UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO" INSTITUTO DE ARTES - CAMPUS DE SÃO PAULO Dinis Catunda Doutel Ferreira A composição como ferramenta de ensino musical SÃO PAULO 2023 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO" INSTITUTO DE ARTES - CAMPUS DE SÃO PAULO Dinis Catunda Doutel Ferreira A composição como ferramenta de ensino musical Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Artes da UNESP - Universidade Estadual Paulista Orientador: Prof. Dr. Wladimir Farto Contesini de Mattos SÃO PAULO 2023 Ficha catalográfica desenvolvida pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da Unesp. Dados fornecidos pelo autor. F383c Ferreira, Dinis Catunda Doutel, 1995- A composição como ferramenta de ensino musical / Dinis Catunda Doutel Ferreira. -- São Paulo, 2023. 45 f. : il. Orientador: Prof. Dr. Wladimir Farto Contesini de Mattos. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Música) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. 1. Composição (Música). 2. Música - Instrução e estudo. 3. Música - Análise, apreciação. I. Mattos, Wladimir Farto Contesini de. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 781.3 Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade - CRB/8 8666 3 DINIS CATUNDA DOUTEL FERREIRA A COMPOSIÇÃO COMO FERRAMENTA DE ENSINO MUSICAL Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto de Artes da Unesp, como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciatura em Música. Trabalho aprovado em: 16/03/2024 Wladimir Farto Contesini de Mattos Instituto de Artes da Unesp Andreia Miranda de Moraes Nascimento Instituto de Artes da Unesp São Paulo, 16 de Março 2024 FERREIRA, Dinis. A composição como ferramenta de ensino musical [Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em música]. São Paulo: Instituto de Artes da UNESP; 2023. RESUMO Este projeto de pesquisa tem como objetivo levantar as potencialidades da composição musical coletiva como ferramenta pedagógico-musical em um contexto escolar especialmente. O tema abordado durante essa pesquisa são as possibilidades criativas que podem se dar na educação musical a partir da composição. Para se ter uma compreensão mais ampla sobre o tema, serão revisados trabalhos de diferentes épocas versando sobre a composição para a educação, para por fim se focar em um caso específico vivenciado pelo autor. Palavras-chave: Educação; Composição; Coletiva; Ferramenta. 5 FERREIRA, Dinis. A composição como ferramenta de ensino musical [Trabalho de Conclusão de Curso – Licenciatura em música]. São Paulo: Instituto de Artes da UNESP; 2023. ABSTRACT The present work intends to explore the potential of collective musical composition for musical education in school. The object of the study here are the creative possibilities that can arise through the use of musical composition as an education tool. In order to have a larger comprehension on the object of study, a number of texts on composition as a educational tool by different authors will be analyzed thoroughly, and then used as a base for analyzing a process lived by the author. Keywords: Education; Composition; Collective; Tool. SUMÁRIO 1. Introdução 8 2. História 12 3. Keith Swanwick 18 4. Teca Alencar de Brito 21 5. Murray Schafer 22 6. Viviane Beineke 24 7. Duas propostas contemporâneas 27 8. Uma proposta original 31 9. Conclusão 44 Referências 46 7 1. Introdução O presente trabalho busca trazer algumas noções sobre a educação musical consideradas relevantes atualmente, focando em especial no que se diz sobre a composição com foco em um ensino criativo, para retroativamente observar uma prática de composição musical em escola que acompanhei em 2022, avaliar suas características que provocarem interesse e, possivelmente, atestar sobre sua validade. Para realizar essa discussão, não foi escolhido um autor em particular para estudar a fundo e analisar a prática realizada a partir do prisma de seu método/filosofia, mas sim buscar uma variedade de visões para auxiliar nas reflexões aqui apresentadas. Em algum nível, a escolha de pesquisar autores diversos para se apoiar, em minha visão foi de certa forma coerente, pois entre os pensadores lidos é quase ponto comum de que a educação musical de nosso tempo não necessita ser pensada como “método”, e sim, se assemelhar mais com algo como uma “filosofia da educação musical”, sendo, portanto, enriquecedora a ponderação de visões diferentes. Quando falamos em ensino de música nunca nos faltarão métodos, ferramentas e dispositivos diversos já amplamente usados e discutidos para promover essa aprendizagem. Entretanto, mesmo com todos esses recursos, a educação em cada lugar e momento histórico tem seus significados culturais específicos, fazendo com que as tradições pedagógicas não apenas divirjam em relação aos procedimentos adotados, mas também em relação aos objetivos a se cumprir. Por conta disso, mesmo se utilizarmos um método já estabelecido não há garantia que faremos um bom trabalho, pois sempre devemos considerar quais são nossas metas ao se utilizar de tais diretrizes, bem como a forma de aplicação. Também é sempre válido nos atentarmos à forma com a qual aplicamos esses conhecimentos metodológicos, levando em conta também, como estes interagem com o contexto real em que se encontram. Podemos reparar que as mudanças na forma de entender o lugar da educação musical tem íntima relação com as mudanças sociais e no pensamento do momento 8 histórico que se encontram (mesmo que às vezes essas influências tenham resultados muito caóticos, às vezes até contraditórios), ou nas palavras de Fonterrada “A ideia de que o valor da música e da educação musical sofrem modificações a cada período histórico mobiliza a necessidade de refazer o percurso do pensamento em diferentes épocas em busca dessas transformações” (Fonterrada, 2008, p. 25). Nesse sentido, é importante que nos situemos em relação ao contexto que estamos e como nos posicionamos em relação a ele, para podermos nos orientar quanto à educação musical que buscamos. Também é sempre válido que haja reflexão sobre a prática que realizamos, pois é um trabalho que pode ir em muitas direções, já que não só suas finalidades não são dadas, como também não são as escolhas dos meios para alcançá-las. Também é importante pontuar que cada prática individualmente também estará sujeita a constante adaptação, para cada contexto em que se realiza. Há nisso uma certa busca de se afastar da concepção que a educação é simplesmente uma estrada única em direção ao saber, tido como algo absoluto e imutável, para entendê-la mais como uma rede complexa cheia de ramificações, cruzamentos e encruzilhadas, na qual se perambula escolhendo os destinos e rotas. Com isso em mente, este trabalho se presta a realizar uma reflexão sobre uma prática em que estive presente que me foi muito prazerosa e instigante, a fim de entender melhor todo esse processo, trazendo algumas outras visões para auxiliar nesse caminho. Um dos materiais utilizados para contribuir com as reflexões sobre a prática realizada foi o livro “Ensinar música musicalmente” de Keith Swanwick (1999), que se mostrou como fonte de inspiração a muito do que aqui foi produzido. Se trata de um texto muito sensível, percorrendo um caminho que se inicia na discussão da relevância da música em si, seguindo em direção aos desdobramentos que ela pode ter em nossa sociedade em um sentido amplo, para, por fim, tratar de fato da questão da educação musical, e do lugar que esta pode ocupar na escola. Swanwick assim, traça em seu livro um trajeto coerente e instigante, pois busca encontrar dentro da própria discussão sobre a valoração da música uma maneira de pensar sua pedagogia, não atrelando a educação musical a algo utilitário, que vise somente amplificar outras potencialidades de aprendizado, tendência essa muito presente no final do século XIX e começo do XX. 9 Se por um lado em sua visão não há a busca de valorizar a pedagogia musical como mero dispositivo de melhora de cognição ou intelecção, por outro também não ignora os benefícios que a educação musical pode propiciar em relação a outras esferas da vida de quem a experiencia. Outro livro analisado aqui foi “O ouvido pensante” de Murray Schafer, que por sua vez, traz uma perspectiva que vai mais no sentido de educação sonora do que musical, dando sempre muita ênfase à questão da escuta em um sentido abrangente. É uma busca do autor aos estados mais elementares da escuta e produção de sons, com uma perspectiva mais generalista que Swanwick, buscando uma pedagogia que vá além do musical, acessando o sensível, através de tudo aquilo que as artes podem provocar de maneira estética. Trata-se de uma abordagem que não busca explorar somente o universo musical, pois seu objetivo geral é o do desenvolvimento da sensibilidade auditiva, mesmo em contextos não musicais. Outro objetivo explicitado pelo autor é o da busca pela integração das formas de arte entre si, e das artes com nossa vida. Sua principal preocupação é com os ambientes sonoros que produzimos e habitamos, sejam eles salas de concerto, ruas, salas de aula, ou qualquer outro lugar que se preste. Sua ideia de como nossas percepções se tornaram extremamente “congestionadas” quando, no mundo moderno passamos a ter tantos estímulos, é chave para perceber-se o quanto estamos ignorando no nível da sutileza, nível este que pode ser muito melhor explorado quando se tem uma educação musical/sonora sensível. Os desdobramentos dessa constatação podem apontar tanto na direção do intrapessoal, interpessoal de baixa escala até uma perspectiva global, onde, a partir da escuta atenta, podemos descobrir, investigar e sermos críticos ao nosso mundo. A perspectiva de Schafer ajudou consideravelmente nessa pesquisa por trazer muito foco para esse âmbito da sensibilidade, bem como da autonomia dos educandos. “Um jogo chamado música” de Teca de Alencar Brito (2019) entrou também como fonte de conhecimento para as