte da estrutura modulatória do primeiro movimento da Terceira Sinfonia, op.