UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE MEDICINA Miriam Fernanda Sanches Alarcon Daniel Idoso vítima de violência: a interface entre a assistência à saúde, a assistência jurídica e a assistência social para o desenvolvimento de intervenções Tese apresentada à Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de Botucatu, para obtenção do título de Doutora em Enfermagem- Programa de Pós-Graduação em Enfermagem- Mestrado Acadêmico e Doutorado. Orientadora: Maria José Sanches Marin Co-orientadora: Luzmarina Aparecida Doretto Braccialli Botucatu 2020 Miriam Fernanda Sanches Alarcon Daniel Idoso vítima de violência: a interface entre a assistência à saúde, a assistência jurídica e a assistência social para o desenvolvimento de intervenções Tese apresentada à Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Câmpus de Botucatu, para obtenção do título de Doutorada em Enfermagem- Programa de Pós- Graduação em Enfermagem- Mestrado Acadêmico e Doutorado. Orientadora: Maria José Sanches Marin Co-orientadora: Luzmarina Aparecida Doretto Braccialli Botucatu 2020 Miriam Fernanda Sanches Alarcon Daniel Idoso vítima de violência: a interface entre a assistência à saúde, a assistência jurídica e a assistência social para o desenvolvimento de intervenções Tese apresentada à Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Botucatu, para obtenção do título de Doutora em Enfermagem- Programa de Pós-Graduação em Enfermagem- Mestrado Acadêmico e Doutorado Comissão examinadora: ____________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria José Sanches Marin (Orientadora) Departamento de Enfermagem Universidade Estadual Paulista ________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Silvia Cristina Mangini Bocchi Departamento de Enfermagem Universidade Estadual Paulista ________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Carmen Maria Casquel Monti Juliani Departamento de Enfermagem Universidade Estadual Paulista ______________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Márcia Aparecida Padovan Otani Curso de Enfermagem Faculdade de Medicina de Marília _____________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Fernanda Moerbeck Cardoso Mazzetto Curso de Enfermagem Faculdade de Medicina de Marília Aos meus amados pais, que me ensinaram tudo o que sou. Eternos incentivadores dos meus estudos e conquistas. Às minhas Avós Luzia (In memoriam) e Agesilda, amores da minha vida, exemplo de vida, por todo amor que me dedicaram. Ao meu esposo Alex. Pelo amor, carinho, apoio incondicional, compreensão e companheirismo com que me acompanha nessa jornada. O meu amado filho, por tudo que ele me ensina sobre amar incondicionalmente e representa em minha vida. AGRADECIMENTOS Chegar ao término deste estudo proporcionou-me uma recompensa pessoal e profissional da qual não tenho palavras, de tal forma, gostaria de agradecer a todo o incentivo e confiança das pessoas que fazem parte da minha vida. Aos meus pais, Adolfo e Ivone, agradeço por todo apoio, incentivo e exemplo de persistência e dedicação, pois foram e são fundamentais em minhas conquistas. Ao Alex, meu maior incentivador e companheiro de vida, que me motivou nos momentos difíceis e compreendeu minha ausência da forma mais doce. Ao meu filho Kauan, amor da minha vida, que tenho certeza que um dia vai entender a minha ausência e o que fiz por ele até aqui. Agradeço também ao meu irmão, Marcos, e minha cunhada, Aryane, pela amizade e carinho constantes, estando sempre ao meu lado. Gostaria também de enfatizar minha admiração pela minha orientadora, Profª Drª Maria José Sanches Marin, a qual me proporcionou diversos ensinamentos e conselhos preciosos, além de sua estimável confiança. Considero uma honra e um orgulho tê-la como minha orientadora. Muito obrigada! À Profª Drª Luzmarina Aparecida Doretto Braccialli, a qual aceitou ser minha coorientadora. Agradeço também por todo respeito, incentivos e colaboração em meu desenvolvimento profissional. Aos membros da banca, os quais contribuíram com extrema competência na avaliação desta tese, eu agradeço por estarem presentes neste momento tão importante de minha vida acadêmica. Aos idosos e familiares que participaram da pesquisa, que me receberam em suas casas e compartilharam particularidades permitindo-me fazer parte de sua história, tornando este trabalho coletivo, meus sinceros agradecimentos. Aos meus colegas: Daniela Garcia Damaceno, Bruna Cardoso Carvalho, Murilo Oliveira, Vanessa Porto e Caroline Borges, agradeço por participarem junto a mim na equipe do projeto maior intitulado como: “Idoso vítima de violência: a interface entre a assistência à saúde, a assistência jurídica e a assistência social para o desenvolvimento de intervenções”. Agradeço à delegada da Delegacia de defesa da Mulher de Marília, Doutora Viviane Boacnin Yoneda Sponchiado, a qual, juntamente a sua equipe, desde o início, nos recebeu com muito comprometimento, colaborando à realização de todas as etapas do projeto. À assistente social Waldér da delegacia da mulher de Marília, pela sua sensibilidade, incentivo e orientações nos momentos certo. À Secretaria de Saúde de Marília pela boa receptividade, e aos profissionais da atenção básica por ter aceitado participar desse estudo. À Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) pelo afastamento integral durante o doutorado. Às minhas amigas e professoras da Universidade Estadual do Norte do Paraná, Prof.ª Ms. Ana Cândida Martins Grossi Moreira e Prof.ª Drª Carina Bortolato-Major. Obrigada pelo incentivo e amizade. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e a Fundação de Amparo à pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), nº do processo 2018/14170-9. Ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Faculdade de Medicina de Botucatu, pela oportunidade de formação profissional. Ao César Guimarães, do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, pela disponibilidade. Enfim, agradeço a todos que de alguma forma foram importantes para minha jornada pessoal e, igualmente, à realização desta tese. RESUMO ALARCON, M. F. S. Idoso vítima de violência: a interface entre a assistência à saúde, a assistência jurídica e a assistência social para o desenvolvimento de intervenções [tese]. Botucatu: Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista. 2020. Introdução: A violência contra a pessoa idosa caracteriza-se por um fenômeno complexo que atinge os países desenvolvidos e subdesenvolvidos, sendo um problema social, político e de saúde, o qual acarreta prejuízo ao idoso além de graves consequências para o desenvolvimento pleno e integral. Objetivo: Compreender o contexto da violência contra o idoso no município de Marília. Métodos: Trata-se de um estudo com desenho de métodos múltiplos, de análise quantitativa e qualitativa, realizado em um município de médio porte do interior de São Paulo, com uma população de 216.745 hab/km2, da qual 13,6% são idosos, tendo como fonte de dados: revisões da literatura, análise documental (boletim de ocorrência), entrevistas e grupo focal. Para as duas revisões da literatura, sendo uma sobre o cuidado prestado às vítimas e outra sobre o agressor, foram seguidos os passos da revisão integrativa da literatura. Os dados quantitativos foram digitados em planilha eletrônica, enquanto análises estatísticas foram realizadas com o software Statistical Package for Social Sciences, versão 25.0.0.0. Análises Teste de Qui-quadrado de Pearson e a extensão do teste Exato de Fisher. Conclusões foram obtidas pelas análises inferenciais com nível de significância igual a 5% (p≤0,050). A análise dos dados qualitativos pautou-se na hermenêutica dialética, análise de conteúdo e na análise temática. Após a análise dos dados, desenvolveu-se uma intervenção pautada no modelo Calgary de avaliação e intervenção na Família. Resultados: A revisão da literatura sobre a assistência ao idoso vítima de violência revela a falta de articulação entre os setores responsáveis, de protocolos de assistência e de definição de fluxo e organização, além do despreparo dos profissionais. Aborda ainda as características dos agressores, mostrando que geralmente são os filhos da vítima, os quais, na maioria das vezes, relataram arrependimento dos seus atos, sendo o fator desagregador mais comum para tais atos: o uso de álcool e drogas, desemprego, histórico de violência familiar, proximidades entre agressor e vítima e a dependência financeira. Na análise dos boletins de ocorrência, encontrou-se o predomínio da violência financeira em homens e, entre as mulheres, os outros tipos. Predominou no estudo a cor da pele branca, aqueles que vivem com companheiro e a ocorrência deu- se no domicílio da vítima. Houve também predomínio de agressores do sexo masculino. Na violência financeira, o perfil da vítima foi caracterizado: sexo masculino (50,72%); faixa etária de 60 a 69 anos (56,6%) e que vivia com companheiro (48,33%). A violência financeira contra o idoso é cometida principalmente por desconhecidos (85,6%) dos casos e por familiares dos idosos (6,7%). As características sociodemográficas da maioria dos agressores também eram desconhecidas. Identificaram-se três núcleos de sentido referentes aos tipos de violência financeira: apropriação e dano; exposição ao estelionato/extorsão e furto/roubo. Ao ser verificada a percepção do idoso sobre a situação vivenciada, encontra-se sentimentos de frustração, angustia, revolta e raiva. Apesar da denúncia de violência, o idoso tende a não culpar seu agressor, que muitas vezes é um parente próximo, além de justificar o comportamento agressivo ao correlacionar com más influências e até mesmo doenças mentais como causa da agressão. No que se refere às vivências dos profissionais da atenção básica em relação a violência contra o idoso, evidenciou-se que os profissionais suspeitam e identificam casos de violência física, financeira e, principalmente, a de negligência, sendo o principal autor da agressão um membro da família. Reconhecem que os idosos se encontram em contextos de vida complexos e muitas situações estão além de suas capacidades de intervenção. Expressaram medo e insegurança na realização da denúncia e desconhecem o papel dos demais serviços, tornando a abordagem ainda mais complexa. As ações realizadas pelos profissionais referem-se a encaminhamentos para outros serviços de atenção ao idoso; direcionam cuidados aos idosos e familiares, essencialmente por meio de notificação dos casos de agressão, acolhimento, conversa e reunião com familiares, agendamento de consultas e visitas domiciliares. Sugeriram melhorar a articulação interprofissional, estabelecer fluxos e serviços de referência ao idoso. No processo de intervenção realizado a quatro famílias de idosos vítima de violência por meio do modelo Calgary de avaliação familiar, verificou-se que os integrantes das famílias apresentaram baixa escolaridade e dificuldades financeiras. Quanto a rede de suporte social, destacam-se os vizinhos, a unidade de saúde e a Igreja. Considerações finais: São necessários esforços conjuntos e articulações dos setores envolvidos na assistência ao idoso vítima de violência, visando o melhor amparo dessa parcela da população que passa por intenso sofrimento. Descritores: Idoso; Violência; Envelhecimento; Saúde do Idoso; Atenção primária à saúde; Saúde da família; Enfermagem. ABSTRACT ALARCON, M. F. S. Elder abuse victim: the interface of Healthcare, Legal and Social assistance for the development of interventions [tese]. Botucatu: Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista. 2020. Introduction: Violence against the elderly is characterized by a complex phenomenon that affects developed and underdeveloped countries, being a social, political and health problem, which causes harm to the elderly besides of serious consequences for full and integral development. Objective: To understand the context of violence against the elderly at