presentes reflexões, com as ideias muito vivas de Brito sobre a educação criativa. Embora mais breve quanto a uma proposta de estruturação de uma filosofia da educação musical, a autora traz noções inovadoras sobre o assunto, mesmo estando alinhada, em boa parte, com os outros textos lidos. A forma como descreve esse tal “jogo” mencionado no título do livro vai na direção 10 de uma visão que busca colocar no centro da prática educacional a experiência estética, tão mais enriquecedora do que as utilidades extra-musicais ou o excessivo foco em técnicas de repetições estritas. Bem similarmente a Schafer, Brito ressalta fortemente a noção de que é a nossa escuta que ativamente musicaliza o que ouvimos, não apenas que a ordenação de sons por si evoque naturalmente a musicalidade. É a diferença que emerge quando a escuta deixa de ser de uso prático (como ouvir sons de predadores, perigos etc..) para focar o ato de ouvir em si, saltando assim para outro universo, o musical (Brito, 2019, p. 36). Outro material que auxiliou nessa pesquisa foi o livro “De tramas e fios” , de Marisa Trench de Oliveira Fonterrada (2008). A autora nos auxiliou aqui a conhecer mais sobre a história da educação musical no Ocidente desde a Grécia até o século XX, bem como a história da educação musical no Brasil, que dialoga muito com tendências gerais no Ocidente, porém com suas especificidades. O foco aqui não foi de realizar uma verdadeira análise histórica do assunto, entretanto, se mostrou necessária a compreensão de parte daquilo que, em algum nível, dialogava tanto com os autores de grande relevância nessa área, desde a literatura de outros tempos até a contemporânea, bem como o pano de fundo histórico-cultural. Vale aqui ressaltar que a escolha de se utilizar essa referência ocidental e “institucional” quase como a única fonte se liga a ideia de que esse trabalho foi realizado em um contexto escolar e por pessoas que, principalmente, tinham essa referência em suas mentes. De forma alguma isso significa implicar que outros saberes não sejam relevantes ou válidos, apenas que este é o recorte escolhido para a análise aqui presente. Por fim, outras práticas semelhantes de processos composicionais em escolas foram trazidas também para enriquecer ainda mais a discussão, não apenas de um ponto de vista teórico, mas situando a prática em relação a outras de caráter similar. Para essa discussão foram analisados três textos cada um com práticas sutilmente diferentes, um atuando na musicação de poemas, um realizando várias pequenas composições a fim de conhecer várias músicas do mundo afora, e um de composições mais livres. 11 2. História A música encontra um lugar de grande relevância nas diferentes culturas humanas; por Wisnik (2014) Há mais essa peculiaridade que interessa ao entendimento dos sentidos culturais do som: ele é um objeto diferenciado entre os objetos concretos que povoam o nosso imaginário porque, por mais nítido que possa ser, é invisível e impalpável. O senso comum identifica a materialidade dos corpos físicos pela visão e pelo tato. Estamos acostumados a basear a realidade nesses sentidos. A música, sendo uma ordem que se constrói de sons, em perpétua aparição e desaparição, escapa à esfera tangível e se presta à identificação com uma outra ordem do real: isso faz com que se tenha atribuído a ela, nas mais diferentes culturas, as próprias propriedades do espírito. O som tem um poder mediador, hermético: é o elo comunicante do mundo material com o mundo espiritual e invisível. O seu valor de uso mágico reside exatamente nisto: os sons organizados nos informam sobre a estrutura oculta da matéria no que ela tem de animado. (Wisnik, 2014, p.28). Em seu livro “ De Tramas e Fios” Fonterrada diz que “A busca do valor da música e da educação musical inicia-se na Grécia, que sempre tem sido, para o Ocidente, uma forte referência”, encontrando na Grécia antiga o berço dessa discussão que estamos adentrando por estarmos sempre em diálogo mais direto com a cultura ocidental. A concepção da música então, se relacionava à formação do caráter e cidadania, auxiliando a ordenar a sociedade, bem como exercitar a capacidade de tomar decisões. Como Fonterrada traz “Para Platão e todos os gregos, a literatura, a música e a arte tem grande influência no caráter, e seu objetivo é imprimir ritmo, harmonia e temperança à alma. Por isso deve-se preservá-la como tarefa do Estado.” (Fonterrada, 2008, p.27). O que já aponta a vontade de ter a música como parte do conhecimento humano tão necessário como outras áreas. É também desde esse momento, que a prática musical começa a ser associada também ao campo da ciência, como podemos observar pelas associações que Pitágoras começa a assumir “[Pitágoras] concebe a música como um sistema de sons e ritmos regido pelas mesmas leis matemáticas que operam na criação” (Fonterrada, 2008, p. 28). Durante o período conhecido como Idade Média, a música começa a se tornar parte importante do culto religioso, ganhando relevância ensiná-la para a adoração de Deus. Mesmo com essa relevância religiosa, a educação musical especialmente 12 das crianças não encontra registros muito relevantes quanto aos tipos de práticas, dado que as crianças não eram vistas como atualmente, e sim, quase como animais que serviam para divertir os adultos. Nesse período começam a surgir escolas para cantores infantis, as “scholae cantori”, onde crianças portadoras de boa voz iam para aprender música e ganhar seu sustento com isso, sendo úteis assim à Igreja e ao culto religioso. É somente no período da Renascença que as crianças passam a ser vistas como seres que necessitam de cuidados especiais além de tudo mais que o adulto também necessita, e começam então, a surgir instituições semelhantes às scholae, porém agora com uma variedade maior de disciplinas a serem aprendidas, já se assemelhando mais com escolas modernas, em um formato também semelhante à um orfanato. No início do século XVII o iluminismo ganhava uma força muito grande no pensamento ocidental, sendo agora a razão e a racionalidade valores dos mais elevados na organização da sociedade e vida das pessoas. Por conta disso, a música era entendida por alguns como a arte mais baixa, pois representava e mobilizava os sentimentos mais inferiores. Para o pensamento dessa época a música afastava o humano da razão, por ser considerada imitação da natureza, que representava, por sua vez, a razão pura, a ordenação natural das coisas. Essa busca pela razão e a ordenação dessa época também é refletida no campo da educação, que começa a se especializar em especial na Itália, onde as faixas etárias começam a ser relevantes quanto à organização dos estudos, bem como o ensino ter intenções profissionalizantes. Quando o período barroco se aproxima do fim surgem duas teorias que começam a dar suporte para a valorização da música instrumental, são estas a Teoria dos Afetos e a Doutrina das Figuras. A teoria dos Afetos justifica os elementos da linguagem musical, associando-os com afetos, como exemplo a tonalidade de Fá maior seria boa para representar os mais grandiosos sentimentos do mundo. A Doutrina das Figuras, por sua vez, associa a linguagem musical com a linguagem verbal, a partir da transposição de elementos retóricos gramaticais para elementos da construção do discurso musical, validando assim a música como discurso. Apesar dessas teorias terem se desenvolvido durante o período Barroco, ganharam destaque no período que o seguiu, o Classicismo, quando muitas 13 pedagogias musicais passaram a existir. Na visão de Fonterrada, podemos traçar a esta época o pensamento que serviria de embrião para os métodos ativos na educação musical, como na literatura de Jean-Jacques Rousseau. Rousseau pode ser considerado um dos primeiros a pensar o naturalismo pedagógico, e começa a valorizar aspectos considerados por ele mais humanos, percebendo que a educação baseada na razão era limitada (Fonterrada, 2008, p. 60). Também é o primeiro a sistematizar uma proposta para a educação musical escolar, com canções simples, trazendo a leitura musical para momentos já de maior maturidade dos estudantes. O século XIX, período diretamente anterior ao século XX, pode ser entendido como berço dos métodos modernos aqui discutidos. Por se tratar do período imediatamente precedente, muito do que surge no século XX dialoga com as ideias que existiam, ora negando-as veementemente, ora ainda apresentando alguma influência destas. Pois bem, o século XIX foi um período muito curioso, onde coexistiam muitas tendências contrárias e conflitantes. Entende-se tradicionalmente esse século como a transição do classicismo para o romantismo no campo da música, apesar de que, na verdade, ambos coexistiram por um bom tempo, bem como suas tendências filosóficas. Por Fonterrada: O século XIX encontra-se repartido entre tendências opostas. Nele são detectadas, em meio à ordem vigente, áreas de resistência que se manifestam, em especial nas ciências humanas e nas artes, e valorizam a expressividade, as vivências, as ideias libertárias, românticas e realistas. A outra tendência é representada pelo positivismo que, com seus ideais de ordem e progresso, privilegia o genérico, o estável, o mensurável. Nas artes, essa tendência é representada pelo academicismo.” (Fonterrada, 2008, p. 65). Uma contradição curiosa, podemos estender esse pensamento para o caso da música; em relação à estética, a música romântica busca desestabilizar as formas excessivamente ordeiras e estáveis, predominando a expressão mais grandiosa de sentimentos poderosos, enquanto que no campo formal os recursos de manipulação da matéria musical se tornam mais e mais complexos, e a especificidade descritiva de suas partituras atingindo níveis muito altos, requerendo, portanto, uma capacidade de execução absurdamente precisa. No que essas duas tendências 14 muitas vezes podem se contrapor é o fato que o grande intérprete deve ser expressivo, mas encontra cada