FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS CAMPUS MARÍLIA EDSON ELIAS DE MORAIS RELIGIOSIDADE NEOPENTECOSTAL METAINSTITUCIONAL: UMA RELIGIOSIDADE SEM LIMITES MARÍLIA 2019 EDSON ELIAS DE MORAIS RELIGIOSIDADE NEOPENTECOSTAL METAINSTITUCIONAL: UMA RELIGIOSIDADE SEM LIMITES Tese de Doutorado apresentada para o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus Marília, para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Linha de pesquisa: Pensamento Social e Políticas Públicas Orientador: Prof. Dr. José G. A. Bertoncini Poker MARÍLIA 2019 EDSON ELIAS DE MORAIS RELIGIOSIDADE NEOPENTECOSTAL METAINSTITUCIONAL: UMA RELIGIOSIDADE SEM LIMITES BANCA EXAMINADORA Orientador. Prof. José Geraldo Alberto B. Poker, Doutor em Sociologia – USP 2ª Examinador. Profa. Claudia Neves da Silva, Doutora em História - UNESP 3º Examinador. Prof. José Bittencourt Filho, Doutor em Ciências Sociais – PUC-SP. 4º Examinador. Prof. Antônio Mendes da C. Braga, Doutor em Antropologia Social - UFRGS 5º Examinador. Prof. Donizete A. Rodrigues, Doutor em Antropologia Social – Universidade de Coimbra – Portugal. Marília, 25 de setembro de 2019 MORAIS, Edson Elias de. Religiosidade Neopentecostal Metainstitucional: Uma Religiosidade Sem Limites. 193 p. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquisa Filho, Campus Marília, São Paulo, 2019. RESUMO Tivemos por objetivo analisar a religiosidade evangélica brasileira e revisitar as tipologias clássicas que sedimentam a maioria das pesquisas, senão todas, sobre o campo evangélico. Foi na década de 1990 que se produziram inéditas pesquisas sobre a diversidade religiosa do mundo evangélico, principalmente a partir da consolidação das igrejas que ficaram conhecidas como neopentecostais. A tese de Doutorado de Paul Freston e a Dissertação de Mestrado de Ricardo Mariano se tornaram referências obrigatórias para se compreender a evolução, os desdobramentos e a diversidade do mundo evangélico. As tipologias criadas para ordenar e classificar os vários grupos evangélicos naquele momento, estavam fundamentadas na Sociologia Compreensiva de Max Weber e, como se sabe, elas não podem ser entendidas como categorias ontológicas, mas como instrumentos analíticos da realidade, portanto não podem se cristalizar e se desistoricizar. A problemática parte desta questão, visto que inúmeras pesquisas, desde então, utilizam as mesmas tipologias sem fazer as devidas ressalvas, não esclarecendo as modificações na prática religiosa dos fieis em muitas igrejas locais que, em não poucos casos, as colocam em xeque. Não tivemos por objetivo reconstruir tais tipologias, mas questionamos sua capacidade heurística para explicar as atuais manifestações religiosas no campo evangélico, posto que as transformações culturais tem conseguido borrar cada vez mais as fronteiras identitárias e denominacionais destas igrejas. Ao invés de maior diversidade, partimos da hipótese de que a religiosidade neopentecostal tem sido assimilada em diferentes graus pelas demais igrejas evangélicas, caracterizando-se como uma religiosidade metainstitucional, pois não encontra barreiras institucionais, ou denominacionais, dada a sua maleabilidade e capacidade de combinação e por não ser dogmática. Tais modificações têm se reverberado no espaço público como controvérsias político-morais, colocando em questão os princípios da laicidade e da própria democracia. Diante disso, recorremos as reflexões de Jürgem Habermas sobre a legitimidade e os limites da religião no espaço público. Como também as obras de Paul Freston, Antônio Gouvea Mendonça e José Bittencourt filho para compreender os posicionamentos das igrejas evangélicas no decorrer da história recente. Como técnica de pesquisa, adotamos questionário online para coletar dados dos membros leigos, análise de sermões, ensinamentos e reflexões de líderes religiosos disponíveis nos canais de igrejas e pregadores na internet, e a observação participante. Utilizamos dois filmes norte- americanos com o intuito de comparar o ethos religioso conservador e inclusivo e a religiosidade brasileira. Como base teórico-metodológica nos firmamos na Sociologia Compreensiva de Max Weber. Concluímos que a religiosidade neopentecostal se faz presente cada vez mais, nas mais variadas igrejas, e sob diversos recortes e adaptações, portanto, uma religiosidade que atravessa, perpassa e permeia, em determinada medida, a religiosidade das variadas confessionalidades evangélicas brasileiras, por isso, tem se tornando uma religiosidade metainstitucional e que não tem limites. Palavras-chave: Sociologia da religião; Religiosidade neopentecostal; Neopentecostal metainstitucional. MORAIS, Edson Elias de. Metainstitutional Neopentecostal Religiosity: A limitless Religiosity. 193 p. Thesis (Doctorate in Social Sciences) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquisa Filho, Campus Marília, São Paulo, 2019. ABSTRACT We aimed to analyze the Brazilian evangelical religiosity and revisit the classic typologies that sediment most, if not all of them, researched on the evangelical field. It was in the 90’s that unprecedented research on the religious diversity of the evangelical world took place, mainly from the consolidation of the churches that became known as neopentecostals. Paul Freston's Doctoral Thesis and Ricardo Mariano's Master's Thesis have become mandatory references to understand the evolution, developments and diversity of the evangelical world. The typologies created to order and classify the various evangelical groups at that time were based on Max Weber's Comprehensive Sociology and, as we know, they cannot be understood as ontological categories, but as analytical instruments of reality, so they cannot crystallize and to dehistoricize. The problematic part of this question, since countless researches since then use the same typologies without making the proper reservations, not clarifying the changes in the religious practice of the faithful in many local churches that, in a few cases, put them in check. We did not aim to reconstruct such typologies, but we question their heuristic capacity to explain current religious manifestations in the evangelical field, as cultural transformations have increasingly blurred the denominational boundaries of these churches. Instead of greater diversity, we start from the hypothesis that neopentecostal religiosity has been assimilated to different degrees by the other evangelical churches, characterizing itself as a metainstitutional religiosity, because it does not find institutional or denominational barriers, given its malleability and ability to combine and for not being dogmatic. Such changes have reverberated in public space as political-moral controversies, calling into question the principles of secularism and democracy itself. Face this, we turn to Jürgem Habermas's reflections on the legitimacy and limits of religion in public space. As well as the works of Paul Freston, Antonio Gouvêa Mendonça and José Bittencourt Filho to understand the positions of the evangelical churches throughout recent history. As a research technique, we adopted an online questionnaire to collect lay member data, sermon analysis, teachings and reflections from religious leaders available on church and preacher channels on the Internet, and participant observation. We used two North American films to compare conservative and inclusive religious ethos and Brazilian religiosity. As a theoretical-methodological basis we stand in Max Weber's Comprehensive Sociology. We conclude that the neopentecostal religiosity is increasingly present in the most varied churches, and under various cuttings and adaptations, therefore, a religiosity that crosses, permeates and goes through, to a certain extent, the religiosity of the various Brazilian evangelical confessionalities, has become a metainstitutional religiosity and that has no limits. Keywords: Sociology of Religion; Neopentecostal Religiosity; Metainstitutional Neopentecostal. DEDICATÓRIA Dedico este trabalho à minha Família! AGRADECIMENTOS Primeiramente a Deus, por Sua Graça e Misericórdia. “Porque dEle e por Ele, e para Ele, são todas as coisas; glória, pois, a Ele eternamente. Amém” (Rm. 11:36). Ao professor Dr. José G. A. B. Poker que aceitou essa empreitada e com grande respeito e compreensão me orientou e ajudou nesse árduo processo. Agradeço por todo apoio, toda paciência e confiança. Agradeço ao prof. Dr. Ricardo Mariano por me aceitar como aluno na condição ouvinte em sua disciplina na USP em 2018. As discussões e a bibliografia utilizada foram muito importante para o amadurecimento de algumas ideias. À Universidade Estadual Paulista – UNESP de Marília –, ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais, seu corpo docente e corpo técnico administrativo da seção de Pós-Graduação. Gostaria de nomear Prof. Dr. Aluísio Schumacher; Prof. Dr. Antônio Mendes da Costa Braga; Prof. Dr. Edemir de Carvalho, Prof. Dr. Jayme Wanderley Gaparoto, Prof. Dr. Luís Antônio Francisco de Souza. Professores que me ensinaram a ter novos olhares sobre a realidade social e política. Aos professores da banca de qualificação que foram fundamentais para o enriquecimento e rumo deste trabalho: Prof. Dr. Antônio Braga e Prof. Dr. Antônio Francisco de Souza. E aos professores da banca de defesa: Prof. Dr. Antônio M. da C. Braga, Profa. Dra. Claudia Neves da Silva, Prof. Dr. Donizete A. Rodrigues e Prof. Dr. José Bittencourt Filho. Aos amigos que foram muito importantes neste período, dos quais destaco: Adalton, Arif, Carlão, Claudinha, Fernanda, Jonathan, Lara, Luci, Luís Gustavo, Rogério, Tiarajú e Zuleika. Que a amizade, a crítica e a reflexão durem por muitos anos. A todos aqueles “amigos que são mais chegados que irmãos”, que sempre estiveram do meu lado com seus conselhos e críticas, apoio e abraço. À Izabella Grossi, minha companheira, que incansavelmente leu e corrigiu com carinho meus textos, que me apoiou incondicionalmente em todas as minhas decisões, sendo para mim um refúgio. E à sua família, que com grande carinho tem me acolhido. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 Deus não morreu, ele tornou-se dinheiro GIORGIO AGAMBEN Toda esperança traz em si um gérmen de religião, mas nem toda religião é germinadora de esperança. ERNST BLOCH LISTA DE SIGLAS AD – [Igreja] Assembleia de Deus ADHONEP – Associação de Homens de Negócio do Evangelho Pleno ANPOCS – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais CADB – Convenção das Assembleia de Deus no Brasil CEBRAP – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento CER – Centro de Estudos da Religião CGADB – Convenção Geral das Assembleia de Deus no Brasil CLAI – Conselho Latino-Americano de Igrejas CMI – Conselho Mundial de Igrejas FILO - Festival Internacional de Londrina IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IPDA – Igreja Pentecostal Deus é Amor ISER – Instituto de Estudos da Religião IURD – Igreja Universal do Reino de Deus LGBTQI+ - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexo e demais orientações e identidades. MBL – Movimento Brasil Livre MDB – Movimento Democrático Brasileiro MMA – Artes Marciais Mistas PLC – Projeto de Lei Complementar PM – Polícia Militar PRB - Partido Republicano Brasileiro PSC - Partido Social Cristão PSL – Partido Social Liberal PT – Partido dos trabalhadores PT/AC – Partido dos Trabalhadores do Acre STF – Superior Tribunal Federal TAC – Teoria da Ação Comunicativa SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................................................. 11 PREÂMBULO................................................................................................................................................ CONTEXTUALIZAÇÃO.................................................................................................................................. RECORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO....................................................................................................... ESTRUTURA TEXTUAL................................................................................................................................. 11 19 27 29 1. RELIGIÃO, ESPAÇO PÚBLICO E A LEGITIMIDADE NA SOCIEDADE PÓS- SECULAR...................................................................................................................................... 31 1. RELIGIÃO E SOCIEDADE NO PENSAMENTO DE HABERMAS .............................................................. 2. O LUGAR DA RELIGIÃO E SUA FUNÇÃO POLÍTICA NA ESFERA PÚBLICA............................................ 34 43 2. NEOPENTECOSTAL METAINSTITUCIONAL: UMA RELIGIOSIDADE SEM FRONTEIRAS.............................................................................................................................. 58 1. É POSSÍVEL UMA TIPOLOGIA DEFINITIVA?............................................................................................ 2. REVISITANDO AS TIPOLOGIAS DO CAMPO EVANGÉLICO BRASILEIRO................................................. 3. NEOPENTECOSTALISMO: INSTITUCIONALIDADE E RELIGIOSIDADE.................................................. 59 67 74 3. “DEUS NÃO ESTÁ MORTO”, MAS TAMBÉM NÃO ESTÁ EM “A CAMINHO DA FÉ”: A REAÇÃO DOS EVANGÉLICOS BRASILEIROS................................................................... 94 1. MÍDIA, RELIGIÃO E ENTRETENIMENTO................................................................................................ 2. “DEUS NÃO ESTÁ MORTO” E A RELIGIOSIDADE EVANGÉLICA BRASILEIRA........................................ 3. “A CAMINHO DA FÉ” E O DESCAMINHO DA INCLUSÃO......................................................................... 97 102 111 4. OS EFEITOS SOCIOPOLÍTICOS DA RELIGIOSIDADE.................................................... 127 1. AS BASES DE SUSTENTAÇÃO DA RELIGIOSIDADE EVANGÉLICA BRASILEIRA..................................... 1.1. O FUNDAMENTALISMO EVANGÉLICO................................................................................................ 1.2. OS EVANGÉLICOS NAS ENCRUZILHADAS DA HISTÓRIA................................................................... 1.3. O PIETISMO EVANGÉLICO................................................................................................................... 2. QUESTÕES QUALITATIVAS A PARTIR DE QUESTIONÁRIO ONLINE...................................................... 2.1. METODOLOGIA.................................................................................................................................... 2.2. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS.................................................................................................... 127 127 139 152 161 161 164 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................... 175 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................................... 185 INTRODUÇÃO PREÂMBULO É sabido, a partir de Max Weber, que as pesquisas acadêmicas estão relacionadas aos interesses dos pesquisadores e que, por isso, não há neutralidade quanto às interpretações. Contudo, exige-se a objetividade do conhecimento em relação aos dados da realidade. Este é um dos primeiros ensinamentos que recebemos na graduação em Ciências Sociais. Digo isto porque esta pesquisa diz respeito aos meus interesses enquanto indivíduo que teve formação evangélica, teve formação teológica numa faculdade interdenominacional e, depois, passou pela formação e militância ecumênica via Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI). Transitei desde as experiências extáticas, denominadas “experiência com Deus”, “unção”, “glossolalia” etc. no início de minha prática religiosa, até ao liberalismo teológico e às práticas ecumênicas com outras religiões e visões de mundo. Portanto, esta pesquisa é fruto das indagações e das experiências pessoais que foram se construindo em paralelo à formação religiosa e acadêmica universitária. No ano de 2008, ingressei no curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina, Paraná, onde tive acesso às teorias densas e altamente críticas da realidade, que clarearam os problemas concretos e historicamente determinados. Neste mesmo ano, tive conhecimento de um evento1 promovido pela Igreja Metodista do Rio de Janeiro e, já imbuído de algumas poucas leituras sociológicas, comecei a rascunhar algumas críticas. Esta primeira aproximação entre Sociologia, religião e sociedade levou-me ao questionamento e a algumas hipóteses a respeito das afinidades temporais e discursivas entre a ideologia neoliberal e o neopentecostalismo no Brasil. Estas indagações me 1 Denominado de “Ato Profético” que aconteceu pela primeira vez em 02 de novembro de 2007. O Ato Profético II em 20 de setembro de 2008. O evento teve por objetivo dar início a evangelização de 1 milhão de pessoas até 2014. Vide em: . 12 levaram para a Iniciação Científica e, em seguida, para o Mestrado, no qual produzi a Dissertação Religiosidade contemporânea: aproximações entre o neopentecostalismo e o neoliberalismo. Propus, então, como objetivo geral analisar a relação entre a religião e a sociedade na contemporaneidade e, a partir disto, analisar especificamente a religiosidade do movimento neopentecostal, buscando nela as possíveis relações com a ideologia neoliberal, e também perceber até que ponto esses fenômenos estavam imbricados e quais seriam os resultados dessa correlação. Para isso, elenquei, na época, quatro igrejas tipologicamente diferentes, para verificar se haveria diferenças ou similitudes a respeito destas relações. Foi aí que identifiquei a existência de algumas características da religiosidade neopentecostal em igrejas de outras tipologias. Ao buscar bibliografias sobre o mundo religioso brasileiro percebi que a categorização tipológica das igrejas de matriz protestante se repetia sem ressalvas às modificações nas manifestações religiosas dos crentes, nas igrejas locais. Dito de outro modo, as pesquisas se pautam, via de regra, pelas seguintes tipologias classificatórias: “Protestantismo Histórico”, “Pentecostalismo Clássico”, “Deuteropentecostalismo” e “Neopentecostalismo”. Tipologias construídas e consagradas pelos excelentes trabalhos de Paul Freston (1993) e Ricardo Mariano (2010 [1995]), numa espécie de síntese e refinamento analítico. Com a multiplicação das igrejas pentecostais a partir dos anos 1950, a tarefa de classificação se tornou ainda mais complexa e de difícil consenso, isto porque os pesquisadores até então utilizavam critérios diferenciados para produzir suas próprias categorias. Ricardo Mariano (2010, p. 34) afirma que o sociólogo Jorge Domingues (1995) utilizou o critério “genealógico institucional” para categorizar as igrejas, principalmente a partir dos cismas. De outro modo, Antônio Gouvêa Mendonça (1989) analisou as igrejas a partir de critérios “teológicos e históricos”, e aponta outros trabalhos que rearticulam as instituições nesta ou naquela tipologia. Então, Mariano retoma o critério “histórico-institucional” de Freston e acrescenta em sua análise a diferenciação teológica, comportamental e social, para abarcar a diferenciação entre os neopentecostais e os pentecostais (p. 37). A partir de então, estas classificações se tornaram convencionadas e utilizadas sem maiores debates e, muitas vezes, sem considerar que o tipo ideal é um instrumento de 13 interpretação para ordenar a realidade dentro de um tempo e de um espaço específico, não uma categoria ontológica. Ocorre que as religiões e religiosidades não se mantêm estáticas diante das transformações sociais e, portanto, elas não podem se manter classificadas eternamente, fora de seu tempo sócio-histórico. Numa perspectiva de compreensão histórica sobre os vários desdobramentos e grupos religiosos institucionais, tal classificação se mantém muito útil, no entanto, percebemos a existência de uma incompatibilidade entre as características das determinadas tipologias e as práticas religiosas vivenciadas por alguns fieis no cotidiano em diversas denominações locais. Desta maneira, estamos chamando a atenção para as transformações da religiosidade e não das características institucionais. Neste sentido, a religiosidade pode ser vista, ora como práticas e manifestações religiosas do fiel em seu cotidiano, ora como práticas de fé e crenças de uma comunidade local, quando sua liderança estimula tal religiosidade. Entendemos por “igreja local” ou “comunidade local” a agremiação dos fieis em uma determinada localidade, que juntos comungam, experienciam e celebram a fé. Diferentemente da instituição religiosa que tem seus regimentos, códigos de condutas, um aparato político-burocrático e responsabilidades jurídicas. No que diz respeito a categoria “religiosidade”, recorremos a Pierre Sanchis ao afirmar que é o “espaço intermediário que constitui a vivência religiosa efetiva (‘experiência religiosa’) dos indivíduos e dos grupos de fieis, a religiosidade tende a influenciar as determinações religiosas institucionais no sentido de dilui-las no indeterminado e no genérico” (2018, p. 92). Quanto às mesclas entre as religiosidades e crenças no meio religioso não há novidade, tendo em conta os processos sincréticos e de assimilações que o Cristianismo sofreu em seu percurso histórico. E em menor proporção, podemos citar a observação de Max Weber sobre as variadas combinações entre os protestantes calvinistas, batistas, anglicanos e luteranos, baseadas no trânsito religioso. Calvinismo e anabatismo enfrentaram-se rispidamente no começo de seu desenvolvimento, mas tornaram-se muito próximos um do outro no seio do movimento batista do final do século XVII, sendo que já no início daquele mesmo século, nas seitas independentes na Inglaterra e na Holanda, o trânsito religioso entre um e outro se fazia de forma gradual. Como se vê no caso do pietismo, o trânsito para o luteranismo também era gradual, o mesmo ocorrendo entre calvinismo e a Igreja anglicana, parente do catolicismo em seu caráter de exterioridade e no espírito de seus adeptos mais consequentes (2004, p. 88, grifo nosso). 14 Houve também assimilação dogmática, comportamental e também da literatura religiosa, que produziram certas semelhanças nos grupos religiosos sem, no entanto, excluir as características próprias. As diferenças dogmáticas, mesmo as mais importantes, como aquelas concernentes à doutrina da predestinação e à doutrina da justificação, assumiam umas as formas das outras nas mais variadas combinações e já no início do século XVII impediam de modo geral, regra essa não sem exceção, a preservação da unidade interna das comunidades eclesiais. E acima de tudo: o fenômeno da conduta de vida moral, que para nós é importante, encontra-se de igual modo entre os seguidores das mais diversas denominações que brotam seja de uma das quatro fontes mencionadas acima [calvinismo, pietismo, metodismo, anabatistas] ou de uma combinação de várias delas. Veremos que as máximas éticas muito parecidas podiam estar vinculadas a fundamentos dogmáticos divergentes. As obras literárias de apoio, destinadas a subsidiar o exercício da cura de almas e com certeza influentes, particularmente os compêndios casuísticos das diversas confissões, acabaram por contagiar-se mutuamente no decorrer do tempo, de modo que neles se encontra grande semelhança, apesar das notórias diferenças na práxis da conduta de vida (Ibid., p. 88-89, grifo do autor). Mais próximo de nós, é recorrente a identificação do pentecostalismo no meio das igrejas históricas (MACIEL, 1975; FRESTON, 1996; BITTENCOURT FILHO, 2003; MENDONÇA, 2005). Contudo, tal influência levou a cisões e rupturas, o que de certa forma garantiu, por algum tempo, as identidades denominacionais distintas, não havendo, portanto, um processo de “pentecostalização” generalizado nas Igrejas Históricas. Retornando ao nosso universo de análise, o próprio Ricardo Mariano identificou a influência do neopentecostalismo sobre as igrejas Pentecostais e Históricas. A influência das primeiras [neopentecostais] e a disposição das últimas [demais igrejas] de incorporar os modismos teológicos e rituais bem-sucedidos deverão, rapidamente, diluir muitas das diferenças agora existentes entre elas. Na realidade, esse processo de “neopentecostalização”, que não é inevitável, já vem ocorrendo em algumas denominações. Fenômeno indisfarçável na Evangelho Quadrangular e Nova Vida, que, genealogicamente, pertencem ao deuteropentecostalismo, mas que vêm, a passos largos, se aproximando da configuração típico-ideal da vertente neopentecostal. Mesmo no protestantismo histórico nota-se toda sorte de apropriação de doutrinas e práticas antes restrita quase tão-somente no circuito neopentecostal (2010, p. 39). Por conseguinte, como não era seu objetivo de investigação, ele se limitou a esta construção sem maiores elaborações. De todo modo foi uma importante indicação, embora incipiente, que apontava para transformações maiores, mas que não era possível prever seus desdobramentos e configurações vinte e cinco anos depois. E foi diante desta lacuna que esta investigação se debruçou. Portanto, nosso objeto de análise é a religiosidade neopentecostal, caracterizada como propagadora da Teologia da Prosperidade, que explicitamente defende a riqueza 15 financeira mediada por rituais religiosos e demoniza todo e qualquer problema que o ser humano possa ter, desde doenças físicas, psicológicas e emocionais, até falência de empresas e crises financeiras. E, também, da Batalha Espiritual, visão de mundo dualista que subjuga a realidade material à realidade espiritual, sob uma cosmogonia que privilegia o conflito entre os fieis servos de Deus e os espírito malignos. Assim, as igrejas que assumem a Teologia da Prosperidade e a Batalha Espiritual têm ganhado adeptos e, portanto, espaço político na sociedade, por meio das promessas de uma vida próspera emocional e financeiramente. Isto, mediante a participação nos cultos religiosos, nos rituais, e principalmente na fidelidade aos dízimos, ofertas e campanhas de oração e de sacrifício. Mais do que isso, buscamos caracterizar essa religiosidade neopentecostal àquilo que Magali do Nascimento Cunha denominou de “cultura gospel” (2007). Portanto, uma religiosidade vinculada a individualidade intimista, ao consumo, ao entretenimento, à música e à cultura de mercado, com certo apelo a moralidade tradicional, porém, adaptada aos avanços da sociedade moderna, suas tecnologias e demandas, integrando os fieis às várias esferas da vida cultural urbana. De certa forma, atenuando as características anteriores, mas não as abandonando. A cultura gospel lhes permitiu inserirem elementos profanos, aqueles integrantes da cultura de mercado, como o consumo e o entretenimento, na forma de viver a fé e relacionar-se com o sagrado; ou seja, um processo de sacralização de elementos profanos que dá ao duo consumo-entretenimento, mediado pelos meios de comunicação eletrônicos, o status de expressão de fé (CUNHA, 2007, p. 203). Diante deste quadro coube-nos fazer a seguinte problematização: é sabido que o neopentecostalismo produziu certas influências nas igrejas históricas e pentecostais, mas seriam apenas por causa das “disposições de incorporar os modismos teológicos e rituais bem-sucedidos?”, como afirmou Ricardo Mariano? Qual é o grau de influência desta religiosidade na atualidade? Por quais meios a religiosidade neopentecostal tem sido assimilada pelas Igrejas Históricas, principalmente? A incorporação da religiosidade neopentecostal está sob a lógica da racionalidade instrumental? Ou seria por outro lado: a incorporação se dá por causa de alguma característica genérica de uma parte da religiosidade evangélica? Quais são os aspectos da religiosidade vivenciada nas várias denominações que facilitam essa mistura? Esta religiosidade neopentecostal contribui para a participação dos evangélicos no campo político-ideológico? 16 Assim, sugerimos a hipótese de que a religiosidade neopentecostal tem sido assimilada em diferentes graus pelas demais igrejas evangélicas, caracterizando-se como uma religiosidade metainstitucional, pois não encontra barreiras institucionais, ou denominacionais, dada a sua maleabilidade e capacidade de combinação e por não ser dogmática. Assim, as mesclas das diferentes religiosidades ocorrem por meio de múltiplas formas e de recortes, produzindo certa uniformização na maneira como os indivíduos lidam com seu comportamento mundano e o universo de valores simbólicos. Temos por objetivo analisar como esta religiosidade se manifesta e a sua capacidade de mesclar e influenciar as práticas religiosas em outras denominações. Em outras palavras, analisar a capacidade da religiosidade neopentecostal se mesclar na religiosidade de igrejas de outras tipologias, produzindo as mudanças que apontamos sinteticamente acima. Mais especificamente, analisar como os evangélicos – leigos e líderes – têm assimilado categorias, crenças, teologia e, portanto, visão de mundo da religiosidade neopentecostal e amalgamado às suas. E assim, avançamos além das primeiras impressões da pesquisa iniciada no mestrado. Diante do problema posto, buscamos seguir essa investigação a partir de um diálogo entre intelectuais no campo da Sociologia da religião, da Sociologia política, das Ciências da religião, como que numa espécie de postura interdisciplinar que dê conta da complexidade da realidade social. Para elaboração desta investigação tivemos que nos ater tanto aos discursos de líderes religiosos como também da crença do membro leigo. Pois, como mencionado acima, uma determinada religiosidade é vivenciada tanto por um quanto por outro na comunidade local, ou algumas vezes apenas pelo leigo à medida em que cria e recria seu campo simbólico sem se submeter completamente ao líder religioso e a instituição. Na pesquisa de mestrado nos restringimos a quatro igrejas na cidade de Londrina-PR., e recorremos apenas aos discursos pastorais, respondendo bem aos objetivos propostos. Contudo, nesta atual investigação, apenas os discursos pastorais não responderiam ao que buscamos compreender. Para alcançar maior quantidade de dados da realidade e possibilidade de ter uma amostragem mais ampla do fenômeno, recorremos a estratégia da pesquisa multissituada por meio do das plataformas eletrônicas, pois segundo George Marcus, “os processos de modernização e inovação tecnológica e a integração com a mídia eletrônica contribuem para a diversificação dos 17 papeis assumidos pelos atores sociais, apontando a necessidade cada vez maior de desenvolver práticas de pesquisas multissituadas” (MARCUS, 2015, p. 407). Assim, as plataformas digitais tornam-se vasto campos de pesquisa que permitem relacionar o local e o global, o macro e o micro. A partir deste pressuposto, nosso universo de pesquisa se limitou ao campo evangélico brasileiro, e aqui em sentido amplo do termo. Desta maneira, recorremos a plataforma de Mídias Sociais self-broadcast, no caso o YouTube, que agrega canais de instituições eclesiásticas e de indivíduos – que produzem reflexões teológicas, entrevistas entre outros, se tornando formadores de opinião – de programas de entrevistas e entretenimento com conteúdo bastante diverso. Recorremos também à Rede Social Facebook, que dispõe de grupos de interesses, no caso, religiosos evangélicos, visto que a rede social se torna uma espécie de vitrine de performances e opiniões. Desta forma, foi possível observar cultos de diversas igrejas em diferentes regiões e temporalidades, o que seria impossível sob uma perspectiva convencional de observação participante. A segunda técnica de levantamento de dados empíricos foi a construção de um questionário online na plataforma Google Forms, com o objetivo de alcançar os leigos. O questionário foi elaborado com quarenta questões divididas em três áreas: a) informações sobre a igreja do respondente; b) informações sobre sua crença e opinião; c) informações sobre dados pessoais. O link de acesso ao questionário foi enviado para uma lista de dezenas de contatos pessoais, disponibilizado no Facebook e solicitado que fosse repassado a outros contatos evangélicos, como uma rede. Ficou disponível por seis meses e conseguimos coletar 362 questionários respondidos de várias regiões do país. Os dados foram coletados de forma quantitativa, tabulado e cruzados de forma qualitativa. Importante esclarecer neste momento o que temos entendido por “discurso” e “igreja”, dois conceitos importantes e que geram controvérsias se não delimitados. Quanto ao discurso, não entendemos como uma transmissão de informações, como afirmam as teorias tradicionais da comunicação, i.e., apenas um esquema constituído de emissor, receptor e códigos, pois o discurso não é mera mensagem em si, mas o efeito que ela causa entre os locutores (ORLANDI, 1999). Eni P. Orlandi afirma que o discurso é a materialidade específica da ideologia, e a materialidade específica do discurso é a língua. Ou como afirma Michel Pêcheux: “não há 18 discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido” (Apud ORLANDI, 1999, p. 17). O discurso, portanto, não é simplesmente uma troca de signos de comunicação, porque ... no funcionamento da linguagem que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de informação. São processos de identificação, de argumentação, de subjetivação, de construção da realidade etc. [...] A linguagem serve para comunicar e para não comunicar (ORLANDI, 1999, p. 21). Cabe ressaltar, no entanto, que o conceito “ideologia” para a Análise do Discurso não parte da sociologia, mas da linguagem. Deste modo, Eni P. Orlandi afirma que não tratamos [a ideologia] como visão de mundo, nem como ocultamento da realidade, mas como mecanismo estruturante do processo de significação. [...] A ideologia se liga inextricavelmente à interpretação enquanto fato fundamental que ateste a relação da história com a língua, na medida em que esta significa (1999, p. 96, grifo nosso). Quanto ao conceito “igreja”, é preciso considerar que na formulação sociológica weberiana, ele tem uma conotação muito específica baseada no gradiente “seita-igreja”, ou seja, dois tipos ideais que classificam distintas formas de associação religiosa. Segundo Weber, “seita é uma comunidade voluntária constituída apenas por quem demonstra, conforme os seus princípios, suficiente idoneidade religiosa e moral. Sem uma solicitação é voluntariamente aceita, em razão de uma prova religiosa, a pessoa em questão incorpora-se à seita” (2010, p. 93). Seita, sob esta perspectiva, refere-se a grupos religiosos com alto rigor de exigência ascética, aos quais seus membros se associam voluntariamente e conscientemente, comprovando claramente comportamento idôneo e moral. Por sua vez, “igreja é uma sociedade que organiza a graça e distribui os dons religiosos de graça à maneira de uma instituição. Posto que, em princípio, pertencer à igreja é obrigatório, ela não demonstra nada acerca das virtudes de cada integrante” (IDEM). Igreja, neste caso, é formada por pessoas que se vinculam a ela desde seu nascimento pela sua família. Troeltsch, segundo Calvani (2005, p. 38), ampliou os conceitos weberiano, afirmando que seita cultiva valores entre os membros como solidariedade, igualdade e se ajudam mutuamente, remete à experiência da conversão como aspecto de subjetivação e sentem desconfiança quanto à rigidez dogmática. A igreja é uma instituição de massa e que se ajusta ao mundo, mas tendente ao alinhamento com os poderosos ao se sentir ameaçada. Diferentemente da seita, “a igreja aponta para a objetivação do sagrado 19 (administração dos meios formalizados de graça com as consequências sociológicas e teológicas de hierarquia e dogma)” (IDEM). Diante destas caracterizações, Calvani afirma que o anglicanismo se apresenta como uma igreja, e dela se derivam seitas, ie., comunidades locais submissas à Constituição e seus Cânones, porém assumem comportamentos sectários (IDEM). Partindo desta ressalva, acreditamos que podemos amplia-la a outras denominações atualmente, ou seja, segundo estes critérios, muitas delas podem ser classificadas como igrejas e seitas ao mesmo tempo. Portanto, devido a essa dificuldade, preferimos não assumir esta perspectiva sobre o conceito de “igreja”. Assim, entendemos igreja como uma comunidade moral onde fieis se relacionam socialmente, comungam sua fé e fortalecem seus sistemas simbólicos religiosos. Mas sendo também uma instituição com deveres e responsabilidades jurídicas. Assim, por exemplo, quando falamos em “igreja Metodista” estamos nos referindo à igreja local, que, embora vinculada e submetida à instituição chamada Igreja Metodista do Brasil, constituída por um Cânone Regimental, pode manifestar religiosidades diferentes de outras igrejas metodistas. Contextualização No que diz respeito a essa religiosidade, percebemos uma modificação na constituição do cristianismo evangélico brasileiro concernente a sua pluralidade. Percebemos que essa pluralidade é reduzida no tocante às manifestações religiosas oriundas dos sermões, rituais litúrgicos, das expressões de fé e da autocompreensão dos crentes. Com isso, questionamos se as tipologias de classificação das igrejas evangélicas brasileiras ainda possuem capacidade heurística nas análises atuais, ou se tornaram-se bons marcadores históricos, dada as modificações no campo da religiosidade, que está cada vez menos em consonância com a sua tradição. As transformações que buscamos analisar referem-se ao grupo de evangélicos brasileiros que paulatinamente têm assumido a religiosidade neopentecostal metainstitucional, como apontamos anteriormente, e que se faz presente nas mais variadas denominações e tradições protestantes. Este grupo é heterogêneo no que se 20 refere às tradições evangélicas brasileiras, mas homogêneo em um determinado nível de religiosidade. As mudanças que podem ser observadas estão no campo das identidades, dos valores e do comportamento deste determinado grupo, presente em um leque de denominações evangélicas, que nos últimos anos têm se envolvido em várias disputas de ordem política e moral. Tais posicionamentos têm reverberado negativamente contra os ideais de liberdade e cidadania que o próprio protestantismo ajudou a construir. Esse protestantismo matricial é associado ao desenvolvimento da modernidade e aos avanços referentes aos direitos individuais, civis e sociais. [...] recordar que, uma vez rompida a unidade religiosa do Ocidente, o protestantismo permitiu o florescimento, no cenário cultural-religioso, da ideia da tolerância, dando assim, crédito ao pluralismo de interpretações, quer dizer, a possibilidade concreta de se considerar o “outro divergente” – a alteridade, também como fonte de iluminação na busca da verdade. Ao insistir demasiadamente na liberdade de consciência, de exame, de expressão, ao afirmar deste modo os direitos humanos individuais diante das instituições – instituições que não mais eram infalíveis – o protestantismo favoreceu a chegada da democracia, embora não se possa falar aqui de uma relação causal (CAVALCANTE, 2010, p. 19, grifo do autor). Tal ideia já tinha sido defendida por J. Habermas, ao atribuir os valores da modernidade à herança cristã que, segundo ele, O Cristianismo não é apenas uma figura precursora para a autocompreensão normativa da modernidade ou simples catalizador, pois o universalismo igualitário do qual surgiram ideias de liberdade e de convivência solidária, de conduta de vida autônoma e de emancipação, da moral da consciência individual, dos direitos humanos e da democracia, é uma herança imediata da ética da justiça judaica e da ética cristã do amor. Fomos nos apropriando criticamente desta herança, deixando-a, porém, inalterada, apesar das inúmeras reinterpretações (HABERMAS, 2003, p. 199, grifo nosso). Sem negar as contradições, o paradoxo e a pluralidade interna do protestantismo desde seu surgimento, o teólogo Ronaldo Cavalcante desenvolveu sua pesquisa de pós- doutorado (2010) sobre as mudanças do ethos protestante. Segundo ele, podemos contemplar o recrudescimento do “espírito legalista e escravizante” do protestantismo dos últimos anos2. A conclusão de Cavalcante é a de que a pós-modernidade contribuiu para a “degenerescência do ethos protestante brasileiro, condição deletéria ligada à nova realidade sociocultural do Ocidente” (2010, p. 162). Como também, a “ausência das 2 Sua pesquisa identifica a latente negação do princípio protestante já nos idos de 1960-70 quando vários pastores evangélicos apoiaram o Golpe Civil Militar de 1964. 21 conquistas da Reforma”, como por exemplo, liberdade, tolerância, inclusão, direitos humanos entre os evangélicos que, segundo ele, vivenciam a fé como gueto caracterizado pelo “isolacionismo e sectarização”, nomeado de “neofundamentalistas” (p. 163). O pseudo-protestantismo neofundamentalista, na verdade, sutilmente inverte a grande realização da Reforma – post tenebras lux – para – post lucem tenebras – produzindo na pós-modernidade um ambiente de obscurantismo e promovendo, por um lado, a intolerância, a partir do suposto conhecimento e domínio da verdade pela certeza dogmática e pelo simulacro, e, por outro lado, a exclusão, a partir da busca do poder factual – político, econômico, etc., por meio de uma relação ambígua com a modernidade e incestuosa com a pós-modernidade (CAVALCANTE, 2010, p. 132, grifos do autor). As conclusões a que ele chega parecem-nos interessantes, visto que apontam para um quadro de transformação real acerca da religiosidade evangélica brasileira. Discordamos, porém, da relação causal com a chamada “pós-modernidade”, cujos porquês e como ocorre tal processo, ele não deixa claro. Sua análise se dá por meio de uma aproximação genérica que vai de Gilles Lipovetski, passando por Michel Maffesoli, chegando a Z. Bauman em um mesmo parágrafo. Segundo Cavalcante, essa “inversão” em post lucem tenebras seria uma espécie de resultado da condição sociocultural marcada por: individualismo, hedonismo, narcisismo, relativismo, era do vazio, era líquida (p. 134). A problemática continua, nesse caso, em compreender como e por que essas transformações ocorrem. Parece-nos que esta relação entre a crise do protestantismo brasileiro e a pós-modernidade, seja lá o que isso queira significar, é uma resposta fácil a uma questão mais complexa. Tomando essa discussão como anunciadora de mudanças no meio evangélico brasileiro, mais os dados e conclusões apreciados na pesquisa de mestrado, como apontados anteriormente, e os conflitos recentes na esfera pública envolvendo principalmente os evangélicos – porém não apenas eles – acerca do agravamento do conservadorismo moral associado ao neoliberalismo, temos um problema de pesquisa importante para o debate atual que articula questões políticas, sociais e religiosas. Como exemplo, podemos citar casos que repercutiram nacionalmente, ocorridos em 2017, envolvendo os evangélicos: a proibição sobre discussão de gênero3, proibição 3 Religiosos (líderes e membros leigos) cristãos de várias regiões que estiveram unidos a vereadores e deputados vinculados ao Movimento Brasil Livre (MBL) para proibir as discussões sobre a questão de gênero em escolas e universidades, bem como tentativa de proibição de eventos acadêmicos, como ocorrido no SESC-Pompeia que teve a presença de Judith Butler. Para maiores informações veja em: 22 de exposição de artes4, sentença judicial proibindo peça teatral por “afetar a dignidade cristã”5. Por certo, não eram apenas evangélicos que estavam envolvidos nesses conflitos, pois a retomada conservadora vem atingindo também os católicos. No entanto, as manifestações de pastores e membros leigos nas redes sociais ratificando tais proibições foram expressivas. As igrejas evangélicas em Londrina-PR., por exemplo, têm assumido o discurso da “ideologia de gênero” e reproduzido os ideários do deputado pastor Marco Feliciano e do senador Magno Malta em relação à educação de gênero nas escolas, que também apoiam enfaticamente a ideia do Projeto de Lei Escola Sem Partido do Movimento Brasil Livre (MBL); sobre as exposições de arte no Santander Cultural (RS) e no Museu de Arte Moderna (SP) atiçaram a ira de muitos pastores e membros leigos que reproduziram exaustivamente a ideia de “pedofilia” e “blasfêmia”; a peça teatral escrita pela dramaturga Jo Clifford, Evangelho segundo Jesus, rainha do céu, foi rechaçada por evangélicos durante os ensaios para o Festival Internacional de Londrina (FILO) com a presença de fieis atrapalhando com gritos de ordem, como também após o evento. Os jornais locais, regionais e redes sociais divulgaram a nota de repúdio do Conselho de Pastores de Londrina e da Arquidiocese de Londrina6 contra o espetáculo, afirmando que “Usar a pessoa de Jesus de Nazaré, para propagar determinada opção sexual e a ideologia de gênero, é um desrespeito à verdade e ao direito de liberdade religiosa, universalmente reconhecido (sic). Pior, é um ultraje ao Filho de Deus e aos que O seguem e Nele creem” (ICAR) e que “A arte não precisa de justificativa, mas também não precisa afrontar valores sagrados” (Cons. Pastores). https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/11/07/manifestantes-protestam-contra- filosofa-americana-judith-butler-em-sao-paulo.htm. Acessado em 15 jan. 2018. 4 A exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira no Santander Cultural em Porto Alegre foi cancelada depois de uma grande manifestação nas redes sociais. Muitos pastores criaram campanhas para que as outras igrejas deixassem de utilizar os serviços bancários como protesto. Como pode ser visto em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/11/politica/1505164425_555164.html. Acessado em 15 jan. 2018. 5 A peça de teatro O evangelho segundo Jesus, rainha do céu, que aconteceria no SESC-Jundiaí teve a estreia cancelada por causa de uma ação judicial. Para maiores informações veja em: https://www.conjur.com.br/2017-set-16/juiz-proibe-peca-representa-jesus-mulher-transgenero. Acessado em 15 jan. 2018. 6 As notas de repúdio foram publicadas em: http://paranaportal.uol.com.br/cidades/jesus-rainha-do-ceu- causa-revolta-de-catlicos-e-evangelicos-e-sofre-com-tentativa-de-censura/, e em: https://www.bonde.com.br/entretenimento/teatro/igrejas-catolica-e-evangelica-manifestam-repudio-a- peca-do-filo-sobre-jesus-transgenero-420150.html. Acessado em: 10 jan. 2018. 23 Casos como estes demonstram que o “recrudescimento do espírito legalista” entre os evangélicos, como apontado por Cavalcante, tem tomado proporções cada vez mais amplas, o que fortalece discursos conservadores no campo do pleito eleitoral, que por sua vez, têm impactos tanto em manifestações públicas dos evangélicos quanto em políticas públicas, que não avançam frente à resistência desse grupo. Tal reavivamento conservador se reverbera na esfera pública, produzindo efeitos notórios no campo político. A antropóloga Regina Novaes indicou que pertencer a uma igreja evangélica “exacerba crenças e valores preexistentes no tecido social. Em outras palavras, trata-se de um considerável reforço condensador de percepções e valores conservadores espalhados no contraditório “senso comum” da sociedade. Tal reforço religioso, sem dúvida, pode realimentar (e sistematizar) preconceitos e sectarismos” (2017). Tais reforços podem determinar a escolha de um candidato, pois “sem dúvida ganham votos aqueles que – enfatizando a “defesa da família” – repudiam o aborto e negam os direitos das mulheres e da população LGBTQI+ etc.” (IDEM), embora tenha afirmado não acreditar que o pertencimento às igrejas evangélicas em si produza tal conservadorismo, entendido como intolerância e discriminação, dada a pluralidade na “maneira de ser evangélico”, e às mediações que atravessam os indivíduos. Fundamentando-se a partir da formulação de Paul Ricoeur, Jung Mo Sung (2017) reafirma a repartição dos direitos subjetivos entre direitos civis, direitos políticos e direitos sociais. O primeiro se refere aos direitos negativos que protegem as pessoas diante dos excessos do Estado; o segundo diz respeito às garantias de participação nos processos da vontade pública, portanto um direito positivo; e o terceiro também positivo, refere-se às garantias que cada um tem na distribuição de bens elementares. A respeito destes direitos na América Latina, Jung afirmou que a luta pelos direitos civis e sociais permanece forte na agenda dos direitos humanos. Com a democratização da América Latina, a luta pelo direito de participar na formação da vontade pública, isto é, a luta pelos direitos políticos passou para segundo plano, ou perdeu a sua urgência, e temos hoje dois tipos de lutas sociais em torno dos Direitos Humanos: a luta pelos direitos civis (que se encontra na luta identitária dos negros, indígenas, das mulheres na questão das relações de gênero, da comunidade 24 LGBTQI+, e a luta contra a violência policial); e a luta pelos direitos sociais, que aparece sob a bandeira da luta pela justiça social, contra a enorme desigualdade e exclusão sociais (SUNG, 2017, p. 238). Ocorre que, segundo Jung Mo Sung, a sociedade contemporânea vive numa Era em transição, diferentemente daquela que ficou marcada como “Era humanista”, vive-se atualmente a “Era de anti-humanismo”, isto devido à globalização de corte neoliberal. A conexão entre a religião e o neoliberalismo, segundo Sung, é de que o processo de dessecularização, ou “retorno do Sagrado”, tem ocorrido numa versão anti-humanista. Assim, o Deus que foi reprimido – numa interpretação psicanalítica – por causa das forças secularistas estaria retornando como uma espécie de neurose, como afirmação de Deus contra o ser humano (SUNG, 2017, p. 243). Ele afirma que podemos ver essa forma no Cristianismo, no Islamismo e no Budismo mais conservador e fundamentalista. [...] esse retorno do Sagrado que se opõe a todas as formas de direitos humanos; Diante de Deus e de sua Lei, não há qualquer direito humano. Um exemplo disso é a luta ferrenha desses setores religiosos contra o casamento de pessoas de mesmo sexo em nome do modelo “divino” de família (IDEM). Esta interpretação de que a retomada da força religiosa, ou processo de dessecularização, tem ocorrido sob formas fundamentalistas pode ser encontrada também em Peter Berger (2000) e em Jürgen Habermas (2007). Berger afirmou que nos EUA ocorreu o crescimento do número dos evangelicals7, ao passo que os tradicionais teriam perdido fieis (p.13). Habermas, por sua vez, afirmou que a partir de 1989/90 as comunidades de fé adquiriram importância política, mas essa crescente importância estava relacionada diretamente aos “tipos de fundamentalismo que surgiam, não somente no Oriente Médio, mas também nos países da África, no Sudeste da Ásia e no subcontinente da Índia” (p. 129) e apontou o mesmo fenômeno em outras partes do mundo, como nos Estados Unidos e Europa, berços da secularização (p. 129). Jung Mo Sung também não está sozinho na interpretação acerca dos efeitos da globalização e dominação neoliberal sobre as religiões. François Gauthier, Tuomas Martikainen e Linda Woodhead, introduzem a obra Religion in the Neoliberal Age: Political 7 Termo que dá conotação diferente dos “evangélicos” brasileiros. Aqui o termo evangélico diz respeito aos cristãos não católicos, portanto, uma generalização. Nos EUA o termo designa um determinado grupo entre os protestantes de cunho mais conservador e fundamentalista. Conceitos que serão melhor detalhados no capítulo 2. 25 Economy and Modes of Governance, afirmando que “vivemos em uma era neoliberal”. Tal Era é marcada pelo consumismo, pela crise do estado de bem-estar social, pelo colapso de muitos Estados-providência e da indústria manufatureira. Também pela expansão da indústria cultural e da informação e pela entrada de mulheres na força de trabalho. Além disso, pela proliferação dos meios de comunicação, cada vez mais desregulamentados do controle dos Estados, o que produziu grande influência no aspecto cultural. Tudo isso ocorrendo no mesmo tempo ao grande declínio das igrejas tradicionais (2013, p. 1). Considerar o contexto neoliberal é de suma importância para compreender também as atuais transformações no campo religioso. Isto porque o neoliberalismo ultrapassou o campo das doutrinas econômicas e políticas e tem se comportado como uma racionalidade de subjetivação, sendo esta dominação uma “nova racionalidade do mundo”, conforme defendem Pierre Dardot e Christian Laval (2016). [...] a exigência da universalização da norma da concorrência ultrapassa largamente as fronteiras do Estado, atingindo diretamente até mesmo os indivíduos em sua relação consigo mesmos. De fato, a “governamentalidade empresarial” que deve prevalecer no plano da ação do Estado tem um modo de prolongar-se no governo de si do “indivíduo-empresa” ou, mais exatamente, o Estado empreendedor deve, como os atores privados da “governança”, conduzir indiretamente os indivíduos a conduzir-se como empreendedores. Portanto, o modo de governamentalidade própria do neoliberalismo cobre o conjunto das técnicas de governo que ultrapassam a estrita ação de Estado e orquestram a forma como os sujeitos se conduzem por si mesmos. A empresa é promovida a modelo de subjetivação: cada indivíduo é uma empresa que deve se gerir e um capital que deve se fazer frutificar (DARDOT & LAVAL, 2016, p. 378). Segundo essa argumentação, a “razão neoliberal” como expressão de uma racionalidade mercantil atinge todas as esferas da existência humana, tornando-a uma “razão-mundo” (DARDOT & LAVAL, 2016, p. 379). Sendo essa racionalidade uma forma de subjetivação que atinge a todos como um dispositivo de poder. Desta forma, a esfera religiosa não poderia se furtar a tais influências e isso se manifesta no cotidiano, nas decisões, nos posicionamentos, como também, nas relações simbólicas que se mantém com os irmãos de fé, com a liderança e sua prática mundana, portanto, uma visão de mundo religiosa atravessada por valores e sentidos neoliberais. Tais valores são disseminados no contexto social por meio de opiniões, abordagens jornalísticas, especialistas do campo da administração e da economia que são contratados para dar opiniões e fazer análises nas mídias impressas e virtuais. Contudo, sua disseminação ocorre por meio de linguagem simples de fácil assimilação com 26 argumentação do cotidiano, fazendo com que pessoas não acadêmicas reproduzam tais ideários sem, necessariamente, ter consciência do debate teórico-político. A articulação e disseminação destes ideais são elaborados por Think thanks, isto é, instituições que elaboram análises teóricas a partir problemas da sociedade e propõem sugestões, recomendações e implementação de políticas públicas. São instituições vinculadas à grupos empresariais que investem nestas implementações. Estas propostas estão subsumidas ao ideário neoliberal de Estado Mínimo e gerencial, que desvincula suas obrigações de serviços públicos deixando a cargo das responsabilidades de empreendimentos privados e do indivíduo, ampliando ainda mais os valores individualistas. Assim, todo programa de distribuição de renda e proteção aos mais necessitados aparecem como risco ao avanço econômico e são extirpados. Mediante assimilação popular de tais ideários, os discursos políticos em período de campanha exploram profundamente tais posicionamento, produzindo uma aproximação ideológica artificial entre os cidadãos e os partidos políticos de tais vertentes. Isto explica os gritos reivindicando “Estado Mínimo” nas manifestações, mas quando questionado muitos não fazem ideia do que venha a ser de fato. Este processo de subjetivação neoliberal, como fenômeno sociocultural é encontrado nos discursos, nas pregações, nas postagens em facebook, de muitos líderes e membros leigos evangélicos, pois há uma adesão crescente a esta visão de mundo. E, desta forma, podemos compreender a articulação entre valores evangélicos e valores neoliberais. Assim, temos este quadro como contexto das transformações ocorridas nas últimas décadas e que, de certa forma, também atinge o campo simbólico dos religiosos e em suas práticas políticas. Diante de situações da realidade, a visão de mundo religiosa é utilizada como intérprete e como fonte de sentido e significado, ratificando e fortalecendo a resiliência diante dos problemas enfrentados socialmente, e também a resignação, pois estimulam a paciência e a aceitação do sofrimento como sendo algo espiritual (MORAIS, 2013). Assim, a religiosidade neopentecostal metainstitucional cumpre uma função muito importante, que é a adaptação e interpretação deste contexto. 27 Recorte teórico-metodológico8 Como recorte teórico metodológico fundamentamos nossa pesquisa a partir da teoria weberiana (2001; 2009; 2010) com sua intenção de compreender os sentidos das ações e pensamentos produzidos pelos religiosos em questões de âmbito público-privado. Para Weber, a ação é entendida “sempre um comportamento compreensível em relação a ‘objetos’, isto é, um comportamento especificado ou caracterizado por um sentido (subjetivo) ‘real’ ou ‘mental’, mesmo que ele quase não seja percebido” (WEBER, 2001, p. 315). Em outro momento ele relaciona a ação com o social e explica que Por “ação” deve entender-se um comportamento humano, tanto faz que se trate de um comportar-se externo ou interno ou de um permitir ou omitir, sempre quando o sujeito ou os sujeitos da ação ligam a ela um sentido subjetivo. A “ação social”, portanto, é uma ação na qual o sentido sugerido pelo sujeito ou sujeitos refere-se ao comportamento de outros e se orienta nela no que diz respeito ao seu desenvolvimento (WEBER, 2001, p. 400). A sociedade - ou também podemos dizer a realidade - é entendida, para Weber, como um aglomerado de ações e relações sociais, sentidos e valores que estão dispersos, pois a realidade é múltipla e inesgotável. Weber não parte do pressuposto de que haja uma harmonia ou unanimidade entre os indivíduos, uma vez que cada indivíduo tem seus valores, sua liberdade e sua história. Diferentemente do positivismo e do materialismo histórico, Weber propõe a criação de conceitos, que são criações abstratas para compreender e dar ordem ao real. Assim, a Sociologia é a ciência “que pretende entender, interpretando a ação social, para, dessa maneira, explicá-la causalmente em seu desenvolvimento e efeitos” (TEIXEIRA & FREDERICO, 2010, p. 21). Contudo, esta interpretação causal não é monista. Weber tem por pressuposto as multicausalidades dos fenômenos sociais, e desta forma a história é compreendida como um processo aberto a inúmeras possibilidades. Esta característica da sociologia weberiana fundamenta nossa crítica ao uso indiscriminado das tipologias sem considerar as mudanças da realidade social, sobre isso, Francisco Teixeira e Celso Frederico afirmam que Não sem razão, o que Weber mais repudia é a ideia de transformar a história em escrava do conceito, isto é: forçá-la a coincidir com a sua construção conceitual, que pode apenas fornecer o curso provável dos acontecimentos históricos. Logo, outros conceitos ideais poderiam ter sido construídos para investigar as origens 8 Este texto foi elaborado na Dissertação de Mestrado (MORAIS, 2013). Aqui corrigido e ampliado. 28 e desenvolvimento da moderna sociedade capitalista e, assim, descobrir outras relações causal-históricas (TEIXEIRA & FREDERICO, 2010, p. 27). Para a sociologia compreensiva, a história das ideias, dos valores morais e culturais é de fundamental importância para se conhecer uma determinada sociedade, uma vez que os indivíduos agem em função de algum sentido e objetivo. Desta forma, Weber se propôs a investigar a religião não como um sistema de crenças, mas como um “‘sistema de regulamentação da vida’, que soube reunir em torno de si massas particularmente importantes de fieis” (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2009, p. 82). Assim, ele procurou investigar como grupos influenciados por um determinado sistema de regulamentação da vida, interferiram no desenvolvimento de uma sociedade. E podemos acrescentar o retorno dialético, como as mudanças sociais podem influenciar determinados sistemas de regulação da vida. Cecília Loreto Mariz afirma que “a religião interessa a Weber na medida em que ela é capaz de formar atitudes e disposições para aceitar ou rejeitar determinados estilos de vida ou para criar novos” (2011, p. 74). Assim, uma contribuição importante de Weber para a sociologia da religião é a postura não excludente deste fenômeno social, muito pelo contrário, compreende que sua relação com o desenvolvimento das sociedades é tão importante quanto a econômica, a política e a arte. Danièle Hervieu-Léger e Jean-Paul Willaime (2009, p. 82) afirmam que Weber vai se interessar pelos comportamentos práticos dos indivíduos e pelo sentido que eles dão a sua conduta, e isso para melhor analisar o conjunto das consequências sociais que seu modo de se comportar acarreta (em sua relação com as diferentes esferas de atividade, particularmente econômica e a política). Wolfgang Schluchter (1999) questiona o itinerário elaborado por Randall Collins, que defendeu a tese de que Weber buscaria a origem do capitalismo a partir de uma constelação de instituições, portanto seria uma teoria institucional e não de orientações intencionais de pessoas ou grupo de pessoas. Para Schluchter, não se deve e nem se pode reduzir a investigação de Weber a fatores institucionais (p. 126). Para ele, Weber constrói uma “teoria de causas externas e internas, bem como da determinação cultural e institucional de motivos” (p. 123). E com isso ele vai justificar toda a argumentação weberiana sobre o senso de dever e obediência construída na Ética Protestante e o “Espírito” do capitalismo. A utilidade é uma dimensão importante na vida. Porém, não menos importante é a dimensão do dever. E quem enfoca a análise da ação de forma a reduzi-la 29 apenas à utilidade elimina uma esfera decisiva da existência humana. Naturalmente, a legitimidade só é conceptível para Weber sob a condição de que também sejam conectadas a ela determinadas representações do dever. Obediência por convencimento de estar cumprindo um dever, e não somente pelo proveito que dela pode retirar: também esse é um motivo de fidelidade, embora não o único. A ordem social só se mantém estável quando leva em conta, além dos motivos de proveito dos seus membros, também o desejo deles de obedecer. E tais membros só estarão dispostos a obedecer a algo ou a alguém que considerarem exemplar, que possua um caráter modelar a seguir (Ibid., 127). E sua conclusão é de que a antinomia “materialismo e idealismo” não cabe na teoria weberiana, pois ele está fora deste debate, isto porque nem um e nem o outro contribui positivamente para a análise histórica, muito embora ele entenda que ambos tenham suas relevâncias. Assim, “o que necessitamos é uma teoria da ação e, concomitantemente a isso, de uma teoria da ordem das estruturas normativas baseada na conexão, porém, e ao mesmo tempo, também na independência entre causalidades internas e externas, entre forma e espírito” (Ibid. p. 136). Assim, não apenas os conceitos weberianos são fundamentais para analisarmos as transformações no campo religioso, como principalmente seu aparato teórico- metodológico. Pois nos ajudam a compreender os fenômenos sociais e suas transformações, a partir do sentido que os indivíduos dão a suas ações. Ou seja, por meio da teoria da ação e das estruturas normativas podemos compreender as modificações na religiosidade de matriz protestante brasileira e suas implicações para o conjunto social, posto que a ética religiosa “[fomenta] motivações para práticas cotidianas que podem ter consequências sociais as mais diversas”, como afirmaram Cecília Mariz e Maria das Dores Machado (2005, p. 257). Estrutura textual A tese está distribuída em quatro capítulos, por meio dos quais buscamos compreender as transformações no campo evangélico brasileiro e os desdobramentos sociopolíticos. Para isso, tivemos que retomar as teorias das classificações deste campo e verificar sua capacidade de explicação no atual momento. Período histórico marcado pelo recrudescimento do conservadorismo e alinhamento com a política ideológico-partidária, fragilizando ainda mais a porosa laicidade do Estado brasileiro. 30 No primeiro capítulo, intitulado “religião, espaço público e a legitimidade na sociedade pós-secular”, discutimos a contribuição das reflexões de Habermas sobre a legitimidade da religião no espaço público e suas consequências normativas para o avanço da democracia. Desta forma, tal discussão é uma contribuição fundamental para as controvérsias que temos vivenciado nos últimos anos, pois Habermas nos auxilia a refletir sobre a possibilidade de avanço e as limitações no diálogo entre a laicidade e a religião. Assim, podemos avaliar as consequências da religiosidade neopentecostal metainstitucional na arena pública a partir de pressupostos normativos. No segundo capítulo, intitulado “neopentecostal metainstitucional: uma religiosidade sem fronteiras”, focamos especificamente no debate teórico da Sociologia da Religião no Brasil, concernente o mundo evangélico. Reconstruímos as tipologias consolidadas e apresentamos as suas fragilidades, devido as mudanças no campo religioso. Propomos, neste capítulo a nossa tese, ainda que como uma abordagem teórica. O terceiro capítulo, intitulado “‘Deus não está morto’, mas também não está em “a caminho da fé”: a reação dos evangélicos brasileiros”, partimos de dois filmes norte-americanos sobre a fé cristã sob duas religiosidades distintas. O objetivo deste capítulo foi apresentar algumas características dos evangélicos brasileiros e suas aproximações com os evangélicos norte-americanos. Por meio dos discursos de pastores, de jovens teólogos e membros leigos, que se posicionaram a respeito dos referidos filmes, pudemos construir um quadro genérico da religiosidade evangélica, a partir daquilo que tocou a todos. No quarto e último capítulo, intitulado “os efeitos sociopolíticos da religiosidade”, buscamos analisar as bases de sustentação da religiosidade evangélica brasileira, para compreender por quais recursos a religiosidade neopentecostal metainstitucional adere às outras religiosidades sem maiores dificuldades. Apresentamos também o resultado do questionário com as opiniões dos respondentes. Neste capítulo, analisamos como as igrejas evangélicas se posicionaram em dois momentos importantes da história brasileira: o período da Ditadura Civil Militar de 1964 e o atual recrudescimento do neoconservadorismo, iniciado a partir de 2010 e seguintes . CAPIULO I RELIGIÃO, ESPAÇO PÚBLICO E A LEGITIMIDADE NA SOCIEDADE PÓS-SECULAR9 O fenômeno religioso em sua multiplicidade volta a ser objeto de análise, investigação e preocupação por parte de vários pensadores no campo das Ciências Humanas, em geral, e da Sociologia, em específico. Isto porque as religiões e as religiosidades se manifestam em sua dialética com a sociedade, e a atual dinamicidade da sociedade brasileira vivencia contornos fortemente religiosos de vieses conservadores e fundamentalistas, mas não sem resistências interna e externamente. A sociedade brasileira é composta por um emaranhado de relações sociais entranhadas com as religiões desde a chegada dos portugueses com seu catolicismo ibérico colono-catequizador das culturas indígenas e, posteriormente, africanas. Na República, o pluralismo religioso foi ampliado a partir da liberdade religiosa e do processo de secularização, à moda brasileira, pois a influência da Igreja Católica se manteve presente no Estado Republicano. Lísias N. Negrão afirma que A proclamação republicana, contudo, não significou a perda da hegemonia católica e de sua influência na vida cultural e política brasileira. A Igreja Católica continuou a cooperar eventualmente com o Estado Republicano, como no combate às heresias messiânicas, e a impor seus princípios religiosos às constituições, como a proibição do divórcio e do aborto legal (NEGRÃO, 2008, p. 265). O Cristianismo se manteve estabelecido como religião hegemônica (em tradições católicas e protestantes) perseguindo, discriminando e/ou convertendo seguidores e líderes das religiões afro-brasileiras e mediúnicas. Segundo Ricardo Mariano (2011) a discriminação era efetivada por agentes e instituições estatais, agentes públicos e privados que proibiam cultos espíritas e afro-brasileiros. Nas décadas do século XX, na esteira das correntes higienistas, criminológicas e cientificistas em voga, juízes, médicos, legisladores, delegados, intelectuais e jornalistas, empenhados em estabelecer uma ordem e um espaço público 9 Este texto foi parcialmente apresentado e publicado nos anais do IX Congresso Português de Sociologia. Jul. 2016. Posteriormente revisado e ampliado para publicação na Revista Mediações do Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina em 2018. 32 modernos, tomaram a Igreja Católica como modelo de religião e de culto religioso e, simultaneamente, como antítese de práticas “mágico-religiosas” espíritas e afro-brasileiras. [...] a mediunidade e as prática curativas dos espíritas eram comumente rotuladas de patológicas e enquadradas como exercício ilegal da medicina nos embates públicos travados entre 1920 e 1940. [...] A polícia e o judiciário reprimiam severamente os ritos, cultos e práticas afro-brasileiros até os anos 1940, enquadrando como crime de feitiçaria, curandeirismo e charlatanismo (MARIANO, 2011, p. 246). No entanto, mesmo havendo constantes perseguições por parte dos cristãos, e também entre os próprios (MARIANO, 2011, 247), as religiões de matriz afro-brasileira, espíritas e religiosidades neoesotéricas não se submeteram e não se renderam à evangelização cristã, mantendo a pluralidade religiosa, ainda que em pequenas taxas10, mas tiveram sua ampliação e consolidação principalmente depois do processo de redemocratização no final dos anos 1980 (NEGRÃO, 2008; MARIANO, 2011). No século XXI, o pluralismo religioso tem se consolidado e, como afirmou Antônio Flávio Pierucci (2013, p. 49), “nunca antes as religiões foram tão livres para aqui aportar ou aparecer, aparecer no sentido de surgir repentinamente, começar a manifestar-se, ocorrer subitamente, exibir-se, mostrar-se publicamente, fazer-se notar, ser divulgado”. Pois a pluralidade religiosa existente até então era escamoteada não havendo pluralismo, isto é, liberdade de manifestações públicas e respeito à diversidade. Já na contemporaneidade as identidades religiosas se manifestam e se reafirmam com legitimidade, mesmo havendo casos públicos de intolerância. Na atualidade essa complexidade se revela sob um cenário societário em que líderes religiosos, de vários matizes, têm se manifestado no processo político institucional e aderido a partidos políticos, dentre os quais alguns11 defendem abertamente uma agenda cristã, e, por isso, têm sido chamados por alguns de “conservadores” e por outros de “fundamentalistas”. E os partidos têm agregado entre seus correligionários pastores, missionários, cantores gospel e demais leigos de igrejas evangélicas de todas as tradições, 10 Lísias N. Negrão afirma que “em 1940, os católicos ainda perfaziam um total de 95% dos declarantes (IBGE, 2000), contra um total de apenas 2,6% de protestantes e de 1,9% de declarantes de outras religiões”. E que em 1991 o número de católicos era de 83%, os diversos grupos de protestantes somavam 9% e os demais grupos religiosos 2,9%. O Censo do ano 2000 mostra uma maior queda no catolicismo e crescimento das outras religiões, sendo 73,6% de católicos, 15,4% de protestantes, e 3,4% de outras religiões, dentre as quais os cultos espíritas e afro-brasileiros (NEGRÃO, 2008, 267). O Censo 2010 apresenta a mesma tendência, sendo a perda de fieis católicos, totalizando 64,6%, crescimento dos evangélicos para 22,2%, somando Espíritas, religiões afro-brasileiras e outras religiões 5,2% (PRANDI, 2013, p. 206). 11 Citamos o Partido Social Cristão (PSC) e o Partido Republicano Brasileiro (PRB). Mas é sabido que religiosos que comungam com esta agenda política está em vários outros partidos, mas de viés centro- direita. 33 além de representantes católicos de partidos e matizes ideológicos diferentes que compõem a denominada “bancada evangélica”, que busca unidade e fortalecimento político frente às demandas e necessidades específicas. A “bancada evangélica” tem como objetivo público atender os interesses de uma parcela de evangélicos que milita em defesa da denominada família tradicional, da redução da maioridade penal, da isenção de impostos das instituições religiosas, da promoção de ensino criacionista no Ensino Médio e do combate ao que eles chamam de “ideologia de gênero”, entre outras demandas que atingem grande parte da população brasileira, tornando-se, assim, um grande desafio para as reflexões no campo da Sociologia sobre a relação entre religião e política na esfera pública. Este é um pequeno exemplo de que as discussões sobre o fim do fenômeno religioso tinham provisões equivocadas. Algumas delas se pautaram na lógica de que na medida em que a ciência, como conhecimento objetivo, avançasse, a religião, como conhecimento particularmente crível, subjetivo e relegado à esfera privada, chegaria a seu fim inexoravelmente. A religião, portanto, era submetida a um papel negativo e irrelevante frente aos desenvolvimentos da modernidade ocidental. Porém, o fenômeno religioso se apresenta dinâmico como a própria realidade social ao se reformular sob novos aspectos e tomando contornos cada vez mais plurais na contemporaneidade. Entre os intelectuais internacionais, citamos Peter Berger (2000) como um dos principais expoentes da Sociologia da religião, que defendia esta vertente, mas depois escreveu um artigo decretando o processo inverso, a “dessecularização” e a retomada de uma religiosidade fundamentalista em alguns contextos. E Jürgen Habermas, que também defendia o processo de secularização, mas a partir de 1990 revisou a teoria e passou a conceituar as sociedades contemporâneas de “sociedades pós-seculares”, porque as religiões não deixaram de legitimar a vida da maioria das pessoas e têm sido cada vez mais motivo de notícias jornalísticas (MONTEIRO, 2009). Assim, a realidade sócio-política brasileira nos coloca as seguintes questões: Se deputados e senadores que atuam politicamente dentro do Estado defendendo suas crenças e denominações religiosas se constituem em problema/obstáculo para o aperfeiçoamento da democracia no Brasil, e em que medida? A existência e atuação de uma bancada evangélica colocaria em risco a sobrevivência do Estado laico? A atuação da bancada evangélica poderia ser classificada de fato como fundamentalista? Como se pode 34 recorrer a pontos da obra habermasiana para fugir dos lugares comuns e tratar criticamente a relação religião-sociedade democrática e Estado de Direito? Habermas propõe um debate profícuo que dialoga a relação entre religiões, ciência e outras esferas da sociedade em um Estado de direito e que nos auxilia a refletir sobre esta realidade. Ou seja, encontramos em sua teoria social princípios normativos que garantem a perpetuação da própria democracia e suas instituições. Face à complexidade de tal cenário, no que se refere à relação entre religião e sociedade e seus novos desafios, nosso objetivo não é apresentar uma análise minuciosa sobre os avanços e limites da compreensão de Habermas acerca da religião, mas de forma mais singela, apontar alguns dos principais aspectos da sua produção intelectual sobre as implicações políticas da presença da religião na esfera pública. 1. RELIGIÃO E SOCIEDADE NO PENSAMENTO DE HABERMAS Jürgen Habermas é considerado um dos maiores filósofos vivos da contemporaneidade. A riqueza de suas produções intelectuais e de seu enfrentamento direto aos problemas da realidade política e social que afligem o mundo contemporâneo são marcas indeléveis. Habermas é considerado o precursor da “segunda geração” da Teoria Crítica, pois segundo Marcos Nobre (NOBRE, 2003, p. 10), ele “apresentou sua própria posição teórica em contraste e confronto com seus antecessores”, o mesmo podendo ser dito a respeito de Axel Honneth, considerado a terceira geração da Teoria Crítica. Assim, seria um equivoco denominá-los representantes diretos da Escola de Frankfurt. Habermas construiu uma teoria da racionalidade em duas faces, a instrumental e a comunicativa, em convívio paralelo. Sobre isso, Marcos Nobre detalha: Assim, ao contrário de Horkheimer e Adorno, que apresentam uma teoria do desenvolvimento da racionalidade humana que culmina em um prevalecimento da razão instrumental como forma única da racionalidade, Habermas pretende mostrar que a evolução histórico-social das formas de racionalidade leva a uma progressiva diferenciação da razão humana em dois tipos de racionalidade – a instrumental e a comunicativa (NOBRE, 2004, p. 55, grifo do autor). A racionalidade instrumental é fundamentada na calculabilidade e na busca dos 35 fins, semelhante à tipologia construída por Max Weber sobre o tipo de ação com relação a fins. Esse tipo de racionalidade é uma das grandes características da modernidade ocidental segundo as formulações weberianas, ela fundamenta os objetivos e o desenvolvimento do capitalismo, organiza o trabalho, a sociedade e o domínio da natureza em prol da reprodução material da sociedade. A racionalidade comunicativa, por sua vez, busca o entendimento e orienta para a reprodução simbólica da sociedade (NOBRE, 2004). Diferentemente da análise de Weber, Habermas entende que “a forma própria da modernidade é aquela em que a orientação da ação para o entendimento encontra-se presente no próprio processo de reprodução cultural que permite a continuidade de interações no mundo, nas próprias instituições em que o indivíduo é socializado” (NOBRE, 2009, p. 14). É na reconstrução da teoria da racionalidade que Habermas busca na sociologia da religião weberiana sua fundamentação para compreender o processo de criação e reprodução dos aspectos da racionalidade comunicacional, e se debruça sobre o fenômeno religioso não como foco principal, mas para entender o processo que a moral religiosa contribuiu para a racionalidade comunicacional. No decorrer de suas análises, avanços de suas teorias e mudanças sociais, Habermas passou por modificações em suas percepções sobre o fenômeno, e então pôde oferecer uma grande contribuição para a análise sociológica. O sociólogo francês Philippe Portier (2013) desenvolveu uma análise interessante sobre as fases do pensamento de Habermas sobre a religião. Segundo ele, o pensamento habermasiano sobre as questões religiosas passou por três fases principais. A primeira data até o início dos anos 1980, em que sua percepção sobre a religião era crítica, marcada pela teoria marxista herdeira da Escola de Frankfurt. Para o filósofo alemão, o “desaparecimento do religioso” era algo a ser esperado, devido ao paradigma da secularização, para que depois as sociedades buscassem a liberdade a partir dos recursos da racionalidade comunicacional construída a partir dos “princípios seculares da ética da responsabilidade” (p. 60). Esta percepção, segundo Portier, se apresenta em obras como “On social identity” (1974)[Sobre a identidade social] e Teoria do Agir Comunicativo (1981). A segunda fase é registrada entre 1985 e 2000, em que Habermas substitui o paradigma do “desaparecimento” para o da “privatização do religioso”. Suas críticas sobre 36 a religião são reduzidas, pois percebe que ela tem uma funcionalidade que a razão e a ciência não superariam, que é o aspecto da transcendência e da resignação frente às dores e ao sofrimento. Ainda assim, ele negava o aspecto político das religiões no espaço público, pois neste espaço bastaria a razão secular devido às particularidades das religiões. Esta segunda fase se apresenta na obra O Pensamento Pós-metafísico (1988). E a terceira e última fase do pensamento habermasiano