­ ­­ % %% ¡ ¡ ¡ , , ,, ´ ´́ ©© e ee @ @@ l l l Q QQ HHPPP XXX hhhh (((( ³³© IFT Instituto de F́ısica Teórica Universidade Estadual Paulista TESE DE DOUTORADO IFT–T.002/05 PARTÍCULAS DE SPIN 1/2 E O PAPEL DA TORÇÃO NA DESCRIÇÃO DA INTERAÇÃO GRAVITACIONAL Héctor Iván Arcos Velasco Orientador José Geraldo Pereira Fevereiro de 2005 Agradecimentos Agradeço aos meus pais pelo apoio incondicional, e aos meus amigos Oscar, Juan, Boris, Paulo e William. Agradeço ao grupo de gravitação do IFT, e muito especialmente ao meu ori- entador, José Geraldo Pereira. Não é posśıvel resumir em poucas palavras meu agradecimento para com ele. Sempre estarei em d́ıvida com ele. Agradeço às agências de fomento CAPES e COLCIENCIAS. Seus apoios foram fundamentais. Dedico esta tese a Beatriz, Danilo e Gabriel. Eles deram muito mais do que apoio, amor e esperança. i Resumo Nesta tese, propomos soluções para dois problemas clássicos da gravitação. Pri- meiramente, consideramos um modelo para uma part́ıcula fundamental de spin 1/2, o qual faz uso da interpretação estendida de Hawking e Ellis para o espaço-tempo de Kerr-Newman. Ao mostrar que a estrutura topológica altamente não trivial da solução estendida de Kerr-Newman permite a existência de estados gravitacionais com momento angular semi-inteiro, as idéias de Wheeler de carga sem carga e massa sem massa são automaticamente incorporadas. O vetor de estado representando a solução de Kerr-Newman é constrúıdo, e mostra-se que sua evolução é governada pela equação de Dirac. Algumas conseqüências fenomenológicas do modelo são estu- dadas. Em seguida, na segunda parte da tese, abordamos o velho problema do papel desempenhado pela torção na descrição da interação gravitacional. Usando uma formulação não-holônoma do prinćıpio de covariância geral, visto como uma versão ativa do prinćıpio de equivalência forte, fazemos um estudo da prescrição de acopla- mento minimal na presença de curvatura e torção. A prescrição de acoplamento minimal obtida através deste prinćıpio é sempre equivalente àquela da relatividade geral, um resultado que reforça o ponto de vista teleparalelo, de acordo com o qual a torção não representa graus de liberdade adicionais para gravitação, mas sim- plesmente uma forma alternativa de representar o campo gravitacional. Propomos, então, uma formulação diferente para a gravitação que inclui esta nova interpretação para a torção, na qual o campo fundamental é representado, não pela métrica, mas por uma conexão. Consequentemente, paradigma da invariância por difeomorfismos é substituido neste modelo pela invariância sob o grupo local de Lorentz. Palavras Chaves: Gravitação, part́ıculas de spin 1/2, torção, conexão Áreas do conhecimento: 1.05.03.01-3: Teoria Geral de Part́ıculas e Campos 1.05.01.03-7: Relatividade e Gravitação ii Abstract We propose in this thesis solutions for two classical problems of gravitation. Firstly, by considering the Hawking and Ellis extended interpretation of the Kerr- Newman spacetime, we propose a model for a fundamental spin-1/2 particle. By showing that the highly non-trivial topological structure of the extended Kerr–New- man solution allows the existence of gravitational states with half-integral angular momentum, Wheeler’s idea of charge without charge and mass without mass are automatically incorporated in the model. The state vector representing the whole Kerr-Newman solution is then constructed, and its evolution is shown to be gov- erned by the Dirac equation. Some phenomenological consequences of the model are explored. Then, in the second part of the thesis, we focus on the problem of the role played by torsion in the description of the gravitational interaction. By using a nonholonomous-frame formulation of the general covariance principle, seen as an active version of the strong equivalence principle, an analysis of the gravitational coupling prescription in the presence of curvature and torsion is made. The coupling prescription implied by this principle is found to be always equivalent with that of general relativity, a result that reinforces the teleparallel point of view, according to which torsion does not represent additional degrees of freedom for gravity, but simply an alternative way of representing the gravitational field. We propose then a reformulation of gravitation, which includes this new interpretation for torsion, and in which the fundamental field representing gravitation is not the metric, but a connection. Accordingly, the paradigm of the invariance under diffeormorphisms is replaced, in this model, by the local invariance under the Lorentz group. iii Índice 1 Introdução 1 1.1 Objetivos do trabalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 1.2 Notações e definições . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 2 Um Modelo de Part́ıcula em Gravitação 7 2.1 Conceitos básicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 2.2 A solução de KN estendida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 2.2.1 Propriedades básicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 2.2.2 Topologia da solução estendida de KN . . . . . . . . . . . . . 10 2.2.3 Tensão superficial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 2.3 Existência de estados com momento angular semi-inteiro . . . . . . . 19 2.3.1 Condições topológicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 2.3.2 Comportamento sob rotações . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 2.4 Representação algébrica dos estados de KN . . . . . . . . . . . . . . . 23 2.4.1 Estados espinoriais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 2.4.2 Equação de evolução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 2.5 Testes fenomenológicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 Apêndices 28 A O grupo de Lorentz e as transformações de paridade 29 B Propriedades topológicas de K3 31 3 O Papel da Torção na Descrição da Interação Gravitacional 33 3.1 Antecedentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 3.2 Prinćıpio da covariância geral: caso não-holônomo . . . . . . . . . . . 34 3.2.1 Referenciais não-holônomos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 3.2.2 Equivalência entre efeitos inerciais e gravitacionais . . . . . . . 36 iv 3.2.3 O acoplamento minimal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 3.3 Conseqüências f́ısicas do acoplamento minimal . . . . . . . . . . . . . 38 3.3.1 Part́ıcula sem spin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38 3.3.2 Part́ıcula com spin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 3.3.3 Campos espinoriais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 3.4 Gravitação como uma teoria para uma conexão . . . . . . . . . . . . 43 3.4.1 Transformações de Lorentz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 3.4.2 Transformações da conexão e da tetrada . . . . . . . . . . . . 46 3.4.3 A conexão de spin como variável fundamental . . . . . . . . . 49 3.4.4 O papel das coordenadas do espaço tangente . . . . . . . . . . 52 Apêndices 53 C Espaço das conexões 54 4 Conclusões 56 Referências 58 v Caṕıtulo 1 Introdução 1.1 Objetivos do trabalho A relatividade geral é uma teoria de grande sucesso. Todas as experiências têm provado, até agora, que ela pode explicar os fenômenos clássicos da gravitação. Porém, o conhecimento da teoria não é completo: existem muitas situações onde ainda não sabemos como aplicar os prinćıpios da teoria e/ou onde não podemos obter soluções devido à complexidade das equações. A pesquisa moderna em gravitação está concentrada nestas áreas e também nas posśıveis geralizações da teoria, para assim explicar uma maior variedade de fenômenos f́ısicos. Nesta tese, iremos propor soluções para dois problemas da classe dos mencionados acima. No primeiro, procuraremos entender como aplicar a relatividade geral à descrição da estrutura das part́ıculas fundamentais; no segundo, tentaremos entender o papel da torção na descrição da interação gravitacional, e como ela pode (ou não) mudar e generalizar a relatividade geral. Ainda que estes dois problemas sejam bastante diferentes entre si, eles compartilham o objetivo de se chegar a uma melhor compreensão de uma das teorias de maior sucesso na F́ısica do século XX. O primeiro problema pode ser melhor compreendido através de uma pergunta simples: seria posśıvel descrever a estrutura de uma part́ıcula fundamental de spin 1/2 usando apenas a relatividade geral? Este é um problema antigo. Uma das primeiras idéias nesta área foi dada por J. A. Wheeler. Ele conjecturou que seria posśıvel existir objetos com carga e massa, sem uma fonte de matéria. De acordo com suas idéias, carga e massa poderiam sêr geradas pela auto-interação gravitacional de uma concentração de energia eletromagnética, as quais foram chamados de “geons”, ou pela não trivialidade da topologia do espaço tempo. Neste último caso, temos o exemplo do buraco de minhoca, ou “wormhole”. Um estudo detalhado destas 1 idéias, no entanto, levou à conclusão que a validade das mesmas é limitada. No caso dos geons, a concentração de energia eletromagnética necessária para gerar uma força gravitacional que mantivesse esta mesma energia numa região finita é enorme. Assim, tais objetos só poderiam existir sob condições muito especiais, posśıveis só no ińıcio do universo, ou nas escalas de distâncias cósmicas. No caso dos objetos gerados pela topologia não trivial do espaço-tempo, é posśıvel provar que eles podem existir só em escalas da ordem do comprimento de Planck (10−34 cm), a qual fica longe das dimensões conhecidas para as part́ıculas fundamentais, como o elétron (10−11 cm). Além disso, o conceito de spin semi-inteiro não podia ser explicado com nenhuma das propostas de Wheeler. Devido aos problemas mencionados, o objetivo de descrever a estrutura das part́ı- culas fundamentais através das idéias de Wheeler foi abandonado. Isto gerou espaço para que surgissem outras idéias, como as que deram origem à teoria de cordas, a qual tem apresentado avanços consideráveis nos últimos vinte anos. Esta teoria considera as part́ıculas fundamentais como compostas por uma linha fechada, ou aberta, num espaço tempo multi-dimensional, numa escala da ordem da escala de Planck. Devido ao sucesso teórico desta teoria, pelo menos no que diz respeito à sua consistência e perspectivas futuras, novos trabalhos na linha das idéias de Wheeler tornaram-se limitados. Ainda assim, pode-se destacar dois trabalhos relevantes. O primeiro deles, de Friedman e Sorkin [1], onde esses autores demonstram que é posśıvel existir estados gravitacionais com spin semi-inteiro. Vale ressaltar novamente que isso é posśıvel apenas se o espaço-tempo tiver uma topologia não trivial. Outro trabalho relevante é do Punsly [2], no qual o autor demonstra que a solução de Kerr para as equações de Einstein transforma-se sob rotações da mesma forma que se transformaria um objeto com spin semi-inteiro. O método usado neste caso inclúıa eliminar a singularidade da solução através de um procedimento geométrico não muito bem justificado do ponto de vista f́ısico. Baseando-se nas idéias descritas acima, iremos propor nesta tese uma nova solu- ção para a pergunta inicial. Esta solução contém os resultados de Friedman e Sorkin, sem abandonar as idéias de Wheeler, e com o uso da solução de Kerr-Newman para as equações de Einstein. Esta é uma solução com massa, momento angular e carga elétrica. Ela apresenta uma singularidade para o caso onde a massa é menor do que a soma da carga e do spin. Nossa proposta pode ser resumida no seguinte: uma vez que a singularidade seja eliminada através de argumentos f́ısicos, as propriedades topológicas do espaço-tempo resultante permitem obter uma explicação clássica para 2 os conceitos de massa, spin e carga elétrica. Apresentaremos, então, na primeira