Miscelânea, Assis, v. 12, p.59-72, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 59 4 ______________________________________________________________ OS ESTUDOS CLÁSSICOS NO BRASIL COLONIAL: UMA BREVE PROPOSTA PARA A REINTRODUÇÃO DE UM ASSUNTO Classical Studies in colonial Brazil: a brief proposal for the reintroduction of a topic Alessandro J. Beccari 1 Cláudia V. P. Binato 2 RESUMO: Este artigo quer reintroduzir, de forma sucinta, um assunto hoje pouco estudado no país: a história dos estudos clássicos no Brasil Colonial. Como introdução a esse assunto complexo, pretende-se uma visada histórica do ideal de humanitas nas academias do séc. XVIII. A presença desse ideal nas academias é vista como consequência da formação clássica do povo brasileiro, tendo-se em conta que essa formação começa com a vinda dos jesuítas em 1549 e 1553. Em nossa discussão, faremos uso das ideias de Dante Tringali (1994), Fernando de Azevedo (1958), Antônio Cândido (1977), José Aderaldo Castello (1969), entre outros. PALAVRAS-CHAVES: Estudos Clássicos; Brasil Colonial; Academias; Humanitas. ABSTRACT: This paper wishes to reintroduce, in a brief manner, a subject which has been neglected in the recent past: the history of Classical Studies in colonial Brazil. As an introduction to this complex issue, it aims at a historical review of the ideal of humanitas in the Academias of the eighteenth century. The presence of this ideal in the Academias is seen as a result of the classical education of the Brazilian people, a process which begins with the arrival of Jesuit missionaries in 1549 and 1553. In our discussion, we shall use the ideas of Dante Tringali (1994), Fernando de Azevedo (1958), Antônio Cândido (1977), José Aderaldo Castello (1969), among others. KEYWORDS: Classical Studies; Colonial Brazil; Academias; Humanitas. INTRODUÇÃO Como maneira de introduzir uma discussão histórica a respeito da presença do ideal de humanitas nos estudos clássicos no Brasil colonial, convém fazer uma síntese historicamente embasada desse valor, 1 Doutor, Faculdade de Ciências e Letras de Assis / UNESP. 2 Doutora, Faculdade de Ciências e Letras de Assis / UNESP. Miscelânea, Assis, v. 12, p.59-72, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 60 já que entendemos que, a partir de uma visada histórica da interpretação que os intelectuais brasileiros fizeram do conceito de humanitas, como valor clássico ideal, pode-se buscar uma primeira abordagem da permanência e do desenvolvimento dos estudos clássicos no Brasil nos séc. XVI, XVII e XVIII. SÍNTESE HISTÓRICA DO CONCEITO DE HUMANITAS Pela divisão tradicional da História Universal, o período entre o século XV e o XVIII d.C. está incluído na Idade Moderna. Embora essa seja uma divisão artificial (LE GOFF, 2005), esse período caracteriza-se pela popularização de importantes invenções como a caravela, a bússola, o astrolábio; pelo desenvolvimento da cartografia e das escolas de navegação; pelas descobertas marítimas (a Ásia, a África e as Américas); pela Reforma protestante e a Contrarreforma católica; pela fundação da Companhia de Jesus; pela Renascença. No plano socioeconômico, de um modo geral, houve mudanças que se intensificaram: o desenvolvimento comercial; uma maior importância e prosperidade das cidades; a ascensão da burguesia como classe social dominante; as principais nações europeias se consolidam e se fortificam ao serem estimuladas pelo mercantilismo e pelo colonialismo. No plano político, ocorre a centralização do poder, que resultou na formação do Estado moderno. No plano cultural, as transformações manifestam-se na literatura, nas artes plásticas, na filosofia que pende entre Aristóteles e Platão e nas ciências naturais que encontram o seu caminho. Contudo, durante essa mesma época, no plano intelectual, em que se nota um afastamento dos valores medievais, busca-se voltar à Antiguidade Clássica por intermédio de um interesse na cultura grega e latina, principalmente no que tange à revalorização das letras clássicas (GILSON, 1998). A retomada dos estudos clássicos torna-se a principal razão da Renascença 3 . As duas principais vertentes do Renascimento são o humanismo, de expressão filológica e filosófica e o classicismo, de expressão artística. O processo histórico do Renascimento concebe o humanismo como um ideal de formação: o Homem deve atingir o máximo de seu 3 Caracteriza-se como um fenômeno histórico, surgiu na Itália, século XIV, e difundiu-se para todo o mundo. O Renascimento atinge seu esplendor nos séculos XV e XVI. Miscelânea, Assis, v. 12, p.59-72, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 61 desenvolvimento, de seu potencial, sempre por meio de um processo