Marilia city. Methods: This is a study with multiple method design of quantitative and qualitative analysis, accomplished in a medium-sized city at the interior of São Paulo, with 216,745 inhabitants, which 13.6% are elderly, using as a data source: literature reviews, document analysis (police report), interviews and focus group. For the two literature reviews, one on the care provided to the victims and the other on the aggressor, the steps of the integrative literature review were followed. Quantitative data were entered into an electronic spreadsheet, while statistical analyzes were performed using the Statistical Package for Social Sciences software, version 25.0.0.0. Analysis Pearson's Chi-square test and the extent of Fisher's exact test. Conclusions were obtained by inferential analysis with significance level α equal to 5% (p≤0.050). The analysis of qualitative data was based on dialectical hermeneutics, content analysis and thematic analysis. After analyzing the data, an intervention based on the Calgary model of evaluation and intervention in the Family was developed. Results: The literature review on assistance to elderly victims of violence reveals the lack of coordination between the sectors responsible, assistance protocols and definition of flow and organization, besides the professionals' unpreparedness. It also addresses the characteristics of the aggressors, showing that they are usually the victim's sons and daughters, who, most of the time, reported regret for their acts, being the most common disaggregating factor for such acts: the use of alcohol and drugs, unemployment, history family of violence, proximity between aggressor and victim and financial dependence. In the analysis of police reports, there was a predominance of financial violence in men and, among women, other types. White skin color, those who live with a partner and the aggression occurred at the victim's home was predominated in the study. There was also a predominance of male aggressors. In financial violence, the victim's profile was characterized: male (50.72%); age group from 60 to 69 years old (56.6%) and who lived with a partner (48.33%). Financial violence against the elderly is committed mainly by strangers (85.6%) and by relatives of the elderly (6.7%). The sociodemographic characteristics of most aggressors were also unknown. Three cores of meaning were identified regarding the types of financial violence: appropriation and damage; exposure to fraud/extortion and theft/robbery. When the elderly's perception of the situation is verified, feelings of frustration, anguish, revolt and anger are found. Despite the report of violence, the elderly tends not to blame their aggressor, who is often a close relative, besides of justifying aggressive behavior by correlating it with bad influences and mental illness as the cause of the aggression. With regard to the experiences of primary care professionals in relation to violence against the elderly, it was shown that professionals suspect and identify cases of physical and financial violence and especially negligence, with the main author of the aggression being a member of the family. They recognize that the elderly are in complex life contexts and many situations are beyond their capacity for intervention. They expressed fear and insecurity in making the complaint and are unaware of the role of other services, making the approach even more complex. The actions taken by the professionals refer to forward the cases to other elderly care services; direct care to the elderly and family members, essentially by notifying cases of aggression, welcoming, talking and meeting with family members, scheduling appointments and home visits. They suggested improving interprofissional articulation, establishing reference flows and services for the elderly. In the intervention process accomplished on four families of elderly victims of violence through the Calgary model of family assessment, it was found that the members of the families had low education and financial difficulties. As for the social support network, was realized the importance of the neighbors, the health unit and the Church. Final considerations: Joint efforts and articulations of the sectors involved in elderly assisting victims of violence are necessary, aiming the best protection of this population that is going through intense suffering. Descriptors: Elderly; Violence; Aging; Health of the Elderly; Primary health care; Family Health; Nursing. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ..................................................................................................... 11 1. INTRODUÇÃO .................................................................................................... 15 2. REFERENCIAL TEÓRICO HERMENÊUTICA DIALÉTICA ................................ 22 2.1 A Hermenêutica- dialética como referencial teórico ......................................... 22 2.2 Dialética ........................................................................................................... 25 2.3 Hermenêutica e dialética.................................................................................. 26 3. OBJETIVOS ........................................................................................................ 27 3.1 Objetivo Geral .................................................................................................. 27 3.2 Objetivos Específicos ....................................................................................... 27 4. MÉTODO ............................................................................................................ 28 4.1 Tipo de estudo ................................................................................................. 28 4.2 Cenário/campo ................................................................................................. 29 4.3 Participantes da pesquisa ................................................................................ 30 4.4 Procedimentos para coleta de dados ............................................................... 30 4.5 Análise dos dados ............................................................................................ 32 4.6 Aspectos Éticos ............................................................................................... 35 5. RESULTADOS E DISCUSSÃO .......................................................................... 36 5.1 Assistência ao idoso vítima de violência: revisão integrativa ........................... 36 5.2 Evidências acerca do agressor em casos de violência contra o idoso: revisão integrativa .............................................................................................................. 50 5.3 violência sobre a pessoa idosa: um estudo documental .................................. 61 5.4 Violência financeira: circunstância da ocorrência contra idosos ...................... 69 5.5 Percepção do idoso acerca da violência vivida ................................................ 80 5.6 Violência contra a pessoa idosa: percepções das equipes da atenção básica à saúde ..................................................................................................................... 91 5.7 Violência contra o idoso: ações e sugestões dos profissionais da atenção primária à saúde .................................................................................................. 108 5.8 Idoso vítima de violência: Avaliação da família por meio do modelo Calgary 125 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 147 REFERÊNCIAS: INTRODUÇÃO, REFERENCIAL TEÓRICO E MÉTODO ............. 150 ANEXO A ................................................................................................................ 155 11 APRESENTAÇÃO Dizem que não escolhemos nossos objetos de estudo, mas que os objetos nos escolhem. Não me recordo de quem é esta afirmação ou em que contexto ouvi esta expressão, apenas sei que lembrei-me muito dela durante toda a construção deste trabalho. Formei-me em 2005 na área de Enfermagem e, meu primeiro emprego foi na unidade de terapia intensiva e neste contexto que passei a exercer a função de docente a partir de 2006. Os anos de docência mostraram-se fundamentais ao meu crescimento pessoal e profissional, além de motivar para avançar na formação profissional, com compreensão de que este processo se trata de uma necessidade e reveste-se de suma importância, sendo assim, iniciei minha trajetória na pós-graduação, mestrado e, conseguinte, doutorado. No mestrado, trabalhei com a Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP), por se tratar de um grande desafio nas propostas de ensino e aprendizagem voltados para a formação do enfermeiro. Os resultados deste possibilitou novas formas de pensar e agir no exercício da docência, mesmo que a implementação do método na sua totalidade não tenha sido possível no meu contexto de trabalho. No doutorado, logo no início, minha orientadora, convidou-me para participar do Projeto maior intitulado: “Idoso vítima de violência: a interface entre a assistência à saúde, a assistência jurídica e a assistência social para o desenvolvimento de intervenções”, o qual pretendia atender à solicitação de um setor da Polícia Civil de Marília em parceria com Instituição de Ensino Superior (IES), na área de saúde, na qual a orientadora se insere, com a intenção de prover maior suporte à população idosa vítima de violência. Prontamente aceitei o desafio, uma vez que em minha trajetória de trabalho na unidade de terapia intensiva, muitas vezes, tive a infelicidade de conviver com idosos vítimas de violência, condição que sempre me levou à indignação e a reflexões a respeito do entorno desse tipo de acontecimento. Portanto, me envolver na construção e no desenvolvimento de um projeto com tal temática, que, além da pesquisa tinha como finalidade a sensibilização de diferentes setores da sociedade 12 referentes ao público idoso, buscando promover um envelhecimento saudável e um ambiente seguro de prevenção à violência, passou a fazer parte do meu cotidiano no decorrer do doutorado. Assim, permaneci um período por semana na Delegacia de Polícia, durante os três primeiros anos de doutorado, em um trabalho conjunto com mais uma doutoranda, uma bolsista de treinamento técnico, além de outros integrantes da equipe como uma estudante de medicina, uma residente do Programa Multiprossional em Saúde Coletiva e um médico psiquiatra mestrando. A partir dessa inserção, foi possível a constatação da complexidade e da diversidade que envolve a realidade dos idosos que sofrem violência. Foi nesta dinâmica e em um processo de constante reflexão que as ideias foram surgindo e novas buscas e novos recortes foram sendo elaborados. Adentramos na Delegacia de Polícia tendo como proposta inicial realizar um fluxograma de atendimento a pessoa idosa vítima de violência nos diferentes serviços de assistência e analisar os principais nós críticos. Minha participação neste trabalho possibilitou a coautoria no artigo “Fluxograma descritor no atendimento à pessoa idosa vítima de violência: Uma perspectiva interdisciplinar”, além de conhecer mais detalhadamente os recursos e as dificuldades inerente à assistência ao idoso do município em pauta. No decorrer dos estudos voltados para a temática, foi realizada uma revisão integrativa da literatura acerca da assistência ao idoso vítima de violência, dando origem ao artigo intitulado “Assistência ao idoso vítima de violência: Revisão integrativa”, esse artigo foi apresentado no 7º congresso Ibero – Americano em Investigação qualitativa, no qual foi aceito como capítulo, no livro: Ciências da Saúde: da teoria à prática 3. Atena Editora, 2019. ISBN: 978-85-7247-395-8.DOI: 10.22533/at.ed.958191306. Além disso, passou a ser um tema intrigante as questões relacionadas ao agressor do idoso. Para tanto foi realizada