parte da tese, um estudo dos conceitos necessários para se chegar ao resultado final, qual seja: a solução de Kerr-Newman pode ser considerada como um modelo viável para a estrutura do elétron, isto é, para uma part́ıcula elementar de spin 1/2. O segundo problema a ser estudado refere-se ao papel da torção na descrição da interação gravitacional. Como é sabido, a teoria da relatividade geral de Einstein assume que a torção é nula: somente a curvatura é usada para explicar a interação gravitacional. A pergunta que surge naturalmente é a seguinte: existe alguma razão, teórica ou experimental, para se introduzir torção na teoria para gravitação? Em primeiro lugar, existem teorias, como as de Einstein-Cartan, onde a presença de torção gera novos fenômenos f́ısicos. Nessas teorias, a torção aparece associada ao spin, e torna-se relevante apenas quando o spin torna-se importante. Esses novos fenômenos, portanto, poderiam ser observados apenas em escalas microscópicas, ou então perto de estrelas de nêutrons, onde o spin deve ser importante. Ao mesmo tempo, existe o equivalente teleparalelo da relatividade geral, onde a interação gravi- tacional é descrita apenas pela torção, sendo a curvatura assumida como sendo nula. A noção de paralelismo absoluto (ou teleparalelismo) foi introduzida por Einstein na década de 1920, na sua tentativa de unificar a gravitação e o eletromagnetismo. Mais ou menos três décadas depois, trabalhos de Møller [3], Pellegrini e Plebanski [4] e Hayashi e Nakano [5] produziram uma nova onda de interesse naquelas idéias, que desde então tem recebido uma considerável atenção, principalmente no contexto de teorias de gauge para os grupos de Poincaré e translação [6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13]. Ainda que estas duas classes de teorias, as de Einstein-Cartan e a teleparalela, usam a torção no seu formalismo, os diferentes papéis que ela desempenha nessas teorias são incompat́ıveis entre si: enquanto na teoria teleparalela a torção é sim- plesmente uma alternativa à curvatura, não havendo portanto nenhuma nova f́ısica associada a ela, nas teorias de Einstein-Cartan, como já discutido, novos fenômenos são previstos para a f́ısica associada à torção. Como conseqüência, enquanto a teoria teleparalela é equivalente à relatividade geral, as teorias de Einstein-Cartan não são. Estamos, então, diante de um problema conceitual: qual o verdadeiro papel desem- penhado pela torção na descrição da interação gravitacional? Em outras palavras, existe ou não novos fenômenos associados à torção? É importante mencionar que em determinadas teorias de cordas, a torção aparece naturalmente. Se conseguirmos argumentos clássicos que nos leve a uma melhor com- preensão do papel da torção, poderemos, em prinćıpio, limitar a sua presença nestas 3 teorias. Isto terá conseqüências na teoria de cordas, a qual, como é sabido, ainda não é uma teoria completamente desenvolvida devido à sua extrema complexidade. Faremos então uma tentativa de esclarecer o verdadeiro papel da torção na descrição da interação gravitacional. Para isso, faremos uso do prinćıpio de covariância geral, na sua versão não-holônoma. Este prinćıpio, o qual pode ser interpretado como uma versão ativa do prinćıpio da equivalência forte, nos levará a uma nova prescrição de acoplamento minimal entre os campos f́ısicos e a gravitação. A equivalência desta prescrição com aquelas da relatividade geral e da teoria teleparalela, junto com o fato desta última ser uma teoria de gauge para o grupo das translações, nos levará a propor uma nova versão alternativa para a gravitação, onde o campo gravitacional é representado por uma conexão de Lorentz, e não pela métrica, como ocorre na relatividade geral. Esta nova teoria compartilha muitas propriedades com as teoria de gauge. Em particular, a invariância sob difeomorfismo da relatividade geral será trocada pela invariância sob o grupo local de Lorentz, resultando numa teoria muito próxima a uma teoria de gauge para o grupo de Lorentz. Como resultado final desse estudo, obtemos que, para ser consistente com o prinćıpio da covariância geral, ou seja, com o prinćıpio da equivalência forte, o papel da torção na descrição da in- teração gravitacional deve ser aquele que ela desempenha nas teorias teleparalelas, isto é, simplesmente uma alternativa à curvatura. Apesar de ser uma interpretação completamente diferente da interpretação usual—presente nas teorias de Einstein- Cartan—essa nova interpretação é totalmente consistente, e não pode ser exclúıda a priori por argumentos teóricos. Além disso, como não existem evidências experi- mentais de novos fenômenos f́ısicos associados à torção, podemos dizer que os dados experimentais existentes, pelo menos até agora, favorecem a interpretação proposta neste trabalho. 1.2 Notações e definições Usaremos o alfabeto Grego (µ, ν, ρ, . . . = 0, 1, 2, 3) para denotar os ı́ndices do espaço- tempo, e o alfabeto Latino maiúsculo (A,B,C, . . . = 0, 1, 2, 3) para denotar os ı́ndices relacionados ao espaço tangente, o qual é um espaço de Minkowski com métrica ηAB = diag(+1,−1,−1,−1). Usaremos o alfabeto Latino minúsculo (i, j, k, . . . = 1, 2, 3) para denotar os ı́ndices espaciais do espaço-tempo. De acordo com isso, as coordenadas do espaço-tempo, serão denotadas por xµ, e aquelas para o espaço tangente por xA. Posto que estas coordenadas são funções umas das outras, as 4 derivadas holônomas nestes dois espaços satisfazem as relações ∂µ = ( ∂µx A ) ∂A and ∂A = (∂Axµ) ∂µ, (1.1) onde ∂µx A é uma tetrada trivial, ou seja, uma tetrada holonôma, com ∂Axµ sua inversa. Localmente, e com vetores base dados por {eµ} = {∂µ}, os coeficientes de uma conexão Γλ νµ são definidos por ∇eνeµ = eλ Γλ νµ. (1.2) Sabendo a ação de ∇ nos vetores base, podemos calcular sua ação em qualquer campo vetorial V ρ: ∇µV ρ = ∂µV ρ + Γρ νµ V ν . (1.3) Agora, dada uma tetrada não trivial hA µ, as métricas do espaço-tempo e do espaço tangente estão relacionadas por gµν = ηAB hA µ hB ν . (1.4) Uma conexão Γρ λµ é compat́ıvel com a métrica se ∇λgµν ≡ ∂λgµν − Γρ λµgρν − Γρ λνgρµ = 0. (1.5) Por outro lado, uma conexão de spin Aµ é uma conexão assumindo valores na álgebra de Lie do grupo de Lorentz, Aµ = 1 2 AAB µ SAB, (1.6) onde SAB é uma representação dos geradores de Lorentz. Usando a tetrada, a conexão geral Γρ νµ relaciona-se com a conexão de spin AA Bµ através de Γρ νµ = hA ρ∂µh A ν + hA ρAA Bµh B ν . (1.7) A relação inversa vem dada por AA Bµ = hA ν∂µhB ν + hA νΓ ν ρµhB ρ. (1.8) Nesta tese, iremos separar as noções de espaço e conexões. Desde um ponto de vista formal, curvatura e torção são propriedades de uma conexão [14]. De fato, formalmente não existe curvatura ou torção do espaço-tempo, mas apenas curvatura ou torção de uma conexão. Isto se torna evidente quando lembramos que num mesmo 5 espaço-tempo podem existir várias conexões com diferentes curvatura e torção [15]. É importante observar que, no caso espećıfico da relatividade geral, a universalidade da gravitação permite que a conexão de Levi–Civita possa ser incorporada na definição do espaço-tempo, posto que todas as part́ıculas e campos sentem a mesma conexão. Porém, quando conexões com diferentes curvatura e torção existem simultâneamente, é muito mais conveniente considerar as conexões (com suas curvaturas e torções) como estruturas adicionais a uma variedade. A curvatura e a torção da conexão AA Bµ são definidas respectivamente por RA Bνµ = ∂νA A Bµ − ∂µA A Bν + AA EνA E Bµ − AA EµA E Bν (1.9) e TA νµ = ∂νh A µ − ∂µh A ν + AA Eνh E µ − AA Eµh E ν . (1.10) Usando a relação (1.8), elas podem ser reescritas com ı́ndices espaço-temporais, e nesse caso assumem as formas Rρ λνµ ≡ hA ρ hB λ RA Bνµ = ∂νΓ ρ λµ − ∂µΓρ λν + Γρ ηνΓ η λµ − Γρ ηµΓη λν (1.11) e T ρ νµ ≡ hA ρ TA νµ = Γρ µν − Γρ νµ. (1.12) As componentes da conexão podem ser decompostas de acordo com Γρ µν = ◦ Γ ρ µν + Kρ µν , (1.13) onde ◦ Γ σ µν = 1 2 gσρ (∂µgρν + ∂νgρµ − ∂ρgµν) (1.14) é a conexão de Levi–Civita da relatividade geral, e Kρ µν = 1 2 (Tν ρ µ + Tµ ρ ν + T ρ µν) (1.15) é o tensor de contorção. Usando a relação (1.7), a decomposição (1.13) pode ser reescrita em termos das conexões de spin, assumindo a forma AC Aν = ◦ A C Aν + KC Aν , (1.16) onde ◦ AC Aν é o coeficiente de rotação de Ricci, a conexão de spin da relatividade geral. 6 Caṕıtulo 2 Um Modelo de Part́ıcula em Gravitação 2.1 Conceitos básicos A solução estacionária e simétrica de Kerr-Newman (KN) para as equações de Ein- stein foi encontrada realizando-se uma transformação complexa na tetrada da solução de Schwarzschild com carga (Reissner-Nordström) [16, 17, 18]. Para m2 ≥ a2 + q2, a solução de KN representa um buraco negro com massa m, momento angular por unidade de massa a, e carga q. Nas coordenadas de Boyer e Lindquist (r, θ, φ), a solução de KN é dada por ds2 = dt2 − ρ2 ∆ dr2 − (r2 + a2) sin2 θ dφ2 − ρ2 dθ2 − Rr ρ2 (dt − a sin2 θ dφ)2, (2.1) onde ρ2 = r2 + a2 cos2 θ, ∆ = r2 − Rr + a2 e R = 2m − q2/r. Esta solução é invariante por uma mudança simultânea de (t, a) → (−t,−a) e (m, r) → (−m,−r), e separadamente por q → −q. Este buraco negro é o estado final de um colapso gravitacional estrelar, onde a estrela tem rotação e sua carga total é diferente de zero. A estrutura da solução de KN muda totalmente quando m2 ≤ a2 + q2. Devido à ausência de um horizonte, ela não representa mais um buraco negro, e sim uma singularidade “nua” no espaço-tempo. Esta solução é de grande interesse porque ela descreve um objeto massivo com carga e spin, e com uma razão giromagnética igual àquela do elétron [17]. Como conseqüência, muitas tentativas para modelar o elétron usando a solução de KN com m2 ≤ a2 + q2 tem sido feitas [19, 20, 21, 22]. Em todos estes modelos, a singularidade circular é rodeada por uma bolha elipsoidal, ficando assim imposśıvel de ser observada. Em outras palavras, a singularidade é considerada não f́ısica no sentido de que a presença da bolha impede sua formação. Inspirado nos trabalhos de Barut [23, 24], que tentou explicar o Zitterbewegung que aparece na teoria de Dirac para o elétron, e também nos trabalhos de Wheeler 7 [25] sobre “matéria sem matéria” e “carga sem carga”, a proposta básica desta parte da tese é mostrar que a solução de KN com m2 ≤ a2 + q2, sem matéria exótica ao redor da singularidade, pode ser consistentemente interpretada como um modelo realista para o elétron. 