vez menos espaço para tal. É um momento em que o iluminismo está perdendo alguma força que tinha anteriormente por conta de novas concepções, mas ainda assim a racionalização dos processos é algo muito central, produzindo, inclusive, o cientificismo característico dessa época. Nesse contexto tão complexo, o virtuosismo passa a ser visto como um grande objetivo a ser alcançado, pois com a precisão hiper-especializada de um grande executante, a expressão mais acurada poderia ser produzida. É algo que produz uma educação musical também cheia de contradições, quando a analisamos à luz de tudo que se construiu depois, afinal, como se poderia criar um artista verdadeiramente expressivo, quando este se encontra preso ao ideal de alcançar a forma de maior perfeição da execução de uma obra, ditada pelos conhecimentos procedimentais e repetitivos ditos racionais? Fonterrada também traz para a discussão a influência de Hegel, que dá suporte para duas tendências de música como simplesmente autorreferencial e como linguagem expressiva, capaz de transbordar suas próprias barreiras representacionais, como na música programática tão característica neste século. Algo que também é notado pela autora é a contradição que se revela na tendência de exacerbar o indivíduo, ao mesmo tempo que a sociedade fica inevitavelmente cada vez mais massificada, com tendências coletivizantes por conta do grande êxodo rural e a explosão das populações nos grandes centros ao final do século. É nessa época também que começam a se estabelecer escolas profissionalizantes de música, tal como o Conservatório Brasileiro de Música em 1845, onde a tendência educacional era de formar o instrumentista de maneira individualista, privilegiando o virtuosismo. Por outro lado o ensino de composição se amplia, surgindo uma forma de ensino massificada, por conta da quantidade de diletantes que buscam aprender a compor. Não se trata de maneira alguma da mesma forma de se utilizar a composição como forma de estimular a criatividade que tanto interessa a este trabalho, mas sim um estudo bem específico de técnicas composicionais precisas e prescritivas. 15 Com a virada do século, muitas mudanças acontecem em muitos sentidos, seja nas ciências naturais e humanas, como na arte, como na forma de se organizar de nossa sociedade. Fonterrada traça um paralelo muito fortuito entre a descoberta da relatividade na física, que altera bruscamente a forma como entendemos espaço e tempo, ao passo que nas artes as representações também se desprendem das formas que vinham buscando (no caso da música a tonalidade, forma e tempo são repensados a ponto de se tornarem irreconhecíveis). “A virada do século caracterizou-se pela perda dos ideais românticos e acelerada mudança nos valores e sistemas, reconhecidas como sintomas da desintegração da vida mental da época.” (Fonterrada, 2008, p. 92) e é isso que desencadeia no que alguns autores chamam “fim da história da música”, pois as tendências que surgem são tantas que já não se consegue traçar uma linha lógica de sucessão, como anteriormente se fazia. A tendência de massificação e coletivização que no século XIX se mostrava como germinal, ganha ainda mais força no início do novo século, colocando em risco a ideia do indivíduo e da expressão criativa. Com isso, o ensino de música muitas vezes se vê comprometido com ganhos indiretos ou utilitários, se vendo na educação musical uma oportunidade de auxiliar o processo educacional, que no geral era visto apenas como forma de qualificar mão de obra para a crescente indústria. Nessa época surgem diversos tipos de testes para verificar aptidão musical, ou as “inteligências” associadas aos tipos de habilidades que a música utiliza. Por outro lado, também é um momento em que autores do campo da pedagogia começam a entender a educação como um processo que pode auxiliar no desenvolvimento de uma pessoa no geral, como Jean Piaget. Em contraposição à educação que só busca atender as necessidades da indústria, está a visão que a pedagogia pode ser uma área do conhecimento com potenciais por muito tempo deixados de lado, em especial a capacidade real de incitar nos educandos sua autonomia no processo de produção de conhecimento, suas capacidades críticas e criatividade, visando a formação de pessoas com maior e melhor condição de desenvolvimento de seus diversos potenciais, “(...) o formando , desde o princípio mesmo de sua experiência formadora, assumindo-se como sujeito também da produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua 16 construção.” (Freire, 2004, p. 22). Da mesma forma, no campo da educação musical também surge uma tendência que nega a forma como a educação musical vinha sendo pensada, simplesmente visando a reprodução de repertórios canonizados e técnicas de execução (aparentemente) estáticas em relação ao tempo. Dentro desse veio, as práticas que serão valorizadas pedagogicamente serão drasticamente atualizadas e alteradas, pois não existe sentido em se utilizar dos mesmos antiquados métodos para se obter resultados inovadores e transformadores. Assim sendo, no século XX uma geração de educadores musicais surge criando aquilo que conhecemos hoje como “metodologias ativas”, que são propostas que vão na direção de aproximar os educandos de um universo sensível, tentando humanizar o processo de aprendizagem a partir do contato com a arte. Um desses autores é Émile-Jaques Dalcroze, que percebe que a forma estabelecida de ensino musical era demasiadamente mental, fazendo com que os educandos não se ligassem ao conteúdo de forma mais própria, pois antes da escuta precisavam já compreender relações complexas da música a um nível intelectual, sem fazer a conexão com o som em si. Dalcroze nota que seus alunos conseguem resolver questões teóricas de harmonia avançadas, sem saber como os próprios acordes soam, algo que vê como um engano. Na busca de superar isso, o autor cria um método baseado em se utilizar de movimentos corporais associados a certos sons, trazendo a compreensão musical para o corpo inteiro e não apenas o intelecto. É exatamente nesse contexto que a composição musical como ferramenta pedagógica se apresenta como algo de muito valor, pois para poder compor, a linguagem musical precisa ser internalizada em algum nível. Alguns dos autores trazem a composição no sentido mais comum de fixação de uma “obra”, enquanto outros apenas a mantém no espaço de improviso. Algo que é muito bom de se ter em mente quando tratamos de música, é que essa é uma linguagem que muitas vezes parece distante para o público geral, onde se acaba acreditando que é necessária uma quantidade infindável de conhecimentos prévios para o fazer musical, quando, na verdade, todos que já 17 estiveram na posição de ouvinte de música já estão fazendo parte de uma das muitas formas do fazer musical. Esse distanciamento que atinge em especial adultos não é tão presente quando lidamos com crianças, que se sentem mais autorizadas a explorar livremente sem exigências tão duras sobre os resultados. Por conta disso, além de ser geralmente mais fácil criar um ambiente estimulante para a criatividade na infância, é muito pertinente a aproximação desse objeto que é a música de uma maneira mais direta e criativa, para que superemos essa visão atrasada muito atrelada a valorização do virtuosismo. 18 3. Keith Swanwick A ideia de composição como aliada na educação musical como dito antes ganha grande importância no século XX, e um dos primeiros e mais importantes autores a trazer essa ideia é Keith Swanwick. A importância que a composição começa a ganhar na visão de Swanwick se dá na relação que o autor muito discute entre o discurso musical com outras formas discursivas, apesar da música não ser representacional (tal como muitas vezes compreendemos a ideia de discurso). Por conta disso, apesar de a música aparentemente se tratar de uma linguagem meramente autorreferencial e fechada em si, ela tem em si um potencial comunicacional subjetivo enorme. A expressão musical mobiliza afetos através do que Swanwick chama um processo de metaforização de seu discurso: Quero agora sustentar que, no entrosamento musical, o processo metafórico funciona em três níveis cumulativos. São eles: quando escutamos “notas” como “melodias", soando como formas expressivas; quando escutamos essas formas expressivas assumirem novas relações, como se tivessem “vida própria”; e quando essas novas formas parecem fundir-se com nossas experiências prévias (Swanwick, 1999, p. 28) . A metáfora aqui não é entendida no sentido estrito de figura de linguagem, e sim em um sentido mais amplo, de interconexão entre dois objetos aparentemente não relacionados, gerando novas maneiras de pensá-los, a partir da semelhança e também da diferenciação dos dois. Vendo a expressão musical dessa forma, o mais relevante no processo de aprendizagem da música para ele é a possibilidade de proporcionar a quem aprende a capacidade de se comunicar através desse meio, não apenas ser capaz de reproduzir os discursos já estabelecidos em tradições culturais específicas. Para que tal potencialidade seja explorada no processo de educação musical, também deixa de fazer sentido se utilizar de métodos pedagógicos antigos que buscam uma perfeição técnica, que muitas vezes acaba por ter o efeito de alienar os estudantes de uma multitude de processos de significação e fruição da música. Cabe aqui a discussão do autor sobre o lugar que a música pode ocupar dentro de um “espaço intermediário”, espaço esse da comunicação. A concepção 19 apresentada no livro sobre o posicionamento da música nesse espaço se situa entre as posições extremas que entendem a música como absolutamente universal, e as correntes que enxergam a questão do valor da música ligado intrinsecamente ao seu valor cultural específico a algum tipo de uso, em um certo contexto. É uma visão onde a música se coloca dentro de um espaço próprio à troca, tendo certas formas de se utilizar de elementos simbólicos, que