uma revisão integrativa da literatura. Tal revisão teve como objetivo identificar, nas produções nacionais e internacionais, as evidências acerca do agressor em casos de violência contra o idoso, o que resultou no artigo intitulado “Evidências Acerca do agressor em casos de violência contra o idoso: Revisão integrativa” Na sequência, a partir de uma análise dos boletins de ocorrência com o objetivo de associar as características sociodemográficas de idosos vítimas de violência e dos 13 agressores com os tipos de violência, foi elaborado o artigo “Violência sobre a pessoa idosa: Um estudo documental”. Na análise dos boletins de ocorrência, a partir da constatação de que a maioria das ocorrências tinha como causa a violência financeira, decidiu-se uma análise mais aprofundada desse tipo de violência, com o objetivo de analisar as ocorrências de violência financeira contra idosos, com o artigo intitulado “Violência financeira: Circunstâncias da ocorrência contra idosos. A partir desse reconhecimento e em franca parceria com os profissionais da delegacia de polícia, passamos a fazer atendimento aos idosos e seus familiares, tanto na própria delegacia como por meio de Visitas Domiciliares. No decorrer desse contato com os idosos, entrevistas com os mesmos permitiram responder ao objetivo de analisar a percepção do idoso acerca da violência sofrida. Este recorte, foi realizado a partir de entrevistas com 15 idosas vítimas de violência, esse artigo foi publicado na Revista Baiana de Enfermagem. Em outro artigo foram coletados dados a partir de quatro grupos focais que contaram com a participação de 30 profissionais da atenção básica à saúde das diferentes categorias que integram a equipe. A análise desses dados, possibilitaram a realização de dois artigos, os que foram discutidos sob a perspectiva da hermenêutica/dialética. O primeiro recorte teve como objetivo compreender como os profissionais das equipes de atenção primária a saúde percebem a violência contra a pessoa idosa. Esse recorte foi elaborado no formato de artigo e posteriormente publicado na Revista Texto e Contexto enfermagem. A partir dos dados do mesmo grupo focal, desenvolveu se um artigo que teve como objetivo: analisar as ações e sugestões dos profissionais da atenção primária à saúde em relação à violência contra o idoso. Esse material em forma de manuscrito foi enviado para a Revista Brasileira de Enfermagem. Ainda no contexto do cuidado ao idoso vítima de violência no contexto familiar, foi desenvolvido um estudo que contou com o instrumental do Modelo Calgary de Avaliação e Intervenção na Família. Desta forma, foi possível a avaliação de quatro família, identificação de suas fortalezas e fragilidades e o estabelecimento de um plano de ação. O manuscrito oriundo desta intervenção, denominado de “Idoso vítima de violência: Avaliação da família por meio do modelo Calgary”. Foi enviado a Revista Gaúcha de Enfermagem. 14 A tese foi constituída de oito artigos: dois de revisão integrativa, dois relacionados a análise documental dos boletins de ocorrência da delegacia da mulher e quatro relacionados aos resultados obtidos a partir do material empírico da pesquisa de campo, conforme o quadro 1. Quadro 1 - Relação dos artigos produzidos de acordo com o título, periódico que foi encaminhado e situação da publicação. Botucatu. 2020. Artigos Títulos Revista / Capítulo de livro 1 Assistência ao idoso vítima de violência: Revisão integrativa Capítulo de livro: Ciências da Saúde: Da Teoria à Prática; v.3. Atena Editora. ISBN: 978-85-7247- 395-8 2 Evidências acerca do agressor em casos de violência contra o idoso: Revisão integrativa Revista Baiana de Enfermagem. DOI: 10.18471/rbe. v33.28184 3 Violência sobre a pessoa idosa: um estudo documental Revista Rene (Online) http://dx.doi.org/10.15253/2175- 6783.20192041450 4 Violência financeira: circunstâncias da ocorrência contra idosos. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia http://dx.doi.org/10.1590/1981- 22562019022.190182 5 Percepção do idoso acerca da violência vivida Revista Baiana de Enfermagem DOI: 10.18471/rbe.v34.34825 6 Violência contra a pessoa idosa: Percepções das equipes da atenção básica à saúde. Revista Texto e Contexto Enfermagem Santa Catarina 7 Violência contra o idoso: ações e sugestões dos profissionais da atenção primária à saúde Revista Brasileira de Enfermagem 8 Idoso vítima de violência: Avaliação da família por meio do modelo Calgary Revista Gaúcha de Enfermagem. Considerando a forma como ocorreu a construção da presente investigação, ressalta-se que as seções desta tese estão estruturadas em Introdução, Referencial 15 teórico hermenêutica dialética, objetivos, Método, Resultados e discussão de acordo com os artigos que foram produzidos, Considerações finais e Referências. 1. INTRODUÇÃO No Brasil e no mundo, o fenômeno do envelhecimento populacional encontra-se fortemente presente em discussões e reflexões. Haja vista tal preocupação com essa faixa etária, diversas políticas públicas têm acontecido a fim de efetivar a participação e a melhor qualidade de vida à pessoa idosa, com vistas a torna-los cada vez mais imersos nas esferas sociais presentes politicamente, na luta por seus direitos e pelo melhor atendimento a suas necessidades quotidianas. De acordo com dados de 2015 da Organização das Nações Unidas (ONU), os idosos representavam 12% da população mundial – 901 milhões de idosos. Estima- se ainda que nas regiões mais importantes do mundo, até o ano de 2050, a população idosa será de, praticamente, ¼ de sua população geral, com exceção do continente africano1. No contexto brasileiro, seguindo-se a tendência mundial, nos últimos censos exibiu-se uma pirâmide etária com aumento progressivo na proporção de pessoas idosas ao restante de sua população. Portanto, de 7,2 milhões, o número de idosos no Brasil aumentou para 20,6 milhões entre os anos de 1980 e 2010, dados estes realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.2 Segundo dados do IBGE, estima-se que a quantidade de idosos brasileiros representava 13% da população, sendo previsto para 2050 o percentual de 29% (IBGE, 2009). Ainda, segundo dados de 2015, a expectativa média de vida dos brasileiros era de 75,5 anos, frisando o fato de que há diferenças em cada região, sendo o estado do Maranhão com o menor número, 70,3 anos, e Santa Catarina o de maior número, 78,7 anos.3 Entende-se que o processo de envelhecimento no mundo, em especial nos países emergentes como o Brasil, este processo ocorreu de forma intensa e sem controle, o que dificultou o assegurar do bem estar de vida dessa população e o atendimento devido aos seus direitos. Entretanto, com o avanço tecnológico e o avanço social, tende-se à melhoria da qualidade de vida da terceira idade. A violência é considerada um fenômeno social, o qual está presente na sociedade desde seus primórdios, atingindo todas as faixas etárias, de crianças a 16 idosos, porém, o que a difere dentre as idades são os tipos e a gravidade dessa violência. Assim sendo, estuda-se, observando a generalização e sua frequência, a naturalidade com que a violência é aceita em certas ocasiões e suas devidas consequências, as quais são, muitas vezes, graves à vida e à saúde humana. De tal forma, a violência contra a pessoa idosa, objeto abordado nesta tese, é o foco das pesquisas, tendo em vista o crescimento demográfico deste público no Brasil e no mundo. Ressaltando as informações conhecidas até então, defende que este fenômeno não é atual, porém, o foco neste assunto e o engajamento sobre tal área, somente vieram a ocorrer nas últimas décadas.4 A violência é caracterizada como uso de poder, seja físico ou psicológico, contra um indivíduo ou comunidade, que causa sofrimento físico/psíquico, morte, prejuízo ou mesmo privação. Compreende-se ainda que a violência é um processo de múltiplas causas e está disposta mundialmente.5 A violência está presente em nossa sociedade desde seus primórdios, seja nas esferas culturais, econômicas ou sociais, e representa um problema social de saúde coletiva, a qual se manifesta e pode até mesmo evoluir.6 Entende-se que o reconhecer de idosos vítima de violência dentro de seu contexto familiar e de contextos institucionais foi tardio, sendo que apenas no final dos anos de 1970 e no começo dos anos de 1980, compreendeu-se que este era um caso grave, de problemática social e de saúde pública, o que passou a ser considerado como uma violação dos direitos humanos.7 Os primeiros profissionais que alertaram e começaram a tomar e desenvolver medidas de intervenção sobre este tema foram os profissionais ligados à saúde e ao serviço social. Atualmente, o assunto tem se tornado constante e de grande visibilidade, abordando situações como: identificação da tipologia das vítimas e seus agressores; sinalização de fatores de risco e de proteção de abusos, além do desenvolvimento de teorias explicativas e modelos de intervenção, os quais têm sido estudados em instituições médicas e em instituições sociais.8 A Internacional Network for the Prevention of Elder Abuse relevou em seus estudos que um a cada quatro idosos estão em riscos de violência doméstica,9 porém, uma pequena porcentagem de casos é notificada, em sua maioria por possuir manifestações de abuso físico.10 A fim de ressaltar esse pensamento, é observado que a subnotificação dos casos ocorre por conta do medo dos idosos em sofrer represálias ou preconceitos sociais, além de estado de culpa, vergonha e 17 desamparo.11 Afirma-se ainda que a subnotificação também existe por conta do não entendimento do idoso de estar sofrendo violência ou por não admitirem estar, o que se dá por causa de crenças religiosas, culturais ou mesmo normas sociais de seus contextos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) organizou um relatório apresentando medidas e conceitos para atingir um envelhecimento saudável, reformulando políticas de saúde envolvendo essa faixa etária. Todavia, para que haja efetividade na consolidação e aplicação dessas medidas, uma transformação referente ao modelo preventivo e curativo de cuidados deve ocorrer, sendo substituído por um modelo interdisciplinar e multidisciplinar, além da aplicação de maior humanização nos processos de acompanhamento ao idoso. A humanização faz-se necessária uma vez que a visão da sociedade sobre as pessoas mais velhas tende de estar baseada de estereótipos, com acréscimo do fato de estarem mais suscetíveis a doenças e, consequentemente, à baixa qualidade de vida.1 De tal forma, atingir a independência e autonomia da pessoa idosa é a proposta fundamental de intervenção da saúde, pois a vulnerabilidade física e psicológica causada pelo envelhecimento pode gerar conflitos no contexto familiar, institucional e nas demais esferas sociais, estando propensos a sofrer quaisquer tipos de violência.12 Haja vista o contexto atual é possível afirmar que a violência contra a pessoa idosa nasce de um conflito de interesse entre as gerações, jovens e idosos, o que favorece ao preconceito contra estas pessoas de mais idade, as quais são consideradas obsoletas e são até mesmo excluídas socialmente.13 Apesar de a violência ser um ato presente em toda a sociedade e em diferentes faixas etárias, o agravante é potencializado na terceira idade por conta da vulnerabilidade física, emocional, econômica e social. Podemos caracterizar a violência como as seguintes: violência física/sexual, psicológica, financeira, de negligência e de violação dos direitos individuais. Ainda, a violência física e sexual encontra-se imbricadas, uma vez que a violência física envolve gerar dor física e lesão, como: empurrar, agarrar, bater e agredir, seja com objeto ou arma, enquanto a agressão sexual, também existe o contato físico, mas de natureza sexual, envolvendo demais comportamentos sexuais ofensivos.14 Dados do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA) demonstram que no ano de 2014, 12.297 casos de violência contra a pessoa idosa 18 foram notificados no Brasil, sendo 43,7% destes casos de repetição. 