2.2 A solução de KN estendida 2.2.1 Propriedades básicas A solução de KN para m2 ≤ a2 + q2 exibe uma singularidade circular de raio a, a qual se localiza na fronteira de um disco onde as componentes da métrica deixam de ser bem comportadas. Quando o ćırculo é colocado no plano xy, com o centro do mesmo coincidindo com a origem de um sistema de coordenadas cartesianas, a simetria axial da solução (ao redor do eixo z) se torna expĺıcita. Deve ser ressaltado que, quando trabalhamos com esta solução, os conceitos de massa e carga devem ser usados com cuidado pois a presença da singularidade próıbe o uso de conceitos e/ou leis f́ısicas ao longo dos pontos da fronteira do disco. A ausência de regularidade das componentes da métrica quando o disco é atra- vessado pode ser remediada considerando-se a extensão do espaço de acordo com a interpretação de Hawking e Ellis [26], deixando claro que a singularidade da fronteira do disco não pode ser eliminada por esta construção. A idéia básica da extensão é considerar que nosso espaço-tempo está colado pelo disco singular a um outro espaço- tempo idêntico. Em outras palavras, a superf́ıcie do disco (com os pontos superiores considerados diferentes dos inferiores) é interpretada como uma fronteira compar- tilhada entre nosso espaço-tempo, denotado por M, e outro similar, denotado por M′. De acordo com esta construção, as componentes da métrica de KN não são mais singulares através do disco, tornando posśıvel a colagem suave dos espaços, gerando assim um grande e único espaço-tempo quadri-dimensional M. Assumiremos a ex- tensão de Hawking e Ellis como ponto de partida de nossa construção. A colagem entre os dois espaços pode ser entendida mais facilmente fazendo um desenho bi-dimensional. Neste desenho a colagem é representada por cilindros sólidos que saem de um espaço para o outro. As principais conseqüências desta interpretação são: • Podemos associar a carga elétrica da solução de KN em cada 3-variedade com o fluxo resultante de um campo elétrico preso na topologia, indo de um espaço 8 para outro, como foi proposto por Wheeler [25]. Quando as linhas do campo parecem terminar no anel singular (visto desde M ou M′), a igualdade no valor da carga elétrica em ambos lados de M implica que nenhuma linha de campo pode desaparecer quando vai de M para M′, ou vice-versa. Então, em analogia com a geometria do buraco de minhoca (“wormhole”) presente nas soluções das equações de Einstein, deve existir um caminho cont́ınuo para cada uma das linhas do campo elétrico. Em particular, a igualdade do momento magnético em ambos os lados de M implica que as linhas de campo magnético devem também ser cont́ınuas quando passam através do disco limitado pela singularidade. • Podemos associar a massa da solução com a magnitude da curvatura da solução de KN. Em geral, a massa pode ser definida como a integral (usamos aqui a notação abstrata de Wald [27]) m = − 1 8π ∫ σ εabcd ∇cξd = − 3 8π ∫ V ∇[e { εab]cd∇cξd } , (2.2) onde εabcd é o elemento de volume do espaço-tempo, ξb = (∂/∂t)b é um campo vetorial de Killing tipo espaço, V é uma hiper-superf́ıcie tipo espaço que rodeia a singularidade, e σ é a fronteira de V , a qual é topologicamente equivalente a uma esfera S2. Da última expressão, obtemos m = 1 4π ∫ V Rab na ξb dV, (2.3) onde na é um vetor unitário normal a V que aponta para o futuro, e dV é o elemento diferencial de volume, o qual, em termos das coordenadas de Boyer e Lindquist, é dado por dV = 1 2 ( a2 + 2r2 + a2 cos 2θ ) sin θ dr dθ dφ. (2.4) A equação (2.3) mostra que m depende do tensor de Ricci do espaço-tempo. Esta equação foi obtida por Komar [28] e é válida para todos os espaços-tempos estacionários e assintoticamente planos. É importante mencionar que o volume de integração pode ser tanto a região com r > 0 ou a com r < 0. Além disso, podemos ver da equação (2.3) que no lado M (r positivo), a massa é positiva, mas é negativa em M′ (r negativo). Os sinais de ξb e na não são fixos em M pois eles podem ser positivos ou negativos. Deve-se notar também que a massa m é a massa total do sistema, isto é, ela inclui a parte gravitacional, eletromagnética e rotacional [29]. 9 Agora, usando para a, m e q os valores conhecidos experimentalmente para o elétron, podemos escrever o momento angular interno L da solução de KN em cada lado de M como L = m a, (2.5) o qual, para uma part́ıcula de spin 1/2, assume o valor de L = 1/2. É, então, fácil verificar que o disco tem um diâmetro igual ao comprimento de onda Compton (λ/2π)e = 1/m para o elétron, e conseqüentemente a velocidade angular ω de um ponto situado no anel singular é ω = 2 m, (2.6) a qual é igual a frequência do Zitterbewegung de Barut [23] para um elétron pon- tual em órbita circular de diâmetro λe. Consequentemente, se a solução de KN é tomada como um modelo realista para o elétron, ela mostra desde o ińıcio uma origem clássica para a massa, a carga elétrica, a magnitude do spin, e também para o fator giromagnético g = 2. Diferentemente dos outros modelos já conhecidos para o elétron [19, 20, 21], não iremos supor nenhuma distribuição de matéria no disco ou em sua fronteira. Em vez disso, vamos considerar uma solução “vazia” de KN, porém com uma topologia não trivial. 2.2.2 Topologia da solução estendida de KN Com uma simples análise da estrutura da métrica de KN, é posśıvel isolar quatro estados f́ısicamente não equivalentes para cada lado de M, isto é, M e M′. Estes estados podem ser identificados pelo sentido de rotação (a pode ser positiva ou negativa), e pelo sinal da carga elétrica (positiva ou negativa). Antes de escolher um eixo de rotação para o spin, estes estados são totalmente equivalentes (a menos de uma rotação). No entanto, depois de uma escolha, eles passam a ser f́ısicamente diferentes. Se colocarmos o disco de KN no plano xy de um sistema de coordenadas cartesiano, o vetor de spin ficará na direção +z ou −z. Agora, cada uma destas soluções não equivalentes em M devem ser coladas continuamente, através do disco de KN, com alguma outra do lado M′, mas com carga oposta. Devido à necessidade de se fazer uma colagem cont́ınua das componentes da métrica, ela deve levar em consideração o sentido de rotação dos anéis. Através de uma separação espacial entre os discos superior e inferior de cada variedade, as colagens podem ser representadas como cilindros sólidos (ver Fig. 2.1), o que explicita a diferença entre os discos superior e inferior. Por simplicidade, consideraremos só uma das duas posśıveis 10 A C B D M M’ Figura 2.1: Para entender melhor a geometria intŕınseca da variedade espacial de KN, desenhamos o disco r = 0 como se tivesse uma espessura finita, significando que as superf́ıcies inferior e superior do disco são diferentes. O lado esquerdo de cada configuração representa o disco em M, enquanto que o lado direito representa o disco em M’. A superf́ıcie B deve ser colada com a C, e a superf́ıcie D com a A. cargas elétricas em M (q < 0, por exemplo). Na Fig. 2.2 , as colagens tubulares entre M e M′ são desenhadas novamente, mas agora levando em conta as diferentes direções do spin em cada disco, as quais são desenhadas como pequenas setas. As únicas diferenças entre estas configurações são as orientações do vetor de spin, e a geometria dos tubos. Para entender melhor a topologia da seção espacial do espaço-tempo de KN, va- mos obter sua métrica espacial, isto é, a métrica de sua seção espacial de 3 dimensões. Como a métrica quadridimensional de KN tem termos não diagonais, a forma correta do intervalo tri-dimensional é dada por [30] dγ2 = ( −gij + goigoj goo ) dxi dxj ≡ γij dxi dxj, (2.7) onde i, j = 1, 2, 3. Aplicando esta fórmula à métrica de KN (equação (2.1)), obtemos dγ2 = ( r2 + a2 cos2 θ r2 − 2mr + a2 + q2 ) dr2 + ( r2 + a2 cos2 θ ) dθ2 + ( (r2 + a2 cos2 θ) sin2 θ r2 + a2 cos2 θ − 2mr + q2 ) ( r2 + a2 − 2mr + q2 ) dφ2. (2.8) A primeira coisa a ser notada é que as componentes espaciais são finitas nos pontos do anel, ou seja, em r = 0 e θ = π/2. Isto não significa que a singularidade esteja 11 Ψ1 + Ψ2 - Ψ1 + Ψ2 - M M’ Ψ1 - Ψ2 + Ψ1 - Ψ2 + M M’ Ψ1 + Ψ1 - Ψ1 + Ψ1 - M M’ Ψ2 + Ψ2 - Ψ2 + Ψ2 - M M’ Figura 2.2: As quatro configurações geométricas da solução de KN para um valor fixo da carga elétrica. O disco r = 0 em cada espaço, isto é em M e M’, fica no plano z = 0. As setas indicam o sentido do vetor de spin. ausente, mas simplesmente que só as derivadas da métrica são singulares, não a métrica. Podemos então dizer que a seção espacial da métrica de KN tem uma topologia bem definida. De fato, a função distância d(p, q) = ∫ q p √ γ(u) du é facilmente provada ser finita para quaisquer pontos p e q do espaço. Então, a seção espacial de KN, denotada por M3, tem uma estrutura topológica bem definida, e é consequentemente um espaço topológico. Ainda que ele tenha uma estrutura topológica bem definida, o espaço M3 não é localmente euclideano em todos pontos. Para entender isso, calculemos o comprimento espacial L da fronteira do disco r = 0. Ele é dado por L = ∫ 2π 0 dγ, (2.9) onde a integral é calculada para r = 0 e θ = π/2. Como um simples cálculo mostra, o resultado da integral é zero, o que significa que a fronteira do disco é topologicamente um ponto de M3. Então, uma bola aberta e centrada no ponto (r = 0, θ = π/2) não é difeomorfa a uma bola euclideana aberta, e consequentemente o espaço M3 não é localmente euclideano na borda do disco r = 0. 12 O problema anterior pode ser resolvido pelo uso do conceito de “carga sem carga” devido a Wheeler. De acordo com essa proposta, as linhas do campo elétrico não terminam nem iniciam em ponto algum: elas são sempre cont́ınuas. É a topologia não trivial do espaço-tempo que, ao deixar preso o campo elétrico, faz com que as linhas de campo pareçam ter uma origem. Aplicando esta idéia à solução de KN, vemos que as linhas do campo elétrico terminam no anel singular somente do ponto de vista de 4-dimensões. Do ponto de vista tri-dimensional, elas terminam em um ponto (a fronteira do disco). Agora, se este ponto não é a origem das linhas de campo elétrico, então elas devem seguir um caminho cont́ınuo até o lado com r negativo. Esta situação é bastante similar à presente na solução de Reissner-Nordström nas coordenadas de Kruskal-Szekeres [25], onde as linhas de campo elétrico podem ser continuadas até o lado com r negativo (deve-se notar que a solução, neste caso, não é totalmente estática posto que a coordenada tipo-tempo muda para tipo-espaço para pequenas distâncias da singularidade). De maneira análoga ao caso da solução de Reissner-Nordström, então, podemos eliminar uma vizinhança do ponto r = 0 da solução de KN, e colar as bordas resultantes. No caso de KN, considerando-se os valores para a carga, massa e spin do elétron, a coordenada temporal não muda sua natureza para tipo espaço em nenhum ponto, ficando a solução estacionária depois do procedimento de excisão. Além disso, baseado numa análise causal da solução, podemos escolher eliminar exatamente a região em forma de toro ao redor da singularidade, onde existem curvas fechadas tipo tempo não-causais. Usando a métrica (2.1), é fácil ver que a coordenada φ torna-se tipo tempo na região onde a seguinte desigualdade é válida [31]: r2 + a2 − ( q2 − 2mr r2 + a2 cos2 θ ) a2 sin2 θ < 0. (2.10) Eliminando esta região, o espaço-tempo de KN vira causal. Como já foi dito, esta região tem uma forma simples: ela é tubular e rodeia o anel singular tanto do lado r > 0 como do lado r < 0. Quando os valores de a, q e m são aqueles do elétron, a superf́ıcie da região tubular fica a uma distância de 10−34 cm do anel singular. Para estas distâncias infinitesimais, mudanças de topologia são muito prováveis de ocorrer, e assim uma mudança na conectividade do espaço-tempo não é improvável. A idéia de Wheeler pode assim ser implementada na solução de KN. Isto significa eliminar a região infinitesimal do lado positivo e negativo de r, e logo colar de novo a variedade mantendo a continuidade das linhas do campo elétrico e das componentes da métrica. Um desenho simples da região a ser eliminada pode ser visto na Fig. 2.3, 13 onde o sentido do gradiente de r foi desenhado em vários pontos. Como um exemplo, Singular ring r > 0 A r ∆ r ∆ A r < 0 r ∆ Figura 2.3: Região tubular a ser excisada em torno do anel singular. Diversas direções ~∇r são também indicadas, as quais mostram como as bordas nos lados com r positivo e negativo podem ser coladas de forma a manter a continuidade do espaço. note-se que o ponto A do lado positivo de r deve ser colado ao ponto A do lado r negativo. Se continuamos colando todos os pontos da fronteira tubular, obteremos um caminho cont́ınuo para as linhas do campo elétrico que fluem de um lado da solução de KN para o outro lado. A idéia de Wheeler fica totalmente implementada, gerando assim uma variedade tri-dimensional M3, a qual é localmente euclideana em todos pontos e, portanto, é uma variedade Riemaniana. Além disso, posto que não há mudança no sinal da curvatura extŕınseca [21] na hipersuperf́ıcie gφφ = 0 quando é atravessada de r > 0 para r < 0, pode-se concluir que a colagem feita não gera tensões superficiais. 