não têm em si valor absoluto, imutável, mas sim negociável. Esse valor negociável por sua vez só pode ocorrer por conta da qualidade “transcendental” que a música traz. É nesse contexto que a composição ganha importância no processo de ensino, pois se trata de um movimento que só é possível quando aquela linguagem está minimamente assimilada, ao mesmo tempo que também auxilia no processo de assimilação da mesma. Podemos aqui estabelecer uma não incomum analogia da aquisição da fala com o processo de musicalização, teríamos então que os primeiros toques livres em instrumentos musicais ou objetos sonoros no geral, são muito similares ao início do processo de verbalização, onde bebês e crianças começam a esboçar uma certa repetição dos sons que ouvem, pronunciando-os e organizando-os inicialmente de maneira intuitiva e repetitiva, até, eventualmente se apropriarem do sentido desses sons. Levando ainda mais adiante essa analogia, após conseguirmos falar algumas palavras, começamos a montar frases, tal como na música aprendemos por repetição certas melodias e ritmos. Algo como se, em comparação à fala, no início imitássemos frases que já havíamos ouvido, para então começar a se apropriar de seus significados, para finalmente podermos construir nossas próprias frases, imbuindo ao máximo possível a intenção de transcrever aquilo que temos vontade de expressar, em um código compartilhado. Na música o mesmo vale, somente quando nos apropriamos dos elementos dessa linguagem e os possíveis significados que podemos suscitar com eles, que somos capazes de compor música (que, na verdade é um processo que se retroalimenta, pois ao compor música encontramos dentro desse fazer a chave para fazê-lo, repensá-lo, transformá-lo). Nesse sentido, quando criamos uma canção, produzimos algo que organiza de alguma forma algo interno nosso, codificando de maneira simbólica esse material, 20 que poderá então sair de nós e tocar o outro, que por sua vez ao decodificar aquele material atribui por meio desse ato seus próprios significados. Para abordar a questão da educação musical no livro “Ensinando música musicalmente”, Swanwick começa estabelecendo princípios, que seriam “Considerar a música como discurso”, “considerar o discurso dos alunos” e “fluência no início e no final”. Considerar a música como discurso se liga exatamente ao processo de metaforização mencionado pelo autor, as relações internas das estruturas musicais sugerem para nós experiências verdadeiramente estéticas, significando que não podemos tomar a expressividade como o último estágio do ensino de música (como muitas vezes ocorre). Já o segundo princípio está em consonância com as ideias de Paulo Freire, entendendo o aluno como sujeito do fazer musical, e não um elemento passivo que “receberá” os conteúdos musicais. Por fim, o terceiro e último princípio representa a vontade do autor de que os educandos desenvolvam um saber intuitivo da música, que emerge em um contexto em que estamos de fato nos atentando ao fazer musical, não apenas lendo uma partitura. Importante notar aqui que em momento algum é dito que o conhecimento analítico seja rejeitado, ambas formas de saber se complementam na visão do autor. Swanwick e Cavalieri também discutem no artigo “Composição, apreciação e performance na educação musical: Teoria, pesquisa e prática” a questão de que a forma como ensinamos a comunicação musical, que é por eles vista como uma prática que deve estimular a criatividade, seja em si criativa, unindo a forma da educação com seu conteúdo de maneira indissociável. Se buscamos ensinar esse meio de expressão que se trata, antes de tudo sobre a escuta, também devemos ter a escuta como parâmetro essencial para tratar da aprendizagem, seja escutando ativamente e generosamente os gestos musicais em si, bem como escutando os anseios e desejos externados pelos estudantes em relação à sua prática. Por isso não se trata apenas de ensinar sobre composição musical, e sim sobre as potencialidades expressivas que o vocabulário musical nos traz. 21 4. Teca Alencar de Brito Em seu livro “Um jogo chamado música”, Teca Alencar de Brito busca entender a música como um “jogo ideal”, se aproximando do conceito elaborado por Deleuze. O que esse jogo busca, não é nem uma competição, nem alguma forma de ensinar técnica de maneira indireta, mas sim, permitir uma experiência estética que possa instigar a exploração do universo musical. É também crucial que reflitamos sobre as práticas pedagógicas necessárias para alcançar tal objetivo, por isso Brito propõe que sejam trabalhados diversos processos criativos, jogos de improvisação, sempre citando a “repetição diferente”, bem como momentos de reflexões sobre as práticas realizadas que visem proporcionar o aprendizado crítico e criativo. Para a autora, a escuta tem papel central para o desenrolar do processo de musicalização, pois tal como Schafer, entende que a escuta não se trata de um mero processo passivo de apreciação, e sim parte crucial da transformação do som em sentido. Isso é algo que pode provocar diversas mudanças na forma de se pensar a prática musical e de seu aprendizado, pois sugere formas de escutarmos ativamente, criticamente, podendo ampliar a maneira como fazemos e pensamos a música. Se trata de uma forma de enxergar a música como esse tal jogo, sendo necessária a delimitação de regras comumente aceitas, para o desdobramento desse fazer. E por mais que se utilize dessa palavra “jogo”, Brito não entende que as aulas sejam guiadas por atividades meramente lúdicas que “ensinam música disfarçado”, e sim, que esse jogo deve ser jogado em si e por si, de tantas quantas forem as formas que conseguirmos pensar em fazê-lo. A autora cita o quanto se mostra evidente quando observamos crianças menores ao participarem de jogos, sem ainda conceitos claros sobre competitividade, que o sentido desse jogo está dentro de si próprio e não fora. Nesse sentido sua visão é consonante com a forma de Schafer e Swanwick de entender a educação estética. 22 5. Murray Schafer Outro autor que trata do assunto composição musical para educação é o canadense Murray Schafer. Em seu livro “O ouvido pensante”, Schafer descreve a função do professor como a daquele que busca se extinguir gradualmente, buscando a capacidade do estudante de se tornar independente. Muito consonante com muito do que se vinha pensando no campo da educação, o objetivo do educador é se tornar cada vez mais distante, pois seu ensino deve caminhar no sentido de promover a autonomia, fornecer as ferramentas necessárias para que o educando consiga por si realizar sua busca. Podemos observar esse intuito quando o autor defende que seu livro apresenta uma filosofia musical, mas que cada um deve buscar a sua sem assumir as ideias de alguém como cânone. Um elemento muito interessante que Schafer traz em sua obra é a forma como ele entende o erro dentro de um contexto de criação, que não apenas é um convite à mudança, ou um obstáculo a ser superado, mas também contém em si a capacidade de produzir novidade, tal como descreve o surgimento do cânone e do organum paralelo, inicialmente criados por defasagens acidentais de tempo e de altura respectivamente. O grande tema central em suas produções são as paisagens sonoras, e a escuta de sons a princípio não musicais, como parte de um trabalho de aprofundamento da nossa percepção, que, segundo o autor, é uma categoria que se vê em crise desde os tempos modernos. Para o autor, a história da música é uma história sobre o que entendemos como som relevante e ruído. Por conta disso, traz à luz a questão de como em uma sociedade massificada e industrializada, somos compelidos a entender uma infinidade de sons como ruído, tornando nossa audição cada vez mais empobrecida para sutilezas. Para reverter esse cenário nefasto em que vamos pouco a pouco ensurdecendo como sociedade, Schafer traz diversos exercícios de “limpeza” de ouvidos, nos quais a atenção que normalmente busca ignorar tanto do que se passa ao nosso redor, exatamente para a delicadeza de cada um desses sons do ambiente e como esses podem ser instigantes. Sua busca, em oposição a de Swanwick tem um foco mais exacerbado na percepção em um sentido muito amplo, é muito mais uma educação sonora que 23 musical propriamente dita. A música acaba entrando em suas reflexões como mais uma das formas de som, com capacidades de incitar seus sentidos próprios também. Se trata de uma visão na qual o mais importante é exercer a capacidade crítica em relação aos sons, tanto os ouvidos quanto os que podemos produzir, sempre visando a produção de conhecimento horizontal. A composição para Schafer é um dos desdobramentos dessa visão, pois no processo que se passa para poder compor, as escolhas necessariamente passam por nossa capacidade crítica de produzir opiniões sobre as propriedades dos sons. 24 6. Viviane Beineke Em seu artigo de 2015 “Ensino musical criativo em atividades de composição na escola básica publicado na ABEM, Viviane Beineke nos conta sobre sua experiência acompanhando uma professora em um processo de composição dentro de sala de aula com alunos de 7 a 9 anos em uma escola em Porto Alegre, por três meses nos horários de aula de música. Busca analisar como a composição se relaciona com as ideias de ensino criativo. Sua metodologia neste trabalho consiste em tomar a perspectiva da docente, para entender seu papel dentro do processo de ensino criativo. Logo de início cita a necessidade de focalizar sua pesquisa em três dimensões do ensino criativo, em suas palavras “a construção das relações sociais na classe, o engajamento dos interesses e a valorização das contribuições das crianças”(Beineke, 2015, p.1). Segundo a autora, essas dimensões se mostram essenciais quando buscamos proporcionar um ambiente de criação estimulante, pois somente com os interesses dos estudantes verdadeiramente alinhados ao projeto a aprendizagem pode ser verdadeiramente significativa, e para tal, suas vozes precisam ser ouvidas, o que só é possível em um ambiente onde estejam verdadeiramente confortáveis para tentar, errar, explorar. A ideia é que ao se criar um ambiente agradável e de integração dos interesses dos alunos com do docente, relações afetivas são criadas, e desse contexto naturalmente a criatividade emerge. Também salienta que esse engajamento dos interesses dos educandos é algo que deve ser construído, nem só partindo das experiências anteriores dos estudantes, nem só do próprio interesse “inerente” ao objeto de pesquisa, destacando a importância do papel do educador ao achar maneiras de fazer o objeto de estudo ser despertador de curiosidade. Também enfatiza o quanto a atividade realizada em grupo pode ser frutífera para esse processo de envolvimento dos interesses dos lecionandos, dado que as relações que se estabelecem entre os criadores podem servir de incentivo, quando não são geradoras de inseguranças. Em relação à metodologia utilizada, as atividades composicionais foram gravadas em vídeo, entrevistas semi-estruturadas com a docente em questão foram feitas, bem como conversas com grupos focais de alunos (buscando também 25 conhecer a perspectiva dessas crianças, apesar de seu foco ser o trabalho da educadora). Beineke então descreve as características e formação da professora, ressaltando o conhecimento prévio que a mesma tinha sobre seus alunos, vindo de um processo de conhecê-los desde pequenos, que foi, em sua visão, positivo, pois as relações já encontravam algum nível de intimidade prévia. Em última análise Beineke vê com bons olhos a experiência realizada, com envolvimento significativo dos estudantes, e uma participação gentil e cuidadosa da docente. 26 7. Duas propostas contemporâneas Nesse capítulo serão comentadas duas experiências similares à principal deste trabalho, a fim de observar como outros autores registraram e analisaram situações semelhantes à que me encontrei. A primeira das propostas foi realizada em 2015 no Centro de Educação Profissional Hermann Hering (CEDUP), e o texto foi escrito por Andrey Cristovão e Daniela Weingärtner. Se tratou de um processo longo, que visava introduzir culturas musicais de diversos países, na busca de aproximar os estudantes de outras culturas, se utilizando da linguagem musical como forma de sensibilização para aproximar os alunos desses outros contextos culturais. A metodologia utilizada foi o C(L)A(S)P de Swanwick e França (2002). Que afirma a ideia de que um trabalho em educação musical deve se balancear em cinco frentes: a composição, apreciação e performance, tocando também em elementos da literatura do assunto e as habilidades técnicas necessárias no processo. A proposta se inicia com a apresentação de como as aulas se desenvolverão, seguida de um mapeamento sobre os conhecimentos e práticas musicais dos discentes, bem como conhecimentos das culturas a serem trabalhadas. Para que essa não fosse apenas uma experiência auditiva e esvaziada de sentidos, o primeiro passo, quando lidando com essas músicas tão distantes, foi contextualizar um pouco os estudantes sobre a cultura onde essas canções se localizam, bem como seus “usos” originais. Para isso sempre eram trazidos exemplos para serem ouvidos atentamente, seja por meio de gravações ou execuções ao vivo dos docentes. Os autores ressaltam aqui a relevância da apreciação, que muitas vezes é entendida como atividade meramente passiva, argumentando que o processo de significação que fazemos na escuta não é universal e simples, ainda mais quando acrescido de discussões enriquecedoras. Assim sendo, a primeira prática trata da música tradicional da Grã-Bretanha, mais especificamente da cultura Celta, tendo como “matéria-prima” para a composição dos estudantes a escrita de poemas, inspirados nos Bardos, para depois serem musicadas. Um recurso que considero muito interessante, pois aproxima a composição dos estudantes a partir de um meio que já estão 27 acostumados a escrever, por conta da cultura escolar, trabalhando também um caráter interdisciplinar. A segunda prática tratou da música da Gana, com o estímulo inicial para a composição a criação de gritos tribais similares aos escutados inicialmente. Contando com a invenção de palavras, que deveriam ter um significado acordado pelo grupo previamente, bem como o uso de instrumentos percussivos, com foco no ngomba, tambor ganense. Acredito que a invenção de palavras aqui se mostra como desnecessária, podendo trazer certo caráter caricatural, distanciando-se da proposta de entender e respeitar essa cultura. Após Gana, a música estudada foi da Nova Zelândia, mais especificamente a cultura Maohi, e nessa experiência houve um processo composicional de coreografia, se inspirando nos movimentos da tradição da Haka. No aspecto musical, foi apresentada uma canção, que deveria ser arranjada e performada, juntamente a dança coreografada. Mais uma vez um exemplo interessante de mistura da música com outros processos criativos, porque criar uma dança para uma canção é uma forma muito estimuladora de sentir a musicalidade que se está experienciando de forma muito direta, corporal. Por fim, a última prática abordada foi a do Repente, tradição em partes do Nordeste do Brasil. A proposta consistiu na contextualização do contexto dessa manifestação específica, para depois participarem de uma “batalha” de repente. Interessante que aqui trabalharam a improvisação, que não deixa de ser uma forma instantânea de composição. A avaliação dos autores sobre o processo foi positiva, descrevendo um engajamento muito próspero dos estudantes, e dos docentes. Acredito que caberia pontuar aqui que é um trabalho de outra natureza de todos os analisados aqui, visando a expansão do conhecimento intercultural. Nesse contexto, é muito interessante notar o esforço inicial que se teve para interessar os educandos que não tinham contato quase nenhum com os ritmos e tradições observados. Esse tipo de trabalho acaba por não ser tão profundo, por se tratar de algo distante de todos, entretanto, não deixa de ter sua validade sociológica. 28 Uma outra proposta acompanhada por Viviane Beineke, escrita em conjunto com Camila Zanetta, se deu em uma turma da oficina de música da UDESC, que é um projeto de extensão da Universidade do Estado de Santa Catarina. Foi realizada com crianças de 7 a 10 anos, em aulas semanais de 1h15, em um espaço com diversos instrumentos à disposição das crianças. Se tratou de um processo de musicar poemas do livro “Ou isto ou aquilo” de Cecília Meireles. Os estudantes foram divididos em grupos de quatro, onde poderiam ter um ambiente mais favorável a serem escutados e ocupar posições que geralmente não ocupam. Para se iniciar essa proposta, os alunos leram todos os poemas e decidiram quais gostariam de musicar, que já é em si um exercício da sua capacidade crítica. Até foi apresentada nesse momento a possibilidade de gravarem suas composições, algo que serviu para deixar os alunos interessados e engajados no processo. Beineke e Zanetta descrevem que houveram diversas formas de se pensar a maneira de compor, algumas crianças preferiram definir primeiro um ritmo, enquanto outras preferiram já buscar compondo a melodia da canção a partir da letra. A forma de lidar com isso descrita pelas autoras foi de deixar as crianças escolherem a maneira pela qual queriam compor, pois isso é parte do respeitar o discurso dos discentes. Só intervieram nos conflitos maiores que inevitavelmente surgiram nesses processos. As discussões das crianças versavam sobre as melodias que seriam criadas; os diferentes modos de encaixar metricamente cada palavra do poema na melodia escolhida; a acentuação correta de tempo; o tamanho dos poemas e a verificação do uso ou não de todas as estrofes (para depois selecioná-las); questões de arranjo (como o número de vezes que repetiriam cada estrofe, como iniciariam a música, o que fariam antes da letra cantada, durante e depois, para gerar contrastes no decorrer da obra, instrumentação, definição de forma), entre muitos outros aspectos. (Beineke et al., 2014, p. Algo que denota a profundidade do contato com os elementos da linguagem musical quando lidando com uma composição original. Juntamente ao projeto de composição, houveram momentos de apreciação de estilos como ijexá, samba e capoeira, bem como momentos de ensino relativo à técnicas instrumentais, de canto e outros instrumentos. As autoras defendem que essa complementaridade enriquece muito as possibilidades interpretativas dos estudantes, trazendo mais 29 repertório para utilizarem nas suas composições. Além disso tudo, foi sugerido que cada grupo escrevesse a letra de seu poema em um papel, trazendo aí também uma conversa com a grafia de seu aprendizado, que pode ser inspiradora para novas ideias. Esse projeto, quando comparado ao experimento focal dessa monografia, tem o fator da separação em pequenos grupos do início ao fim do projeto como uma vantagem em certos aspectos, dado que as crianças conseguem dessa maneira, de fato, exercer melhor sua autonomia. 30 8. Uma proposta original O processo o qual trato neste trabalho se deu em um contexto de aulas de música no ensino regular de uma escola particular em 2022, as quais os alunos atendiam uma vez por semana durante uma hora. A prática se deu em um estágio supervisionado que realizei pela Unesp. Se tratavam de crianças de quinto ano, portanto, com 10 anos de idade em média. O tempo em que ele se desenrolou foi aproximadamente um semestre, no entanto, já vinham sendo sugeridos diversos estímulos para os alunos entrarem em contato com a música instrumental, que foi o meio escolhido para o trabalho. No presente trabalho trarei como objeto de estudo duas composições distintas feitas concomitantemente por duas salas de uma mesma escola, 5ºA e 5ºB. O professor que acompanhei já vinha desenvolvendo esse projeto com grupos dessa idade há alguns anos nesse mesmo ambiente, portanto já tinha muitas ideias pertinentes sobre a organização geral do projeto. Não significa, porém, que ele não estivesse aberto a sugestões trazidas pelas crianças ou por mim. Vale ressaltar que o docente em questão, há algum tempo já organizava o currículo da área musical da escola, sendo, portanto, todo esse trabalho de composição precedido por muitos momentos de aprendizado de natureza similar anteriormente. Acredito que por conta disso, para os educandos todo esse universo de práticas musicais criativas e coletivas não era algo novo, agilizando e facilitando assim, o processo como um todo. Quando o primeiro semestre do ano estava terminando, trouxemos para os estudantes diversas atividades para pensarmos a música instrumental, começando com um levantamento da compreensão dos alunos sobre o que é a música instrumental, e a opinião deles sobre a mesma. O retorno que tivemos dos alunos foi de um distanciamento geral com esse universo, que já era esperado. Ainda assim, a maioria se mostrou interessada em conhecer mais sobre o assunto. Além disso, conforme as discussões se desenrolaram, os estudantes se perceberam não tão distantes assim desse universo, pois a música instrumental poderia ter diversos gêneros e formas de apreciação, tal como o caso de música eletrônica para dançar, muzak para servir de música de fundo, Lo-fi também como gerador de um “clima”, 31 música orquestral servindo como trilha sonora, entre outros. Além desses exemplos, o professor convidou os alunos a refletirem sobre o fato de que no primeiro semestre os alunos já tinham tido uma experiência bem prática com a música instrumental, pois já havíamos montado uma “bateria de escola de samba” no carnaval. Depois desse momento de atestar a relação já existente dos estudantes com a música não vocal, buscamos aí sim conversar sobre e experimentar a apreciação de música instrumental, agora com o foco na escuta em si, tentando desassociar essa prática de fatores externos como os listados acima (música instrumental servindo como “pano de fundo” para algo). Com essa escuta em mente, passamos a ouvir peças majoritariamente de autores brasileiros, como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e Moacir Santos, buscando nos atentar a que tipo de acontecimentos poderiam capturar nossa atenção nesse contexto, já que não teríamos mais a letra como guia para ditar os significados desses sons. Nessas conversas discutimos elementos como a dinâmica gerando contraste na obra, a variação na instrumentação e produção da textura musical, o contraste entre momentos de rítmica mais lenta ou mais carregada, a repetição como elemento criador de coerência no discurso musical, a ideia da forma da música e a existência de seções contrastantes como forma de organizar uma esfera mais ampla do pensamento musical, diferenças entre o improvisado e o composto, entre outros. Todos esses elementos passaram então a povoar nossas conversas sobre canções que apreciamos, trazendo detalhes muito mais minuciosos à atenção dos estudantes nessas escutas e discussões. Em algumas aulas nos debruçamos sobre o trabalho de John Cage, o que disparou ideias e insights muito significativos. Em uma aula apreciamos a peça “4 '33”, que se trata de uma peça onde os músicos tocam durante a peça inteira a soma de uma grande quantidade de pausas em sequência. A versão que apreciamos se tratava de uma apresentação solo de um pianista. Inicialmente a escuta gerou respostas muito negativas, alguns riram da situação entendendo aquilo como pegadinha ou piada, outros se mostraram ansiosos para o “verdadeiro início” da canção. Após essa reação inicial, muitos se demonstraram atentos, buscando entender qual era a intenção do autor com essa peça bem como a intenção do professor trazê-la para a aula. Ao fim da escuta, a discussão se iniciou com alguns alunos questionando se aquilo era de fato música. O professor nesse momento buscou atentá-los a quais sons conseguiram ouvir 32 durante esses quatro minutos e trinta e três segundos, ao que os estudantes responderam que ouviram os sons da platéia, as mudanças de página do pianista, bem como os sons ouvidos fora do vídeo, na sala. O professor então buscou trazer a atenção aos sons que se encontravam fora do vídeo, indicando que na verdade essa música se trata exatamente do direcionamento da nossa escuta àquilo que normalmente buscamos ignorar como “ruído”, alguém tossindo na platéia, os sons da sala de aula bem como os da escola e arredores. Ao fim dessa discussão, a maioria dos estudantes estava convencida de que a peça era de fato música, o que foi um gatilho muito interessante para a busca de uma escuta mais sensível e atenta. Com esse levantamento feito, dedicamos algumas aulas para ouvirmos composições instrumentais e discutirmos sobre que tipo de elementos poderiam trazer interesse em uma canção sem letra, que normalmente nos serve de guia para compreender as músicas que ouvimos. Discutimos questões relacionadas à forma, importância da repetição na construção do discurso musical, criação de tensão e relaxamento para se ter uma sensação de direcionalidade nas obras, aspectos do arranjo e as possibilidades texturais e dinâmicas (é claro, que nem sempre se utilizando desses termos, nem muito menos restringindo as aulas apenas a discussões sem prática). Nesse mesmo período, também trazíamos exercícios diversos de improvisação musical, desde propostas com graus maiores de liberdade, até algumas mais definidas. Uma que se destacou dentre essas propostas mais abertas foi uma atividade na qual um grupo de estudantes se muniam de instrumentos musicais e se punham a olhar uma pintura abstrata, buscando então “tocar o que estavam vendo”, para no final, compartilharem com a sala suas escolhas de representação. Após uma rodada de improvisação livre com as imagens, foi proposto que os músicos combinassem entre si maneiras de dividir os papéis dentro do improviso, tendo as imagens como referência. O interessante aqui foi observar as maneiras distintas que cada um encontrava de representar uma informação visual e abstrata em música, atribuindo assim significados próprios aos sons, bem como a busca de explicar o inexplicável, como um certo som ou maneira de tocar poderia representar alguma parte da imagem que estavam visualizando. Além disso, também foi um bom 33 estímulo para os alunos conseguirem conversar sobre sua produção musical à sua maneira, e buscar entender a maneira particular de seus pares de se comunicar. Algo que me causou particular surpresa foi a naturalidade com a qual as crianças levaram uma proposta tão incomum, talvez por estarem habituadas desde menores com propostas inovadoras como esta, ou ainda pelo simples fato de serem crianças, que são geralmente mais abertas às propostas que necessitam mais imaginação. Também cheguei a considerar que essa facilidade se daria talvez também pela própria natureza de ambas turmas no contexto de nossas aulas de música, de muita abertura e aceitação. No final não consegui elaborar claramente o quanto cada um desses fatores levantados de fato contribuía para essa naturalidade com a qual a atividade foi executada, mas de qualquer forma, essa leveza atesta o quanto o ambiente no qual esse trabalho todo foi realizado se mostrou muito positivo, permitindo fluir a criatividade e florescer a parceria. Outra dessas propostas, que foi muito popular e frutífera, foi o jogo do “Maestro”. Nessa proposta, separávamos os alunos em dois grupos, um dos executantes e outro dos ouvintes, em que os ouvintes se sentavam numa roda grande na qual estava contida uma roda com os executantes. Na roda interna cada um portava um instrumento, exceto por um deles ao centro que atuava como regente, dando instruções de quando cada um dos músicos deveria começar a tocar ou parar, além da dinâmica (tocar mais alto ou baixo). A improvisação se desenrolava por alguns minutos, para no final discutirmos sobre o que capturou a atenção de cada um, para então o grupo de ouvintes trocar de lugar com os executantes. Nesse momento de conversa ao final de cada improviso o professor e eu salientávamos muito a importância de ser cuidadoso ao falar da produção dos outros, por se tratar de algo que pode ser muito sensível para cada um. Essa atividade se mostrou muito efetiva no sentido de levar a atenção dos participantes não apenas para o instrumento em suas mãos, mas também para a escuta do que os colegas estavam propondo, buscando tocar junto, ao mesmo tempo observando atentamente o regente, além de exercitar a escuta atenta e a capacidade de expressar suas opiniões de maneira cuidadosa e construtiva. A cada vez que realizamos a atividade, podia-se ver o quanto a prática e as conversas realizadas em sequência modificavam rapidamente a forma dos estudantes de participar desse momento, tanto no quesito de escuta quanto performance. Nas primeiras vezes, era 34 muito difícil de entender toda a soma de sons performados como uma estrutura com algum mínimo de unidade, porque a escuta de cada um era muito autocentrada, buscando apenas explorar possibilidades com o instrumento em suas mãos, muitas vezes se esquecendo até mesmo de prestar atenção ao que o regente propunha. Com algum tempo, isso foi se modificando, e o que passou a acontecer muito frequentemente era uma grande tendência ao uníssono na maioria das linhas rítmicas de cada estudante, quando alguém encontrava uma frase que cativasse aos outros. Já é uma mudança muito interessante, pois o foco já se mostrava mais globalizado do que antes. Quando a improvisação se dava mais desse jeito, a discussão então se dava no sentido de validar o uníssono como forma potente de textura, mas ainda assim os próprios educandos percebiam que não era essa a única possibilidade ao tocar em grupo, existindo também caminhos mais “contrapontísticos”, com motivos que complementam uns aos outros. A partir dessa percepção (o processo foi bem similar em ambas salas) o resultado sonoro das improvisações passou a ser extremamente rico, pois a tendência da desconexão total do material foi superada, e a tendência ao uníssono deixou de ser imperativa, dando espaço a uma forma mais fluída, com algumas vozes diferentes dialogando, com ainda algum espaço para uníssonos. Ou seja, se construiu nesse exercício um espaço onde o grupo agia mais como um, sem gerar, ao mesmo tempo, uma restrição à soma de outros sons e outras ideias. Ainda mais um exercício que se mostrou também muito potente, foi o “coro e improviso”, onde estabelecíamos uma frase rítmica para servir como “coro”, para então todos os estudantes escolherem um instrumento, e a cada oito tempos variávamos entre todos tocando o coro, para um momento onde cada um dos alunos executava um improviso que durasse os próximos oito tempos buscando respeitar o andamento. Nessa proposta, os estudantes precisavam vencer a vergonha de realizar um solo na frente de toda a sala, o que só era possível depois de estabelecermos nas aulas em geral um clima de respeito ao que os outros traziam de material sonoro. Após a realização dessa proposta, discutimos como o tempo “metronômico” (contado pelo professor baixo para as frases não ultrapassarem oito tempos) pode ser um elemento que une os músicos, pois ao tocar em um mesmo tempo e respeitando uma métrica, estamos todos dialogando com uma mesma estrutura global, e, portanto, de alguma forma, juntos. Essa atividade serve como 35 uma forma internalizar ciclos maiores presentes que constituem aquilo que denominamos forma em música, pois após algumas repetições do exercício com a atenção focada na contagem, esse “pedaço” de tempo começa a se tornar mais distinguível sem a necessidade de contagem. Algo que transformou-se muito nas diversas vezes que passamos por essa atividade foi a relação dos improvisos com o pulso geral da música, que no início não se relacionavam muito diretamente. Em nenhum momento as contagens foram totalmente estritas, como seria o caso se um metrônomo fosse usado, algo que acostumou os alunos à ideia de que existe um pulso subjacente que deve ser respeitado em alguma medida, mas que na prática tem uma certa flexibilidade, algum espaço de negociação. Essa noção auxilia muito a prática coletiva, porque é necessário que se acorde sobre um pulso compartilhado quando buscamos uma música ditada por métrica. Esse pulso por sua vez está sujeito a flutuações agógicas naturais de nossa execução técnica enquanto seres humanos, e saber balancear entre ceder a um tempo que se modifica, ou se manter firme em momentos para que os outros sigam sua ideia de tempo musical é uma habilidade crucial para se fazer música em grupos. Outro detalhe dessa negociação do tempo musical que emerge nessa prática é o quanto esse processo é diferente dependendo da quantidade de participantes, pois quando o coro está sendo realizado a negociação é quase inexistente, você acompanha o tempo da maioria dos executantes, enquanto que o tempo que o solista tem acaba sendo mais negociável, pois muitas vezes alunos adiantavam ou atrasavam os oito tempos, e o coro conseguia se adequar mais facilmente. Após todas essas improvisações, falamos em aula sobre as diferenças entre improvisação e composição, buscando entender as possibilidades de cada uma. Com essa conversa posta, partimos então para a divisão da sala em grupos de aproximadamente quatro participantes (escolhidos pelos alunos), para que cada grupo criasse uma pequena peça ou frase musical. Os resultados foram muito diversos, alguns grupos criaram frases rítmicas e as tocaram em uníssono, enquanto outros incorporaram alturas definidas e melodias em suas peças, outros também trouxeram frases complementares entre os diferentes instrumentos, dando a sensação de pergunta e resposta. Se tratou de um momento muito rico, pois o envolvimento com a atividade foi muito forte, os grupos demonstraram muito entusiasmo em sua realização. 36 Uma boa parte dessas frases e improvisos foram gravados, e esse material foi a base da peça final. Para se iniciar a composição em si, houve um trabalho por parte do professor e minha de revisão de todo o material que cada sala havia produzido, buscando motivos, frases e ideias musicais tanto das composições de grupos menores quanto das improvisações realizadas. Essa é a parte do processo na qual as crianças tiveram menor participação, pois buscávamos partes que se encaixassem nesse quebra-cabeça de materiais diversos, o que não caberia no tempo de aula que dispúnhamos. Todavia, esse processo de escolha e montagem do arranjo não era todo e completamente realizado por nós adultos, a cada aula que estávamos trabalhando no corpo da composição trazíamos trechos selecionados e nossas ideias preliminares de como unir os fragmentos, mas nunca uma decisão era tomada sem o consentimento da sala, ou pelo menos da maioria da mesma. Na verdade, o único elemento que os alunos realmente não tiveram voz foi na escolha da harmonia subjacente, pois não dispusemos de tempo de elaboração sobre o assunto nesse projeto, algo que foi lamentado. A estrutura geral do projeto para ambas salas era a mesma, mas como era de se esperar os dois processos tiveram suas especificidades. Em uma sala logo de cara nos deparamos com a dificuldade de encaixar frases com fórmulas de compasso distintas, ou melhor, encaixar uma frase polimétrica muito interessante (onde o piano tocava arpejos em 3⁄4 e os instrumentos percussivos, tocavam concomitantemente em 4/4, causando defasagens) no contexto mais regular que facilita a execução e compreensão para os estudantes. A dificuldade foi superada transformando a frase em ¾ em 4/4, adicionando no último tempo uma pausa. Por outro lado, nessa sala também encontramos mais facilidade de unir frases que por acaso conversavam mais. Nessa sala houve mais necessidade de mudanças de tonalidades por conta das frases melódicas vindas do piano com diversos acidentes (diferente dos metalofones e xilofones que só continham notas naturais nas atividades anteriores). Para isso buscamos saídas que impunham dificuldades técnicas diversas, como a troca de teclas dos metalofones e encaminhamento melódico diferente no xilofone (por conta da ausência de uma tecla G# no xilofone). Essas dificuldades técnicas foram extremamente estimulantes para os estudantes, 37 que propuseram saídas como a alternância do piano e os metalofones entre frases, para haver tempo da troca das teclas. Além das frases já compostas e improvisadas, sempre houve espaço para a criação no momento dos ensaios em que pensávamos o arranjo conjuntamente, tendo um exemplo muito satisfatório quando um grupo de meninas, cada uma com dois sinos afinados criaram uma frase melódica linda, que acabou se tornando motivo muito importante na composição, aparecendo no começo e final da peça. Criamos uma anotação para guiar tanto os alunos quanto eu e o professor, que estava ao violão enquanto eu ajudava regendo os alunos. 38 Figura 1- mapa da música da sala A Fonte: Arquivo Pessoal Essa forma de anotar os acontecimentos servia de guia para os alunos e para nós também, sendo geralmente nos ensaios projetada em um datashow para 39 referência. Não se trata de uma linguagem especialmente bem desenvolvida, sendo indicadas as ordens das entradas de cada instrumento, juntamente com a quantidade de repetições de cada ciclo. Boa parte da informação musical dependia da memória, sendo apenas algumas vezes possível consultar os registros que dispúnhamos das frases. Ainda que rudimentares, os registros podemos retirar daqui elementos que foram discutidos em aulas aparecendo materialmente na música final, todos os momentos que a palavra “corte” aparece representa o início de uma seção contrastante ao que vinha acontecendo. A peça se inicia com muito poucos alunos tocando frases de pergunta e resposta entre agogô e surdo, para então uma melodia uníssona tocada pelos instrumentos melódicos (piano e metalofones), sendo então cortada pelo som do carrilhão. O violão então traz uma nova batida, que se encaixa melhor com a segunda frase melódica apresentada pelos sinos e xilofone. Mais um corte é feito, a tensão rítmica vai se acumulando até um ponto que o violão muda o acompanhamento mais uma vez para algo mais ligeiro, acompanhado então apenas por elementos percussivos de maior intensidade, na entrada das caixas e do cajón, para então se dar uma mudança drástica de intensidade no sentido do muito piano, para a música então se encerrar reapresentando as melodias que já tinham aparecido, desta vez justapostas. Nesse sentido, as discussões sobre forma musical foram muito apreendidos, pois o efeito desse final não se dá por conta de variações e novidades, e sim, uma forma de valorizar os elementos que já haviam sido construídos e apresentados. Além disso, uma discussão que se desenvolveu muito na segunda sala foi sobre como o silêncio ou a pausa recontextualizam a nossa percepção dos sons, sendo peça fundamental da organização do discurso musical. Na segunda sala, a dinâmica era um pouco mais caótica, os alunos conversavam muito mais, entretanto se tratava de uma sala com muita energia e um potencial criativo fenomenal. Tanto era assim que muitas frases e fragmentos extremamente expressivos foram deixados de fora da composição final, pois era difícil criar coerência entre tantas ideias contrastantes. Algo que foi muito interessante no processo dessa sala foi a escolha dos instrumentos, pois os estudantes se sentiram muito livres de trazer sugestões que fugiam um pouco da forma como propúnhamos. Um aluno trouxe sua flauta doce 40 que foi uma adição incrível timbrística, enquanto uma aluna se dispôs a ajudar sua amiga (que não tinha muita experiência com o piano) a aprender as melodias ao piano, enquanto nós adultos auxiliávamos outros alunos com suas questões. A mais polêmica das escolhas de instrumentos veio na forma de um aluno que decidiu que a voz seria seu instrumento, o que estava totalmente de acordo com as discussões que fizemos sobre a possibilidade de a voz ser utilizada como instrumento, se ela se utilizasse de sons que não formavam palavras. Essa escolha acabou trazendo diversas questões, porque o menino não tinha nenhum estudo prévio de técnicas vocais, nem uma percepção muito acurada de afinação. Por conta disso, as outras crianças tinham reações muito negativas, rindo ou dizendo para mim que ele estava “estragando” a música. Esse foi um momento que foi necessário conversarmos outra vez sobre o cuidado com o jeito que falamos e nos portamos em relação à produção dos outros. De certa forma essa conversa em minha opinião foi de extrema relevância, pois foi possível através dela que os outros estudantes também se sentissem mais confortáveis com os próprios erros, relembrando-os que esse era um espaço seguro e de experimentação. Por um outro lado era inegável que a vocalização do menino acabava destoando dos outros instrumentos, especialmente se considerando o fato de que esta era uma das únicas coisas microfonadas, já que a voz dele não aparecia com clareza em meio aos outros instrumentos. Nesse sentido a preocupação que eu e o professor apresentamos era de o aluno acabar se expondo de maneira negativa quando chegasse de fato o momento da apresentação. Para resolver a questão, eu me separei do grupo para tentar achar junto a ele formas articulatórias que facilitassem sua emissão, bem como dessem um caráter mais musical para a entoação, além de praticar exercícios de percepção de altura e afinação ao executar as frases propostas. Para além disso, passamos o professor e eu a cantar junto a ele nos ensaios, para que tivesse uma referência vocal, bem mais próxima que a referência instrumental que não estava bastando a ele. Ao final chegamos a um mapa da composição com este caráter: 41 Figura 2- Mapa da música da sala B Fonte: Arquivo Pessoal 42 Semelhante à outra sala, a instrumentação se inicia nessa peça enxuta, apenas uma frase no agogô, para então elementos como os surdos e o violão irem se unindo à textura. Nesse momento a primeira melodia principal aparece, primeiro nos metalofones, depois na flauta, e por fim no piano. Nesse momento há uma pausa e aquilo que chamamos de texturas soava (instrumentos diversos que não foram usados ritmicamente, mas sim como efeito sonoro, tal como molhos de sementes ou um tambor de mola). O violão então muda a forma de conduzir e os acordes, para então a segunda melodia ser apresentada, dividida entre sinos e metalofones junto com a voz. Nesse momento uma convenção rítmica bem contrastante e marcada é tocada, assemelhando-se muito ao tipo de construção musical presente no jogo que trabalhávamos de coro e solo. Após isso, o cajón puxava uma levada que iniciava um momento de samba rock. Pode-se observar aqui a influência que os toques da escola de samba tiveram sobre os alunos, onde vários fragmentos das frases estudadas surgiram na composição, entretanto com nuances diferentes, como se o vocabulário desse estilo estivesse mais introjetado a essa altura, não mais meramente repetitivo. O primeiro tema é então reapresentado, com uma base rítmica mais robusta, para terminar então a música com uma virada nas caixas e cajón. Durante ambos os processos, a capacidade musical dos alunos se desenvolveu em muitos sentidos, tanto como grupo, como individualmente. Por mais que o foco das aulas não tivesse como ser muito grande em cada participante, muitas das frases eram tocadas por grupos de instrumentos em coro e não solistas, fazendo com que se alcançasse alguma estabilidade que incentivava a melhora técnica individual. Os casos em que alunos faziam algum tipo de solo foram, no geral, um pouco mais treinados em particular quando necessário, sendo que a maioria que se propôs a tocar partes individuais também compreendeu que devia buscar sua melhora técnica individualmente. Podemos observar esse ocorrido com a criança que optou por cantar, que conseguiu melhorar sua execução muito, mesmo com questões de dificuldade de percepção de altura inicialmente muito acentuadas. Em registros feitos da segunda sala também podemos observar a diferença da montagem inicial do samba rock, onde o cajón fazia o papel de tocar os acentos de uma clave de samba, onde, ao início dos ensaios, se mostrava algo muito confuso, 43 no resultado final se mostra como uma base rítmica sólida, sobre a qual todos os outros elementos se organizam com muito mais fluidez e facilidade. 44 9. Conclusão Ao meu ver esse processo foi extremamente válido e instigante, pois a participação dos alunos foi sempre muito engajada, mesmo se tratando de um universo novo para a grande maioria deles. O ambiente se mostrou cada vez mais acolhedor, e, consequentemente, cada vez mais criativo e potente. A característica específica de se tratar de grupos muito grandes para a colocação de todos de maneira expressiva no projeto não é das mais ideais, como muitos autores buscam definir. De qualquer forma, deste formato também emergem elementos próprios, como por exemplo, a escuta se mostra ainda mais crucial, e a regulação interna que os discentes foram aprendendo a ter da sua própria vontade de fazer sons a todo momento, visto que com aproximadamente vinte crianças por sala, a massa sonora quando cada uma resolvia tocar seu instrumento era enorme. Acredito que a maneira de introduzir todos os estudantes ao universo mais prático, antes de qualquer questionamento, tocando improvisadamente de diversas maneiras, com muita liberdade em um primeiro momento foi de extrema importância para se criar uma relação muito direta com os instrumentos e o ritmo no geral. A partir dessa experimentação nossas discussões se tornaram verdadeiramente vivas, bem como a escuta de outros sons, pois a sensibilidade passa a se fazer muito presente quando temos tanto uma experiência prática unida a uma reflexão sobre um objeto estético como a música. A ordem na qual as atividades foram realizadas foi nesse sentido muito boa, pois as crianças entraram primeiro em contato com um universo muito prático do fazer musical, para depois se depararem com questões sobre essa prática, ressignificando-a, para depois voltar a manipulá-la com novos olhos (ou ouvidos). A ideia de que a composição emergiu tanto de frases que vieram de improvisos quanto de frases compostas com mais tempo, fez com que o processo fosse muito dinâmico, sem termos de lidar com a criação de cada trecho em uma grande discussão, o que poderia ser desgastante. A condução do processo foi assim muito bem pensada e realizada, se formos analisar pelo ponto de vista de Swanwick, pois primeiro o processo foi prático e exploratório, para, ao longo do tempo, ir adquirindo uma valoração diferente. Podemos também dizer pelo prisma de Schafer que a escuta desses estudantes se transformou muito, pois ao final do semestre as discussões sobre tanto os jogos musicais propriamente ditos, bem 45 como a composição que foi produzida se transformaram imensamente. A partir dos jogos e do jogar com a própria música que todo esse aprendizado foi possível, também em consonância com a forma de Brito pensar a educação musical. . Podemos observar que o desenvolvimento musical prático do grupo foi muito pronunciado, sendo visível a mudança na capacidade de execução dos alunos, seja como grupo de instrumentistas, bem como de compositores. É nesse âmbito que eu acredito que a composição como forma de ensino se mostra muito potente, pois ao aprender a compor dessa maneira, a própria criação movimenta outros conhecimentos musicais e sócio-afetivos, porque precisamos ser capazes de ouvir aquilo que estamos criando, bem como imaginar soluções para problemas técnicos, se comunicar, tudo a fim de trazer ao mundo algo que valha a pena ser ouvido. Em suma, o projeto todo serviu de afirmação do quanto a experiência musical vivida de maneira compartilhada em um ambiente acolhedor e que aceite a diversidade de ideias e maneiras de tocar produz resultados tanto práticos do desenvolvimento musical de um grupo, quanto funciona como uma forma de socialização que pode ser muito positiva. Vale notar aqui que se tinha um contexto muito favorável para o desenvolvimento das atividades, tanto uma escola equipada com diversos instrumentos, uma sala dedicada somente à aula de música, estudantes que já tinham contato com a música desde cedo, etc… Esses elementos não são nada fáceis de se encontrar em um país desigual como o Brasil, o que é uma pena, visto que esse tipo de aprendizagem pode ser, tal como foi, muito significativa. Não significa também dizer que experimentos semelhantes não possam se desenvolver em ambientes talvez menos propícios, sim que haverá mais desafios. 46 Referências BEINEKE, Viviane. A composição no ensino de música: perspectivas de pesquisa e tendências atuais. Santa Catarina, Abem 2008 BEINEKE, Viviane e ZANETTA, Camila Costa. “Ou isto ou aquilo”: A composição na educação musical para crianças. Goiânia, 2014 BRITO, Teca Alencar de. Um jogo chamado música: Escuta, experiência, criação, educação. 1. ed. São Paulo: Editora Peirópolis, 2019. 200 p. CRISTOVÃO, Andrey e WEINGÄRTNER, Daniela. A composição musical como ferramenta pedagógica: relatos sobre a prática de Estágio. XXVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, Belo Horizonte. 2016. 7 p. FONTERRADA, Marisa Trench de Oliveira. De tramas e fios: Um ensaio sobre música e educação. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2008. 364 p. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 30. ed. São Paulo: Editora Paz e terra S/A, 2004. 148 p. SCHAFER, Murray. O Ouvido pensante. 2.ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011. 392 p. SWANWICK, Keith e FRANÇA, Cecília Cavalieri Composição apreciação e performance na educação musical: teoria, pesquisa e prática. Rio Grande do Sul. 2002 SWANWICK, Keith. Ensinando música musicalmente. 1. ed. São Paulo: Editora Moderna, 2003. 128 p. WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido. 2.ed. São Paulo: Editora Schwarcz, S.A.,2014.286 p.