48,3% das vítimas eram de cor branca; 34,2% de baixa escolaridade – entre 0 a 4 anos de estudo e dentre todos os casos, 70,4% foram realizados dentro da residência da vítima. Dos tipos de violência, os dados demonstram que 64% foram de violência física/sexual; 28,2% psicológica/moral; 26,4% negligência/abandono e 7,4% financeira – destes, confirma-se que 28,4% foram agressões praticadas pelos filhos das vítimas. Analisou- se também que em 11,3% dos casos, lesões autoprovocadas foram constatadas, havendo, portanto, possibilidade de situações de sofrimento emocional, acarretado tal flagelo.15 Ao extraírem-se dados relacionados ao abuso contra pessoa idosa por sexo, entendeu-se que 54,7% dos casos de violência foram contra mulheres, nos quais 48,3% era de cor branca e 34,2% de baixa escolaridade – entre 0 a 4 anos de estudo – sendo destes, 79,5% dos casos, dentro da residência da vítima. Classifica- se como principais violências ocorridas: violência física/sexual com 59,4%; psicológica/moral com 36,3%; de negligência/abandono, 28,4% e financeira com 9,1%, sendo destes 33,4% praticadas pelos filhos das vítimas. 15 Em contra partida, já nos casos de violência contra idosos do sexo masculinos, a maioria também é de cor branca, sendo 45,9% dos casos, não possuindo informações sobre o grau de escolaridade em 51,2% dos casos. Destes, 59,3% ocorreram dentro do contexto familiar. Os tipos de violência mais visíveis foram: 69,3% violência física; 24% de negligência e 18,5% psicológica/moral, sendo 22,4% dos casos praticados pelos filhos da vítima. Ressalta-se o fato de que, diferente do sexo feminino, os homens idosos são a maior parcela populacional que sofre violência por pessoas desconhecidas. 15 A violência contra a pessoa idosa é uma problemática social de saúde pública e política que atinge tanto país desenvolvido, quanto países subdesenvolvidos, sendo classificado como um fenômeno complexo de graves consequências à população idosa e a seus direitos constitucionais.16 A violência não é algo existente apenas na sociedade moderna, mas nos tempos atuais foi intensificada por conta do capitalismo, uma vez em que há arbitrariedades e desigualdades sociais em grande escala. A violência sempre foi o cerne de disputas sociais, políticas, econômicas e culturais por se tratar de conflitos humanos, porém, possuem graves efeitos na população disposta socialmente como minoria. Esta ainda pode ser vista como um tema polêmico e muitas vezes é ignorada 19 por gerar incômodo, entretanto, a conscientização social deve ocorrer para que haja melhor qualidade de vida. Focalizando na faixa etária de pessoas idosas, entende-se que futuramente a parcela dessa população aumentará, assim sendo, devemos nos preocupar, ressaltando que todo idoso deve ter o direito de envelhecer com sentimentos saudáveis, com dignidade, saúde e integridade, tanto física, quanto psicológica. Compreende-se que muitos crimes de agressão contra idosos não são notificados por falta de provas concretas, sendo que muitos destes crimes ocorrem no contexto familiar e não possuem testemunhas. Todavia, ainda ocorre o fenômeno de, quando denunciado, muitos casos são passados às autoridades de forma sensacionalista, por meio de populares e vizinhos, dificultando à veracidade dos fatos e conseguintes ações.17 Um fato visível é de que com o rápido envelhecimento da população e o futuro aumento dessa faixa etária, há a falta de profissionais preparados e recursos públicos a fim de atender e amparar os idosos no Brasil, sendo necessário: estudos, reivindicações e políticas públicas para transformar essa atual realidade.18 No contexto da saúde, principalmente aos profissionais da área de enfermagem por possuírem contato direto com a população, é de alçada destes o trabalho de discutir e compartilhar fatos e assuntos referentes à saúde pública para a comunidade. Vale ressaltar que são as visitas às casas dos idosos que ajudam para que ocorra a identificação e notificação dos casos de violência19, haja vista que o profissional deve estar apto para observar com atenção expressões e demais comportamentos da pessoa idosa que podem demonstrar situações de risco. Segundo o Art. 230 da Constituição Brasileira Federal de 1988, entende-se que a família, a sociedade e o Estado devem amparar sua população idosa.20 Sendo assim, preservar um bom envelhecimento, envolto de direitos assegurados, liberdade, dignidade e preservação da saúde física e mental é dever de todos; sociedade e Poder Público. 21 Também a fim de defender as minorias e demais pessoas vulneráveis perante a realidade social, diversas outras Leis, como: Estatuto do idoso, lei Maria da Penha, Lei de tortura, dentre outras, entraram em vigor a fim de atingir um avanço social significativo.22 O estatuto do idoso possui como finalidade assegurar os direitos da população idosa, considerando a população acima de sessenta anos de idade, classificada como faixa populacional fragilizada e suscetível à violação de seus 20 direitos e demais autonomias. Ainda, cabe ao Estatuto garantir direitos relacionados à liberdade, alimentação, saúde, educação, cultura, lazer, assistência e previdência social. O Estatuto do idoso possui como principal ato, a Lei 10.741/2003, considerada a lei de maior significância com relação à proteção e criminalização de atos contra a pessoa idosa.15 Pelo fato da violência ser um fator amplo e complexo presente em nossa sociedade, leis e diretrizes são criadas a fim de controlar sua expansão, porém, por conta de tanta demanda, muitas vezes, um único setor não é o suficiente para enfrentar esse fenômeno, assim sendo, o diálogo com outros setores faz-se necessário.23 De tal forma, a intersetorialidade é a junção da elaboração de políticas públicas e de sua aplicação, além do processo de atendimento e eventual definição de resoluções, gerando, portanto, um completo sistema social que une diversas esferas para combater a violência, existindo então assistências sociais e assistências de saúde, além de melhora nos serviços.24 Dentro dos estudos da gerontologia, a violência contra a pessoa idosa é um tema relativamente novo. Na literatura são poucos os temas apresentados nessa temática e os poucos encontrados são estudos recentes, fato este que expõe a falta de foco nessa faixa etária tão importante por representar a finitude da vida humana, porém, a fim de diminuir e conscientizar a população acerca dos preconceitos e discriminações existentes é preciso frisar e ressaltar a importância de tais estudos. A relevância do presente estudo se justifica, uma vez que identificar a violência contra o idoso é de fundamental importância, e os achados aqui trazidos podem evidenciar as estimativas de violência e, desta forma, contribuir para que sejam criadas e fortalecidas políticas públicas de saúde direcionadas a estratégias de prevenção da violência, assim como criar mecanismos para que idosos se sintam seguros para denunciar as situações de abuso, sendo assim, atendendo às necessidades identificadas pelo setor da polícia civil de uma cidade do interior do Estado de São Paulo, que solicitou parceria com uma instituição de Ensino Superior (IES) na área da saúde, com vistas a dar maior suporte aos profissionais e aos idosos vítima de violência. A investigação se coloca em função das seguintes questões: 21  Qual o conhecimento produzido e o seu nível de evidência acerca da assistência ao idoso vítima de violência? Há articulação entre os diferentes setores envolvidos na assistência?  Qual o conhecimento produzido e o seu nível de evidência acerca do agressor em casos de violência contra o idoso?  Quais as características sociodemográficas e os tipos de violência a que as pessoas idosas são submetidas em um Município do interior Paulista?  Quais as características sociodemográficas do idoso vítima de violência financeira e do seu agressor? Quais os tipos de violência financeira registrada?  Qual a percepção do idoso em relação ao abuso?  Como os profissionais das equipes de atenção primária à saúde percebem a violência contra a pessoa idosa?  Quais as ações realizadas atualmente pelos profissionais da atenção primária à saúde frente ao idoso que sofre violência? E quais as sugestões para a melhoria da qualidade de vida desse idoso vitimado?  Qual a estrutura, desenvolvimento e funcionamento familiar da pessoa idosa que sofre violência? 22 2. REFERENCIAL TEÓRICO HERMENÊUTICA DIALÉTICA 2.1 A Hermenêutica- dialética como referencial teórico O referencial teórico da Hermenêutica dialética foi hipertrofiado na referida tese em detrimento dos outros referenciais que constam nos artigos, por que os principais artigos da tese foram discutidos na perspectiva desse referencial teórico. Hermenêutica é uma palavra derivada do grego, “interpretar”, a qual possui duas origens. A primeira trata-se em referência ao deus grego Hermes, mensageiro dos céus, enquanto a outra se refere ao ocultismo e secretismo presente em discursos e textos dignos de interpretação.25 O termo hermeneuen possui a tradução “interpretar”, enquanto o substantivo – hermeneia – é traduzido como “interpretação”. Assim, compreende-se que as raízes do termo “hermenêutica” estão fortemente ligadas ao grego.26 A hermenêutica pode ser caracterizada como uma disciplina destinada ao entendimento de textos, sendo tais textos classificados como: biografia, narrativa, entrevista, documento, livro, artigo e etc. A proposta interpretativa da hermenêutica sugere que o indivíduo deve se colocar no lugar do terceiro, autor e até mesmo demais públicos alvo, pois só dessa forma há de se chegar ao entendimento. Isso é preciso, uma vez que textos podem ser considerados como discursos que viajam pelo tempo e espaço, além de um elo entre a diversidade e o padrão, tudo construído por meio da linguagem.27 Ao pensarmos em textos referentes à comunicação humana e ao compartilhar de informações/conhecimentos, a hermenêutica procura interpretá-los, a fim de chegar ao entendimento, pois muitos possuem mensagens implícitas e metafóricas. 28 Às luzes dos estudos, entendemos que a hermenêutica pode ser considerada como uma ferramenta metodológica, a qual adiciona uma gama de possibilidades de interpretação à leitura efetuada. 29 De tal forma, compreendemos que a hermenêutica procura expor detalhes não visíveis do texto, adentrando-se em contexto e significados nas entrelinhas, encontrando e desvendando discursos ocultos, os quais não se tornam aparentes apenas por análises estruturais, gramaticais e etc.28 23 Gadamer (1998)27 expõe sua visão de hermenêutica partindo do princípio de que interpretar as comunicações humanas é compreender a questão sobre o que é ser humano e que isso apenas ocorre por meio da linguagem e do discurso. “Ser que pode ser compreendido é linguagem”, uma famosa frase de autor que enfatiza seu entendimento. O autor também busca reconhecer a hermenêutica, analisando dados reais e as relações entre as falas dos indivíduos, procurando chegar, por meio da interpretação, em um consenso significativo, evitando lapsos e lacunas presentes na comunicação. Para isso, é preciso partir da subjetividade do autor do discurso e envolver-se em seu contexto e ao contexto de seu público alvo, alcançando e compreendendo os dados analisados. 27 A partir das discussões de Schleiermarcher (2008), compreendemos que a hermenêutica é uma forma interpretativa que vai além dos textos, investigando povos e culturas, questionando-se das verdades centrais de um discurso e a verdade explícita no contexto deste discurso. O modo de se compreender está ligado ao não entendimento imediato, o qual gera a indagação e ativa à criticidade, a fim de compreender por completo o significado da mensagem; fato este denominado como hermenêutica universal.30 Heidegger (2009) propõe que a hermenêutica seja vista como um fenômeno intrínseco ao ser humano, pois interpretar não está apenas ligado ao texto, mas também à relação do homem com o mundo e em como esse o vê. A reflexão interpretativa é um processo existencial e profundo, sendo a hermenêutica um processo metodológico que proporciona tal reflexão. 31 Outra definição de hermenêutica, agora apontada por Minayo, é que essa “busca a compreensão do texto nele mesmo. Trata sobre a dicotomia relacionada entre o saber técnico e o sabe empírico do discurso, pois se desvincula de regras e demais análises gramaticais e busca soluções linguísticas à interpretação do discurso, indo do objeto ao abstrato recolhendo informações significativas. A hermenêutica imersa na linguagem proporciona uma análise relacionada ao falante comunicativamente ativo e competente, apoiando-se ainda em dados históricos contextuais do locutor e interlocutor.32 A partir do século XIX e em todo o século XX, a hermenêutica amplia suas responsabilidades e definições do que em sua origem, sendo um artifício metodológico fundamental ao fornecer limites entre as ciências humanas, exatas e 24 biológicas. Nesse período, acredita-se que as ciências humanas deveriam basear-se nas ciências biológicas, a fim de compreender dilemas sociais e humanos. Todavia, assim como defendido por Hermann (2002), é nesse período de que a hermenêutica é compreendida como, de forma distinta, a defesa das ciências humanas, além de preocupar-se com textos antigos e seus significados.33 Tal ideia vai sofrer críticas pelos defensores da Hermenêutica, e trará “uma contribuição não apenas de complementaridade na questão do conhecimento, mas também uma nova forma de expor certos pressupostos do conhecimento tal como era apresentada na modernidade”. Essa época possui fortes influências ocidentais, em que processos empírico-formais são explicações do acaso embasadas em formas racionalistas sobre a natureza.34 A hermenêutica é vista como uma metodologia inferiorizada em sua abrangência e transformada apenas em técnicas de investigação, porém, em sua concepção, deve ser vista como algo além do método, uma vez que a “verdade” do discurso é sempre renovada por argumentos e novas informações.35 Para que compreendamos um texto e seus significados em sua íntegra, vivenciar o assunto exposto é fundamental, pois apenas assim ele fará verdadeiro sentido. Assim sendo, o autor propõe uma tríplice como problemáticas da hermenêutica: interpretação, compreensão e aplicação, sendo o último o entendimento aplicável em situações de interação.29 Gadamer (1998) propõe a fusão de horizontes, um processo de interpretação em que os participantes de um diálogo demonstram suas ideias e visam um acordo: “entre as partes dessa ‘conversação’ tem lugar uma comunicação, como se dá entre duas pessoas, e que é mais que mera adaptação. Assim sendo, o diálogo é um processo hermenêutico circular, em que o locutor e interlocutor são mais do que simples agentes, pois na realidade são intérpretes, seres sociais e históricos, os quais possuem crenças e fundamentam suas interpretações de diferentes maneiras por conta de suas subjetividades.27 Pelo fato de que a Hermenêutica busca compreender a realidade indagando-se sobre ela, podemos afirmar, embasados nos estudos de Gadamer, de que “a hermenêutica encontra-se diante do desafio do incompreendido, e, por meio daí, ela é trazida para o caminho do questionamento, e obrigada a compreender”.36 Entretanto, cabe a nós percebermos de que a hermenêutica não é um simples interpretar, e, sim, um diálogo constante sobre a realidade humana. 25 Podemos classificar a hermenêutica em duas vertentes: a hermenêutica filosófica e a hermenêutica crítica. A hermenêutica filosófica busca interpretar por meio da própria tradição do discurso, traduzindo os textos de maneira a respeitar sua história efeitual, enquanto a hermenêutica crítica vai além das tradições e busca os processos comunicativos e valores negados socialmente, trabalhando contextos e opções interpretativas de forma mais ampla.27. Mas para que a interpretação ocorra de forma efetiva sem tais influências preestabelecidas, o diálogo deve se manter aberto, contendo o entrevistado total liberdade de contar sua história conforme foi experienciada. Diferentemente de uma entrevista guiada com perguntas e indagações, o diálogo aberto é realizado pelo entrevistado; ressaltando-se aqui a importância de seu discurso livre.37 2.2 Dialética A dialética, embasados nos estudos de Hegel e Marx, é, portanto, o estudo da realidade e da luta dos opostos, sendo necessária assim a utilização do diálogo. Dessa forma, Lefebvre (1983) fortalece seus pensamentos em que, em teses contraditórias, o diálogo é a forma de refletir sobre o discurso e posicionar-se perante as informações recebidas.38 Diferente de Platão, Aristóteles acreditava que a dialética possuía um método investigativo mais aprofundado do que a hermenêutica, como por exemplo, o contradizer de ideias facilmente aceitas pelo senso comum, não necessitando muito empenho ou indagações para refutá-las. A dialética, segundo o pensador, é um método investigativo que pode abrir um caminho à inteligência e sabedoria por indagar sobre as simples coisas do mundo.39 A forma dialética de pensar gera um olhar crítico e reflexivo sobre simples relações e ações culturais cotidianas, as quais, pessoas inseridas em tais contextos não conseguem perceber sem realizar esse processo dialético, portanto, diz que “A dialética é a ciência e a arte do diálogo, da pergunta e da controvérsia.[...] ela busca nos fatos, na linguagem, nos símbolos e na cultura, os núcleos obscuros e contraditórios para realizar uma crítica informada sobre eles”. 32 Junto a esse ideal, os estudos de Lefebvre (1983) falam sobre a dialética representando o universal e o concreto, os quais são um contato direto com a realidade a fim de compreendê-la, haja uma relação inclusa ao contexto ou não.38 26 2.3 Hermenêutica e dialética Segundo Minayo (2010) “enquanto a hermenêutica enfatiza o significado do que é consensual, da mediação, do acordo e da unidade de sentido, a dialética se orienta para a diferença, o contraste, o dissenso, a ruptura de sentido e, portanto, para a crítica”. Tal ideia nos ajuda a articular a dialética e a hermenêutica a fim de trabalhar a pesquisa de forma completa.32 A hermenêutica e a dialética nasceram em momentos históricos diferentes e sempre estiveram em contraposição, sendo o encontro e desencontro dessas, mais fortemente presentes, nas publicações dos autores Gadamer e Habermas. Mas, podemos afirmar que a própria dialética nos demonstra a importância de tal encontro, pois a luta contrária propulsiona o movimento dialético e formula seu processo de transformação. 40 Minayo (1994) defende que a hermenêutica dialética é a capacidade de interpretar, de forma próxima à realidade, o posicionamento de fala do locutor, partindo de seu contexto de fala e indo ao entendimento interior de especificidade histórica do discurso. O pensamento hermenêutico-dialético fundamenta-se nos conceitos gadamerianos sobre a interpretação e parte da postura que pensa a crítica como fundamental dentro do processo de compreensão, conforme preconizado por Habermas. 41 27 3. OBJETIVOS 3.1 Objetivo Geral  Compreender o contexto da violência contra o idoso no Município de Marília. 3.2 Objetivos Específicos  Analisar as produções Científicas nacionais e internacionais acerca da assistência ao idoso vítima de violência e identificar as contribuições do método para a investigação;  Identificar, nas produções nacionais e internacionais, as evidências acerca do agressor em casos de violência contra o idoso;  Associar as características sociodemográficas de idosos vítimas de violência e dos agressores com os tipos de violência;  Analisar as ocorrências de violência financeira contra os idosos;  Compreender a percepção dos idosos quanto à violência sofrida;  Compreender como os profissionais das equipes de atenção primária a saúde percebem a violência contra a pessoa idosa;  Analisar as ações e sugestões das equipes da atenção primária a saúde em relação à violência contra o idoso;  Compreender a estrutura, o desenvolvimento e a funcionalidade da família da pessoa idosa vítima de violência. 28 4. MÉTODO Neste item apresentam-se, inicialmente, os aspectos sobre o tipo de estudo, cenário/campo, participantes da pesquisa, procedimentos para coleta de dados, análise dos dados e os aspectos éticos desta tese. 4.1 Tipo de estudo Trata-se de um estudo com desenho de métodos múltiplos, de análise quantitativa e qualitativa, o qual foi pautado na Hermenêutica dialética, tendo como base: análise documental, entrevistas e grupo focal. Esta tese derivou do projeto maior intitulado: “Idoso vítima de violência: a interface da assistência à saúde, jurídica e social para o desenvolvimento de intervenções.” Os Métodos múltiplos ou multimédotos, assim como nos métodos mistos, é a combinação de pesquisas de natureza qualitativa, quantitativa ou de ambos, que são utilizados a fim de abordar perguntas, hipóteses, tópicos ou mesmo programas. Vale ressaltar que os métodos utilizados são completos, porém são juntamente aplicados de forma sequencial ou concomitante na intenção de atingir um projeto de estudo e conduzí-lo com vistas a responder uma subquestão específica.42 O uso dos métodos múltiplos favorece ao esclarecer de temas complexos observados em serviços, podendo-se aprofundar de forma mais específica no tema ou subtema. Com o imbricar de múltiplos métodos, descobrir e analisar diferentes dimensões de um fenômeno faz-se possível, pois há um conjunto de pontos de vista e elementos distintos que podem ser identificados, diferentemente do uso de apenas um modelo ou teoria. Neste pensamento, as teorias modificam-se e evoluem, sendo as antigas teorias melhoradas ou refutadas, demonstrando desenvolvimento, além da possibilidade de realizarem-se sínteses ou mesmo integração de teorias.43 Como alternativa de se obter rigor, riqueza e complexidade ao trabalho, o uso de diversas perspectivas, ao empreenderem-se múltiplas práticas metodológicas, fornece essa alternativa. Afirmando este fato: “O uso de múltiplos métodos, reflete uma tentativa de assegurar uma compreensão em profundidade do fenômeno em questão”. 44 29 Quanto à forma de abordagem, a pesquisa qualitativa considera a existência de uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, que não pode ser quantificado e se preocupa com o aprofundamento da compreensão de um indivíduo ou de um grupo social.45 A pesquisa quantitativa se traduz em números e com informações para classificar e organizar os dados. Dessa forma, as duas abordagens citadas devem ser utilizadas concomitantemente completando-se, diminuindo, assim, os limites encontrados nas diferentes abordagens quando utilizadas isoladamente. 45 A Revisão integrativa perpassou o desenvolvimento da pesquisa com a finalidade de aprimorar os objetivos desta, a partir da leitura atenta das referências selecionadas e elaboração de fichamentos e resumos de acordo com as categorias temáticas para contextualizar a problemática deste estudo. É compreendida como um método que permite a construção da discussão em relação aos métodos e resultados das publicações, visando a análise do conhecimento pré-existente sobre o tema investigado. 46Esse tipo de método permite ainda a sistematização de estudos com metodologias diferentes e a síntese dos resultados obtidos, prezando pelo rigor científico. 47 4.2 Cenário/campo A pesquisa foi realizada em um município de médio porte do interior de São Paulo, com uma população de 216.745 habitantes, da qual 13,6% são idosos.3 Teve como cenários, para a coleta de dados, a Central de Polícia Judiciária da Polícia Civil do Estado de São Paulo do município de Marília, a Rede de Atenção Básica à Saúde do Município e a Residência dos idosos participantes da pesquisa. A Central de Polícia Judiciária da Polícia Civil do Estado de São Paulo, do município de Marília, está organizada em dez unidades distribuídas: cinco distritos policiais, quatro delegacias especializadas que atendem às demandas do município todo (Delegacia de Homicídios, Delegacia de Polícia Defesa da Mulher, Delegacia de Investigações Sobre Entorpecentes e Núcleo Especial Criminal) e uma Delegacia da Polícia Civil de Plantão. Por não haver uma delegacia especializada na assistência ao idoso vítima de violência no município, a Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher atende todos os casos de abuso contra a pessoa idosa, portanto foi o cenário da coleta. 30 A rede básica de saúde do município é constituída por 12 Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 36 Unidades de Saúde da Família (USF). Para os atendimentos de urgência e emergência, o município conta com dois pronto-atendimentos, uma UPA, um Hospital de Clínicas e um hospital Materno-Infantil. 48 As quatro unidades de saúde participantes do estudo, foram selecionadas a partir dos dados do geoprocessamento, considerando-se aquelas localizadas em regiões com maior proporção de registros de pessoas idosas que sofreram violência. Em alguns casos, devido às dificuldades de locomoção das vítimas, as entrevistas foram realizadas nas residências das pessoas idosas em dia e horário previamente pactuados por telefone, de acordo com a disponibilidade. 4.3 Participantes da pesquisa Idosos vítimas de violência que atendiam aos seguintes critérios: ter idade igual ou maior que 60 anos de idade, ter registrado Boletim de Ocorrência na Delegacia de Polícia por iniciativa própria, de familiares ou pessoas próximas, e ser capaz de responder, de forma coerente, à entrevista. Profissionais da atenção básica, totalizando 30 participantes que foram distribuídos em quatro grupos focais, sendo que dois deles contaram com nove participantes e os demais com seis. Entre os participantes do estudo, quatro são auxiliares de enfermagem, treze agentes comunitários de saúde, dois técnicos de enfermagem, um auxiliar de serviços gerais, dois dentistas, três enfermeiros, dois médicos, um agente de controle de endemias e dois auxiliares de escritório. Participaram da pesquisa quatro familiares de idosos vítima de violência. 4.4 Procedimentos para coleta de dados Para a pesquisa quantitativa, foi desenvolvido por meio de análise documental, um sistema que consiste em identificar, verificar e apreciar os documentos que permitem uma contextualização das informações contidas nos mesmos, com o intuito de extrair um reflexo objetivo de uma fonte original.49 Os dados foram digitados em planilha eletrônica, enquanto as análises estatísticas foram realizadas com o software Statistical Package for Social Sciences versão 25.0.0.0. 31 Para a construção da revisão integrativa seguiu as seguintes etapas: Seleção do tema e das palavras-chave; definição das bases de dados para busca; estabelecimento dos critérios para seleção da amostra; identificação do panorama geral do resultado da busca; adaptação do formulário para registro dos dados; análise e interpretação dos resultados.50 Os dados coletados por meio de entrevistas com idosos vítimas de violência, tiveram o seguinte tema disparador: “Fale sobre a violência vivida”. Entretanto, as entrevistadoras fizeram questionamentos que visaram explorar de forma mais aprofundada as informações fornecidas, tais como: “Pode explicar isso melhor?”; “Como assim?”; “Pode exemplificar?”. A duração média aproximada das entrevistas foi de 40 minutos, as quais foram gravadas e transcritas posteriormente na íntegra. Para os participantes dos grupos focais foi-se utilizado um roteiro com as seguintes questões: “Como você se sentiu ao olhar essas imagens?”; “Vocês já se depararam com situações semelhantes no seu trabalho? Se sim, como foi?”; “O que foi feito?”; “Qual a melhor forma de assistir um paciente idoso vítima de violência?”. O grupo focal trata-se de uma técnica de coleta de dados realizada em grupos compostos por três a doze profissionais, conduzidos por um moderador e um observador. Cabe ao moderador manter a interação do grupo durante todo o tempo proposto, acolhendo todas as posições de forma respeitosa, intervindo quando necessário. Ao observador cabe analisar a rede de interações do grupo, viabilizado, por meio de impressões e registros. Os trabalhos deverão ter duração em média de 30 a 60 minutos. Conseguinte, devem ser pautados por um temário com registro das questões norteadoras visando um melhor aproveitamento; deve haver flexibilidade nos assuntos abordados, de forma que a discussão seja espontânea. Toda a discussão foi gravada, transcrita de forma integral e depois descartada. 51 Para a realização do grupo focal foram seguidas as etapas de abertura, de preparação, de debate, de encerramento, de avaliação e ação posterior. A abertura foi precedida por uma breve introdução do moderador, que deixou claro que todas as respostas e/ou opiniões seriam acatadas e discutidas, não havendo respostas ou opiniões certas ou erradas. Coube ainda na introdução orientação para que cada membro falasse um de cada vez. Na preparação coube ao moderador solicitar a apresentação de todos os participantes, a fim de proporcionar uma boa interação entre todos os membros. O debate foi iniciado pelas questões mais concretas transcorrendo 32 para as abstratas, paulatinamente, visando estimular a investigação em profundidade. Os temas não inclusos no temário foram discutidos livremente. No encerramento foi identificado com o grupo os principais temas, sentimentos e diferenças encontradas durante a discussão 51 Concluído o grupo, o processo foi avaliado e verificado se a condução e o temário foram adequados, também foi verificado se as informações obtidas foram satisfatórias, bem como a necessidade da realização de novos grupos, de revisar o temário ou nova investigação qualitativa dos resultados obtidos 51 A partir desses resultados, uma intervenção e avaliação junto às famílias foram realizadas. Utilizou-se como instrumental o Modelo Calgary de Avaliação Familiar (MCAF), que se encontra organizado em três categorias, sendo elas: a estrutural, a de desenvolvimento e a funcional. 4.5 Análise dos dados Para os dados quantitativos foram utilizados Análises Teste de Qui- quadrado de Pearson e a extensão do teste Exato de Fisher. Conclusões obtidas pelas análises inferenciais com nível de significância α igual a 5% (p≤0,050), além da análise de distribuição absoluta e percentual das variáveis. No artigo “percepção do idoso acerca da violência”, os dados foram analisados por meio da técnica de análise temática. No artigo “Violência financeira: circunstância da ocorrência contra idosos”, os dados qualitativos foram analisados por meio da análise de conteúdo. Para a análise dos dados dos grupos focais, optou-se por adotar a postura metodológica do pensamento hermenêutico-dialético (HD), o qual analisa os dados fornecidos pelas narrativas dos sujeitos em busca dos significados subjacentes a elas e pela compreensão do sentido dos fatos que compuseram a dinâmica do processo vivenciado. 45 A técnica utilizada para analisar e descrever os dados qualitativos da pesquisa é a hermenêutica dialética, a qual busca realizar uma síntese dos processos de compreensão e de criticidade.45 A Hermenêutica, portanto, vem com a intenção de analisar o sentido da comunicação entre os indivíduos, demarcando na linguagem seu principal foco52. A fim de compreender a humanidade, é preciso mergulhar em sua história e em seu contexto, e, tal interação apenas ocorre por meio da linguagem. A 33 neutralidade do intérprete é importante neste ponto, pois este precisa eliminar seus pré-conceitos45 e analisar o discurso seguindo alguns parâmetros e abordagens metodológicas, como por exemplo: as semelhanças e desigualdades entre o contexto dos entrevistados e do investigador; compreender e apoiar o narrar do entrevistado, ouvindo e não interferindo de forma negativa à pesquisa; produzir um relato que complemente a história dos entrevistados e, por fim, refletir, observar e compartilhar os fatos discorridos. 53 A hermenêutica e a dialética em conjunto permitem um estudo contextualizado na singularidade de cada indivíduo e na historicidade do todo, interpretando gestos, ações e discursos do ser humano, sempre tendo em primeiro plano sua origem e sua vivência na intenção de compreender sua realidade; sendo assim, situações do senso comum são explicadas, assim como ações esperadas ou até mesmo contraditórias do indivíduo com relação ao seu contexto.54 O método hermenêutico dialético consegue aproximar-se do real, pois o autor insere-se ao contexto histórico, cultural e social de seu objeto de estudo, alcançando com maior efetividade a verdadeira aparência de seus objetivos. Neste momento, classificamos tal aparência como possível realidade, pois, apesar de toda interpretação minuciosa, atingir a total realidade não é possível, uma vez que são os pontos de vista e determinados fatores sociais que definem o real, não existindo um consenso, portanto.45 A dialética é o momento e a ciência do diálogo em que há a percepção de significados e a busca de compreensão desses, por meio de símbolos culturais, fenômenos linguísticos e contexto social, possuindo a intenção de construir argumentos e ativar a criticidade sobre o discurso dito. A dialética contradiz e se opõe ao dito como verdade, buscando por meio das relações e ações humanas contradizer a suposta realidade. 54 O imbricar entre hermenêutica e dialética é importante às pesquisas qualitativas, pois demonstram que, por mais que possuam talvez temáticas semelhantes, a intersubjetividade de cada indivíduo pesquisador e dos próprios entrevistados podem definir rumos diferentes à pesquisa, uma vez que a imparcialidade, por mais que respeitada, não ocorre, graças à divergência sociocultural e de linguagem. Assim sendo, podemos afirmar que a hermenêutica é o foco no consenso e a mediação do discurso, enquanto a dialética busca o contraste 34 na narração por meio da indagação e da criticidade, obtendo-se assim de forma efetiva os dados pesquisados. (54,55) A busca por um rigor científico é importante, mas, as crenças, apesar dos esforços, participarão do processo criativo de escrita, podendo influenciar positiva ou negativamente na pesquisa. Cabe ao investigador, portanto, durante a descrição densa da pesquisa, compreender que a amplitude ou os mínimos detalhes não captam ou demonstram inteiramente a total realidade, porém, para que haja a maior quantidade possível de percepção do mundo real, áudios de entrevistas devem ser gravados, transcrições fiéis do discurso devem ser realizadas e um processo sistemático de repetição deve ocorrer a fim de extrair o máximo de informações possíveis do discurso. A análise de dados seguiu as etapas de organização, classificação e a interpretação dos dados, respeitando a temporalidade e a maturidade existente nas falas, além de utilizar a Hermenêutica e a Dialética para compreensão dos dados.56 Ao organizar as informações recolhidas, antes da categorização dos dados, duas situações ocorreram: a uniformidade e consistência da categorização e o aproximar do pesquisador à realidade e contexto dos sujeitos da pesquisa. Ao ler os materiais e dados recolhidos de forma repetitiva e sistemática, o interpretar do pesquisador se torna mais eficaz ao objetivo do estudo.56, 45 A etapa de classificação de dados, é o momento em que o pesquisador precisa retornar aos objetivos de seu trabalho, pois esses são a base de todo o projeto. A construção de categorias teóricas adequadas facilita o entendimento do corpus utilizado, gerando uma melhor compreensão e intepretação dos objetivos. Deve-se retornar, além dos objetivos, também ao referencial teórico, gerando leituras repetidas e exaustivas, a fim de se obter a maior quantidade possível de dados efetivos. Os dados serão expostos em uma síntese horizontal para identificar convergências, diferenças e dados complementares das categorias analisadas. 