2.2.3 Tensão superficial A métrica tri-dimensional da hipersuperf́ıcie onde a componente gφφ se anula é dada por dσ2 = [ 1 − R(r)r ρ2 ] d2t− ρ2 [ 1 ∆ + ( dΘ(r) dr )2 ] d2r + 2aR(r)r sin2 Θ(r) ρ2 dtdφ, (2.11) onde ρ2 = r2 + a2 cos2 Θ(r), ∆ = r2 − R(r)r + a2 + q2, R(r) = 2mr − q2/r, e Θ(r) é uma função obtida pela anulação da componente gφφ. Esta função pode ser escrita como (ver Eq. (2.10)) Θ(r) = arcsin [ a−1(r2 + a2) ∆1/2 ] . (2.12) Usamos r, φ e t como coordenadas intŕınsecas, e com r tendo valores positivos e negativos. De acordo com o trabalho de Israel, o tensor de tensão superficial Sab 14 aparece quando o valor da curvatura extŕınseca Kab da superf́ıcie muda de sinal ao atravessar a superf́ıcie. Sua forma é −8πSab = [Kab] − gabg cd[Kcd], (2.13) onde [Kab] = K+ ab − K− ab é a diferença entre as curvaturas extŕınsecas calculadas em cada lado da hipersuperf́ıcie, e a, b = t, r, φ são ı́ndices do sub-espaço onde Θ(r) é definida. A curvatura extŕınseca é obtida de Kab = nµ|νea µeb ν , (2.14) onde nµ é o vetor unitário normal a hipersuperf́ıcie, com nµ|ν representando a deriva- ção covariante no espaço-tempo quadri-dimensional de KN. Agora, como já foi afir- mado (ver Fig. 2.3), a topologia da hipersuperf́ıcie é similar àquela de um toro. O vetor unitário normal pode ter componentes, por simetria, só nas coordenadas r e θ, ou seja, ele é normal à superf́ıcie da Fig. 2.3. As componentes do vetor podem ser calculadas sob a condição que sua norma sob a métrica de KN seja unitária. O modo mais fácil de calcular as componentes de nµ é parametrizar a superf́ıcie Θ(r) usando r como parâmetro, e calculando o vetor tangente à superf́ıcie. Da condição de ortogonalidade com nµ, e da condição de unitariedade, obtemos o sistema de equações ∆nr + Θ ′ nθ = 0 (2.15) −n2 r ∆ ρ2 − n2 θ 1 ρ2 = −1, (2.16) onde a “linha” denota uma derivada com relação a r. Este sistema de equações tem como solução nθ = ± ρ ( 1 + (Θ′ )2 ∆ )1/2 (2.17) nr = ∓Θ ′ ∆ ρ ( 1 + (Θ ′ )2 ∆ )1/2 . (2.18) Os sinais do nθ e nr não são fixados pelas equações (2.15) e (2.16). Esta liberdade permite-nos escolher o sentido da direção normal, seja no espaço com r negativo, ou vice-versa. Este é um ponto muito importante, sendo que nossa escolha é o sinal menos para nθ no lado r > 0 (ver Fig. 2.3). A prova de que as expressões para as componentes do vetor unitário são corretas pode ser obtida olhando seus valores 15 limites. Quando Θ ′ = 0, o vetor normal fica no sentido de ±θ, isto é, no disco r = 0. Quando Θ ′ → ∞ (ou seja quando θ = π/2), o vetor unitário fica no sentido ∓r. Ainda com a escolha do sinal “ − ” para nθ não é obvio que as normais coincidem, posto que a dependência de Θ ′ em r é escrita como uma soma de fatores de r e m: nr = (q2 − 2 m r) (a2 + r2) (a2 (m + r) + r (2 q2 + r (−3 m + r))) a √ 1 + (a2 (m+r)+r (2 q2+r (−3 m+r)))2 (−r4+a2 (q2−r (2 m+r))) ∆3 √ 1 − (a2+r2)2 a2 ∆ ∆ 7 2 = −f(r > 0,m > 0). (2.19) A segunda linha é devido ao fato da mudança de sinal de r e m no lado r < 0. Nossa escolha nos leva a: r > 0 r < 0 nθ − ρ( 1+ (Θ ′ )2 ∆ )1/2 − ρ( 1+ (Θ ′ )2 ∆ )1/2 nr f(r > 0,m > 0) -f(r > 0,m > 0) Deve-se notar que o ângulo θ vai de 0 (no centro do disco superior r = 0) até π (no disco inferior r = 0), mas posto que o disco superior em r > 0 foi colado com o disco inferior em r < 0, a variável θ vai desde 0 no disco inferior em r < 0 até π no disco superior em r < 0. Assim, o vetor unitário normal às superficies θ = constante muda de sinal no lado r < 0. Com tudo isto em mente, é posśıvel ver que as normais coincidem em cada lado, posto que no lado r < 0 o sinal menos da componente nr mostra que ela aponta no sentido contrário ao do vetor unitário r̂ do lado r > 0, isto é, na direção da singularidade para θ = π/2. Os resultados acima não garantem que a tensão superficial seja nula. Para veri- ficar este fato, temos que calcular as componentes não nulas da curvatura extŕınseca usando a equação (2.14). Fazendo isso, obtemos: K± tt = −Γα ttnα = −Γr ttnr − Γθ ttnθ, K± tφ = −Γα tφnα = −Γr tφnr − Γθ tφnθ, K± rr = ∂rnr − Γα rrnα = ∂rnr − Γr rrnr − Γθ rrnθ, K± φφ = −Γα φφnα = −Γr φφnr − Γθ φφnθ. Reescrevendo estas equações em termos das componentes da métrica, ficamos com: K± tt = 1 2 grr∂rgttnr + 1 2 gθθ∂θgttnθ, (2.20) 16 K± tφ = 1 2 grr∂rgtφnr + 1 2 gθθ∂θgtφnθ, (2.21) K± rr = ∂rnr − 1 2 grr∂rgrrnr + 1 2 gθθ∂θgrrnθ, (2.22) K± φφ = 1 2 grr∂rgφφnr + 1 2 gθθ∂θgφφnθ. (2.23) Agora, para calcular o tensor de tensão superficial, devemos achar a diferença [Kab] = K+ ab − K− ab. Esta diferença pode ser calculada mais facilmente se identificarmos os sinais no último conjunto de equações. Primeiramente, cada derivada da métrica com relação a r produz um termo que pode ser escrito como um fator linear de m e r; estas derivadas, então, mudam de sinal quando a hipersuperf́ıcie é atravessada. Mas, como elas estão multiplicadas por nr, não há mudança de sinal nestes termos. Por outro lado, é posśıvel verificar que os termos envolvendo derivadas com relação a θ não têm termos lineares em r ou m; ou seja, eles não mudam de sinal. O mesmo acontece com nθ. Finalmente, a derivada ∂rnr não contém termos lineares em r ou m, e assim, eles também não mudam de sinal. A conclusão é, então, que o tensor de tensão superficial da hipersuperf́ıcie Θ(r), onde os dois lados da solução de KN são colados, é nulo. Esta é uma propriedade muito especial da solução de KN. Para complementar o cálculo anterior, vamos determinar a forma geométrica da superf́ıcie obtida pela colagem cont́ınua das bordas tubulares ao redor da singulari- dade. Para fazer isto, devemos definir a aplicação A : S1 → S1, que é constrúıda da seguinte forma: desenhe os dois ćırculos S1 da Fig. 2.3, mas agora com centro nos pontos (a, 0, 0) e (−a, 0, 0) pertencentes a um sistema cartesiano de coordenadas. A aplicação A(p ∈ S1) é definida como A(x, 0, z) = (−x, 0,−z), onde (x, 0, z) são as coordenadas do ponto p. A forma desta aplicação é deduzida da restrição de colar as bordas tubulares mantendo a continuidade das componentes da métrica. A su- perf́ıcie determinada pela colagem é gerada pelo espaço quociente de S1 pela relação de equivalência p ∼ A(p), e pela rotação de π dos ćırculos ao redor do eixo z. Esta superf́ıcie coincide com a conhecida Garrafa de Klein (denotada por U2), como pode ser verificado na Ref. [32]. É importante notar que a garrafa de Klein foi encontrada também por Punsly [2] no contexto da solução de Kerr, através de um procedimento de extensão da métrica que elimina o anel singular. Porém, em nosso caso, temos uma justificativa f́ısica para eliminar a singularidade: a continuidade das linhas do campo elétrico. A eliminação do anel singular pode ser entendida mais facilmente considerando-se a função r → er, a qual possibilita observar os dois lados da superf́ıcie r = 0. Esta 17 função é desenhada na Fig. 2.4, onde os ćırculos representam as pequenas vizinhanças eliminadas ao redor do anel singular. A imagem total da variedade tri-dimensional resultante é obtida girando o plano da figura por um ângulo π. Fica claro da figura que a variedade obtida será multiplamente conexa, posto que qualquer caminho que rodeia as regiões eliminadas não pode ser contráıdo a um ponto. As bordas das regiões eliminadas devem ser coladas mantendo a componente radial da métrica cont́ınua. As outras componentes da métrica são iguais nestas bordas (devido à simetria rotacional), e portanto elas podem ser colados trivialmente. De acordo com r > 0 r < 0 r -∞ Figura 2.4: Vista da seção simétrica total bi-dimensional de M3, obtida pela função r → er. O ćırculo maior representa a superf́ıcie r = 0. O anel singular está localizado no equador, e os ćırculos pequenos representam as regiões infinitesimais eliminadas ao redor da singularidade. a construção anterior, M3 é uma 3- variedade diferenciável. Esta variedade pode ser vista como M3 = R3]K3]R3, (2.24) onde o primeiro R3 representa a seção assintótica de M, o segundo R3 representa a seção assintótica de M’, e o 3-espaço K3 é a variedade obtida pela compactificação pontual de M3, a qual é obtida adicionando-se os pontos em {−∞,∞}. Então, cada 2-esfera, respectivamente em +∞ e −∞, deve ser tomada como um ponto de K3. Se a ligação entre os dois discos fosse removida, K3 seria homotópico a duas 3-spheres disjuntas. Isto vem do fato que R3 ⋃{∞} ' S3. Porém, se as colagens existem, K3 não é simplesmente conexo pois existem caminhos fechados (aqueles ao redor da superf́ıcie U2) não homotópicos à identidade. De fato, o primeiro grupo fundamental de K3 vem dado por π1(K 3) = Z. Além disso, o segundo grupo fundamental de K3 é π2(K 3) = {e}. 18 2.3 Existência de estados com momento angular semi-inteiro 2.3.1 Condições topológicas Para que uma 3-variedade possua estados gravitacionais com momento angular semi- inteiro, ela deve apresentar certas condições topológicas. Estas condições foram explicitadas por Friedman e Sorkin [1], os quais obtiveram estes resultados baseados em trabalhos anteriores de Hendriks [33] sobre a teoria de obstruções em 3-dimensões. Para entender o resultado de Hendriks, é conveniente dividir a variedade M3 em uma região interior (M3 I), e em uma exterior (M3 E), de tal forma que M3 I ∩M3 E seja uma concha esférica. Depois disso, é necessário definir uma rotação pelo ângulo α da subvariedade M3 I com respeito a M3 E, como uma 3-geometria obtida cortando M3 I em quaisquer esfera S3 ⊂ M3 I ∩M3 E, e colando de novo (depois da rotação) a parte interna com a externa. Em outras palavras, é preciso procurar um difeomorfismo que leve a 3-geometria final, obtida depois da rotação de α = 2π, até a inicial, caracterizada por α = 0. Se o difeomorfismo pode ser deformado até a identidade, os estados gravitacionais definidos na variedade só podem ter momento angular inteiro. Se o difeomorfismo não pode ser deformado até a identidade, então existem estados com momento angular semi-inteiro. Este difeomorfismo foi chamado por Hendriks de rotação paralela à esfera, e será denotado pela letra ρ. Os resultados de Hendriks podem ser resumidos da seguinte forma. Se a divisão em uma região exterior e uma interior não é posśıvel, então ρ não pode ser defor- mada até a identidade. F́ısicamente, isto significa que se M e M’ estão colados não só através da superf́ıcie r = 0, mas também através de outros pontos, M3 pode ter estados com momento angular semi-inteiro, posto que neste caso não existiriam regiões interiores e exteriores a uma concha que rodeie a superf́ıcie r = 0. Por outro lado, se a divisão é posśıvel, então M3 terá estados só com momento angular inteiro se e somente se ela for uma soma conexa de 3-variedades compactas (sem borda), M3 = R3]M1] . . . ]Mk, cada uma das quais (a) é homotópica a P 2 × S1 (P 2 é a 2- esfera projetiva real), ou (b) é homotópica a um fibrado S2 sob S1, ou (c) tem um grupo fundamental π1(Mj) finito, com subgrupo 2-Sylow ćıclico. Para ter estados com momento angular semi-inteiro, portanto, a 3-variedade M3 não deve cumprir nenhuma destas três condições. De acordo com a decomposição (2.24), M3 pode ser visto como uma soma conexa 19 de dois R3 e K3. Agora, como o estudo original de Hendriks foi feito para variedades topológicas compactas e sem fronteira, devemos compactificar K3 somando os dois pontos no infinito. Além de ser compacta, a 3-variedade assim obtida não possui fronteira (ver Apêndice B). Com isso, os resultados de Hendriks podem ser usados, e podemos dizer que a variedade M3 terá estados com momento angular semi-inteiro somente se K3 não cumprir alguma das três condições (a) até (c), descritas acima. A condição (a) é claramente violada, pois π1(K 3) = Z, e posto que π1(P 2 × S1) = π1(P 2) ⊕ π1(S 1) = Z2 ⊕ Z, K3 não pode ser homotópico a P 2 × S1. A condição (b) é mais sutil, mais é violada também. De fato, como é sabido [34], o número de fibrados não equivalentes de S2 sobre S1 são só dois: um trivial e um não-trivial. Posto que o não- trivial é sempre não-orientável, K3 não pode ser homotópico a este espaço pois é orientável por construção. Por outro lado, o fibrado trivial T 3 é construido tomando-se o produto direto de S2 com S1. Com isso, temos que π1(T 3) = π1(S 2 × S1) = π1(S 2) ⊕ π1(S 1) = {e} ⊕ Z, o qual é, formalmente, o mesmo que π1(K 3). Porém, o segundo grupo de homotopia de T 3 vem dado por π2(T 3) = π2(S 2 × S1) = π2(S 2) ⊕ π2(S 1) = Z ⊕ {e}, e como π2(K 3) = {e}, então claramente π2(K 3) 6= π2(T 3). Assim, K3 não pode ser deformado homotopicamente até um fibrado S2 sobre S1. Finalmente, como foi dis- cutido na seção anterior, a condição (c) é violada também pois o grupo fundamental π1(K 3) = Z é infinito. Podemos concluir que o espaço-tempo de KN possui esta- dos gravitacionais com momento angular semi-inteiro. Mais exatamente, podemos concluir que os estados gravitacionais tem spin 1/2. 