educativo, para se alcançar um modelo de perfeição de ordem ética, estética e social. O ser humano se distingue e se define, então, pela sua racionalidade, por sua sociabilidade e, sobretudo, pela sua maneira de falar. Nesse sentido, o humanismo prioriza os estudos da linguagem, especialmente a gramática e a retórica antigas. Sobre todos os assuntos concernentes ao homem, o importante era usar a linguagem com perfeição, ou seja, falar em uma língua bem elaborada, bem acabada. Daí a elaboração de uma concepção quintiliânica da educação linguística, que é fundamental para o entendimento das gramáticas das línguas vernáculas que surgem a partir do séc. XV e XVI (ESPARZA TORRES, 1995). Observa-se, deste modo, uma imitação do ideal almejado na Antiguidade Clássica, em que se cultivam as duas línguas tidas como mais humanizadoras: o latim e o grego, em oposição às demais línguas chamadas bárbaras. Embora o domínio das línguas clássicas, consideradas como propagadoras de uma alta cultura voltada para o homem seja essencial para o entendimento dos esforços intelectuais desse período, ressalte-se que essa foi igualmente a época da valorização dos vernáculos, em que se desenvolvem não só as primeiras gramáticas das línguas não clássicas, mas também a literatura épica em línguas vulgares: a Commedia, de Dante, Os Lusíadas, de Camões, são exemplos maiores da adaptação das línguas novilatinas ao modelo virgiliano (Eneida). Nesse sentido, se estudar o latim e o grego, recuperar os manuscritos que jaziam escondidos durante toda a Idade Média, nas velhas bibliotecas dos monastérios, valorizar os textos escritos nas mais perfeitas línguas ocidentais, além de divulgar a visão do mundo que neles está contida, é proposta do Renascimento (TRINGALI, 1994, p. 45), haverá, entretanto, na cultura Renascentista, um momento de autossuperação do humanismo em que as línguas vernáculas alcançarão seu estatuto de independência. A Renascença, influenciada pelas ideais platônicos do proto- humanismo italiano, vincula definitivamente a arte e o belo. A arte não se caracteriza como pura criatividade, mas como imitação (mímesis) do que é belo: o perfeito, o harmonioso, o verdadeiro e o bom. O classicismo é o aspecto artístico da Renascença 4 e compreende uma estética e uma 4 Compreende-se o classicismo italiano - século XV e XVI, sofrendo já, na segunda metade do século XVI, a contestação maneirista e, no século XVII, o desvio barroco — e o classicismo francês — século XVII. Alguns artistas clássicos, representantes da Renascença: Leonardo da Vinci (1452-1519), Miguel Ângelo (1475-1564), Rafael Sanzio (1483-1520), V. Tiziano (1490-1576), S. F. Botticelli (1445-1510), L. Ariosto (1474-1533), Miscelânea, Assis, v. 12, p.59-72, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 62 poética racionalista, com o predomínio da razão sobre o sentimento e a fantasia. O termo classicismo (clássico + ismo) deriva do adjetivo latino classicus, formado do substantivo classis = classe social (TRINGALI, 1994, p. 46). Entre outros critérios, a sociedade romana era estratificada, segundo a riqueza de cada um. À primeira classe pertenciam os romanos mais opulentos. Assim, classicus qualificava alguma coisa, tida sempre como a melhor, já que se referia a esta classe de ricos senhores. Para os humanistas, “clássico” significava, no sentido etimológico da palavra, o ideal greco-romano de qualidade, em contraposição a “medieval” e a “bárbaro” (gótico). Aulo Gélio (século II d.C.) usou a expressão classicus auctor, nas aulas escolares, para designar os escritores de primeira classe, ou seja, os melhores, os perfeitos. A finalidade do placēre et docēre (agradar e educar) era assegurada pela imitação desses autores-modelos, em cujas obras havia a preocupação tanto com a natureza estética, como também com a ética 5 . O conceito de antiguidade se torna um critério de valor, à medida que o termo clássico, independente de época histórica, assume um sentido geral como categoria crítica referente a um escritor modelar e consagrado. Horácio (em sua Epístola 2, 1) sintetiza a definição de clássico não pelo seu aspecto histórico e temporal, mas por aquele da perfeição da arte. Assim, a antiguidade grega e latina é considerada em seu conjunto como clássicas — antigas, embora só uma parte de cada uma delas seja realmente clássica — por excelência 6 . A partir do século III a.C., a palavra humanitas, derivada do adjetivo humanus, começou a estar em voga entre os escritores romanos (CONTE; PIANEZZOLA, 2004, p. 109-10). As acepções em que o Renascimento anseia tomar esta palavra verificam-se principalmente em N. Maquiavel (1469-1527), Erasmo de Roterdã (1469-1536), J. Racine (1639-1699), Molière (1622-1673), J. de la Fontaine (1621- 1695). 