56, 45 Para interpretação dos dados na ótica da hermenêutica-dialética, o pesquisador precisa buscar a compreensão do texto nele mesmo, considerando o depoimento como resultado de um processo social e de conhecimento, resultantes de múltiplas determinações, mas com significado específico.45 Por meio das entrevistas obtemos muito mais do que apenas relatos ou histórias superficiais, uma vez que essas possuem uma profundidade contextual do mundo do entrevistado. O olhar hermenêutico contém, portanto, uma exploração e 35 interpretação dos fatos apresentados, gerando reflexão e uma possível formulação ou reformulação de perguntas efetivas à pesquisa. Neste aspecto a hermenêutica faz-se essencial ao entrevistador de pesquisa acadêmica, possibilitando, por meio do discurso dos entrevistados, o caminho de sua pesquisa e da intenção de seu trabalho. Buscar, interpretar e indagar- se é um processo que constrói ideias, permitindo o avanço da pesquisa e as relações de comunicação dessas com o mundo. Os dados do artigo “Idoso vítima de violência: Avaliação da família por meio do modelo Calgary”, foi analisado a luz do modelo Calgary. 4.6 Aspectos Éticos Esta pesquisa foi aprovada pelo CEP da Faculdade de Medicina de Marília, sob o parecer nº 2.253.887, CAAE 73664417.1.0000.5413 (ANEXO A). Contou com autorização do setor de Policia Civil do município e apreciação do conselho municipal de avaliação em pesquisa (COMAP) da secretaria municipal de saúde com base na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) 466/2012, que regulamenta a pesquisa com seres humanos. 36 5. RESULTADOS E DISCUSSÃO 5.1 Assistência ao idoso vítima de violência: revisão integrativa 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 ERRATA No artigo “Assistência ao idoso vítima de violência: revisão integrativa”, com número de ISBN: 978-8585-7247-395-8. DOI:10.22533/at.ed.9581913069, publicado como capítulo 9 do livro: Ciências da Saúde. Da teoria à Prática; v3:86-96: Na página 90, no segundo parágrafo dos Resultados e discussão: Onde se lia: grau VI Lê-se: grau IV Na página 92: Desconsiderar a segunda linha do quadro, por motivo de duplicidade. 50 5.2 Evidências acerca do agressor em casos de violência contra o idoso: revisão integrativa 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 5.3 Violência sobre a pessoa idosa: um estudo documental 62 63 64 65 66 67 68 69 5.4 Violência financeira: circunstâncias da ocorrência contra idosos 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 5.5 Percepção do idoso acerca da violência vivida 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 5.6 Violência contra a pessoa idosa: percepções das equipes da atenção básica à saúde VIOLÊNCIA CONTRA A PESSOA IDOSA: PERCEPÇÕES DAS EQUIPES DA ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE RESUMO Objetivo: compreender como os profissionais das equipes de atenção primária a saúde percebem a violência contra a pessoa idosa. Método: estudo qualitativo, realizado a partir da realização de quatro grupos focais com um total de 30 profissionais da atenção básica, no município de Marília-SP. A coleta de dados foi realizada de novembro a dezembro de 2018. Para a análise dos dados, adotou-se a Hermenêutica-Dialética. Resultados: revelou que os profissionais suspeitam e identificam casos de violência física, financeira e principalmente a negligência, sendo o principal autor da agressão um membro da família. Reconhecem que os idosos se encontram em contextos de vida complexos e muitas situações estão além de suas capacidades de intervenção. Expressaram medo e insegurança na realização da denúncia e desconhecem o papel dos demais serviços, tornando a abordagem ainda mais complexa. Conclusão: Os profissionais vivenciam situações de violência contra o idoso no seu cotidiano; no entanto, barreiras como o medo de realizar a denúncia, o desconhecimento dos papeis de diferentes profissionais e a falta de efetividade da rede de atenção dificultam as intervenções necessárias. DESCRITORES: Idoso; Envelhecimento; Violência; Atenção primária à saúde; Saúde da família. 92 INTRODUÇÃO O envelhecimento populacional demanda estudos que visem contribuir para uma velhice mais saudável e de qualidade, essencialmente por meio de mudanças na visão sociocultural em relação a essa parcela da população. Diante do crescimento acelerado de idosos no cenário ocidental contemporâneo, verifica-se que este público vem sofrendo violências de diferentes tipos, uma vez que a sociedade não se encontra preparada para lidar com as questões demandadas por essas pessoas.1 A violência contra o idoso pode ser definida como qualquer ação, única ou repetida, ou, ainda, a omissão de providência apropriada, ocorrida dentro de uma relação em que haja expectativa de confiança, que acarrete prejuízo ou aflição a uma pessoa idosa.2 A Rede Internacional de Prevenção contra Maus-Tratos em Idosos e a Organização Mundial da Saúde (OMS) elencaram sete tipos de violências: abuso físico ou maus-tratos físicos, em que há uso de força física provocando ferimentos, dor, incapacidades ou morte; abuso ou maus-tratos psicológicos, que corresponde a agressões verbais ou gestuais; a negligência, na qual ocorre a recusa ou omissão por parte do responsável pelo cuidado do idoso; a autonegligência, quando ocorre a negação ou fracasso em prover o cuidado adequado a si; o abandono, que consiste na ausência de assistência por parte do responsável; o abuso financeiro, em que ocorre a exploração não consentida ou ilegal de recursos do idoso; e o abuso sexual.3 As situações de violência resultam em danos na capacidade funcional dos idosos, tentativas de suicídio, violação de direitos humanos, diminuição da qualidade de vida e elevadas taxas de mortalidade.4,2 Apesar de configurar como um grave problema de saúde pública, a violência contra o idoso ainda é uma condição camuflada pela sociedade e pouco valorizada no contexto da atenção à saúde.4 Os idosos constituem um grupo populacional com alta vulnerabilidade aos maus-tratos, sobretudo quando são mulheres, solteiras, com idade avançada, com baixa escolaridade, possuem alguma dependência física ou psicológica e vivem com filhos, noras e netos.5 Por razões como vergonha, intimidação, culpa e medo de retaliação ou de institucionalização, os idosos não denunciam o abuso sofrido. 6-7 Em um estudo realizado no Estado de Minas gerais, que analisou os casos notificados de violência contra mulher, observou que a letalidade foi maior entre mulheres com mais de 80 anos.8 93 As dificuldades que os idosos enfrentam diante da situação de violência decorrem essencialmente da falta de conhecimentos dos seus direitos ou da falta de acesso a uma delegacia para realizar a denúncia. Além disso, a maioria dos idosos tem dificuldades em tomar a decisão de denunciar a agressão ou o abuso sofrido, pois muitas vezes o agressor é um membro da própria família e/ou o único cuidador e, em outros casos, ele não se reconhece como vítima de violência.9 No Brasil, dada a importância da temática, ao ser promulgado o Estatuto do Idoso, tornou-se obrigatória a comunicação de suspeita ou confirmação de todas as formas de violência pelos profissionais de saúde, além de se propor o Plano de Enfrentamento da Violência Contra a Pessoa Idosa.10 No tocante à saúde, a Atenção Básica (AB) se destaca na assistência à população idosa. Inserida no primeiro nível na rede de atenção, assume o papel primordial na implementação das ações de saúde para essa população e na coordenação do fluxo de usuários idosos no sistema de saúde, com destaque para situações de violência, visto que desenvolve as atividades em um território adscrito, na lógica da vigilância em saúde.11 Os profissionais que atuam em proximidade com a população, aqui com destaque para a enfermagem, possuem um papel importante na divulgação e discussão deste problema na comunidade. Cabe lembrar que toda visita do idoso a um serviço de saúde trata-se de uma oportunidade de detectar tais situações.10 Para tanto, recomenda-se a observação atenta do comportamento, dos gestos e das expressões faciais do idoso, o que permitirá a identificação de situações de risco e a elaboração de estratégias de enfrentamento adequadas. No entanto, muitas vezes não querem se envolver no caso, alegando que preferem esperar que o próprio idoso tome iniciativa de denunciar, a realização de visitas domiciliares ou a tomada de atitude de algum colega profissional.11 Assim, preparar os profissionais de saúde para o acolhimento ao idoso vitimizado por agressões é um desafio que deve ser concretizado, pois é fundamental que o profissional de saúde saiba identificar o ocorrido, buscando soluções para o problema de maus-tratos e negligência.10 Frente à relevância da violência contra a pessoa idosa, enquanto um problema de saúde pública e da equipe da atenção básica no enfrentamento dele, o presente estudo propõe-se a compreender como os profissionais das equipes de atenção primária percebem a violência contra a pessoa idosa. 94 MÉTODO Estudo de abordagem qualitativa, por meio de realização de grupo focal com profissionais da rede de atenção básica de um município de médio porte do interior do estado de São Paulo. Para a análise dos dados, optou-se por adotar a postura metodológica do pensamento hermenêutico-dialético (HD). Este artigo insere-se dentro de um projeto maior intitulado “Idoso vítima de violência: a interface da assistência à Saúde, Jurídica e Social para o desenvolvimento de intervenções”. A rede básica de saúde do município é constituída por 12 Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 36 Unidades de Saúde da Família (USF). Para os atendimentos de urgência e emergência, o município conta com dois pronto-atendimentos, uma UPA, um Hospital de Clínicas e um hospital Materno-Infantil.12 A coleta nas unidades foi realizada no período de novembro a dezembro de 2018 em três equipes de Unidade Saúde da Família (USF) e uma Unidade Básica de Saúde (UBS), as quais foram selecionadas a partir dos dados do geoprocessamento, considerando-se aquelas localizadas em regiões com maior proporção de registros de pessoas idosas que sofreram violência. Para realizar o grupo focal, inicialmente foi feita visita presencial com a responsável de cada unidade de saúde; ela explicou o estudo à equipe e verificou o interesse de participar da atividade. Foram realizados quatro grupos focais, sendo que dois deles contaram com nove participantes e os demais com seis, totalizando 30 participantes. Os horários para sua realização foram definidos previamente de acordo com a disponibilidade de cada equipe, sendo que a totalidade dos grupos focais ocorreu no horário de uma reunião de equipe, que é realizada semanalmente em todas as unidades da Estratégia Saúde da Família do município. Entre os participantes do estudo, quatro são auxiliares de enfermagem, 13 agentes comunitários de saúde, dois técnicos de enfermagem, um auxiliar de serviços gerais, dois dentistas, três enfermeiros, dois médicos, um agente de combate às endemias e dois auxiliares de escritório. A participação dos profissionais se deu de forma voluntária e, desta forma, não foi possível garantir a participação de todas as categorias profissionais em todas as unidades. O critério de inclusão envolveu profissionais que estavam trabalhando no dia do grupo focal. O critério de exclusão era: estar afastado do serviço por qualquer motivo no período estabelecido com a equipe. 