2.3.2 Comportamento sob rotações Usando a definição de ρ já introduzida, podemos analisar o efeito da rotação na região próxima de r = 0 da variedade M3. As seguintes análises aplicam-se para quaisquer das duas posśıveis interpretações, seja M colado a M’ apenas pelo disco r = 0, ou em outros pontos também. Deve-se escolher, então, uma concha esférica com centro na superf́ıcie r = 0. Depois de escolher a concha, deve-se examinar o 20 efeito de uma rotação da 3-geometria da variedade. Por simplicidade, escolhemos uma concha centrada em (0, 0, 0) e do lado r > 0, com um raio muito maior do que o raio da superf́ıcie r = 0. Dessa forma, a geometria fora da concha pode ser assumida como plana. Se fizermos agora uma rotação por um ângulo α ao redor de qualquer Ψ2 + Ψ2 - Ψ2 + Ψ2 - M M’ RMH2ΠL� -Ψ2 + Ψ2 - -Ψ2 + Ψ2 - M M’ Ψ1 + Ψ2 - Ψ1 + Ψ2 - M M’ RMHΠL� äΨ2 + Ψ2 - äΨ2 + Ψ2 - M M’ Figura 2.5: O efeito nos estados de KN das rotações ao redor do eixo x da região interior a uma concha que contém a superf́ıcie r = 0. O difeomorfismo que elimina a torção dos tubos pode ser visto como uma dilatação que o leva ao redor de um extremo do cilindro. um dos eixos x, y, ou z da região interior à concha, a 3-geometria irá mudar. Esta mudança pode ser vista como uma torção nos tubos ciĺındricos da Fig. 2.1. No caso espećıfico de uma rotação ao redor do eixo x, a torção dos tubos é mostrado na Fig. 2.5 para α = π e α = 2π. Desta figura, pode-se deduzir que só após uma rotação de 4π a torção dos tubos pode ser eliminada dilatando-se o tubo e levando-o ao redor de um dos pontos ex- tremos. Em outras palavras, só após uma rotação de 4π o difeomorfismo conexo à identidade, e que leva a métrica dos tubos torcidos à métrica dos tubos iniciais, pode ser definido. Este difeomorfismo é igual àquele que resolve o conhecido problema das tesouras de Dirac [35]. 21 O efeito da rotação da região interior da concha escolhida pode também ser estudado fazendo primeiro uma transformação das coordenadas de Boyer-Lindquist que muda apenas a coordenada r: (t, r, θ, φ) → (t, ln R, θ, φ). (2.25) Esta transformação compactifica M’, e leva os pontos do disco r = 0 à superf́ıcie R = 1. Uma forma simples da 3-variedade M3 após a transformação pode ser vista na Fig. 2.6. Nesta figura, os tubos que colam os espaços M e M’ são desenhados verticalmente. Eles devem colar os pontos da superf́ıcie interna (exceto os pontos do equador) com os pontos da superf́ıcie externa. Os pontos de M’ são aqueles dentro da superf́ıcie central, a qual está definida por R = 1. Deve-se ressaltar que os grupos de homotopia de M3 não são modificados pela transformação. M M’ RMH2ΠL� M M’ Figura 2.6: Representação da variedade estendida de KN após a transformação de coordenadas r → ln R. A superf́ıcie central representa os pontos com R = 1, en- quanto que M’ é representado pelos pontos interiores. A superf́ıcie externa repre- senta também os pontos com R = 1, porém do ponto de vista de um observador no lado M. Os tubos que colam os dois espaços estão desenhados verticalmente. À direita é representado o efeito de uma rotação de 2π na região interior a uma concha que contém o disco r = 0. Agora, uma rotação da região interior à concha que contém o disco r = 0 pode ser vista como uma torção dos tubos ciĺındricos que colam os dois espaços. Para uma rotação de α = 2π, esta torção não pode ser eliminada por um difeomorfismo homotópico à identidade, pois os extremos do cilindro devem manter-se fixos para que ele seja conexo à identidade. Para uma rotação de um ângulo α = 4π, porém, 22 é posśıvel eliminar a torção dos tubos pois neste caso existe um difeomorfismo ho- motópico à identidade que mantém os pontos extremos fixos. A forma deste difeo- morfismo é a mesma daquela encontrado na pág. 309 da Ref. [25]. O fato da seção espacial da variedade de KN voltar ao seu estado inicial depois de uma rotação de 4π é uma maneira mais intuitiva de entender a existência de estados espinoriais. 2.4 Representação algébrica dos estados de KN 2.4.1 Estados espinoriais Seguindo a Ref [1], denotamos por Υ(M3) o espaço das 3-métricas assintoticamente planas e positivas sob M3. Já que a métrica em M3 está definida a menos de um difeomorfismo, pontos diferentes em Υ(M3) representam 3-métricas que diferem só pela geometria da colagem entre os lados da superf́ıcie r = 0. Definimos um vetor de estado ψ, na representação de Schrödinger, como um funcional do espaço Υ(M3). O operador generalizado de posição ĝab é definido como ĝabψ(g) = gabψ(g), (2.26) o que significa que, para cada ponto de Υ(M3), temos um vetor de estado diferente ψ(g). Da discussão da última seção, podemos dizer que (sob rotações) um caminho em Υ(M3) é fechado se e somente se o parâmetro do caminho varia desde 0 até 4π. Além disso, e já que os pontos de Υ(M3) estão em correspondência um-a-um com os estados ψ(g), obtemos que o efeito de uma rotação de 2π em ψ(g) não é igual ao efeito do operador identidade: R̂(2π)ψ(g) = ψ(R(2π)g) = ψ(g′ 6= g) 6= ψ(g). Uma representação linear adequada para os estados ψ(g) é uma que carregue, além da informação de massa e carga, também informação sobre o comportamento não trivial sob rotações, de acordo com as propriedades dos estados que representam a solução de KN. Como o estado ψ(g) depende da métrica gab, não é simples deduzir sua forma geral. Como um primeiro passo, podemos separar o estado geral ψ(g) em uma parte ψ+, definida na região com r positivo, e outra ψ−, definida na região com r negativo: ψ = a+ψ+ + a−ψ−. (2.27) 23 Além disso, se escolhermos a direção do spin ao longo do eixo z, teremos duas possibilidades, conforme mostra a Fig. 2.2. Então, podemos escrever ψ+ = b1ψ + 1 + b2ψ + 2 (2.28) ψ− = c1ψ − 1 + c2ψ − 2 . (2.29) Esta superposição é necessária pois só após uma medição da direção do spin podemos ter certeza do sinal de a na métrica (2.1). Substituindo (2.28) e (2.29) em (2.27), obtemos ψ = a+ ( b1ψ + 1 + b2ψ + 2 ) + a− ( c1ψ − 1 + c2ψ − 2 ) . (2.30) Desejamos, também, que o estado ψ(g) seja um autovetor dos operadores energia e spin. Esta condição significa que Szψ ± 1 = szψ ± 1 = 1 2 ψ± 1 , (2.31) Szψ ± 2 = szψ ± 2 = −1 2 ψ± 2 , (2.32) Hψ+ = −i∂tψ + = mψ+, (2.33) Hψ− = −i∂tψ − = −mψ−, (2.34) onde Sz é o spin ao longo da direção z, H é o operador energia, e m é a massa da solução de KN. Nestas relações, temos usado implicitamente a correspondência entre massa e energia (lembre-se que m é negativa no setor com r negativo de M3). Uma conseqüência natural do fato de um observador, tanto no lado positivo como no negativo de r, ver um vetor de estado que se transforma nele mesmo só após uma rotação de 4π, é a possibilidade de representar estes estados através de uma base de espinores do grupo de Lorentz SL(2, C). Mais especificamente, cada um dos quatro estados não-equivalentes definidos no lado com r positivo pode ser representado por um espinor de Weyl que se transforma sob a representação (1/2, 0). Analogamente, aqueles definidos no lado com r negativo podem ser representados por espinores de Weyl que se transformam sob (0, 1/2) (ver Apêndice A). Além disso, de acordo com as equações (2.33) e (2.34), a representação linear para ψ deve conter uma parte proporcional a uma exponencial complexa da energia multiplicada pelo tempo. Finalmente, é importante notar que a representação não pode misturar ψ+ e ψ− pois eles estão definidos em regiões espaciais diferentes. Com isso, chegamos à seguinte 24 representação para ψ(g): ψ(g) = a+   b1e iEt   1 0 0 0   + b2e iEt   0 1 0 0     +a−   c1e −iEt   0 0 1 0   + c2e −iEt   0 0 0 1     . (2.35) Esta pode ser considerada como a representação linear mais simples de um estado geral ψ(g) associado com a solução de KN em repouso. 2.4.2 Equação de evolução Se desejamos que a solução anterior represente uma part́ıcula, precisamos que ela seja auto-estado do momento (ou posição). Porém, fazer isto não é fácil pois a “posição” da part́ıcula não é definida por um simples ponto no espaço-tempo. Assim, por exemplo, o operador momentum −i~∇ não é útil, pois ele está definido só para part́ıculas pontuais. Para solucionar este problema, precisamos de uma representação aproximada para ψ(g), válida no limite de grandes comprimentos desde o disco de KN. Neste limite, a solução de KN vai convergir para a métrica produzida por uma part́ıcula pontual com spin e sem estrutura. Só neste caso o operador −i~∇ torna-se adequado para definir o momentum da part́ıcula. Neste limite, podemos considerar a métrica de fundo como sendo plana, isto é, ηµν = diag(−1, 1, 1, 1). Usando a forma de ψ(g) dada pela Eq. (2.35), encontramos que sua adequada dependência no momentum da part́ıcula vem dada pela exponencial i~p · ~x. Isto é devido ao fato que os dois fatores combinam-se para dar uma expressão covariante, e ao mesmo tempo o estado se torna um autovetor do momento. O estado ψ(g) geral é então dado por ψp(g) = a+e−ipµxµ   b1   1 0 0 0   + b2   0 1 0 0     + a−eipµxµ   c1   0 0 1 0   + c2   0 0 0 1     . (2.36) Agora, das equações (2.33) e (2.34), podemos escrever a equação de evolução para o estado de KN como 1 i ∂tψp = Hψp ≡ E ( I2 0 0 −I2 ) ψp ≡ E β ψp, (2.37) 25 onde I2 é a matriz identidade 2 × 2. O sinal menos das componentes inferiores é consequência do fato dessas componentes do vetor de estado terem energia negativa. Uma forma mais conveniente da equação de evolução pode ser obtida fazendo uma transformação unitária. Escrevemos esta transformação como um caso particular da transformação de Foldy-Wouthuysen [36], a qual tem a forma U = √ E + m 2E ( I2 − σipi E+m σipi E+m I2 ) . (2.38) É posśıvel verificar que Ψp = Uψp (2.39) é uma solução da equação de evolução modificada 1 i ∂tΨp = HΨp ≡ (αipi + βm) Ψp, (2.40) com H = UHU† (2.41) o Hamiltoniano transformado. A equação (2.40) é a forma usual da equação rela- tivistica de Dirac para o elétron. A conclusão básica é que a solução de KN pode ser representada por um vetor de estado que é solução da equação de Dirac. Além de ter todas as propriedades de uma solução da equação de Dirac, o estado de KN fornece uma explicação intuitiva para os conceitos de massa, spin e carga. Adicional- mente, é posśıvel entender o fato que durante uma interação, os estados de energia positiva e negativa contribuem igualmente para a equação de Dirac. Entendemos, em particular, porque não é posśıvel descrever estados inter-atuantes como estados só de energia positiva ou só de energia negativa. Isso se deve essencialmente ao fato desses estados, como foi mostrado na extensão da solução de KN, estarem “colados” topologicamente. Por outro lado, é posśıvel descrever um estado livre em movimento com energia positiva (ou negativa) sem levar em conta as componentes de energia negativa (ou positiva). É importante observar que existe uma arbitrariedade na ter- minologia. O que chamamos de estado de energia negativa ou estado de energia positiva depende de qual lado da solução de KN está o observador. Porém, como a métrica de KN depende quadraticamente na carga elétrica, não é posśıvel determinar em qual lado da solução se encontra um dado observador. 26 2.5 Testes fenomenológicos Para testar a validade do modelo para o elétron descrito acima, é preciso procurar experiências onde os efeitos da extensão do elétron sejam manifestos. Primeiramente, devido à simetria do modelo, o momento dipolar elétrico da solução de KN é nulo, um resultado que está de acordo com os limites experimentais conhecidos [37]. Outro ponto importante é que o prinćıpio da incerteza próıbe-nos de localizar o elétron em uma região menor do que seu comprimento de onda Compton sem produzir pares virtuais. Já que nosso modelo tem um tamanho da ordem do comprimento de onda Compton, é válido perguntar se este modelo contradiz as experiências que colocam um limite para o tamanho do elétron da ordem de 10−18cm. Esta é uma pergunta dif́ıcil, porém uma resposta simples pode ser dada se observarmos que um boost (no sentido do spin) transforma os parâmetros m e a da solução de KN de acordo com [38] a′ = a √ 1 − v2 e m′ = m√ 1 − v2 , (2.42) onde v é a velocidade do boost. Deve ficar claro que a e m são simples parâmetros da solução, os quais correspondem com o momento angular por unidade de massa e massa só no limite assintótico de grandes distâncias. Próximo da singularidade, a é o raio do anel singular, o qual, de acordo com Carter [31], não é posśıvel observar. A “renormalização” dos parâmetros de KN tem sido discutida por muitos autores [39]. Assim, para uma velocidade maior, corresponderá um raio do anel singular menor. É simples provar, então, que dentro das energias usuais das experiências de espalhamento, o raio do anel não é maior do que o limite experimental. Em outras palavras, uma prova da extensão do elétron não pode ser obtida com experiências de espalhamento. Restam, então, experiências à baixas energias, onde os elétron se movimentam com pequenas velocidades. Como um exemplo de uma experiência à baixas energias, podemos considerar um par de elétrons presos a um plano bi-dimensional D. Se um campo magnético forte é aplicado perpendicularmente ao plano, os vetores de spin dos elétrons irão alinhar-se ao campo magnético. Assim, o disco de KN ficará paralelo a D. O fluxo magnético Φ através do plano é dado por Φ = ∫ D ~B · d~s = ∫ D ~∇× ~A(z) · d~s = ∮ ∂D A(z)dz, (2.43) onde ~B é o campo magnético, ~A é o potencial vetorial definido em D, e z = x+iy são coordenadas complexas para o plano. A fronteira de D é composta de três partes: 27 uma parte externa, e a fronteira ao redor de cada um dos dois elétrons. Usando condições periódicas na fronteira (na prática, o plano D deve ser finito para que os elétrons fiquem confinados), ficamos apenas com duas bordas não conexas. Neste espaço multiplamente conexo, o vetor potencial ~A(z) não é definido uńıvocamente, pois existem duas outras formas fechadas ζ−1 k dζk, k = 1, 2, com a propriedade [40] ∫ ∂Dk ζ−1 k dζk = 2πi, (2.44) onde ∂Dk é a fronteira de cada elétron. Devido a este fato, o cálculo do fluxo (2.43) deve levar em conta todas as configurações diferentes para ~A(z) [41]. Assumindo que todas as configurações tem o mesmo peso, e usando unidades com q = 1 (de tal forma que o quantum de fluxo fica Φ0 = 1), o fluxo total será Φ = ∮ ∂D1∪∂D2 A(z)dz + ∮ ∂D1∪∂D2 ( A(z)dz − i 4π ζ−1 1 dζ1 − i 4π ζ−1 2 dζ2 ) + ∮ ∂D1∪∂D2 ( A(z)dz − i 4π ζ−1 1 dζ1 ) + ∮ ∂D1∪∂D2 ( A(z)dz − i 4π ζ−1 2 dζ2 ) . (2.45) Usando a condição de quantização do fluxo ∮ ∂D1∪∂D2 A(z) dz = n; n = 1, 2, . . . , (2.46) obtemos Φ = 4n − 2. (2.47) Se calcularmos agora a quantidade ν = número de elétrons/número de quanta de fluxo, obtemos ν = 2 4n − 2 = 1 2n − 1 . (2.48) Esta montagem é usada no estudo do Efeito Hall quântico fracionário (FQHE) [42], e neste contexto a quantidade ν é chamada de fator de preenchimento. Nosso resultado é igual ao experimental se considerarmos que as interações entre os elétrons no plano ocorrem preponderantemente entre pares [43]. 28 Apêndice A O grupo de Lorentz e as transformações de paridade Como é sabido, a álgebra de Lie complexificada do grupo de Lorentz SL(2,C) é isomorfa à álgebra de Lie complexificada do grupo SU(2)⊗ SU(2). De fato, se de- notarmos por Ji os geradores das rotações infinitesimais, e por Ki os geradores dos boosts em M, com i, j, k = x, y, z, os geradores complexos Ai = 1 2 (Ji + iKi) and A† i = 1 2 (Ji − iKi) , (A.1) satisfazem a álgebra de Lie de SU(2): [Ai, Aj] = i εijk Ak[ A† i , A † j ] = i εijk A† k. Além disso, eles satisfazem [ Ai, A † j ] = 0, (A.2) o que mostra que eles sao independentes, ou equivalentemente, que eles formam um produto direto. Os dois operadores de Casimir AiAi e A† iA † i têm como autovalores n(n + 1) e m(m + 1), com n,m = 0, 1/2, 1, 3/2, . . .. Assim, cada representação pode ser rotulada pelo par (n,m). Agora, sob uma transformação de paridade, temos que Ji → Ji and Ki → −Ki, (A.3) o que mostra que os geradores Ai e A† i estão também relacionados por uma trans- formação de paridade [44]. Por outro lado, se a métrica de KN (2.1) em M é escrita em termos das coordenadas (t, r, θ, φ), em M’ ela será escrita em termos de (t,−r, θ, φ). Então, a função gradiente ∇r muda de sinal em M’, e os vetores 29 unitários de um sistema de coordenadas Cartesiano serão negativos. Isto acontece porque os vetores unitários são perpendiculares às superf́ıcies r=constante. Os dois lados da solução de KN, portanto, estão relacionados por uma transformação de pari- dade. A conclusão é que a relação entre M e M’ é a mesma que aquela entre Ai e A† i . Isso justifica o uso dos espinores de Weyl em M transformando sob a representação (1/2, 0), e o uso da representação (0, 1/2) em M’. 30 Apêndice B Propriedades topológicas de K3 Seja F : M3 ∪ {±∞} −→ R3 ∪ {∞} uma função do espaço métrico M3 (acrescido de dois pontos no infinito) sob o espaço Euclideano tri-dimensional (mais um ponto no infinito). A função é definida por: F (r, θ, φ) = (er, θ, φ) F (−∞, θ, φ) = (0, θ, φ) F (∞, θ, φ) = (∞, θ, φ). O espaço R3∪{∞} é igual ao espaço R3 compactificado pelo método de Alexandroff, o qual é topológicamente equivalente a S3. A função F leva a superf́ıcie r = 0 da solução de KN até a esfera unitária com centro em (0, 0, 0). O anel singular é levado até o equador da esfera. A função F é continua em todos os ponto c ∈ M3∪{±∞} se, para qualquer número real positivo ε, existe um número real positivo δ tal que, para todo p ∈ M3 ∪ {±∞} que satisfaz dγ(p, c) < δ, a desigualdade dη(F (p), F (c)) < ε é também satisfeita. Como a função distância definida pela métrica γij de M3, e que vem dada por (2.7), é finita em qualquer ponto, a condição de continuidade é válida para todo p ∈ M3. Porém, como a borda do disco r = 0 é só um ponto de M3 ∪ {±∞}, a função não é uńıvoca (um-a-um). De fato, o ponto (r = 0, θ = π/2) é mapeado no equador da esfera unitária. Agora, posto que S3 é compacto, e F−1 é cont́ınua, M3 ∪ {±∞} é também compacta. Se eliminarmos um conjunto aberto de S3 com a forma de um toro sólido (sem fronteira) ao longo do equador da esfera unitária, obteremos um sub-conjunto fechado de S3. Este sub-conjunto fechado é também compacto e tem como fronteira um toro bi-dimensional T 2. Chamando de T 3 o toro sólido e de T 3 F sua imagem sob F−1, a função (F−1)′ : R3 ∪ {∞} − T3 −→ M3 ∪ {±∞} − T3 F 31 é continua. Consequentemente, M3 ∪ {±∞} − T 3 F será compacto. Agora, sejam (α, β) as coordenadas de T 2 = S1 × S1, e seja A : T 2 −→ T 2 um mapa definido por A(α, β) = (α + π, β + π). A superf́ıcie obtida pela relação de equivalência A(p) ∼ p e pelo quociente T 2/A, é a garrafa de Klein U2. Desta forma, cada ponto p de U2 tem uma vizinhança em S3 homeomorfa à bola Euclideana aberta. Isto implica que {R3∪{∞}−T3}/A é uma variedade compacta sem fronteira. Assim, F : {R3 ∪ {∞} − T3}/A −→ {M3 ∪ {±∞} − T3 F }/{(F−1)′ ◦ (A)} = K3 será uma função cont́ınua desde um espaço compacto, o que significa que K3 é também compacto. Além disto, e devido a que F é cont́ınua, ela leva todo conjunto aberto de {R3 ∪{∞}−T3}/A até outro conjunto aberto de K3, o que significa que K3 não tem fronteira: ∂K3 = 0. 32 Caṕıtulo 3 O Papel da Torção na Descrição da Interação Gravitacional 3.1 Antecedentes Na relatividade geral, a torção é sempre nula. Na gravitação teleparalela∗, ao contrá- rio, a curvatura é que é nula, sendo a descrição da interação feita apenas em termos da torção. É sabido, porém, que as duas teorias fornecem descrições totalmente equiva- lentes da interação gravitacional [46]. Uma consequência imediata desta equivalência é que a curvatura e a torção devem ser maneiras alternativas de descrever o campo gravitacional, e portanto relacionadas aos mesmos graus de liberdade do campo gra- vitacional. Esta propriedade é corroborada pelo fato do tensor simétrico de energia- momento aparecer como fonte nas duas teorias: como fonte de curvatura na rela- tividade geral, e como fonte de torção no teleparalelismo. Por outro lado, outras teorias para a gravitação, como Einstein-Cartan e teorias de gauge para o grupo de Poincaré e o grupo afim [47], consideram curvatura e torção como representando graus de liberdade independentes. Nestes modelos a torção tem sua origem nos espins das part́ıculas fundamentais, e portanto ela só é importante quando a mag- nitude destes espins torna-se importante [48]. Isto pode acontecer tanto no ńıvel microscópico, como perto de uma estrela de nêutrons. Assim, estas teorias conside- ram que a torção carrega graus de liberdade adicionais àqueles da curvatura, e assim novos fenômenos devem estar associados à torção. É claro, então, que existe uma diferença conceitual sobre o verdadeiro papel desempenhado pela torção na descrição da interação gravitacional. ∗O nome gravitação teleparalela é usado para denotar a teoria geral com três parâmetros [45]. Aqui, usaremos este nome como sinônimo para o equivalente teleparalelo da relatividade geral, uma teoria obtida para uma escolha espećıfica deste parâmetros. 33 A forma mais direta de se obter uma resposta sobre o verdadeiro papel que a torção desempenha dentro da gravitação, é achar uma única definição para o acopla- mento minimal de quaisquer campo f́ısico com a gravitação. Ainda que esta seja a forma mais direta, não é a mais simples. A dificuldade principal é que, diferente- mente de outras interações da natureza, onde a covariância fixa uma única conexão de gauge, na gravitação em presença de curvatura e torção, a covariância não é sufi- ciente para determinar a forma do acoplamento minimal. A razão de fundo é que o espaço das conexões de Lorentz é um espaço afim [49], e portanto sempre é posśıvel somar um tensor a uma dada conexão sem destruir a covariância da teoria. Assim, existem infinitas possibilidades para o acoplamento minimal gravitacional. Na procura por uma solução quanto ao verdadeiro papel da torção na descrição da gravitação, mostraremos neste caṕıtulo como o uso do prinćıpio da covariância geral (o qual diz que quaisquer das equações da relatividade especial pode-se tornar válida na presença de gravitação se ela é geralmente covariante, ou seja, se ela preserva sua forma sob transformações gerais de coordenadas) nos leva até uma escolha do acoplamento minimal que é totalmente equivalente àquele da relatividade geral, e ao mesmo tempo àquele do teleparalelismo. Este resultado leva-nos naturalmente a questionarmos se existe uma descrição da gravitação em termos de uma conexão de Lorentz, posto que, como é sabido, o teleparalelismo é uma teoria de gauge para o grupo das translações. Chegamos, assim, no final deste caṕıtulo, a propor uma nova Lagrangeana para gravitação, a qual fornece as mesmas equações de movimento da relatividade geral, e além disso fornece uma interpretação da gravitação em termos de uma conexão de Lorentz, na qual a covariância por difeomorfismos é substitúıda pelo requerimento de invariância local sob o grupo de Lorentz. Finalmente, estudaremos como esta nova formulação usa a conexão de spin como variável fundamental na descrição Lagrangeana da teoria. 3.2 Prinćıpio da covariância geral: caso não-holônomo 3.2.1 Referenciais não-holônomos Seja {xµ} um sistema de coordenadas inerciais do espaço-tempo de Minkowski, e seja {∂µ} os vetores base de um sistema de coordenadas ortonormal e global para o espaço-tempo. O referencial δA = δA µ∂µ pode ser interpretado como uma tetrada holônoma (trivial), com componentes δA µ. Considere agora uma transformação local de Lorentz, isto é, uma transformação dependente do ponto: ΛA B = ΛA B(x). Ela 34 fornece a nova base hA = hA µ∂µ, (3.1) com componentes hA µ(x) = ΛA B δB µ. (3.2) Note-se que, devido ao carácter local da transformação de Lorentz, a nova base hA é não-holônoma, [hA, hB] = fC AB hC , (3.3) onde fC AB é o coeficiente de não-holônomia. Agora, fazendo uso da propriedade de ortogonalidade das tetradas, observamos da equação (3.2) que o elemento do grupo de Lorentz pode ser escrito na forma ΛB D = hB ρδρ D. Usando esta expressão, temos que (hAΛB D)ΛC D = 1 2 ( fB C A + fA C B − fC BA ) . (3.4) Por outro lado, a ação que descreve uma part́ıcula livre é S = −mc ∫ ds, (3.5) sendo ds = (ηAB dxAdxB)1/2 o intervalo invariante de Minkowski. Visto do referencial holônomo δA, a equação de movimento é dada por dvA ds = 0, (3.6) onde vA = δA µv µ, com vµ = (dxµ/ds). Visto do referencial não-holônomo hA, a equação de movimento (3.6) assume a forma dV C ds + 1 2 ( fB C A + fA C B − fC BA ) V AV B = 0, (3.7) onde V C = ΛC D vD = hC µv µ, e onde usamos a identidade (3.4). É importante enfatizar que, ainda que estejamos no espaço-tempo plano da relatividade especial, temos a liberdade de escolher qualquer tetrada {hA} como referencial em movimento. O fato que, para cada x ∈ M , a base hA pode ser transformada arbitrariamente (por Lorentz) introduz o termo compensatório 1 2 ( fB C A + fA C B − fC BA ) na equação de movimento da part́ıcula livre. Este termo está relacionado apenas com as pro- priedades inerciais do referencial. Observe que a equação de movimento (3.7) pode também ser obtida da ação (3.5) escrita no referencial não-holônomo, S = −mc ∫ (ηAB hAhB)1/2, (3.8) onde, devido ao fato que a transformação de Lorentz é uma isometria, a métrica ηAB = ΛA CΛB D ηCD não muda, e hA = ΛA D δD µ dxµ. 35 3.2.2 Equivalência entre efeitos inerciais e gravitacionais De acordo com o prinćıpio de covariância geral, a equação de movimento válida na presença de gravitação pode ser obtida da correspondente equação de movimento da relatividade especial, simplesmente trocando o termo compensatório inercial por uma conexão AC AB que represente um campo gravitacional verdadeiro. Usaremos aqui apenas conexões assumindo valores no grupo de Lorentz, e conseqüentemente com não-metricidade nula. Neste caso, e na presença de curvatura e torção, a conexão satisfaz [50] AC BA − AC AB = TC AB + fC AB, (3.9) onde TC BA é a torção da conexão AC AB. O uso desta equação para três combinações diferentes de ı́ndices permite obter AC AB = 1 2 ( fB C A + fA C B − fC BA ) + 1 2 ( TB C A + TA C B − TC BA ) . (3.10) Assim, o termo compensatório da equação (3.7) pode ser escrito na forma 1 2 ( fB C A + fA C B − fC BA ) = AC AB − KC AB, (3.11) onde KC AB = 1 2 (TB C A + TA C B − TC BA) (3.12) é o tensor de contorção. A equação (3.11) é uma expressão do prinćıpio de equivalên- cia. De fato, o lado esquerdo da equação envolve apenas propriedades inerciais dos referenciais, porém o lado direito contém quantidades puramente gravitacionais. Usando esta expressão na equação (3.7), obtemos dV C ds + AC ABV AV B = KC ABV AV B. (3.13) Esta é a equação de movimento de uma part́ıcula na presença de curvatura e torção, obtida a partir do prinćıpio de covariância geral. Ela propõe uma interpretação clara para a contorção, a qual aparece desempenhando o papel de uma força gravitacional [51]. Devido à identidade AC AB − KC AB = ◦ A C AB, (3.14) onde ◦ AC AB é a conexão de spin da relatividade geral, a equação de movimento (3.13) é totalmente equivalente à equação da geodésica da relatividade geral. 36 3.2.3 O acoplamento minimal A equação de movimento (3.13) pode ser reescrita na forma V µDµV C ≡ V µ [ ∂µV C + (AC Bµ − KC Bµ)V B ] = 0, (3.15) com Dµ uma derivada covariante que, quando aplicada a um campo vetorial qualquer XC , assume a forma DµX C = ∂µX C + (AC Bµ − KC Bµ) XB. (3.16) Usando a representação vetorial dos geradores do grupo de Lorentz [44], (SAB)C D = i(δA C ηBD − δB C ηAD), (3.17) ela se torna DµX C = ∂µX C − i 2 (AAB µ − KAB µ) (SAB)C D XD. (3.18) Agora, ainda que obtida para o caso de um campo vetorial de Lorentz (quadri- velocidade), é posśıvel mostrar que o termo compensatório (3.4) é o mesmo para qualquer campo. De fato, chamando de g ≡ g(Λ) a um elemento do grupo de Lorentz numa representação arbitrária, pode-se mostrar que (hAg)g−1 = − i 4 (fBCA + fACB − fCBA) JBC , (3.19) onde JBC denota o correspondente gerador de Lorentz. Neste caso, a derivada co- variante (3.18) terá a forma Dµ = ∂µ − i 2 ( AAB µ − KAB µ ) JAB. (3.20) Conseqüentemente, na presença de curvatura e torção, o acoplamento minimal dos campos que carregam uma representação arbitrária do grupo de Lorentz, é dado por ∂A ≡ δµ A∂µ → DA ≡ hµ ADµ. (3.21) Devido à relação (3.14), este acoplamento é claramente equivalente ao acoplamento minimal da relatividade geral. O acoplamento minimal (3.20) é uma conseqüencia da afinidade do espaço das conexões de Lorentz (ver Apêndice C). 37 3.3 Conseqüências f́ısicas do acoplamento minimal 3.3.1 Part́ıcula sem spin Como uma primeira aplicação do acoplamento minimal (3.20), podemos considerar o caso de uma part́ıcula sem spin e com massa m. A idéia é obter a equação de movimento a partir de primeiros prinćıpios, e logo comparar com àquela obtida usando o acoplamento minimal. Analogamente com o caso eletromagnético [30], a integral de ação que descreve uma part́ıcula sem spin em interação com um campo gravitacional, no contexto das teorias de gauge, é S = ∫ b a [ −m c dσ − 1 c2 BA µ PA dxµ ] , (3.22) onde dσ = (ηABdxAdxB)1/2 é o intervalo invariante do espaço-tempo plano, e PA é a carga de Noether associada com a invariância da ação sob translações [52]. Em outras palavras, PA = mcuA é o quadri-momentum da part́ıcula, com uA a correspondente quadri-velocidade não-holônoma. A variação da ação (3.22) fornece a equação de movimento [53] duC ds + AC ABuAuB = KC ABuAuB, (3.23) com AC AB uma conexão que apresenta simultaneamente curvatura e torção. Esta equação é uma mistura de equação de força e geodésica, com a contorção desem- penhando o papel de força. Por outro lado, como é bem conhecido, a equação de movimento para uma part́ıcula livre é duA dσ ≡ uC∂CuA = 0. (3.24) Uma comparação entre estas últimas duas equações mostra que a equação de movi- mento (3.23) pode ser obtida da equação de movimento livre (3.24), trocando-se ∂C → DC = hν CDν , com Dν a derivada covariante (3.20) escrita na representação vetorial (3.17), que é a representação apropriada para uma derivada agindo sobre uA [44]. Isto mostra a consistência do acoplamento minimal definido pela equação (3.21). Além disso, usando a relação (3.14), a equação de movimento (3.23) resulta equiva- lente à equação da geodésica da relatividade geral: duC ds + ◦ A C ABuAuB = 0. (3.25) A equação de força (3.23) e a equação da geodésica (3.25), descrevem a mesma trajetória f́ısica. Isto significa que, mesmo na presença de torção, as part́ıculas sem 38 spin sempre seguem uma trajetória que pode ser representada por uma geodésica do espaço-tempo Riemanniano subjacente. Isto conduz a uma re-interpretação do papel f́ısico da torção em relação às teorias de Einstein-Cartan, assim como em relação às outras teorias de gauge para gravitação. De fato, de acordo com nossos resultados, a torção aparece simplesmente como uma forma alternativa à curvatura de descrever o campo gravitacional. 3.3.2 Part́ıcula com spin Consideremos agora o movimento de uma part́ıcula clássica de massa m e spin s num campo gravitacional na presença de curvatura e torção. A integral de ação que descreve esta part́ıcula, no contexto de uma teoria de gauge, é S = ∫ b a [ −m c dσ − 1 c2 BA µ PA dxµ + 1 2 ΩAB µSAB dxµ ] , (3.26) onde SAB é a carga de Noether associada com a invariância da ação sob trans- formações de Lorentz [52], e ΩAB µ = AAB µ − KAB µ e a conexão de spin dinâmica que aparece na derivada covariante (3.20). Em outras palavras, SAB é a densidade de momento angular, a qual satisfaz a relação de Poisson {SAB,SCD} = ηAC SBD + ηBD SAC − ηAD SBC − ηBC SAD. (3.27) O terceiro termo da ação (3.26), portanto, representa o acoplamento do spin da part́ıcula com o campo gravitacional. Note-se que, de acordo com esta prescrição, o spin da part́ıcula acopla minimamente ao coeficiente de rotação de Ricci, pois devido à relação (3.14), temos que ΩAB µ = ◦ AAB µ. Na presença de curvatura e torção, portanto, o Routhiano obtido da ação (3.26) é R0 = −m c √ u2 dσ ds − 1 c2 BA µ PA uµ + 1 2 ΩAB µ SAB uµ, (3.28) onde o v́ınculo fraco √ u2 ≡ √ uAuA = √ uµuµ = 1 foi introduzido no primeiro termo. A equação de movimento para a trajetória da part́ıcula é obtida de δ δxµ ∫ R0 ds = 0, (3.29) enquanto que a equação de movimento para o spin é obtida de dSAB ds = {R0,SAB}. (3.30) 39 Agora, a quadri-velocidade e a densidade de momento angular da part́ıcula devem satisfazer os v́ınculos SABSAB = 2s2, (3.31) SABuA = 0. (3.32) Infelizmente, no entanto, as equações de movimento obtidas do Routhiano R0 não satisfazem estes v́ınculos. Existem basicamente duas formas de incluir os v́ınculos no Routhiano. Aqui, seguiremos o método usado por Yee e Bander [54], o qual consta dos seguintes passos. Primeiro, introduzimos uma nova expressão para o spin, S̃AB = SAB − SACuCuB u2 − SCBuCuA u2 . (3.33) Este novo tensor satisfaz a relação de Poisson (3.27) com a métrica ηAB − uAuB/u2. Um novo Routhiano que incorpore os v́ınculos de acima pode ser obtido trocando-se SAB por S̃AB na equação (3.28), e somando-lhe o termo duA ds SABuB u2 . O novo Routhiano vem, então, dado por R = −m c √ u2 dσ ds − 1 c2 BA µ PA uµ + 1 2 ΩAB µ SAB uµ − DuA Ds SABuB u2 , (3.34) onde DuA Ds = uµ Dµu A, com Dµ dado pela equação (3.20). Usando o Routhiano (3.34), a equação de movi- mento para o spin é DSAB Ds = (uA SBC − uB SAC) DuC Ds , (3.35) a qual coincide com aquela da relatividade geral. Fazendo uso do formalismo La- grangeano, o próximo passo é obter a equação de movimento para a trajetória da part́ıcula. Através de um cálculo direto, obtemos D Ds (m c uC) + D Ds (DuA Ds SAC u2 ) = 1 2 (RAB µν − QAB µν)SABuνhC µ, (3.36) onde QA Bµν = DµK A Bν −DνK A Bµ + KA DµK D Bν − KA DνK D Bµ. (3.37) Usando os v́ınculos (3.31-3.32), é fácil provar que DuA Ds SAC u2 = −uA DSAC Ds . 40 Conseqüentemente, a equação (3.36) torna-se D Ds ( mcuC + uADSCA Ds ) = 1 2 (RAB µν − QAB µν)SAB uνhC µ. (3.38) Definindo o momentum generalizado PC = hC µ Pµ ≡ m c uC + uA DSCA Ds , obtemos DPµ Ds = 1 2 (RAB µν − QAB µν)SAB uν . (3.39) Esta é a equação que governa o movimento da part́ıcula na presença de curvatura e torção. Ela é escrita em termos de uma conexão geral de Cartan, assim como em termos de sua curvatura e torção. Ela pode ser reescrita em termos do coeficiente de rotação de Ricci apenas, em cujo caso ela se reduz à equação de Papapetrou [55]. Ela pode também ser reescrita em termos da conexão de spin teleparalela [56], em cujo caso ela se reduz ao equivalente teleparalelo da equação de Papapetrou, • DPµ Ds = −1 2 • QAB µν SAB uν , (3.40) com • QAB µν dado pela equação (3.37) escrita em termos da torção de Weitzenböck. Note-se que o spin da part́ıcula, neste caso, acopla-se a um tensor escrito somente em termos da torção, e que faz o papel de uma curvatura. 3.3.3 Campos espinoriais Para estudar o caso de um espinor de Dirac na presença de curvatura e torção, vamos examinar primeiro o Lagangeano de Dirac no espaço-tempo plano, o qual pode ser escrito na forma L = i 2 ( ψ̄γAδA µ∂µψ − ∂µψ̄γAδA µψ ) − m ψ̄ψ, (3.41) onde δA µ é uma tetrada trivial, m é a massa da part́ıcula, e {γA} são as matrices de Dirac numa dada representação. Fazendo uso da prescrição de acoplamento (3.21) na representação espinorial, cujos geradores são dados por JBC = σBC 2 := i 4 [γB, γC ], obtemos L = i 2 ( ψ̄hA µγADµψ −Dµψ̄hA µγAψ ) − m ψ̄ψ, (3.42) 41 onde o operador derivada de Fock-Ivanenko é dado por Dµψ = ∂µψ − i 4 (ABC µ − KBC µ) σBCψ. (3.43) Esta derivada covariante define o acoplamento minimal para campos de spin 1/2 na presença de curvatura e torção. A derivada funcional de L com respeito a ABC µ − KBC µ ≡ ◦ ABC µ fornece, como é o usual, o tensor de spin. Um cálculo direto mostra que a equação de movimento correspondente é dada por iγAhA µDµψ = m ψ, (3.44) que é a equação de Dirac na presença de curvatura e torção. Esta equação é total- mente equivalente à equação de Dirac da relatividade geral [57]. Como é bem conhecido, a torção pode ser decomposta em termos irredut́ıveis sobre o grupo global de Lorentz [58]: Tλµν = 2 3 (tλµν − tλνµ) + 1 3 (gλµTν − gλνTµ) + ελµνρ Sρ. (3.45) Nesta expressão, Tµ, Sρ e tλµν são respectivamente as partes vetorial, axial, e tensorial da torção. Em termos dessas componentes, pode-se mostrar que i 4 KBC A γA σBC = −γA ( 1 2 TA + 3i 4 SA γ5 ) , (3.46) onde γ5 = γ5 := iγ0γ1γ2γ3. Assim, a derivada covariante (3.43), multiplicada por γµ, resulta γµDµψ = γµ ( ∂µ − i 4 ABC µ σBC − 1 2 Tµ − 3i 4 Sµ γ5 ) ψ, (3.47) onde γµ ≡ γµ(x) = γA hA µ. É interessante observar que a derivada funcional do La- grangeano (3.42) com respeito à conexão ABC µ ainda fornece o tensor de spin. Além disso, as derivadas com respeito a Tµ e Sµ fornecem respectivamente as correntes vetoriais e axiais do campo espinorial. Finalmente, a equação de Dirac (3.44) fica i γµ ( ∂µ − i 4 ABC µ σBC − 1 2 Tµ − 3i 4 Sµ γ5 ) ψ = mψ. (3.48) Esta é a forma final da equação de Dirac na presença de curvatura e torção, escrita em termos das componentes irredut́ıveis da torção. No caso espećıfico da gravitação teleparalela, ABC µ = 0, e a equação de Dirac fica escrita apenas em termos das partes axial e vetorial da torção [59]. No caso da relatividade geral, onde a derivada de Fock- Ivanenko é ◦ Dµψ = ∂µψ− i 4 ◦ ABC µ σBCψ, se a conexão de spin ◦ ABC µ é escrita em termos do coeficiente de não-holonomia fA BC , uma decomposição similar àquela da equação (3.46) pode ser feita, e a equação de Dirac resulta escrita somente em termos do traço e do pseudo-traço de fA BC . 42 3.4 Gravitação como uma teoria para uma conexão A prescrição de acoplamento minimal proposta na seção anterior implica que a in- teração gravitacional acopla-se com a matéria de forma indiferente à teoria que a descreve. Por exemplo, esta interação pode ser descrita pela relatividade geral ou pela teoria teleparalela, sendo que em qualquer destes casos o acoplamento minimal resulta totalmente equivalente. Será posśıvel, então, ter uma descrição da interação gravitacional através de uma teoria que seja totalmente equivalente a relatividade geral, e que além disso incorpore as caracteŕısticas de “gauge” que possui o telepara- lelismo? [60, 61] A resposta a esta pergunta é afirmativa em muitos aspectos. Para entender esta afirmação, vamos a estudar em primeiro lugar as conseqüencias de se trocar o “grupo” de difeomorfismo pelo grupo local de Lorentz como o grupo de transformações da gravitação. Como veremos, ao se fazer isso, o campo fundamental da gravitação deixa de ser a métrica, e passa naturalmente a ser a conexão de spin. 3.4.1 Transformações de Lorentz A forma mais geral dos geradores das transformações de Lorentz infinitesimais é [44] JAB = LAB + SAB, (3.49) onde LAB = i(xA∂B − xB∂A) (3.50) é a parte orbital e SAB é a parte de espin dos geradores. A forma expĺıcita desta última depende do spin do campo em consideração. Os geradores JAB satisfazem a relação de comutação [JAB, JCD] = i (ηBC JAD − ηAC JBD − ηBD JAC + ηAD JBC) , (3.51) a qual deve identificar-se com a álgebra de Lie do grupo de Lorentz. Cada conjunto de geradores LAB e SAB satisfazem a mesma relação de comutação que JAB, e comutam entre si. Uma transformação de Lorentz é chamada de local se o parâmetro da trans- formação depende da posição. Este tipo de transformação gera uma mudança na forma funcional de qualquer campo f́ısico. Como primeiro passo para entender o efeito destas transformações na estrutura de um espaço-tempo Riemaniano M4, va- mos considerar a transformação de Lorentz das coordenadas xA do espaço tangente 43 a cada ponto x ∈ M4. Essa transformação pode ser escrita na forma δLxA = − i 2 εCD LCD xA ≡ −εA D xD, (3.52) com εCD ≡ εCD(xµ) o parâmetro da transformação. Devido ao fato do espaço tan- gente ser transitivo sob translações (o espaço tangente é um espaço de Minkowski), cada par de pontos relacionado por uma transformação de Lorentz pode também ser relacionado por uma translação. De fato, usando a forma expĺıcita de LCD, a transformaçao (3.52) pode ser reescrita como δLxA = −i ξC PC xA, (3.53) a qual é uma translação com ξC = εC D xD (3.54) como parâmetro, e PC = −i ∂C como gerador. Isto significa, que uma transformação infinitesimal de Lorentz das coordenadas do tangente é formalmente equivalente a uma translação com ξC como parâmetro. De outra parte, devido ao fato das coordenadas xA se comportarem como vetores sob transformações de Lorentz, podemos interpretar o conjunto delas {xA(xµ)} como um campo vetorial. Neste caso, os geradores de Lorentz são aqueles da representação vetorial (3.17), o que conduz a seguinte transformação: δSxA = − i 2 εCD (SCD)A B xB ≡ εA D xD. (3.55) Assim, usando as equações (3.53) e (3.55), podemos escrever o resultado de uma transformação total de Lorentz local sobre as coordenadas do spaço tangente como δJxA ≡ − i 2 εCD JCD xA = 0. (3.56) Este resultado, consistente por si só, vem do fato que uma transformação de Lorentz muda simultaneamente os ı́ndices vetoriais e o argumento de um campo vetorial qualquer V A(x), dando como resultado final uma transformação a ponto fixo: δV A(x) ≡ V ′A(x) − V A(x) = − i 2 εCD JCD V A(x). (3.57) No caso da coordenada do tangente, as transformações cancelam entre si, dando um resultado nulo. Para todos os outros campos f́ısicos, JAB gera uma mudança apenas na forma funcional do campo. No caso de um campo de matéria qualquer, escrevemos a transformação de Lorentz como [44] δJΨ ≡ Ψ′(x) − Ψ(x) = − i 2 εABJABΨ(x), (3.58) 44 onde a forma expĺıcita de LAB é a mesma para todos os campos, mas aquela para SAB depende da representação de Lorentz a qual pertence Ψ. Note-se que os geradores orbitais podem agir no argumento espaço-temporal de Ψ(xµ) devido às relações ∂A = (∂Axµ) ∂µ and ∂µ = (∂µx A) ∂A. Além disso, usando a forma expĺıcita para LAB, a transformação de Lorentz (3.58) pode ser reescrita na forma δJΨ = −iξCPCΨ − i 2 εABSABΨ, (3.59) com ξC dado pela equação (3.54). De novo, observamos que a parte orbital da transformação se reduz a uma translação, e assim a transformação de Lorentz de um campo geral Ψ pode ser escrita como uma translação mais uma transformação de spin pura. Ainda que ela tenha esta forma especial, é importante notar que (3.59) não é uma transformação de Poincaré, mas sim uma verdadeira transformação de Lorentz. Isto é devido ao fato que [PC , SAB] = 0. Agora, nosso objetivo é chegar a uma teoria para a gravitação que inclua dois in- gredientes: que seja uma teoria com simetria local, ou de gauge, e que seja equivalente à relatividade geral. Esta última condição deve incluir a prescrição de acoplamento minimal proposta na seção 3.2.3. Assim, do ponto de vista de uma teoria de gauge, a derivada de um campo de matéria geral deve ser covariante sob as transformações locais de Lorentz geradas por JAB [15], ou seja, ◦ DCΨ = ∂CΨ + 1 2 ◦ AAB C δJΨ δεAB , (3.60) onde ◦ AAB C = ◦ AAB µ hC µ. Substituindo a transformação (3.58), obtemos ◦ DCΨ = ∂CΨ − i 2 ◦ A AB C JABΨ. (3.61) Usando a identidade i 2 ◦ A AB µ JAB = i 2 ◦ A AB µ SAB + ◦ B A µ PA, (3.62) onde ◦ BA µ ≡ ◦ AA Bµ xB, a derivada covariante (3.61) assume a forma ◦ DCΨ = hC µ ◦ DµΨ, (3.63) onde ◦ Dµ = ∂µ − i 2 ◦ A AB µ SAB (3.64) 45 é o operador derivada covariante do Fock-Ivanenko [62], e hC µ é a inversa da tetrada [63] hC µ = ∂µx C + ◦ A C Dµ xD ≡ ◦ Dµx C . (3.65) A exigência de covariância local sob transformações de Lorentz conduz a uma ex- pressão para a tetrada em termos de a conexão de spin e das coordenadas do espaço tangente. Essa tetrada é, então, uma variável não fundamental da teoria: o papel das variáveis fundamentais fica para AC Dµ e para as coordenadas xA. A equação (3.63) é claramente equivalente à prescrição de acoplamento minimal (3.21), e está composta de duas partes. A derivada de Fock-Ivanenko é responsável pelo acoplamento do spin do campo de matéria à gravitação. Este acoplamento não é universal pois depende do conteúdo de spin do campo de matéria. Por outro lado, a tetrada que aparece multiplicando a derivada de Fock-Ivanenko, é responsável pelo acoplamento da energia e momentum do campo de matéria à gravitação. Esta parte do acoplamento minimal é universal no sentido que todos os campos de matéria da natureza respondem da mesma forma à sua ação. Como a parte não trivial da tetrada vem dos geradores orbitais de Lorentz, podemos dizer que estes geradores são os responsáveis pela universalidade da interação gravitacional. 3.4.2 Transformações da conexão e da tetrada Para se ter uma idéia intuitiva do efeito das transformações locais de Lorentz, é necessário obter a forma das transformações infinitesimais da conexão de spin. Isto, junto com as transformações para as coordenadas do espaço tangente (3.56), nos permitirá escrever a forma das transformações para a tetrada, e consequentemente para a métrica. Como primeiro passo, lembremos que a forma de um elemento geral do grupo de Lorentz é UJ = UL US = US UL ≡ exp [ − i 2 εAB JAB ] , (3.66) onde US = exp [ − i 2 εAB SAB ] e UL = exp [ − i 2 εAB LAB ] . (3.67) Por construção, sob uma transformação local de Lorentz gerada por UJ , a derivada covariante (3.63) transforma-se como ◦ D′ C′Ψ′(x) = UJ ◦ DCΨ(x). (3.68) 46 Note-se que, além da rotação de Lorentz nos ı́ndices matriciais (ou de spin) de ◦ DC , a qual é a única transformação que aparece nas teorias de Yang-Mills (internas), o ı́ndice do espaço-tempo (externo) é também transformado. Usando as expressões [44] Ψ(x) = U−1 S Ψ′(x′) e Ψ′(x) = UL Ψ′(x′) na transformação (3.68), ela assume a forma U−1 L ◦ D′ C′ UL = hC µ US ◦ Dµ U−1 S . (3.69) Usando a definição da derivada de Fock-Ivanenko ◦ DµΨ = ∂µΨ + 1 2 ◦ AAB µ δSΨ δεAB , onde δSΨ ≡ Ψ′(x′) − Ψ(x) = − i 2 εABSABΨ (3.70) é a mudança total em Ψ(x), pode-se facilmente verificar que esta derivada transforma- se como ◦ D′ µ = US ◦ Dµ U−1 S . (3.71) Essa expressão fornece a transformação usual de gauge da conexão, ◦ A ′ µ = US ◦ AµU −1 S + iUS∂µU −1 S , (3.72) cuja versão infinitesimal é δS ◦ A CD µ = − ( ∂µε CD + ◦ A C Aµ εAD + ◦ A D Aµ εCA ) ≡ − ◦ Dµε CD. (3.73) Vemos assim que as transformações de gauge da conexão de Lorentz são geradas pela representação matricial (de spin), ou seja, pelos geradores SAB. Substituindo-se agora a equação (3.71) na lei de transformação (3.69), obtemos U−1 L ◦ D′ C′ UL = hC µ ◦ D′ µ ≡ ◦ D′ C . (3.74) É claro desta expressão que a parte orbital dos geradores é responsável pelas trans- formações de Lorentz do ı́ndice do espaço-tempo da derivada covariante ◦ DC . De fato, chamando de ΛA′ C ≡ (US)A′ C ao elemento do grupo de Lorentz na representação ve- torial, a transformação da tetrada pode ser escrita na forma usual hC µ = ΛA′ C hA′ µ, 47 e assim vemos que ◦ D′ C′ = ΛC′ A ◦ D′ A ≡ UL ◦ D′ C U−1 L . (3.75) Isto significa que