5 A correspondência exata entre o pensamento e a expressão forma a doutrina clássica, sobretudo, no que diz respeito às obras de arte da antiguidade grega e latina, consideradas perfeitas e modelares; é o caso, por exemplo, de alguns textos teóricos, como os diálogos de Platão, a Poética e a Retórica de Aristóteles, a obra de Cícero, de Quintiliano e, particularmente, a Arte Poética, de Horácio. 6 “Rigorosamente, o classicismo grego vai de Péricles até à época de Alexandre e o classicismo latino vai de Cícero até aos inícios da era cristã. Todavia, a Renascença toma, como modelo, a antiguidade grega e latina em toda sua extensão, compreendendo épocas não-clássicas, o que explica as contradições internas. Imita-se, ao mesmo tempo, Cícero e Sêneca. Em filosofia, convivem entre si platonismo, aristotelismo, epicurismo, ceticismo, neoplatonismo” (TRINGALI, 1994, p. 46). Miscelânea, Assis, v. 12, p.59-72, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 63 Cícero. Segundo Conte e Pianezzola (2004), Cícero enquadra a humanitas em um sistema de valores corteses, baseado na correção e na elegância até mesmo formal das relações interpessoais: a humanitas aparece em seus escritos ao lado dos valores da gentileza e da civilidade, tais sejam: facilitas (“disponibilidade”), mansuetudo (“mansidão”), clementia (“indulgência”), suavitas (“charme”), moderatio (“moderação”). Portanto, humanitas, para Cícero, é um valor ligado ao convívio entre indivíduos que se unem por sentimentos e interesses comuns. Em sentido amplo, no ideário romano, o conceito de humanitas abranje valores que vão desde a compreensão e da benevolência para com o outro, em sua essência de pessoa humana (em contraposição aos outros seres), até a elegância e o bom gosto nas relações interpessoais (CONTE; PIANEZZOLA, 2004, p. 915). Em Cícero, a qualidade da humanitas dignificava os homens, a ponto de se tornarem mais úteis uns aos outros e essa qualidade poderia ser desenvolvida no espírito por meio do estudo das letras. O cultivar a cortesia, a afabilidade e a benevolência refletia pessoas bem-educadas e, acessíveis no trato, de convívio social evoluído. Dessa forma, um dos significados mais nobres para o vocábulo é o de cultura 7 , no mesmo sentido do grego paideia. Ser culto é ter distinção, nobreza intelectual. OS ESTUDOS CLÁSSICOS NO BRASIL DO SÉC. XVI AO XVIII Depois da síntese histórica de humanitas como valor na cultura romana apresentada nos parágrafos anteriores, passemos agora a uma revisão histórica desse mesmo valor no seio da intelectualidade brasileira do séc. XVIII. Como dissemos no princípio deste artigo, essa breve revisão do ideal de humanitas nos servirá de veículo para uma primeira aproximação do desenvolvimento dos estudos clássicos no Brasil colonial. Nesse sentido, nos parágrafos a seguir, faremos um histórico dos primeiros momentos da literatura brasileira para identificar os contextos em que nela surge o ideal de humanitas. Os europeus que viveram no Brasil dos séculos XVI e XVII realizaram um tipo de literatura que Castello chama “literatura informativa sobre a terra” (1969, p. 31). Essas informações constituem as primeiras manifestações literárias da Colônia brasileira. Tais manifestações se limitavam a relatos de viajantes, jesuítas e cronistas portugueses e inventariavam diversos aspectos da sociedade a ser 7 Expressão da superioridade do espírito. Ser culto é ter distinção, nobreza intelectual. Miscelânea, Assis, v. 12, p.59-72, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 64 colonizada 8 . Ao lado dessas crônicas informativas, aparecem também outras modalidades literárias, como a poesia lírica e épica, a prosa edificante, realizada através da oratória sacra e do teatro jesuítico, de cunho pedagógico e catequético 9 . A sociedade que aqui existiu, nos primeiros séculos de conquista, de colonização e, particularmente, no século XVIII, cultivava o caráter clássico-humanístico. A vinda dos padres jesuítas, em 1549 e 1553, marca o início da história da educação clássica brasileira. O vasto sistema de educação 10 a ser implantado pressupõe o início da formação cultural, desenvolvida nos tradicionais moldes clássicos e que se foi ampliando, progressivamente, com a expansão territorial do domínio português. O Brasil recebera, além da língua vulgar ou corrente dos colonos lusitanos, também a língua culta dos jesuítas, como instrumento dos ensinamentos religiosos e expressão de uma literatura que já possuía raízes e tradições na Metrópole. Assim, por mais esta razão, houve o predomínio da cultura clássica, ou do classicismo, como base de nossa literatura colonial. