1 ANA FLÁVIA DIAS TANAKA SHIMOGUIRI CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE DE FREUD E LACAN E DO MATERIALISMO HISTÓRICO PARA A TERAPIA OCUPACIONAL: uma clínica do desejo e do carecimento na Saúde Coletiva ASSIS 2016 2 ANA FLÁVIA DIAS TANAKA SHIMOGUIRI CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE DE FREUD E LACAN E DO MATERIALISMO HISTÓRICO PARA A TERAPIA OCUPACIONAL: uma clínica do desejo e do carecimento na Saúde Coletiva Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade) Orientador: Prof. Dr. Abílio da Costa-Rosa ASSIS 2016 3 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp S556c Shimoguiri, Ana Flávia Dias Tanaka Contribuições da psicanálise de Freud e Lacan e do materia- lismo histórico para a terapia ocupacional: uma clínica do de- sejo e do carecimento na saúde coletiva / Ana Flávia Dias Ta- naka Shimoguiri. - Assis, 2016. 134 f. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientador: Dr Abílio da Costa-Rosa 1. Terapia ocupacional. 2. Materialismo histórico. 3. Psica- nálise. 4. Saúde pública. 5. Saúde mental. I. Título. CDD 616.8917 4 Aos meus sobrinhos, Isaac Takao e Pedro Takao, que fazem meus dias serem doces, barulhentos e coloridos… Com eles me sinto chegando em casa e trocando o salto pelo chinelo; rio grande que nem menino arteiro! 5 Para que não se pense que apenas erguemos os andaimes de uma utopia imaginária, convém alertar a todos nós, os trabalhadores (intercessores em diferentes situações da Demanda Social), de que devemos estar convictos de que o sentido sublinhado neste ensaio para o termo práxis deve ser aplicado à nossa própria ação cotidiana. Ou seja, devemos descobrir e criar, fazendo, o saber capaz de suportar esse desejo cotidiano de instituir que só pode estar incluído entre as “paixões alegres”. Imaginação, espírito inventivo, e desejo cotidiano de instituir são ingredientes que não podem faltar quando pretendemos a consolidação e o avanço da Estratégia Atenção Psicossocial (COSTA-ROSA, 2013, p.117). 6 SHIMOGUIRI, A.F.D.T. Contribuições da Psicanálise de Freud e Lacan e do Materialismo Histórico para a Terapia Ocupacional: uma clínica do desejo e do carecimento na Saúde Coletiva. 2016. 134f. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2016. Resumo: Nosso objetivo principal foi pensar as práticas em Terapia Ocupacional à luz da análise paradigmática postulada por Costa-Rosa, que define o Paradigma Psicossocial como um passo além da Reforma Psiquiátrica brasileira. A partir da práxis clínica e institucional, tentamos fundamentar uma modalidade de terapia ocupacional na qual a psicanálise do campo de Freud e Lacan e o Materialismo Histórico são os referenciais teóricos técnicos e éticos políticos. Especificamos o enfoque desta reflexão no campo da Saúde Coletiva, na Atenção Psicossocial. Partimos do Dispositivo Intercessor, como um novo Modo de Produção de subjetividade e conhecimento. De natureza transdisciplinar, o Dispositivo Intercessor parte, principalmente, da psicanálise e do Materialismo Histórico – bem como de inspirações da Análise Institucional francesa e da Filosofia da Diferença – para definir dois momentos de produção radicalmente diferentes: o momento da práxis clínica junto aos “sujeitos do tratamento” e da práxis institucional junto ao “coletivo de trabalho”; e o momento da reflexão teórica, produzida a posteriori, sobre o processo de produção realizado no primeiro momento. Nossas reflexões pretendem demonstrar que (re)inventar a clínica na Terapia Ocupacional no contexto do Paradigma Psicossocial é tão possível quanto eticamente necessário. Na terapia ocupacional psicossocial, a saúde e a subjetividade são tomadas em sua continuidade moebiana e as dimensões subjetiva e social são indissociáveis. O sujeito, conforme concebido pela psicanálise, está entre homens e entre significantes, o referente de ação será o sujeito do inconsciente e o principal ‘meio’ de trabalho será a palavra e o fazer humano, considerado pelo Materialismo Histórico como a atividade vital do processo de humanização, em que ao fazer o homem faz a si mesmo. Com revoluções discursivas, avessas ao Discurso do Mestre e da Universidade, nos posicionamos no Discurso da Histérica e no Discurso do Analista, na ética do desejo. Assim é possível recuperar o aspecto simbólico-criativo-desejante das atividades, pensadas como dispositivos clínicos capazes de proporcionar equacionamentos de certos impasses nos processamentos específicos da subjetivação. Nesse modo de relação do sujeito com seu fazer, com o significante, e com os outros, há possibilidades transferenciais mais simbólicas e menos imaginárias, menos alienantes. E, sobretudo, a produção de subjetividades singularizadas, por definição, subversivas ao instituído social dominante. Somente assim será possível caminhar na direção de suplantar as velhas terapêuticas ocupacionais alienantes pertencentes ao Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador, não por acaso sintônico com o Modo Capitalista de Produção. Palavras-chave: Terapia Ocupacional na Saúde Coletiva; Atenção Psicossocial; Materialismo Histórico; Psicanálise do Campo de Freud e Lacan 7 SHIMOGUIRI, A.F.D.T. Contributions of the Freud and Lacan's Psychoanalysis and of the Historical Materialism to Occupational Therapy: a clinical of desire and privations in Collective Health. 2016. 134f. Dissertation (Master’s Degree in Psychology) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2016. Abstract: Our main objective was to reflect about Occupational Therapy´s practices in the light of the paradigmatic analysis postulated by Costa-Rosa, who defines the Psychosocial Paradigm as a step beyond the Brazilian Psychiatric Reform. From a clinical and institutional praxis, we have attempted to found a modality of occupational therapy in which Freud and Lacan’s psychoanalysis and the historical materialism are the technical theoretical and ethical political references. We specify the focus of this reflection in the field of Collective Health, in the Psychosocial Care. We start from the Intercessor Device as a new Mode of Production of subjectivity and knowledge. Of transdisciplinary nature, the Intercessor Device originates mainly from psychoanalysis and Historical Materialism – as well as from inspirations of the french Institutional Analysis and Philosophy of Difference – to define two radically different moments of production: that of clinical praxis together with the “subjects of treatment” and of institutional praxis with the “collective of work”; and the moment of theoretical reflection, produced a posteriori, on the production process carried out along the first moment. Our reflections intend to demonstrate that (re)inventing the clinic in Occupational Therapy in the context of Psychosocial Paradigm is both possible and ethically necessary. In the psychosocial Occupational Therapy the health and the subjectivity are taken in their mobius continuity, so the subjective and social dimensions are inseparable. The subject, as conceived by psychoanalysis, is among men and between signifiers, the referent of action will be the unconscious's subject and the main means of work will be the word and the human´s doing, considered by historical materialism as the vital activity of the humanization process in which the man do to make himself. With averse discursive revolutions to Discourse of the Master and Discourse of the University, we choose the Discourse of the Hysteric and the Discourse of Analyst, in the desire's ethics. So it’s possible recovering the symbolic-creative-desiring aspect of activities, intended as clinical devices capable of equating impasses in specifics processes of subjectivity. In this mode of relationship of the man with his doing, with the signifier and with others men, there’re possibilities’s transference more symbolic and less imaginary, less alienating. Above all, the production of singularized subjectivities, by definition, subversive to the dominant social set. Only then will it be possible to move toward supplanting the old alienating occupational therapies pertaining to the Psychiatric Hospitalocentric Medicalizing Paradigm, not by chance in syntony with the Capitalist Mode of Production. Keywords: Occupational Therapy in Collective Health; Psychosocial Care; Historical Materialism; Psychoanalysis of Freud and Lacan’s field. 8 LISTA DE SIGLAS AIE – Aparelhos Ideológicos de Estado AP – Atenção Psicossocial AVDs – Atividades de Vida Diária CAPS – Centro de Atenção Psicossocial CAPS ad – Centro de Atenção Psicossocial álcool e drogas CAPS i – Centro de Atenção Psicossocial infantil CID – Classificação Internacional de Doenças CIF – Classificação Internacional de Funcionalidade, incapacidade e saúde COFFITO – Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional CRAS – Centro de Referência de Assistência Social CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social DA – Discurso do Analista DH – Discurso da Histérica DI – Dispositivo Intercessor DIMPC – Dispositivo Intercessor como Modo de Produção de Conhecimento DIMPS – Dispositivo Intercessor como Modo de Produção de Subjetividade DRS – Divisão Regional de Saúde DU – Discurso da Universidade ESF – Estratégia de Saúde da Família INSS – Instituto Nacional do Seguro Social MCO – Modelo de Comportamento Ocupacional MCP – Modo Capitalista de Produção 9 MCPO – Modelo Canadense de Performance Ocupacional MOH – Modelo de Ocupação Humana NAPS – Núcleo de Atenção Psicossocial PEH – Processo de Estratégia de Hegemonia PPHM – Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador PPS – Paradigma Psicossocial PTS – Plano Terapêutico Singular RAPS – Rede de Atenção Psicossocial RP – Reforma Psiquiátrica RPb – Reforma Psiquiátrica brasileira SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência SENAD – Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas SMC – Saúde Mental Coletiva SUS – Sistema Único de Saúde TDAH – Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade TO – Terapia Ocupacional UBS – Unidade Básica de Saúde UPA – Unidade de Pronto Atendimento 10 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO..................................................................................................................12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................15 ENSAIO 1 UMA ANÁLISE DIALÉTICA DA TERAPIA OCUPACIONAL: CONSI DERAÇÕES SOBRE O MODO CAPITALISTA DE PRODUÇÃO E SEUS EFEITOS NOS PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO....................................................................................20 1. INTRODUÇÃO....................................................................................................................21 1.1. A “natureza ocupacional” pensada à luz do Materialismo Histórico.....................25 2. O FAZER HUMANO “A SERVIÇO DOS BENS”: ALIENAÇÃO E ESTRANHAMENTO NO MODO CAPITALISTA DE PRODUÇÃO........................................................................29 2.1. A institucionalização da divisão do trabalho..........................................................34 3. DA VIDA PRODUTIVA À TERAPIA OCUPACIONAL: A CAPTURA DO FAZER PELA PSIQUIATRIA...............................................................................................................36 4. O MODO CAPITALISTA DE PRODUÇÃO E O PROCESSO ESTRATÉGICO DE HEEGEMONIA: UMA OUTRA COMPREENSÃO DA TERAPIA OCUPACIONAL ENQUANTO DISPOSITIVO DE PRODUÇÃO SOCIAL DE SAÚDE.................................40 5. CONCLUSÕES PRELIMINARES......................................................................................47 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................48 ENSAIO 2 OS CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL E A TERAPIA OCUPACIONAL COMO DISPOSITIVOS SOCIAIS DE PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADESSAÚDE ..................................................................................................52 1. INTRODUÇÃO....................................................................................................................53 2. O TERRITÓRIO E O CAMPO DE INTERCESSÃO..........................................................59 2.1 O Centro de Atenção Psicossocial álcool e drogas.................................................65 2.2 O Centro de Atenção Psicossocial infantil..............................................................72 11 3. ALGUNS ATRAVESSAMENTOS: AS INTERNAÇÕES E A MEDICALIZAÇÃO DA VIDA E DO SOFRIMENTO....................................................................................................75 3.1 Os discursos de dominação e as tecnologias disciplinares......................................80 4. ALGUMAS CONCLUSÕES................................................................................................84 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................85 ENSAIO 3 A TERAPIA OCUPACIONAL NA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: DISC USSÕES PRELIMINARES PARA CONCEITUAÇÃO DE UMA CLÍNICA DO DE SEJO E DO CARECIMENTO ....................................................................................................................90 1. INTRODUÇÃO....................................................................................................................91 2. BREVE HISTÓRIA DA TERAPIA OCUPACIONAL NA SAÚDE MENTAL.................95 3. UMA ANÁLISE CRÍTICA DAS PRÁTICAS DA TERAPIA OCUPACIONAL E DAS ATIVIDADES ENQUANTO RECURSO TERAPÊUTICO A PARTIR DA REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA............................................................................................106 3.1. Concepção do ‘objeto’ e dos ‘meios’ de seu manuseio como fatores do modo de produção......................................................................................................................109 3.2. Modos de organização das relações intrainstitucionais e interinstitucionais.......112 3.3. Modos de relação da instituição com a clientela, a população e o território, e a recíproca......................................................................................................................114 3.4. Modos dos efeitos produtivos típicos da instituição em termos de terapêutica e de ética.............................................................................................................................115 4. CONTRIBUIÇÕES DO MATERIALISMO HISTÓRICO E DA PSICANÁLISE DE FREUD E LACAN PARA UMA CLÍNICA DO CARECIMENTO E DO DESEJO..................................................................................................................................116 4.1. Esboços de um fazer em transferência na Terapia Ocupacional.........................118 5. PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES A CERCA DE UMA TERAPIA OCUPACIONAL PSICOSSOCIAL.....................................................................................................................121 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................122 CONSIDERAÇÕES GERAIS.............................................................................................130 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................133 12 APRESENTAÇÃO A Reforma Psiquiátrica brasileira – RPb (AMARANTE, 1995; 2003), ao colocar em questão a hegemonia do saber médico-psiquiátrico sobre o sofrimento psíquico, abriu caminho para outras formas de Atenção na Saúde Mental Coletiva (SMC), propondo instituições de base comunitária com equipes multiprofissionais (AMARANTE, 1995; 2003; ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001; RINALDI, BURSZTYN, 2008). Nesse contexto, dentre as várias disciplinas que se articularam para compor tais equipes está a terapia ocupacional (TO). A preocupação em ampliar subsídios para a clínica da TO parece ser uma constante desde a graduação; fato que se evidencia ao observarmos a quantidade de trabalhos com essa temática (CASTRO; SILVA, 1990; FERRARI, 1991; BENETTON, 1991; 1996; 2006; BOCK et. al., 1998; MÂNGIA, 2000; 2002; BARROS; GHIRARDI; LOPES, 2002; BRUNELLO, 2002; LANCMAN; GHIRARDI, 2002; BALLARIN, 2003; MEDEIROS, 2003; OLIVER; BARROS; LOPES 2005; RIBEIRO; OLIVEIRA, 2005; MÂNGIA; MURAMOTO, 2006; 2007; COSTA; FERIOTTI, 2007; RIBEIRO; MACHADO, 2008; JUNS; HÁ, 2008; BARROS, 2010; JUNS; LANCMAN, 2011; MÂNGIA; NICÁCIO, 2001; ALMEIDA; TREVISAN, 2011; COSTA; ALMEIDA; ASSIS, 2015). Todavia, mesmo depois de mais de três décadas da RPb, as descrições do que se pretende alcançar em termos terapêuticos e éticos na SMC são tão vagas quanto diversas, as concepções efetivadas do referente das ações de Atenção e dos meios de trabalho do terapeuta ocupacional chegam até mesmo a confundirem-se com os da Reabilitação Cognitiva ou dos Treinamentos de Habilidades, comuns aos processos educacionais. Nesse sentido, parece-nos que falta clareza paradigmática que sustente as ações da TO no âmbito da Atenção Psicossocial. Ao propor uma clínica na qual a psicanálise de Freud e Lacan e o Materialismo Histórico de Marx são referências teóricas, técnicas e ético-políticas importantes e imprescindíveis, Costa-Rosa (2013) inaugurou parâmetros mínimos para a teorização de um paradigma de Atenção em SMC já à frente da Reforma Psiquiátrica brasileira: o Paradigma Psicossocial (PPS). No PPS, partindo dos ideais do Materialismo Histórico (MARX, 2004), o principal ‘meio’ de trabalho da TO será o fazer humano na ética do carecimento/desejo, considerado 13 como dispositivo de subjetivação, a atividade vital e não alienada em que ao fazer o homem faz a si mesmo: na medida em que se subjetiva, vai agindo e se relacionando com o mundo. Assim, a TO psicossocial se propõe a pensar um sujeito inseparável do seu fazer, recuperando a dimensão simbólica-criativa-desejante das atividades. A modalidade produtiva que nos interessa escapa à lógica do Capital quanto à mercadoria e seu valor de troca. Em vez disso, temos a produção para uso e usufruto coletivo. Há possibilidades transferenciais mais simbólicas e menos imaginárias, por isso temos no horizonte a singularização e a recuperação da genericidade humana, caracterizada por Marx (2004) como um Modo de Produção particular ao homem, que não se restringe às carências físicas imediatas, à demanda direta. O PPS em relação ao seu antípoda, o Paradigma Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador (PPHM), significa ainda uma subversão nos modos de conceber e produzir saúde e singularidade, também conhecimento. Saúde e subjetividade são concebidas como necessariamente homólogas, tanto que ambas podem ser condensadas no significante “subjetividadessaúde” (COSTA-ROSA, 2013). Pela superação dos princípios cartesianos “sujeito-objeto” e “doença-cura”, consequentemente, avança-se para a superação das relações de “dominação-subordinação”, de “saber-poder”, portanto, temos abertura para a produção social de relações intersubjetivas avessas à alienação e à adaptação, típicas do PPHM. A concepção de sujeito, na TO psicossocial, igualmente, não pode ceder à objetalização do raciocínio positivista, não pode estar limitada às subjetividades da consciência. Baseando-nos na psicanálise do campo de Freud e Lacan, o sujeito é compreendido tanto na sua na sua dimensão de sujeito entre os homens, na relação com o corpo social, quanto na sua dimensão de sujeito do inconsciente, entre significantes (LACAN, 2008; NASIO, 1992). A TO tomada enquanto um dispositivo social de produção de subjetividadessaúde, que opera com as formações subjetivas e com a Formação Social, em continuidade moebiana, pode produzir subjetividadessaúdes alienadas ou subjetividadessaúdes singularizadas, dependendo do Modo de Produção em questão. A saber, o Modo Capitalista de Produção, base do PPHM, produz alienação e os Modos de Produção Cooperados, bases do Paradigma Psicossocial, produzem singularização. Quanto ao plano epistemológico, adotamos o Dispositivo Intercessor (COSTA-ROSA, 2008; 2013; 2015; STRINGUETA; COSTA-ROSA, 2007; FODRA et al., 2007; FODRA; 14 COSTA-ROSA, 2009; ANDRADE; COSTA-ROSA, 2011; ANDRADE, 2013; PEREIRA, 2011; GALIEGO, 2013; PÉRICO, 2014; SHIMOGUIRI; PÉRICO, 2014) como um novo Modo de Produção de conhecimento. De natureza transdisciplinar, o Dispositivo Intercessor (DI) conjuga saberes da psicanálise do campo de Freud e Lacan e do Materialismo Histórico, bem como da Análise Institucional francesa (LOURAU, 1975) e da Filosofia da Diferença (DELEUZE, 1992). Tendo em vista a superação da divisão entre os que sabem e os que fazem, temos o trabalhador-intercessor que é também pesquisador. O trabalho de intercessão e pesquisa coincide tendo, sobretudo, a finalidade de transformar a realidade em questão. Este trabalho é composto por três ensaios. O primeiro ensaio, Uma análise dialética da Terapia Ocupacional: considerações sobre o Modo Capitalista de Produção e seus efeitos nos processos de subjetivação propõe uma análise da TO sob o prisma do Materialismo Histórico de Marx (2004). Considerando as atividades e o fazer humano enquanto dispositivos de subjetivação e recursos clínicos da TO, refletimos sobre elas na sua estreita relação com o fazer humano e sobre os atravessamentos que as práticas de TO sofreram ao longo do tempo, sobremodo pelas injunções do Modo Capitalista de Produção (COSTA-ROSA, 2013), produtor da alienação e do estranhamento. Esse movimento de reflexão implicou em dialetizar um termo já cristalizado na profissão, “natureza ocupacional”, agora revisto e ampliado pelos pressupostos marxianos quanto à vida produtiva, atividade vital e carecimento. No segundo ensaio, intitulado Os Centros de Atenção Psicossocial e a terapia ocupacional como dispositivos sociais de produção de subjetividadessaúde discutimos alguns aspectos dos modos de produção social da saúde e da práxis da TO na AP partindo do DI. Os CAPS, bem como a TO, são considerados dispositivos sociais de produção de subjetividadessaúde capazes de ofertar diferentes possibilidades transferenciais para os impasses de subjetivação apresentados pelos sujeitos que a eles recorrem, sendo ainda capazes, ou não, de interferir na Demanda Social (LOURAU, 1975; LAPASSADE, 1983; ALTOÉ, 2004), dependendo da maneira como esses impasses são trabalhados a partir dos laços sociais discursivos e da Ética adotados. Por fim, no terceiro ensaio, A terapia ocupacional na Atenção Psicossocial: discussões preliminares para conceituação de uma clínica do desejo e do carecimento, nosso objetivo, partindo da contextualização dos modelos de TO oriundo da RPb e da sua análise segundo os quatro parâmetros propostos por Costa-Rosa (2013), quais sejam,1) 15 Concepção do “objeto” da AP e dos “meios” teóricos e técnicos de seu mauseio; 2) Concepção da gestão dos Estabelecimentos da SMC; 3) Concepção das relações entre instituição e Território e a recíproca; 4) Concepção dos efeitos das práticas institucionais em termos terapêuticos e éticos, foi iniciarmos algumas discussões fundamentais para a conceituação de uma modalidade de TO harmônica com o PPS, o que seria uma terapia ocupacional psicossocial, com suas raízes na Psicanálise de Freud e Lacan para trabalhar com impasses de processamentos específicos nos processos de subjetivação, no que diz respeito às formações subjetivas, e no Materialismo Histórico para trabalhar com os impasses decorrentes da Formação Social. Na TO psicossocial o sujeito é compreendido como sujeito do inconsciente, subjetividade desejante e a ética é a do desejo, do carecimento; o principal ‘meio’ de trabalho é o fazer humano, as atividades são consideradas como dispositivos de subjetivação em que ao fazer o homem faz a si mesmo e cria seus territórios existenciais. Assim, nos propomos a recuperar essa dimensão simbólica-criativa-desejante das atividades. Pode-se acrescentar que, nesse modo de relação do sujeito com seu fazer, com o significante e com os outros vemos possibilidades transferenciais mais simbólicas e menos imaginárias, por isso espera-se que haja produção de subjetividades singularizadas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, D. T; TREVISAN, E. R. Estratégias de intervenção da Terapia Ocupacional em consonância com as transformações da assistência em saúde mental no Brasil. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 15, n. 36, p.299-308, Botucatu, 2011. ALTOÉ, S. (Org). 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O fazer no MCP tornou-se via de enquadramento para um laço social alimentado pelos circuitos de (re)produção e consumo – de expropriação econômica e subjetiva. O indivíduo é reduzido à sua existência enquanto trabalhador mecânico e passivo, não considerado como subjetividade desejante, por isso, sofre o estranhamento-de-si e da sua própria atividade vital. As consequências disso nos processos de subjetivação é a (re)produção de subjetividades alienadas, captalísticas, serializadas. Desde sua origem, a Terapia Ocupacional (TO) este intimamente ligada ao fazer e às funções práxicas, produtivas. Na história da profissão tem havido esforços no sentido de avaliar o desempenho ocupacional como expressão de saúde, por exemplo, com a elaboração da Classificação Internacional de Funcionalidade, incapacidade e saúde. Todavia, a TO, ao falar sobre o homem como ser práxico, não traz a práxis referenciada a um saber-fazer genuíno, sendo esta reduzida às práticas, atividades produtivas que podem ser automaticamente executadas; tangencia-se a noção de um sujeito-efeito do seu fazer, um sujeito cuja produtividade é determinante para sua saúde-doença. Para nós, ultrapassando qualquer ideal de normalização, interessa a concepção processual e dialética de saúde, que é socialmente produzida, a qual Costa-Rosa nomeou “subjetividadessaúde”, considerando que as subjetividades e as consistências de saúde são necessariamente indissociáveis e idênticas. Este é o ponto central da nossa proposta: avançar na compreensão de um sujeito inseparável do seu fazer, que, na medida em que se subjetiva, vai agindo e se relacionando com o mundo. Propomos pensar as atividades sendo elas próprias dispositivos de subjetivação, assim, mais do que um sujeito-efeito do seu fazer, teremos o fazer potencialmente como produtor de efeitos-sujeito. Palavras-chave: Modo Capitalista de Produção; Terapia Ocupacional; Subjetividade. 21 […] a opressão humana inteira está envolvida na relação do trabalhador com a produção, todas as relações de servidão são apenas modificações e consequências dessa relação (MARX, 2004, p.89). Não foi Marx, obviamente, que inventou a mais-valia, só que antes dele, ninguém sabia o seu lugar (LACAN, 1992, p.18). 1. INTRODUÇÃO Uma das premissas basilares e fundamentadoras de qualquer atuação em Terapia Ocupacional (TO) é a de que o fazer, isto é, criar, produzir, é fator constituinte do ser humano – o que na profissão designa-se por “natureza ocupacional” –, conceito fundado na ideia de que, independente da sua condição física, psíquica e social, o homem está sempre fazendo atividades. Conforme propôs Benetton (2006), desde os primórdios da profissão, as atividades têm sido os elementos orientadores da prática dos terapeutas ocupacionais. No contexto da Saúde Mental, dentre as muitas atividades utilizadas, destacam-se aquelas voltadas para os processos criativos, conhecidas como atividades expressivas, artísticas ou estéticas. O pressuposto de que todos os homens possuem inerente às singularidades de cada sujeito uma natureza ocupacional característica dos seres humanos é o que tem justificado a pertinência da TO enquanto profissão que trabalha com essa especificidade. As práticas da TO são requeridas mediante alguma disfunção ocupacional, ou seja, sempre que uma problemática de origem orgânica, psicológica, ambiental ou social interfere no desempenho ocupacional do sujeito, impossibilitando-o de vivenciar seus papeis ocupacionais correspondentes às figuras construídas histórica e culturalmente, por exemplo, pai, filho, marido, estudante, trabalhador, etc. Dito de outro modo, recorre-se aos atendimentos terapêuticos ocupacionais sempre que se tem a independência e autonomia comprometidas, estando, portanto prejudicadas as funções práxicas: o indivíduo está impedido de produzir, executar atividades. A definição hegemônica de desempenho ocupacional corresponde ao resultado da negociação que se faz entre pessoa-tarefa-ambiente: […] as pessoas utilizam suas capacidades para realizar uma tarefa em um determinado tempo, utilizando os objetos disponíveis, em um local específico. Por conseguinte, os resultados do desempenho de uma pessoa em relação a parâmetros com independência da tarefa, segurança e adequação dependem de negociações que 22 se fazem entre e por meio das capacidades da pessoa; das demandas da tarefa; e das demandas cumulativas dos ambientes (CREPEAU; COHN; SCHELL, 2011, p.485). Nessa perspectiva, todo o processo de TO será influenciado pela teoria usada pelo profissional a cerca das funções práxicas e do desempenho ocupacional. No que se refere às abordagens teóricas, o Modelo de Comportamento Ocupacional (MCO) elaborado por Reilly (1970 apud CREPEAU; COHN; SCHELL, 2011) serviu de embasamento para os modelos desenvolvidos posteriormente. “No Modelo de Comportamento Ocupacional as pessoas se adaptam usando a ocupação para responder às expectativas da sociedade, e, dessa forma, validar sua própria pessoa como membro desta sociedade” (NICKEL, 2007, p.41). Para Reilly as pessoas se ocupam por si mesmas, para serem recompensadas pelo aprendizado, pelo controle e domínio de uma técnica. A partir dessa concepção do fazer humano, o MCO procura estudar como a adaptação social é feita em situações de doenças e deficiências e de que forma ela pode ser otimizada. A partir do MCO, Kielhofner (1985 apud CREPEAU; COHN; SCHELL, 2011) desdobrou uma das abordagens mais importantes e conhecidas na TO, o Modelo de Ocupação Humana (MOH). O MOH, ao referir-se à natureza ocupacional identifica duas condições basais: 1) o comportamento humano é dinâmico e influenciado pelo contexto; 2) a ocupação é essencial para organização própria do ser humano. Isto significa, em linhas gerais, que o MOH acredita que “o indivíduo é produzido e modelado pela natureza do seu comportamento ocupacional” (NICKEL, 2007, p.42). O modelo propõe uma organização do sistema ocupacional humano em três subsistemas, a volição, o hábito e o desempenho mente-cérebro-corpo. O primeiro subsistema, a volição, é a porção motivadora do comportamento ocupacional, sendo ela influenciada por três áreas: os dotes pessoais, que estão relacionados às habilidades e efetividade de uma pessoa; aos valores, que definem o que é bom, correto e importante; e aos interesses, que são originados a partir da experiência de prazer e satisfação no comportamento ocupacional. Essas três áreas são inter- relacionadas para que o indivíduo tenha a condição de dar sentido à experiência, antecipar a ação e fazer uma escolha. […] O subsistema mente/cérebro/corpo está relacionado aos sistemas corporais que fornecem as capacidades necessárias para o desempenho ocupacional. O ambiente é outro aspecto importante no MOH. Sendo este dividido em ambiente físico, constituído pelo ambiente natural, construído pelo indivíduo e os objetos dentro dele. E o ambiente social que é constituído por agrupamentos ou grupo de pessoas as quais o indivíduo se junta e as formas ocupacionais que ele desempenha (NICKEL, 2007, p.42-43). 23 Recentemente, uma nova abordagem teórica, que por algum tempo esteve restrita à Reabilitação Física, tem sido apropriada por vários autores da Saúde Mental (MÂNGIA, 2002): o Modelo Canadense de Performance Ocupacional (MCPO). Nickel (2007) define o MCPO como uma abordagem em que o terapeuta adapta sua intervenção para ajustá-la às necessidades percebidas pelo cliente: terapeuta e cliente definem juntos os objetivos do tratamento. Destaca-se essa participação do sujeito, segundo Law et al. (1995 apud MÂNGIA, 2002, p.129) é “uma abordagem que adota a filosofia de respeito e parceria com as pessoas que recebem os cuidados, reconhece a autonomia do cliente e a necessidade dele realizar escolhas”. Embora haja algumas variações relativas aos meios de trabalho, às técnicas terapêuticas, predominantemente, na TO acredita-se que o sujeito, bem como sua saúde, são efeitos do seu fazer, do seu comportamento (CREPEAU; COHN; SCHELL, 2011). Por meio de uma revisão bibliográfica podemos verificar que as definições do MCO têm se mantido hegemônicas. De acordo com o Conselho Federal que regulamenta a profissão, “o terapeuta ocupacional compreende a atividade humana como um processo criativo, criador, lúdico, expressivo, evolutivo, produtivo e de automanutenção e o homem, como um ser práxico” (COFFITO, 2009a, p.1). Todavia, essa regulamentação, ao falar sobre o homem como ser práxico, não trata da implicação do sujeito nas suas atividades, não traz a práxis conforme elucidada por Marx (2004), isto é, referenciada a um saber-fazer genuíno, sendo ela minimizada às práticas, às atividades produtivas, que podem, inclusive, ser automaticamente executadas. Interessante notar que se tangencia a noção de um sujeito-efeito de seu fazer, um sujeito cujas atividades são determinantes para saúde-doença. Contudo, tal concepção não avança além das relações binárias sujeito-objeto e doença-cura, não abarcando, portanto, a ideia de saúde como um bem socialmente construído; e dinâmica ao ponto de não poder ser mensurada. Para nós interessa a concepção processual e dialética de saúde, a qual Costa-Rosa (2013) nomeou “subjetividadessaúde”, partindo da hipótese de que as subjetividades e as consistências de saúde são necessariamente indissociáveis e idênticas. Apresentamos, aqui, o ponto central da nossa proposta: avançar na compreensão de um sujeito que é inseparável do seu fazer, e que, na medida em que se subjetiva, vai agindo e se relacionando com o mundo. Dessa forma, propomos pensar as atividades sendo elas 24 próprias um dispositivo de subjetivação, logo, podemos ter mais do que um sujeito-efeito de seu fazer, teremos o fazer potencialmente como produtor de efeitos-sujeito. À parte algumas divergências, que no mais das vezes são de terminologia, a maioria dos trabalhos científicos sobre a TO versa sobre o desempenho ocupacional apontando-o como o indicador mais importante de saúde, trazendo os conceitos de autonomia e independência como correlatos à capacidade de desenvolver funções práxicas. Essas funções práxicas/produtivas, por sua vez, são tomadas como analisadores do desempenho ocupacional, e consequentemente, da saúde. Entretanto, as definições do que seja independência, autonomia, práxis, e mesmo saúde, podem ser problematizadas, e mesmo, modificadas, a depender do que se busca como efeito terapêutico. Pensando sobre a TO e tomando por hipótese que é “o caminho das diferentes concepções de homem e sociedade que dão sustentação à elaboração de seu saber” (CAVALCANTE; TAVARES; BEZERRA, 2008, p.30), neste Ensaio pretendemos, pela análise histórica da TO na sua estreita relação com o fazer humano, refletir sobre os atravessamentos que suas práticas sofreram ao longo do tempo, sobremodo pelas injunções do Modo Capitalista de Produção. Esse movimento de reflexão a que aspiramos implica necessariamente em dialetizar um termo já cristalizado na profissão, “natureza ocupacional”, e, ainda, discutir as atividades e o fazer humano enquanto dispositivos de subjetivação, recursos clínicos1 da TO. Para tanto, partimos das questões: estamos sempre fazendo atividades para quê? Qual tipo de atividade interessa ao homem enquanto homem? Se é verdade que somos por excelência “seres ocupacionais”, e a terapia ocupacional tem por área de trabalho exatamente essa particularidade humana – a vida produtiva, a natureza ocupacional –, interessa-nos refletir sobre suas funções enquanto dispositivo social de produção de subjetividade e sobre os efeitos de uma perspectiva ontológica e funcionalista da condição humana moldada no MCP. Acreditamos que, devido ao campo da TO estar em constante construção, existe ainda abertura para que Outro paradigma de Atenção, que aborda fatores orgânicos, psíquicos e sociais ganhe espaço. A partir das contribuições de Marx revistas por Costa-Rosa (2013), pretendemos introduzir novos referenciais teórico-técnicos, éticos e políticos, a fim de propor 1 Não é nossa intenção dissertar sobre os especialismos do trabalho do terapeuta ocupacional, preocupação amplamente disseminada entre os profissionais do ramo. Pelo contrário, uma das nossas propostas é justamente superar as especializações, questão que será mais bem desenvolvida ao longo desta dissertação. 25 uma terapia ocupacional avessa ao MCP, a qual chamaremos uma terapia ocupacional psicossocial2. 1.1 A “natureza ocupacional” pensada à luz do Materialismo Histórico Historicamente, a espécie humana se diferenciou dos demais animais pelo seu fazer, sua capacidade de produzir. Partindo da hipótese de que o trabalho feito com as mãos faz mediação da relação do homem com a Natureza, o controle manual foi considerado um dos fatores decisivos no processo de hominização/humanização. Estudiosos do tema definem que, “a distinção fundamental entre homens e animais teve início quando os homens começaram a fabricar os seus próprios meios de sobrevivência (ferramentas e utensílios), transformando a Natureza por meio do trabalho das mãos” (NINA- E-SILVA; ALVARENGA, 2012, p.3). Logo, a especificidade do trabalho manual foi crucial para a aquisição das características da espécie humana e para a constituição do indivíduo enquanto homem. Todo processo de trabalho é composto por condições objetivas de produção, que se dividem em objetos de trabalho e meios de produção, e por condições subjetivas, que são a força de trabalho e as decisões tomadas pelo trabalhador. O objeto de trabalho é aquilo que será transformado, que receberá a ação do trabalho; meio de produção é o que se utiliza para transformar o objeto de trabalho (utensílios, ferramentas, etc) e a força de trabalho é capacidade humana de trabalho. (KAJI-MARKENFELDT, 2006). O Materialismo Histórico (MARX 1975; 1983; 2004; MARX; ENGELS, 1998), põe em relevo as implicações sociais do trabalho, e em muito valoriza o fazer como principal intermediário da relação entre o homem e o mundo e entre ele e seus pares, atribuindo ao próprio trabalho um caráter sociocultural, tanto que, na sua perspectiva o fazer humano é o elo entre Homem-Natureza-Sociedade, pois, no fazer, mais do que a transformação da Natureza, há processos de subjetivação e produção de cultura. Destarte, utilizando-se do fazer e da linguagem é possível ao sujeito construir sua existência material e subjetiva. 2 Essa modalidade de terapia ocupacional será desdobrada no Ensaio 3. A “Terapia Ocupacional Psicossocial” tem como principal referência o Paradigma Psicossocial elaborado por Costa-Rosa (2013) a partir do Materialismo Histórico de Marx e a psicanálise do campo de Freud e Lacan. Não pretendemos qualquer leitura totalizante da TO, e consideramos que já existem discussões e formulações que questionam características do Modo Capitalista de Produção e o Discurso Médico (CLAVREUL, 1983). 26 A filosofia idealista de Hegel influenciou fortemente os escritos de Marx, ela também destaca o valor social do trabalho e seu cunho histórico, especialmente quanto à concepção de trabalho como “uma manifestação dialética que se estabelece entre objeto e sujeito, entre o impulso cego da necessidade e a satisfação que libera o ser humano do círculo fechado do si e o faz encontrar com os outros” (SEMERARO, 2013, p.88). Ao trabalhar, o homem não satisfaz apenas suas necessidades, mais do que isso, ele forma sua consciência e atende também à demanda de outros. Ao propor a visão dialética da autoprodução do homem pelo trabalho, Hegel supera a separação cartesiana entre sujeito e objeto, além de discutir o trabalho voltado para a propriedade privada, o lucro e a divisão social (SEMERARO, 2013). Para Hegel, o trabalho não é só satisfação das próprias necessidades individuais e imediatas, mas é a expressão de um valor maior: nele se forma a consciência pessoal e social, se manifesta o caráter público e universal do ser humano. Tal atividade não ocorre mecanicamente, mas é realizada por sujeitos que ao lidar com a natureza lhe conferem um significado […]. Nesse processo, há uma transformação e humanização da natureza e, ao mesmo tempo, a criação de uma história coletiva que se expressa na linguagem, na qual a consciência se firma como memória. Para Hegel, a relação do homem com a natureza nunca é uma operação exterior, de mera apropriação e exploração […]. Não se trata, portanto, de mera atividade exterior, mas principalmente de uma elaboração, de uma explicitação da vida interior e de uma construção social. Na medida em que lida com a natureza, com os objetos e os processos laboriais, o homem desenvolve não apenas instrumentos e habilidades, mas também a sua consciência, a cultura, o encontro e o reconhecimento dos outros, a construção da inter-subjetividade, da linguagem e de um mundo de valores sociais (“eticidade”). Portanto, se o ser humano se constrói individual e socialmente como resultado do seu próprio trabalho (SEMERARO, 2013, p.90-91). Para Marx a teleologia do trabalho, sua finalidade, é a realização concreta do ser humano no fazer e nas relações sociais, “a história e o significado do homem estão gravados no trabalho […] é a forma específica da práxis humana que abrange toda a vida material, filosófica, econômica, pessoal, social, política, cultural” (SEMERARO, 2013, p.98-97). Assim, ressaltamos a importância de se ter em mente os processos de subjetivação intermediados pelas atividades, pelo fazer humano, a singularização pelo trabalho e as relações intersubjetivas que se tecem, dado o caráter sempre social dessas atividades. Nos “Manuscritos Econômicos Filosóficos”, Marx (2004) se dedica à discussão de termos valiosos para pensarmos a terapia ocupacional, principalmente “genericidade humana” e “vida produtiva”. Ele vai assinalar a vida produtiva como particular ao gênero humano e o fazer como a atividade vital do homem que lhe confere a genericidade humana. Destaca-se que a atividade vital para Marx (2004) não está de modo algum referida à fisiologia corpórea, isto é, à manutenção da existência estritamente no sentido orgânico (respiração, alimentação, 27 etc), portanto, o adjetivo “vital” não se aplica apenas àquilo que se faz para manter-se vivo, sobrevivendo. Ao passo que os animais produzem somente sob o domínio das necessidades emergentes e limitados pelas características da espécie a qual pertencem, o homem é o único ser capaz de produzir livremente, por desejo, isto é, produzir na ordem do carecimento e não da carência. “O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência […]. A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal” (MARX, 2004, p.84). […] o trabalho, entendido como atividade adequada a um fim, é o que fundamentalmente nos faz humanos. Diferentemente dos animais que procuram apenas satisfação das suas necessidades biológicas, o homem produz a sua própria existência, é pelo trabalho que o homem adapta a natureza a si mesmo e a transforma, se autoproduzindo. […] os animais agem para satisfazer apenas as suas necessidades, os seres humanos agem para produzir os meios de satisfação de suas necessidades (KAJI-MARKENFELDT, 2006, p.14-15). Foi a partir do trabalho manual que pôde ocorrer a evolução do macaco ao ser humano, pois o mesmo foi crucial para que emergissem processos de produção independentes das carências físicas imediatas. Desde a concepção clássica greco-romana, entendemos que apenas os homens são capazes de transcender as necessidades, portanto os únicos livres para outras atividades não relacionadas à subsistência (NINA-E-SILVA; ALVARENGA, 2012). Retomando as ideias de Locke (1690/1964) sobre o fazer e as diferenças entre o trabalho humano e o labor animal, Arendt (1995) pontua que a divergência entre o labor e o trabalho reside no fato de que o labor seria exclusivamente para fins biológicos, já o trabalho, por ir além da carência, traria implicações sociais. Disso, inferimos que o fazer é a fonte suprema de produtividade e a expressividade maior da hominização/humanização (MARX; ENGELS, 1998). A essência do homem é o trabalho. O homem só pode existir trabalhando […] o homem não é plenamente homem, segundo Marx, se não imprimir em todas as coisas a marca de sua humanidade […]. O trabalho é toda atividade humana que permite exprimir a individualidade daquele que a exerce. Mas exprimir-se para o outro, portanto, de mostrar ao outro ao mesmo tempo sua singularidade e seu pertencimento ao gênero humano (MÉDA, 1995, p.100-103 apud LANGUER, 2004, p.1). Marx defende que a atividade vital do homem corresponde a um modo de fazer e produzir no qual aquele que produz estabelece uma ligação subjetiva e singular com sua 28 produção, o que ocorre somente quando se está situado na ética do carecimento: então o fazer está em livre fruição, é “a vida engendradora de vida” (MARX, 2004, p.83). Trata-se de um processo de produção no qual o sujeito está na dimensão criativa-desejante e consegue apreender sua criação como a si mesmo, temos “um circuito mediado pela significação” (KAJI-MARKENFELDT, 2006, p.17), em que ao fazer o homem faz a si mesmo, e faz também seu mundo, cria seus territórios existenciais. […] na atividade animal o vínculo sujeito e objeto (S↔O) se fecha em si para a satisfação de uma necessidade imediata (saciação da fome, por exemplo). Na atividade humana, o mesmo vínculo se abre através de mediações, construindo o significado. […] Trabalhar é o ato de transmitir significado à natureza, de construir o mundo a nossa imagem e semelhança. O significado se define pela permanência além e apesar da relação com o objeto, ou seja, defini-se pela transcendência à relação S↔O (KAJI-MARKENFELDT, 2006, p.16-17). Se o mundo é simétrico ao sujeito, a realidade de cada homem é sempre particular e modelada à sua imagem (QUINET, 2006). Nesse prisma de análise, Costa-Rosa3 propõe a releitura do conceito filosófico Dasein de Heidegger, traduzido como Ser-aí, para se pensar a existência como algo constantemente em construção, apontando que a realidade só existe quando o sujeito está nela fazendo realidade. Zizek (1991) diz que a realidade é fendida, não é uma realidade dada por completa. Zizec (1991) traz à baila a noção de performatividade: o homem vai criando, e, a posteriori, recria tudo, melhor dizendo, recria algo do que a psicanálise concebe por objeto perdido, causa de desejo. Marx (2004), igualmente, pensou o homem como ser inacabado, em processo infinito de acabamento: sem que o sujeito jamais esteja pronto, a essência é o movimento, o tornar-se mediado pelo devir criativo, devir de sentidos novos, que são os processos de subjetivação, a vida. No processo de trabalho, considerando a ocupacionalidade intrínseca ao homem, uma vez satisfeitas as carências, outras necessidades vão sendo geradas, carecimentos e desejos que se repõem ao infinito. Neste sentido, destacamos a primeira interface da TO com o Materialismo Histórico: o termo “natureza ocupacional” pode ser ressignificado à luz de Marx pela homologia aos termos “atividade vital” e “genericidade humana”. Para nossa análise quanto aos percursos do fazer humano na TO, destacamos dois momentos históricos e socioculturais específicos em que o fazer humano foi capturado, pondo 3 Colocação oral feita pelo Prof. Dr. Abílio da Costa-Rosa em aula na UNESP, campus de Assis, em agosto de 2013. 29 em risco a genericidade humana, a atividade vital do homem (MARX, 2004) e os processos criativos, subvertendo, portanto, os processos de produção, e, consequentemente, de subjetivação. Inicialmente, isso se deu com o advento do Modo Capitalista de Produção, quando o trabalho deixou de ter apenas valor de uso e usufruto coletivo, para ter, sobremaneira, importância como valor de troca (MARX, 1975; 2004). E num segundo momento, no cenário do encontro da loucura com o trabalho, quando o fazer humano foi apropriado pela Ciência Moderna (SANTOS, 2000) para que a partir dele fosse produzido certo conhecimento científico que pudesse legitimá-lo enquanto recurso terapêutico estruturante das práticas de Atenção oferecidas nos asilos pela psiquiatria clássica, e principalmente, pelo tratamento moral (ANDRADE, 2013). 2. O FAZER HUMANO “A SERVIÇO DOS BENS”: ALIENAÇÃO E ESTRANHAMENTO NO MODO CAPITALISTA DE PRODUÇÃO Simultaneamente ao desenvolvimento do capitalismo industrial, desenvolveu-se uma nova compreensão de ciência e de homem, impulsionada principalmente por Descartes, pai do racionalismo e fundador do método cartesiano. “além de suas transformações relacionadas diretamente ao Modo de produção – começa de modo explícito com a separação cartesiana corpo-mente, redobrada pela forma de ciência inspirada nessa filosofia” (COSTA-ROSA, 2013, p.37). Eis então, o conceito de indivíduo, que surge neste contexto de modernidade, originário do latim “individum”, palavra que significa “não divisível”. O individualismo caracteriza-se pela “priorização nas relações entre os homens e as coisas em detrimento da relação dos homens em si” (FLECHA, 2011, p.32). A Idade Moderna inaugurou outro modo de produção, e, portanto, outro tipo de relacionamento com a Natureza, marcado pela posse e dominação, oposto aos modos de produção das formações econômicas pré-capitalistas. Arendt (1995) aborda a questão apontando para as mudanças nas subjetividades, seguidas pela criação do homo faber e da nova “sociedade do trabalho”. Mais do que um meio para satisfazer as necessidades de subsistência, o trabalho assalariado tornou-se condição de existência para o homem moderno: 30 ao invés do trabalho do homem existir em razão dele, foi o homem que passou a existir em razão do seu trabalho. O sistema econômico que vigorava até a insurgência do capitalismo industrial tinha mera função de operacionalização e de organização social, já na economia de mercado há um interesse econômico focado principalmente nos bens de troca, adquirindo o trabalho valor de mercadoria e excluindo-se qualquer sentido de comunidade, de coletivo (MARX, 2004; 1975). “O resultado de tudo isso é a crescente mercantilização de tudo e a transformação da sociedade numa sociedade de mercado. As pessoas relacionam-se não mais diretamente entre si, mas através das coisas que produzem” (LANGUER, 2004, p.4). A “economia do dinheiro” (SIMMEL, 1973, p.14) influenciou fortemente a modulação da subjetividade. “Numa sociedade na qual a forma mercadoria é a forma geral do produto do trabalho, por conseguinte, também a relação das pessoas umas com as outras enquanto possuidores de mercadorias é a relação social dominante” (MARX, 1983, p.62). Para Simmel (1973) o homem moderno tece seus relacionamentos segundo o princípio pecuniário, tornando o dinheiro como denominador comum “que reduz toda qualidade e individualidade à questão: quanto?” (SIMMEL, 1973, p.13). Sobre a vida produtiva, o fazer humano na lógica da racionalização econômica, por ser tomado apenas materialmente, ele tornou-se absolutamente mensurável. É possível e necessário calcular seu custo e também seu rendimento, de uma forma em que o sujeito produtor é expelido e separado do seu produto, participando apenas como força de trabalho. “Lacan fala em Discurso do Capitalista, cuja diferença em relação às suas forma antecessoras é o fato de o operário ter sido expropriado do saber sobre o próprio trabalho; além de não ter mais como viver a não ser trabalhar para o capital, nas condições impostas por ele (COSTA- ROSA 2013, p.37). Os processos de produção no capitalismo se fragmentaram de tal forma que, a cada dia, são criadas mais especialidades, ficando a parte cada vez mais distante do todo, o trabalhador do seu trabalho, e o saber do fazer. Cabe destacar como consequência MCP essa separação do trabalhador dos meios de trabalho, dos quais passara a não ser mais dono. Igualmente, sua separação da produção, que lhe fora expropriada, visto que, pela primeira vez, vimos surgir a figura do não trabalhador, aquele que, embora não trabalhe, por possuir um poder aquisitivo maior, pode apropriar-se da produção de outrem. 31 Ainda há que se considerar o surgimento da mais-valia. No seu Seminário 17, Lacan (1992) diz que antes de Marx ninguém sabia exatamente o lugar da mais-valia, mas a partir das suas contribuições, ficou evidente que a extração da mais-valia sustenta o Capitalismo, por isso, indiretamente, é mantenedora das relações sociais de dominação e subordinação envolvidas nos conflitos da luta de classes: “o sistema do capital revela-se uma produção pela produção, não a realização do trabalhador, mas a valorização do valor” (SEMERARO, 2013, p.97). Nos modos cooperados de produção, anteriores ao capitalismo, a produção visava em primeiro lugar o uso como usufruto coletivo (MARX, 1975; 2004) com um sentido de comunidade, estava fora do alcance da ética do “a serviço dos bens” (LACAN, 1988 apud COSTA-ROSA, 2013). O trabalho cooperado supunha a produção de valores de uso nos horizontes do carecimento. “Os modos pré-capitalistas conservam a imanência do trabalho e dos outros meios de produção e a relação direta desses com a criação da subjetividade concebida como transformação de si em um movimento absoluto devir” (COSTA-ROSA, 2013, p.31). No começo, o relacionamento do trabalhador com as condições objetivas de seu trabalho era de propriedade, essa se constituía aí numa unidade natural do trabalho com os seus pré-requisitos materiais. Marx fala em propriedade, definida literalmente como relação do indivíduo com as condições de trabalho e reprodução, “corpo objetivo de sua subjetividade” (COSTA-ROSA, 2013, p.26). O fazer no MCP tornou-se via de enquadramento para um laço social alimentado pelos circuitos de (re)produção e consumo – laço de expropriação econômica e subjetiva. Conforme descrito por Mângia (2003, p.39), “O processo de produção é um processo de formação de valor”. Por efeito disso na subjetividade, temos o estranhamento e a alienação, que são produzidos tanto durante o processo de produção, quando o trabalhador vê-se à mercê do patrão, do próprio processo de trabalho, da fábrica, ou nos tempos modernos, da instituição; quanto na finalização do produto, quando ele se vê diante de algo que lhe é completamente impessoal. É a objetificação do fazer como perda e a apropriação como estranhamento e alienação. O fazer estranhado é a negação do sujeito, pois visa satisfazer necessidades fora dele (MARX, 2004). Nas palavras do autor: A apropriação do objeto tanto aparece como estranhamento que, quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital. […] Com efeito, segundo este pressuposto está claro: quanto 32 mais o trabalhador se desgasta trabalhando, tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio, que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, e tanto menos o trabalhador pertence a si próprio (MARX, 2004, p.81). Ainda sobre o estranhamento e a alienação no MCP, constatamos que o homem baixou à condição de objeto, sendo ele próprio um trabalhador-mercadoria. Em outros termos, de senhor/proprietário, baixou à condição de servo, sem ter alternativa de sobreviver sem precisar vender-se. Essa miséria humana põe-se em relação inversa à potência produtiva- criativa. “O trabalho alienado rompendo com a própria ontogênese humana, ao tirar do homem seus produtos tira também, sua vida genérica, sua atividade própria de produzir e reproduzir o mundo humano e de objetivar-se nesse mundo” (MÂNGIA, 2003, p.41). Observa-se que as mercadorias levam as pessoas até o mercado, e não o contrário: “mais do que um discurso sem palavras, Marx enuncia um discurso sem sujeitos” 4. Essa objetificação do homem compromete o processo de hominização/humanização decorrente do fazer humano, assim a genericidade humana deixa de ser prioridade. “O trabalho é externo ao trabalhador, não pertence ao seu ser, ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, não se sente bem, mas infeliz” (MARX, 2004, p.83). Em contrapartida, nos modos de produção pré-capitalistas era fundamental a relação entre realidade objetiva e realidade subjetiva: No começo, o relacionamento do trabalhador com as condições objetivas de seu trabalho era de propriedade, essa se constituía aí numa unidade natural do trabalho com os seus pré-requisitos materiais. Marx fala em propriedade, definida literalmente como relação do indivíduo com as condições de trabalho e reprodução, “corpo objetivo de sua subjetividade”. Também encontramos claramente enunciada nesse manuscrito a tese de que o indivíduo produz-se ao produzir e reproduzir as condições materiais de sua existência. […] Portanto, podemos considerar que a imanência do trabalho com os demais meios e condições da produção, o que define para Marx o trabalho vivo, está diretamente relacionada a um modo particular dos processos de subjetivação. Essa relação de imanência permitia ao trabalhador, como ente humano, ter existência objetiva independente do trabalho, e ao mesmo tempo possibilitava que ele se relacionasse consigo mesmo como senhor das condições de sua realidade (COSTA-ROSA, 2013, p.26-27). No MCP não há espaço para a genericidade humana, a natureza ocupacional do homem está claramente voltada à manutenção do Capital. O indivíduo é reduzido à sua existência enquanto trabalhador mecânico e passivo, jamais considerado como subjetividade desejante. Todo esse estranhamento retorna para o homem como estranhamento-de-si, de sua 4 Colocação oral feita pelo Prof. Dr. Abílio da Costa-Rosa em aula na UNESP, campus de Assis, em março de 2014. 33 própria atividade vital. O fazer estranhado, estranha do homem o gênero humano, igualando-o a um animal que sobrevive e cujas atividades estão na ordem das carências físicas, apenas, não mais do carecimento, isto é, do desejo. O fazer estranhado engendra não somente a relação do homem com a sua produção material, ele engendra também as relações dele com a sociedade e com o mundo. A posição do sujeito quanto aos ideais socioculturais, igualmente, media seus processos de subjetivação, pois a mesma está entrecruzada às produções de sentido necessárias à existência desse sujeito. Em decorrência disso, quando falamos em alienação, falamos em desimplicação subjetiva e sociocultural (COSTA-ROSA, 2013), uma vez que, assim como não existe subjetivo alheio ao social, não há social que não seja subjetivado (FREUD, 1996). Em meio a tantos atravessamentos, se o sujeito do carecimento e do desejo ainda pode pulsar nesse animal humano capitalizado, ele se questiona: “se minha própria atividade não me pertence, a quem ela pertence então?” (MARX, 2004, p.86). Isso significa para o homem a perda de si mesmo, pois seu fazer pertence a outro: […] se ele se relaciona com seu próprio trabalho como trabalho não livre, então ele se relaciona com ele como trabalho a serviço de, sob o domínio, a violência e o jugo de outro homem […] a opressão humana inteira está envolvida na relação do trabalhador com a produção, todas as relações de servidão são apenas modificações e consequências dessa relação (MARX, 2004, p.87-89). A sociedade pós-moderna venera a produção e o consumo, porém Marx (2004) pensa que, para o Capital, as únicas necessidades do homem plausíveis de fazerem sentido são aquelas para “conservá-lo durante o trabalho, a fim de que a raça dos trabalhadores não desapareça” (p.92). A produção e o que dela se obtém passaram a ter “valor de troca” e não “valor de uso”, com a finalidade de acúmulo, de extração da mais-valia. Os valores de uso passaram a ser produzidos apenas como requisitos à produção de valores de troca: “o salário pertence, pois, aos custos obrigatórios do capital e do capitalista e não deve ultrapassar a necessidade desta obrigação” (MARX, 2004, p.92). Para uma sociedade decididamente consumista, a representação de saúde, bem-estar e realização está no consumo de gadgets, objetos da demanda enganosamente reconhecidos como objetos do desejo, que proporcionam uma satisfação momentânea e ilusória, que dura só enquanto a demanda ainda não se deslocou para outros objetos; é um movimento tão fugaz quanto todos os circuitos do MCP. Essa ideia de que felicidade e consumo se fundem ao ponto de serem sinônimos (BAUMAN, 2005) e faz com que a vida produtiva da maioria dos 34 homens seja gasta para satisfazer suas necessidades mínimas de subsistência e, sobretudo, de consumo, mas um consumo alienado, que não encontra o carecimento e o desejo. Os processos criativos que balizavam o fazer humano e conferiam ao sujeito a genericidade humana, a soberania ante os animais expressa na liberdade de poder criar segundo o desejo e movido pelo carecimento, criar para seu próprio consumo e deleite, foram banidos do mundo capitalista. O processo de humanização pelo fazer não está mais colocado como objetivo maior da produção humana. “Com o MCP e com a sociedade de consumo estamos fora do trabalhador como prioridade […], também o carecimento e o desejo saem do horizonte; voltamos à demanda direta e, portanto, à carência” (COSTA-ROSA, 2013, p.35- 36). Os efeitos disso nos processos de subjetivação não poderiam ser outros além da (re)produção da alienação e do estranhamento: subjetividades captalísticas, serializadas (GUATTARI; ROLNIK, 2005). 2.1 A institucionalização da divisão do trabalho Apenas para seguir com o raciocínio retomaremos as modificações no fazer a partir do Capitalismo que consideramos mais relevantes para nossa análise: 1) a produção perdeu a importância como valor de uso para assumir preponderante valor de troca; 2) o trabalhador passou a não ser mais dono dos meios de trabalho e da sua produção; 3) ocorreu brutal separação entre saber e fazer; 4) surgiu a figura do não trabalhador e da mais-valia e, por último, 5) o trabalhador “saiu de casa”, foi às fábricas, eclodiu o “mercado de trabalho”. Tudo isso, de maneira alguma se deu sem consequências: o fazer, o modo de produção, – que antes era atividade vital, de livre fruição do homem – passou a assumir outro caráter social, tendo destaque enquanto uma grande organização que realiza uma instituição ainda maior, a divisão do trabalho, impulsionada pelo MCP. Lembrando que muito nos interessa a divisão do trabalho pensada como um microcosmo onde se atualizam os conflitos da luta de classes (COSTA-ROSA, 2013). A divisão pormenorizada do trabalho que faz com que o trabalhador não possa acompanhar o processo completo de produção e, por isso, se mantenha alienado e adaptado às normas sociais vigentes, é produto peculiar do capitalismo: “enquanto a divisão social do 35 trabalho subdivide a sociedade, a divisão parcelada do trabalho subdivide o homem” (BRAVERMAN, 1977, p.72). Aqui já não se trata apenas da distribuição das tarefas com fins técnicos visando a maior comodidade e o mesmo prazer do trabalhador; tampouco o interesse social global. Tanto a separação entre trabalho braçal (executor) e o trabalho intelectual (dirigente e decisório) quanto o parcelamento das tarefas dentro de uma mesma especialidade não são decorrentes das necessidades da cooperação inerentes ao processo de trabalho em sua função para a sociedade; decorrem, ao contrário, do processo de extração da mais-valia, portanto, dos interesses de um segmento social (COSTA-ROSA, 2013, p.31). É importante frisar que essa função a favor da alienação não se manifesta claramente nos discursos ideológicos, mas está velada numa função positiva. Contudo, como "não há universal que não deva ser contido por uma existência que o negue" (LACAN, 2003, p.450), sempre restam lacunas discursivas, um não sabido estrutural que evidencia nas práticas cotidianas certa negatividade. Portanto, é necessário analisar minuciosamente as instituições quanto às suas consistências e funcionamentos. Hegel (s/d) aponta três momentos do conceito: universalidade, particularidade e singularidade. Assim, Lourau (1975) a partir do pensamento hegeliano, sugeriu pensar a instituição partindo-se da articulação desses momentos. Por universal, temos o discurso ideológico, por exemplo, no caso do trabalho situado no Capitalismo: “Auferir riqueza e melhoria de vida”, essa é a função institucional positiva; como particularidade temos as práticas, que podem ser contraditórias entre si, revelando a negatividade, o não sabido estrutural: “Por mais que se trabalhe nunca se está rico o suficiente comparado ao tanto que há para se consumir”. Por último, a singularidade é o entrecruzamento do universal com o particular – discurso e práticas. À revelia da universalidade, por meio das lacunas discursivas que se revigoram no particular, verificamos que a instituição “está sempre a serviço das formas históricas de exploração, dominação e mistificação […]. Só que esta função raramente se apresenta como ela é […] mostra-se como o objetivo natural, desejado e lógico” (BAREMBLITT, 1992, p.32). Marx (1975; 2004) há muito tempo já havia demonstrado que o crescimento da riqueza, contrariando o discurso ideológico, é idêntico ao crescimento da miséria e da escravidão. Eis aqui uma das muitas contradições do MCP: “o trabalhador se torna tanto mais 36 pobre quanto mais riqueza produz […] Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens” (MARX, 2004, p.80). É válido e necessário percorrer esses caminhos árduos a fim de que se possa compreender do que falamos quando dizemos que subjetividades calcadas na alienação e estranhamento são consequências diretas do MCP. Isso é para dizer que o Capital expropria do homem sua genericidade humana e sua vida produtiva, e mais ainda, que as formas capitalistas de relacionamento social são necessariamente alienantes já que o indivíduo não tem como subsistir se não trabalhar para o Capital (MARX, 1975; 2004). Se desejamos operar com as subjetividades, temos por dever considerar que são os modos de produção e as relações possíveis do sujeito com seu fazer (seu trabalho) e com os outros sujeitos que indicam os modos de existência e as constituições subjetivas numa sociedade. 3. DA VIDA PRODUTIVA À TERAPIA OCUPACIONAL: A CAPTU RA DO FAZER PELA PSIQUIATRIA O segundo momento de captura do fazer humano se deu paralelamente aos avanços do Capitalismo e dos seus assessores – a Ciência Moderna (SANTOS, 2000) e o Discurso Médico (CLAVREUL, 1983) –, ocorreu permeado pelas intenções de assegurar os progressos do Capital e também da medicina psiquiátrica. Assim sendo, a natureza ocupacional, a vida produtiva e os processos criativos do sujeito, também sua genericidade humana, tornaram-se campo de investigação científica. O fazer, mais uma vez, foi expropriado do homem para que a partir dele pudesse ser produzido conhecimento enciclopédico, a ser utilizado especialmente a favor das disciplinas e dos instituídos sociais dominantes, não a favor dos sujeitos do sofrimento. Assim, quando, no século XIX, o hospital psiquiátrico torna-se lugar de diagnóstico e classificação, as atividades passam a ser utilizadas em procedimentos diagnósticos e a ser indicadas no tratamento de acordo com o diagnóstico dado ao paciente. Com a sistematização de tipos de trabalhos adequados a estados mórbidos buscava-se dar ares de ciência médica a essas práticas terapêuticas (LIMA, 2004, p.4). Em decorrência da produção de tal conhecimento, o fazer pôde ser tomado como recurso terapêutico nos asilos. Foi nesse contexto que a TO extraiu seu recorte da Demanda 37 Social5 para consolidar-se como ciência e profissão na área da Saúde Mental, pois dentre todas as profissões, sempre teve como área específica de atuação o fazer humano. Em “A História da Loucura na Era Clássica”, Foucault (2003) propõe reflexões sobre as condições históricas que resultaram no período da “grande internação” (p.72-77), propondo que a mesma foi decorrente de uma crise econômica na Europa, crise esta que tornou o trabalho não apenas eletivo como medida de sanidade mental, mas, acima de tudo, necessário. “A valorização e dignificação do trabalho eram base para a construção de uma nova sociedade organizada em torno da produção capitalista que requeria a sujeição do ritmo da vida ao tempo da produção” (LIMA, 2004, p.4). Percebe-se que houve uma exigência econômica e moral para o trabalho. Foucault (2003) define a internação “como medida econômica e precaução social” (p.89). Para Andrade (2013), o imperativo do trabalho associava-se não ao tratamento psíquico ou médico, mas à finalidade de extinguir a ociosidade, mendicância e outras desordens sociais num período de crise. […] a opção não é mais prender os sem trabalho, mas sim ocupá-los – enquanto presos – como mão de obra barata para garantir a prosperidade da sociedade liberal da época. Os presos recebiam a quarta parte do valor de sua produção em função da ideologia de que o trabalho deveria ser produtivo e não somente ocupação. Essa regra do trabalho perdurará até o final do século XVIII. Nessa perspectiva, a assistência ao trabalho era tanto um remédio contra o desemprego quanto um estimulante para o desenvolvimento industrial (ANDRADE, 2013, p.36). Lembrando que nos antigos hospitais gerais a internação não seguia uma racionalidade clínica, tinha caráter de limpeza social: eram internados aqueles que apresentavam quaisquer comportamentos desviantes, era “reclusa toda a sorte de marginalizados, pervertidos, miseráveis, delinquentes e, dentre eles, os loucos” (AMARANTE, 1996, p.40). O uso terapêutico da ocupação, embora reportado historicamente desde a antiguidade, foi sistematizado enquanto campo do saber a partir do século XVIII, quando Phillipe Pinel inaugurou o Tratamento Moral. Fundamentado no conceito de “alienação mental” 6 e defendendo que “o meio mais seguro e talvez a única garantia da manutenção da saúde, do 5 O conceito de Demanda Social, aqui, está referenciado pela Análise Institucional (LOURAU, 1975; ALTOÉ, 2004). A Demanda é o conjunto de pulsações resultantes do conflito de interesses entre o polo dominante e o polo subordinado na luta de classes. 6 Na psiquiatria o conceito de alienação não é necessariamente idêntico ao da Filosofia Política de Marx, pois não se refere apenas à esfera econômica e às trocas sociais (ANDRADE, 2013, p.39). Nesse sentido, propomos traçar paralelos entre os conceitos, considerando os fatos históricos e culturais, a fim de que por meio da operacionalização desses conceitos possamos pensar a realidade em tela. 38 bom comportamento e da ordem é a lei de um trabalho mecânico rigorosamente executado” (PINEL, 1818, apud FOUCAULT, 2003, p.538), Pinel garantiu o argumento capaz de assegurar a internação como resposta social para as tensões ocasionadas pela dita loucura. Segundo esse autor, o trabalho terapêutico deveria fazer o “alienado mental” voltar à racionalidade, restabelecendo hábitos saudáveis e reorganizando seu comportamento conforme os padrões sociais. A doença que causava contradições da razão, ilusões, desordem moral e atitudes antissociais deveria ser enfrentada pelo trabalho: o trabalho seria o meio de organização e manutenção do ambiente asilar como contraponto ao ócio desorganizador. O trabalho vem em primeira linha no ‘tratamento moral’ […]. Em si mesmo, o trabalho possui uma força de coação superior a todas as formas de coerção física, uma vez que a regularidade das horas, as exigências da atenção e a obrigação de chegar a um resultado separam o doente de uma liberdade de espírito que lhe seria funesta e o engajam num sistema de responsabilidade (FOUCAULT, 2003, p.529). A filosofia do Tratamento Moral constituiu o modelo asilar e firmou o trabalho como “eixo regulador das mazelas da sociedade” (ANDRADE, 2013, p.37). Outrossim, marginalizou o ‘louco’, que por ser ‘irracional’ foi tido como incapaz de trabalhar, que é o mesmo que dizer que esses não se enquadravam na sociedade, devendo ser isolados para que recebessem o devido tratamento moral, uma vez que os ‘loucos’ resistiam às normas burguesas e mantinham-se fora das ordens do capitalismo incipiente, rompiam com sua ética, sem submeter-se às ordens do trabalho, por isso acreditava-se que para eles “o trabalho tinha justamente uma função corretiva, de disciplinamento” (ANDRADE, 2013, p.38). A capacidade para trabalhar, ou melhor, a capacidade para produzir, é tão valiosa na concepção taylorista-fordista do homo economicus, que o imperativo do trabalho, sempre visando o maior lucro possível, a maior extração de mais-valia, não se restringiu aos ‘loucos’, não esteve limitado às formações subjetivas enquanto tratamento para a loucura/alienação mental, mas expandiu-se à Formação Social de tal maneira que, de modo geral, todos os trabalhadores foram considerados incapazes de conduzir suas próprias vidas e pensar por si mesmos (ANDRADE, 2013). Esse argumento justificou a intervenção de outro que pudesse dirigir os fazeres e controlar as produções, ocasionando definitivamente separação entre o saber e o fazer, entre o trabalho intelectual e o material. Castel (1978) ao fazer um paralelo entre a psiquiatria e o 39 liberalismo no séc. XIX considera que há relações estreitas entre as formas de dominação- subordinação adotadas pelo capitalismo e os movimentos alienistas e higienistas. Substituamos o ‘indigente’ por uma das múltiplas qualificações aplicadas hoje às diversas variedades de ‘excluídos’ de um sistema de exploração e normalização. Teremos a fórmula geral de uma política de assistência numa sociedade de classes, com o lugar marcado, também para todas as medicinas sociais ou mentais, passadas, presentes ou futuras. E também a chave da relação entre psiquiatria clássica e a problemática do trabalho. Não tanto (senão por acréscimo) a recuperação de uma mais-valia. Mas sim, a restauração de uma ordem cuja lei econômica pode ser a extração da mais-valia porque sua lei moral é a sujeição às disciplinas (CASTEL, 1978, p.141). Verificam-se analogias entre a exploração do proletariado nas fábricas e do ‘louco’ nos asilos. O capitalismo “consolidou hegemonias secularmente mantidas tanto na produção de riqueza na exploração do trabalhador pelos donos do capital quanto pela produção de teorias e técnicas de tratamento da doença mental” (ANDRADE, 2013, p.39). Dissimulando os interesses capitalistas, a psiquiatria da época estabeleceu que o uso da ocupação deveria ser a base dos tratamentos oferecido nos asilos, assim o Tratamento Moral inspirou todos os meios de trabalho psiquiátricos e terapêuticos no início do século XX. A Psiquiatria viu-se impotente para evitar a incapacitação social dos traumatizados, ou “neuróticos de guerra”, como foram chamados. Nesse contexto, vimos outras disciplinas ganharem espaço no cenário mundial, por exemplo, a TO, que teve origem mais como um interesse do capital, não tanto como uma necessidade social, conforme indica Ferrigno (1991), sobretudo, dado o fato de que suas práticas tinham baixo ou nenhum custo financeiro, e, no mais das vezes eram de assistencialismo. […] a Terapia Ocupacional foi instituída não apenas para responder as reivindicações dos trabalhadores e melhorar o nível de atendimento das pessoas com disfunções na realização das atividades, mas também para atender aos interesses do capitalismo. Para tanto, o sistema social implementou diversas políticas sociais, entre as quais a reabilitação, buscando neutralizar as pressões populares em relação às condições de saúde. Ao mesmo tempo, nos países onde o processo de industrialização estava se desenvolvendo, teve como objetivo o aumento do exército industrial de reserva. A Terapia Ocupacional foi assim se desenvolvendo, para atender principalmente, uma demanda para reabilitação profissional dos trabalhadores (FERRIGNO, 1991, p.4). O uso da ocupação como terapêutica até a regulamentação da TO como profissão recebeu diversos nomes: tratamento moral, tratamento do trabalho, terapia do trabalho, tratamento da ocupação, reeducação ocupacional, ergoterapia, laborterapia e praxiterapia 40 (BENETTON, 2006). As muitas representações que assumiram os tratamentos morais nada mais são do que variáveis do alienismo, sendo que o mais importante é perceber, como expõem Guattari e Rolnik (2005), que o movimento alienista gerou serialização das subjetividades. E o mesmo podemos dizer do Modo Capitalista de Produção. Embora as nomenclaturas tenham variado, há que se ponderar o fato de que a terapia ocupacional sempre teve como meta suprimir os sintomas, e promover adaptação social. Podemos pensar que a constituição da terapia ocupacional enquanto disciplina tem sua origem em bases históricas, culturais, econômicas, éticas, políticas e conceituais. Para entendê-las faz-se necessário compreender o contexto sócio-histórico e econômico no qual ela esteve inserida, bem como os percursos da profissão. 4. O MODO CAPITALISTA DE PRODUÇÃO E O PROCESSO ESTRATÉGICO DE HEEGEMONIA: UMA OUTRA COMPREENSÃO DA TERAPIA OCUPAC IONAL ENQUANTO DISPOSITIVO DE PRODUÇÃO SOCIAL DE SAÚDE O Modo de Produção indica as formas de existência, de relacionamento social e de subjetivação possíveis numa sociedade, portanto, está diretamente relacionado às maneiras como as questões sociais, o sofrimento psíquico e também as patologias orgânicas se materializam e são vivenciadas. Não é por coincidência que atualmente muitas pessoas sofrem de “transtornos compulsivos” e doenças relacionadas ao trabalho como as lesões por esforços repetitivos, havendo ainda sujeitos que, no seu estilo subjetivo fazem objeções radicais ao MCP, vivendo em situação de rua e excluídos do mercado de trabalho; sujeitos que romperam com o imperativo da produtividade, os ideais da família patriarcal, entre outros. A sociedade gira em torno de uma relação bem estabelecida: possuidores de propriedade X trabalhadores sem propriedade. No MCP, o trabalho se enuncia como sociabilidade mediado pelos bens de consumo, e numa análise minuciosa, como desumanização, já que o trabalhador é reduzido a uma energia física, força de trabalho, que interessa apenas enquanto mercadoria (MARX, 2004). A base econômica do MCP estabelece que a produção de riquezas por meio do trabalho, significa, proporcionalmente, miséria dos trabalhadores, uma vez que o Capital tem interesse contrário aos interesses da sociedade em 41 seu conjunto, ou seja, da maioria populacional que compõe o polo subordinado (MARX, 2004). Muitas são as pessoas em sofrimento psíquico intenso que não conseguem se enquadrar na Economia de Mercado, e, portanto, lhe são inúteis, e não desejáveis na “sociedade do trabalho” (ARENDT, 1995), especialmente porque elas denunciam os fracassos do Capitalismo e indicam a ineficácia das políticas públicas e o modo excludente como são tratados os que não podem produzir e consumir em larga escala. O MCP é implacável com aqueles que por uma certa conjuntura psíquica, orgânica e/ou social não conseguem se ajustar à sua lógica de funcionamento; deles se encarregam, principalmente, as políticas da Saúde e da Assistência Social, “por toda parte se colocará a mesma pergunta aterradora, que ronda o mundo há dois séculos: como fazer trabalhar os pobres, ali onde a ilusão de dissipou e toda força foi abatida?” (DEBORD, 2003, p.9). Toda Formação Econômica e Social abarca interesses divergentes. Os conflitos de interesses entre o polo dominante e o polo subordinado, esse jogo de forças que se opõem, produz impasses, comumente traduzidos em sofrimento psíquico, de maneira que os sintomas desencadeadores de crises e rupturas vêm enunciar uma objeção ao contexto no qual emergiram e do qual são consequências: “O sofrimento expressa sempre, em boa dose, aquilo que fracassa em alcançar a direção das pulsações instituintes” (COSTA-ROSA, 2013, p.108). Com efeito, dada a indissociabilidade entre realidade psíquica e realidade social, o trabalho em SMC ultrapassa o psiquismo dos indivíduos. É preciso considerar os fatores subjetivos, econômicos, sociais, culturais e políticos que fizeram com que os sujeitos da experiência dos sintomas e do sofrimento buscassem por tratamento (COSTA-ROSA, 2013). Na nossa prática, é imprescindível ter em mente que a instituição é um intermediário necessário quanto às formas de atenção à saúde, logo não há produção de subjetividadessaúde que não passe por sua mediação. Em termos gerais, o Movimento Institucionalista derivado da Análise Institucional (LOURAU, 1975; ALTOÉ, 2004) diz que, mais-além do que Estabelecimentos arquitetônicos, como estamos habituados a pensar, as instituições são lógicas: “podem ser leis, podem ser normas e, quando não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser hábitos ou regularidades de comportamentos” (BAREMBLITT, 1992, p.25). Numa instituição coabitam várias disciplinas, que, sempre têm, explícitos ou não, um discurso, uma ética e um referencial que lhes direciona as ações, sendo que estes vão compor 42 o que chamamos de paradigma. “Nós aprendemos dos campos da Saúde e da Saúde Mental Coletiva ainda outra concepção de paradigma: conjuntos articulados de valores e interesses que se estratificam, criam dispositivos (leves e pesados) e podem chegar à polarização” (COSTA-ROSA, 2013, p.76). A Sociedade é como uma rede de instituições que “se interpenetram e se articulam entre si para regular a produção e a reprodução da vida humana” (BAREMBLITT, 1992, p.27). Uma instituição define-se pela sua função, pela sua área de atuação, por exemplo, Saúde, Educação, Assistência Social, entre outras e pelo paradigma em questão. Dessa maneira, cada instituição e cada disciplina recorta da Demanda Social o ‘objeto’ de suas práticas, seu referente de ação. A Demanda Social está relacionada às pulsações resultantes dos conflitos da luta de classe que se dão no Território (COSTA-ROSA, 2013), entendendo o mesmo para além do espaço físico e geográfico, mas como espaço vital: econômico, político, sociocultural e subjetivo, conforme o ideário da 8° Conferência Nacional de Saúde de 1986 (CNS, 1986). Antes de se traduzir nos pedidos de ajuda ou nas buscas por tratamentos, a Demanda passa por mediação imaginária e ideológica para vir a expressar-se em encomendas (LOURAU, 1975), geralmente pedidos de ajuda, que é como ela chega às instituições. Esse processo de transformação da Demanda em encomenda depende dos impasses de subjetivação com os quais se lida, da territorialidade das queixas e da maneira como a instituição a que esta encomenda é direcionada se posiciona no Território. Considerando que a demanda gera a oferta e a oferta também gera a demanda (COSTA-ROSA, 2013), se o Modo de Produção da instituição está no PPHM, as encomendas aparecerão como solicitações de resolutividade por meio dos fármacos, das internações, entre outros. Enfim, pedidos de soluções rápidas, de suprimentos. Os impasses sociais e psíquicos que desencadeiam as rupturas e as crises trazem consigo um questionamento, uma objeção ao instituído familiar e social dominante (COSTA- ROSA, 2013), portanto, é preciso deixar explicitado que as instituições cumprem uma função específica de agenciamento dessas crises, no sentido de minimizá-las. As instituições por meio de suas ideologias e práticas (re)produzem formas históricas de dominação- subordinação que possam assegurar as relações de poder exercidas pela classe social dominante sobre a classe social subordinada (BAREMBLITT, 1992). 43 Numa instituição há dois movimentos importantes: o instituído e o instituinte. O instituído corresponde às relações sociais hegemônicas e o instituinte é o conjunto de forças capaz de imprimir transformações sociais. Esses movimentos estão compreendidos no Processo Estratégico de Hegemonia (PEH) (GRAMSCI apud COSTA-ROSA, 1987). O PEH é mecanismo no qual se busca assegurar a manutenção da Formação Social vigente, manter em equilíbrio interesses dominantes e subordinados. Devido à preponderância ideológica e material do polo social dominante, geralmente ele mantém assegurados seus interesses em detrimento dos interesses do polo subordinado (COSTA-ROSA, 2013). Então, é evidente que o instituído cumpre um papel histórico importante, porque as leis criadas, as normas constituídas ou os hábitos, os padrões, vigoram para regular as atividades sociais […]. Então, é importante saber que a vida social – entendida como o processo em permanente transformação que deve tender ao aperfeiçoamento e visar a maior felicidade, maior realização, maior saúde e maior criatividade de todos os membros – só é possível quando […] a relação e a dialética existentes entre o instituinte e o instituído, entre o organizante e o organizado (processo de institucionalização-organização) se mantêm permanentemente permeáveis, fluidas, elásticas (BAREMBLITT, 1992, p.30-31). Nenhuma instituição opera sozinha, a interpenetração e o entrelaçamento existem entre todas as organizações, estabelecimentos, agentes, etc (BAREMBLITT, 1992). São incontáveis ferramentas para (re)produzir adaptação, correção e normalização, ou, em outras palavras, para manter o instituído social dominante. Nesse plano de análise, inferimos que as instituições são criadas para metabolizar e escamotear as tensões oriundas das pulsações instituintes que não alcançaram êxito; elas existem em virtude das encomendas sociais de “atenuação de sofrimento”, de reinserção do indivíduo na produção, na família e na sociedade; estão visceralmente referidas às conjunturas específicas pelas quais surgiram. Os dispositivos institucionais da Saúde, não diferentemente dos dispositivos da Assistência Social, da Educação e da Justiça, operam como Aparelhos Ideológicos do Estado – AIE (ALTHUSSER, 1983), dado que existem para administrar as misérias humanas e tamponar as problemáticas orgânicas, psíquicas e sociais que surgem como (d)efeitos do laço social capitalista e do PPHM. Está claro que o intuito do Estado é reabilitar os que sofrem, reinseri-los socialmente para fazê-los retornar ao modelo societário dominante, sobretudo como trabalhadores, mão de obra para o MCP. “O discurso médico, aquele que se impõe entre o médico e o doente, é um discurso normativo, o que implica que ele tenha uma sanção, a 44 sanção terapêutica” (CLAVREUL, 1983, p.20). Esse discurso ideológico de reab