95 É valido ressaltar que, embora os auxiliares de serviços gerais e de escritório não se enquadrem no quadro de profissionais de saúde, eles compõem as equipes de atenção básica e também participam das reuniões da equipe, contribuindo com informações e reflexões a partir de suas vivências cotidianas. O desenvolvimento dos grupos focais ocorreu em salas da própria unidade de saúde e contou com a participação de uma moderadora e duas observadoras, que são as próprias pesquisadoras. Foi responsabilidade da moderadora intermediar a discussão e utilizar estratégias que favorecessem o debate. Às observadoras coube a função de anotar a dinâmica do grupo e auxiliar a moderadora. Buscando promover a reflexão entre os profissionais, no início do grupo focal foram apresentadas imagens de pessoas idosas vítimas de violência. Na sequência, foi utilizado um roteiro com as seguintes questões: Como você se sentiu ao olhar essas imagens? Vocês já se depararam com situações semelhantes no seu trabalho? Se sim, como foi? O que foi feito? Qual a melhor forma de assistir um paciente idoso vítima de violência? Ao final de todos os grupos, uma das observadoras realizou a leitura da síntese da discussão de forma a validar os dados coletados com os participantes. Posteriormente, os dados coletados foram validados por três pesquisadoras experientes. Para a análise dos dados, optou-se por adotar a postura metodológica do pensamento hermenêutico-dialético (HD), o qual analisa os dados fornecidos pelas narrativas dos sujeitos em busca dos significados subjacentes a elas, pela compreensão do sentido dos fatos que compuseram a dinâmica do processo vivenciado. Permite aproximação da realidade com a crença de que atingir a total realidade não é possível, uma vez que são os pontos de vistas e determinados fatores sociais que definem o real, não existindo um consenso.13 Para interpretação dos dados na ótica da hermenêutica-dialética, é apresentado um caminho para o pesquisador buscar a compreensão do texto nele mesmo, considerando o depoimento como resultado de um processo social e de conhecimento, resultante de múltiplas determinações, mas com significado específico.13 A análise de dados seguiu as etapas de organização, a classificação e a interpretação dos dados.14 Essa análise deve respeitar a temporalidade e a 96 maturidade existente nas falas, e utilizar a Hermenêutica e a Dialética para compreensão dos dados.14 A pesquisa levou em conta os preceitos éticos propostos na Resolução 466/2012 e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da Faculdade de Medicina de Marília, por meio do parecer 2.253887. Todos consentiram sua participação após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para preservação do anonimato, foram utilizados os códigos G1, G2, G3 e G4 e P1 a P9. RESULTADOS Os participantes encontram-se na faixa de idade entre 27 a 60 anos, sendo 26 do sexo feminino e quatro do sexo masculino, com tempo de atuação profissional de três meses a 17 anos. Os sentidos subjacentes às falas dos profissionais revelaram quatro eixos analíticos: vivência de diferentes tipos de violência; complexidade do contexto de vida; ameaça e insegurança na realização da denúncia; desarticulação intersetorial. Vivência de diferentes tipos de violência Os profissionais conseguem identificar ou suspeitar de diferentes tipos de violência, como a física, a negligência e a financeira, tendo como principal agressor o próprio familiar. Compreendem que os idosos se sentem abandonados e solitários e, mesmo assim, não querem fazer a denúncia. Os profissionais, por sua vez, experimentam o sentimento de indignação e tristeza. É, teve um dia que eu fui fazer uma visita [...] A mulher, ela ficava o tempo todo em uma poltrona na sala em frente à porta, aí tinha uma mesinha com um copo de água, uns comprimidos soltos na mesa, um prato de comida destampado com mosca, um copo com café. Ficava o tempo todo sem trocar a fralda e tinha muita mosca verde rodeando ela. Aquilo não sai da minha memória! É situação de desprezo, de abandono, de pouco caso. (G2, P4); [....] Eu descobri assim que eles precisavam manter o pai lá, que no caso seria o filho e a nora, manter o pai lá por conta que o pai recebia o benefício. Eles usavam o benefício para pagar aluguel, para as coisas assim (G1, P5); 97 A agente que vai na visita domiciliar percebe que às vezes eles estão em um local diferente, mais no fundo da casa, um lugar pouco acessível aos cômodos dos familiares, mas também o idoso não quer denunciar nada, então é um caso muito difícil assim, dos tipos de violência é o que a gente consegue menos identificar claramente [...] (G3, P4); Normalmente, o que a gente tem mais assim, que eu já peguei aqui ou em outras unidades, é filhos que já são de 40 anos de idade, não saem de dentro de casa, que são usuários de drogas, e aí acabam agredindo os pais, por essa questão de dinheiro para as drogas, então isso a gente tem bastante (G1,P6). Complexidade do contexto de vida Muitos idosos vivem em situações complexas, tanto sociais como familiares. Nesse contexto, alguns profissionais se depararam com idosos que são cuidados por pessoas também fragilizadas, como é o caso de filhos usuários de drogas. Além disso, esse cuidado representa uma sobrecarga aos familiares, especialmente aqueles de menor poder aquisitivo e que necessitam trabalhar. A sobrecarga de trabalho também pode gerar uma situação de violência. Acho que um idoso não poderia viver sob os cuidados de uma pessoa assim que está em situação também fragilizada, como esse filho usuário de droga [....] Tem que ser um familiar assim, pelo menos com uma cabeça assim, saudável? Assim, mesmo que tenha dificuldade, mas uma pessoa saudável (G1, P2); Hoje as famílias veem idosos como um peso, quem pode pagar, resolve fácil. Mas até que ponto pagar é o bom? Lógico, resolve, ajuda, mas e aquela coisa de família, de pessoal, de amor, não importa mais? Quer dizer, foi útil pra mim os pais até um determinado momento da vida, agora não preciso mais deles, eu tenho a minha vida, a minha família, o meu trabalho, que é muito mais importante do que eles [...] (G3, P8); A dificuldade é principalmente na classe mais baixa, porque o rico ele consegue pagar uma enfermeira, alguém para ficar lá o dia todo. O com menor poder aquisitivo não consegue, então é aquela pessoa que fica realmente mais jogada, fica ali o dia inteiro na cama, se alguém vier dar comida, dá, se não vier […] porque a pessoa tem que trabalhar também, ela não pode deixar de trabalhar [...] (G1, P6); 98 A filha agrediu o pai e a mãe. Ela é usuária e ela agrediu o pai e a mãe, tanto verbalmente, quanto fisicamente […] (G4, P4). Ameaça e insegurança na realização da denúncia Referindo-se à insegurança na realização da denúncia, os profissionais de saúde relatam que são ameaçados constantemente na área de abrangência, pois trabalham há muito tempo na unidade e muitos deles também moram nessa mesma área de abrangência. Além disso, os profissionais relataram insegurança em realizar as denúncias a outros serviços, pois esses acabam relatando às famílias quem realizou as denúncias. Assim, acreditam que os agressores sempre vão culpabilizar e se revoltar contra o profissional, deixando-o em condição de risco, especialmente quando realiza as visitas domiciliares. Por isso, muitos optam por realizar a denúncia apenas por meio do disque 100, que fica no anonimato. Algumas falas tratam desse conceito: [...] A única coisa que a gente ficou sabendo que elas vieram aqui “Ó, eles foram lá na minha casa e falaram que vocês fizeram denúncia! Que o médico fez a denúncia!”. “Eu vou acabar com o carro dele!”, “Deixa ele na hora que ele estiver fazendo visita lá perto da minha casa”. Então tipo assim, a gente ficou um mês, vai acontecer alguma coisa? Não vai? [...] e a gente não teve um retorno do Conselho [...] (G4, P4); [...] O problema é a unidade estar naquele lugar, os funcionários são fixos, sabe onde os funcionários moram. Dependendo da família que for, leva de um jeito, mas a gente lida às vezes com algumas áreas, não aqui somente, mas na cidade toda, algumas áreas de risco, então dependendo você cria um problema absurdo com o profissional que sai do âmbito profissional e entra já no pessoal, e aí é complicado (G2, P3); Tem uns que até xinga a gente, utilizam palavras de baixo calão, ainda fala que a gente não tem o que fazer. “Vem aqui cuidar da nossa vida, elas não têm o que fazer?”, ainda xinga a gente! (G1, P8); Com o Disque 100 já a gente se sente segura, não vai ter problema nenhum em estar denunciando [...] (G4, P3). 99 Desarticulação intersetorial As relações desarticuladas na intersetorialidade, a falta de comunicação e de resolução dos casos são percebidas pela equipe limitando a qualidade do serviço. Manifestam que os profissionais da equipe não recebem contra referência dos casos que já foram denunciados e, assim, os usuários e equipe de saúde ficam sem respostas, dificultando a resolução das necessidades de saúde. Mas acho que também falta um pouco do apoio intersetorial, que a gente não tem totalmente assim respaldo; existe, mas a gente não tem tão próxima, entendeu? Então, a saúde faz isso, a assistência social, o CREAS e o CRAS, o CRAS nem tanto, que já a gente consegue mais dependendo da unidade que você, mais o CREAS, faz outra coisa e os dois não se conversam, não se juntam. (G2, P6); [....] Porque hoje nem contra referência de nada a gente recebe, então a gente realmente fica sem saber o que aconteceu e, muitas vezes, acho que até nesse caso que você relatou, o próprio paciente fica sem saber, o que resolveu, eles ficam esperando da gente uma resposta [....] (G4, P3). O desconhecimento sobre as ações possíveis frente à situação de violência e do papel de outros serviços que também são responsáveis pelo atendimento ao idoso vítima de violência são dificuldades que os profissionais enfrentam, uma vez que ficam sem saber como agir. Além disso, existe a compreensão de que muitas situações não estão no rol de sua competência, não se sentem suficientemente amparados para a abordagem por se tratar de situação complexa, sentem desânimo frente às mesmas e sugerem uma rede de apoio. É, ou então de repente de saber até onde cada um pode ir. O que o CREAS realmente pode fazer, até onde eles podem ir? Será que eles sabem o que nós podemos fazer? Até onde nós podemos ir? O que cabe à saúde, o que cabe à assistência social? (G4, P2); Sei lá, se tivesse um outro tipo de rede de apoio, […] só o posto intervir? Você tem que ter uma rede de apoio, tem que ter uma estrutura, mudar isso (G3, P8); Igual essa denúncia que chegou ontem para mim desse pai, aí eu até li lá, falei veio para mim, agora não sei, eles querem que eu encaminhe o rapaz para o CAPES? [...] Como que vai fazer ele ir? Não tem como! O pai já faz acompanhamento médico, então assim, o que eu vou fazer ali? Não é uma parte que vai caber para enfermagem mais (G1, P6); 100 Porque no começo também, parece que tudo que a gente encontra de problema a gente quer trazer e ter uma solução, tudo vai ser resolvido, então a gente desanima (G1, P5). DISCUSSÃO Frente ao intenso dinamismo e constante transformação no contexto de saúde pública, há a necessidade da compreensão aprofundada da realidade em que essas ações são desenvolvidas. Para tanto, pauta-se na reflexão e indagação, com vistas a depreender essencialmente a contradição existente nesse processo, pois o contexto atual é de incertezas em relação à aparência dos fatos e às formas de agir e interagir frente aos mesmos. O presente estudo, portanto, foi pautado pela hermenêutica dialética com vistas a compreender a percepção dos profissionais da equipe de atenção básica envolvendo os casos de violência contra a pessoa idosa. Neste contexto, depreendeu-se que os profissionais da atenção básica percebem a existência de diferentes tipos de violência, sendo bastante comum o abandono dentro da própria residência, onde o idoso é colocado em um quarto apartado da casa, e permanece em condições precárias de sobrevivência, faltando, inclusive, higiene e alimentação. Associada aos diferentes tipos de violência, encontra-se a psicológica, sendo ainda considerada como um dos tipos de mais difícil identificação, uma vez que não fora reconhecida nas falas dos participantes do estudo. Os idosos vítimas de violência psicológica sofrem de dor emocional, angústia e aflição. O agressor utiliza-se de ações que envolvem controlar,