sobre as questões religiosas se deu a partir do final dos anos 1990 e início dos anos 2000, momento que, segundo Portier, marcou uma evolução significativa em sua interpretação sobre o papel da religião no debate político no espaço público. As discussões de Habermas sobre o papel das religiões no espaço público se mostram muito mais profícuas, principalmente a partir das obras O Futuro da Natureza Humana (2002) e Entre Naturalismo e Religião (2007). Além destas obras apontadas por Portier, podemos acrescentar a entrevista cedida ao filósofo espanhol Eduardo Mendieta, em 1999, que se tornou um capítulo de Era das Transições (2003); também seu discurso na recepção do Prêmio da Paz, concedido pela Associação dos Livreiros da Alemanha, em 2001, que se tornou texto publicado sob o título Fé e Saber (2013). E em 2006 foi promovido um debate com o então Papa Bento XVI, que também se tornou livro sob o título Dialetics of Secularization: On Reason and Religion (2005) [A dialética da secularização: Sobre razão e religião]. Posteriormente escreveu um artigo para o European Journal of Philosophy intitulado Religion in the public Sphere (2006)12. As obras que compõem esta terceira fase, segundo Portier, adotam o paradigma da “publicização” e enfatiza que a religião deve participar e intervir na esfera pública social “infundindo-lhe as ‘intuições morais’ de que são portadores os seus textos fundadores e a tradição que suscitaram” (PORTIER, 2013, p. 61). Esta última fase do pensamento de Habermas aponta para uma sociedade “pós-secularizada” em que mantém um ajustamento e a sobrevivência das religiões e a secularização (HABERMAS, 2013, p. 6). Para construir sua Teoria do Agir Comunicativo, Habermas apresenta uma teoria da religião inspirada em Weber na busca de compreender como a esfera religiosa participa no processo de racionalização e na constituição da modernidade ocidental, 12 Não trabalharemos com a análise destas obras especificamente, seguem apenas como exemplificação da produção habermasiana acerca da religião. 37 marcada pelas formas de racionalidade instrumental e comunicativa. Ocorre que o tema da religião em Habermas não é sistematizado como uma Sociologia da Religião, pois não é um objeto de análise em si, antes é instrumento analítico para se chegar a uma questão mais crucial, a saber, “encontrar na própria modernidade os critérios normativos de orientação [moral]” (ARAUJO, 2010, p. 53). Habermas fundamenta sua teoria normativa a partir de uma ética racional que, em última instância, é fruto dos simbolismos religiosos. Luiz B. L. Araujo explica que, segundo Habermas, as funções ligadas à reprodução simbólica do mundo migram do domínio da sacralidade para o do profano: O simbolismo religioso é interpretado por Habermas como uma raiz ‘pré- linguística’ do agir comunicativo. Os símbolos sagrados arcaicos exprimem um consenso normativo tradicional, estabelecido e renovado continuamente pela prática ritual. De acordo com Habermas, as funções ligadas à reprodução simbólica do mundo vivido – reprodução cultural, integração social e socialização dos indivíduos –, que estão associadas aos seus três componentes estruturais – cultura, sociedade e personalidade –, abandonam, lenta, mas progressivamente, o domínio sacral e passam, no mundo moderno, às estruturas profanas da comunicação pela linguagem (ARAUJO, 2010, p. 52). Habermas analisou o desenvolvimento evolutivo13 da sociedade moderna, sob os caminhos já feitos por Max Weber, isto é, compreender as racionalidades da modernidade que levaram à secularização e ao desenvolvimento próprio da modernidade, e, ao mesmo tempo, como as religiões mundiais, principalmente o Cristianismo, foram fundamentais nesse processo (ARAUJO, 2010). Habermas avançou em relação à análise acerca da racionalidade para além de Weber. Isto é, a racionalidade weberiana ficou muito restrita ao plano prático, instrumental, e ao “sujeito solitário”. Para corrigir essa restrição, Habermas ampliou a teoria da racionalidade a partir de uma “compreensão dialógica” e “de um modelo de interação social” (ARAUJO, 2010, p. 31). Segundo Habermas, a modernidade não é mero resultado de uma secularização do cristianismo, por mais importante que tenha sido esta tradição religiosa no âmbito da racionalidade da conduta de vida. Na verdade, nem a metafísica grega nem a religião cristã – visões de mundo encontradas na mesma tradição europeia e que incorporam o mais elevado potencial de racionalização – consideradas isoladamente, possuem elementos necessários para uma racionalização em todas as dimensões possíveis. Foi o encontro, ou ainda, em termos habermasianos, a “relação de tensão produtiva” destas imagens de mundo, no contexto medieval, que permitiu a eclosão das ciências modernas e da ética protestante da vocação, fatores igualmente importantes para a modernização da sociedade ocidental. Habermas relaciona, portanto, as religiões de redenção com a dimensão ética da racionalização e as imagens cosmológico-metafísicas de 13 O termo evolutivo em Habermas nada tem a ver com a ciência evolucionista. Araujo afirma que a teoria de Habermas é “evolucionária” para evitar o termo “evolucionista” para que não haja equívoco (1996, p. 40). 38 mundo com a dimensão cognitiva (ARAUJO, 2010, p. 41, grifo do autor). Assim, a Teoria do Agir Comunicativo permite compreender três conjuntos de teorias sociológicas: modernidade, racionalidade e sociedade, que juntas formam o núcleo sociológico do pensamento habermasiano. Habermas reconstrói as teorias clássicas acerca da modernidade para encontrar as formas de racionalidade e o desenvolvimento das imagens de mundo que levaram à secularização, isto é, a separação das esferas culturais e suas legitimidades distanciadas do domínio sacralizado. Nesse sentido, dirá Araujo (2010), tanto Habermas quanto Weber apontam para o aspecto paradoxal da relação que a esfera religiosa desempenhou na constituição da modernidade ocidental. Isto é, o processo de desenvolvimento das visões religiosas de mundo provocou a racionalização, por meio da desmagificação/desencantamento e, com isso, a perda da validade e da função substantiva na sociedade moderna. Compreender que a modernidade é o resultado de um processo de racionalização foi o objetivo de Habermas, e também o de Weber. Isto é, as “imagens de mundo” pautadas pelas tradições religiosas – que mantinham elementos cognitivos, morais e expressivos da cultura – foram substituídas por visões racionalizadas, tornando-se imagens de mundo secularizadas, e que produziram uma separação ou diferenciação das esferas axiológicas de legitimidade, possuindo cada uma delas uma lógica interna própria (ARAUJO, 2010, p. 24). Para Habermas, “‘imagens de mundo’ são sistemas culturais de interpretação que refletem o saber de fundo dos grupos sociais e que asseguram um vínculo coerente na multiplicidade de suas orientações de ação” (IDEM, p. 19). Assim, percebemos que a análise de Portier sobre a primeira fase do pensamento habermasiano sobre a religião é confirmada. Isto é, a esfera religiosa desempenha papel fundamental no processo de racionalização, mas ao mesmo tempo produz sua exclusão como sistema axiológico fundante de visões de mundo na modernidade, caracterizando- se uma sociedade secularizada. O resultado desta construção analítica14, em última instância, seria o fim da religião devido ao processo crescente de secularização e, assim, ela se tornaria obsoleta, tese defendida também por outros intelectuais da Sociologia e da Filosofia. A religião foi analisada e compreendida a partir de suas “funções sociais”, 14 Construção analítica que parte da teoria weberiana, mas que não representa sua conclusão. Pois na teoria weberiana sobre o processo de secularização e modernização não se encontra esta teleologia acerca do fim da religião. 39 perdendo sua funcionalidade, perderia também sua relevância, acarretando sua derrota e abolição. O equívoco da teoria da secularização, neste viés, é desconsiderar seu aspecto existencial e transcendente, o que garantirá a existência da religião enquanto houver seres humanos, como afirmou Zygmunt Bauman (1998). Como já mencionado, a segunda fase do pensamento de Habermas acerca da religião estava sob o paradigma da “privatização”, uma vez que ela era entendida como incapaz de produzir normatividade universal, logo, estaria muito bem alocada no âmbito do foro íntimo, oferecendo consolo aos indivíduos, deixando as questões da política para as competências da razão secular. Portier afirma que para Habermas, em sua obra O pensamento pós-metafísico, “a religião é uma necessidade da existência” e “indispensável para a vida comum” (PORTIER, 2013, p. 60). Assim, a religião estava sendo valorizada mediante seu caráter funcional, pois cumpria uma função social importante que a racionalidade não daria conta: o consolo frente ao sofrimento humano, levando, portanto, a uma mudança na compreensão teórica acerca da religião. Contudo, a esfera pública ainda estaria sob o domínio da racionalidade sem interferência religiosa. Peter Berger, em seu artigo “What Happens when a Leftist Philosopher Discovers God?”, afirma, em tom jocoso, que nesta segunda fase Habermas se graduou do marxismo para o ideal francês de laicite, isto porque “a vida pública da república se manteve antissepticamente limpa da contaminação religiosa” (BERGER, 2011, tradução livre). E acrescenta que a ideia de utilidade religiosa é limitada porque ela depende daqueles que creem: Qualquer sociólogo concordará que religião, verdadeira ou não, é útil para a solidariedade e consenso moral da sociedade. O problema é que esta utilidade depende pelo menos de que algumas pessoas realmente acreditem que haja uma realidade sobrenatural afirmada pela religião. A utilidade cessa quando ninguém acredita mais nisso (BERGER, 2011, tradução livre). Embora a ideia de Berger sobre a compreensão de laicidade nesta fase de Habermas possa fazer algum sentido, suas críticas são contundentes e parecem mais um acerto de contas pessoal do que uma análise crítica de uma produção teórica. Isto porque ele se baseia no mesmo artigo de Philippe Portier para dizer que houve alguma mudança e certo avanço no pensamento de Habermas, mas conclui resumindo que o conjunto de sua obra “agora tem uma visão positiva da religião (pelo menos em sua visão judaico- cristã) por razões utilitárias: religião, se verdadeira ou não, é socialmente útil”. Ocorre 40 que esta compreensão é referida a este segundo período de produção e não a totalidade da obra de Habermas, pois como veremos na terceira fase, a ideia utilitarista e de função social da religião é substituída pela compreensão de legitimidade e função política sob o paradigma da publicização. Já em sua obra magna, Teoria do Agir Comunicativo, Habermas buscou construir uma teoria da sociedade, mas após este trabalho sua dedicação recai sobre temas filosóficos acerca da crítica da razão e a construção de uma teoria da modernidade. Suas reflexões sobre os temas filosóficos acerca da modernidade estão nas obras Discurso Filosófico da Modernidade (1985) e Pensamento pós-metafísico (1988) nas quais aparece o debate sobre modernidade versus pós-modernidade. E segundo Luiz B. L. Araujo, “a ideia central que guia Habermas em sua leitura da modernidade, tentando fixar com clareza sua posição, é a de que um diagnóstico crítico de nossa época deve colocar em evidência não um excesso, mas uma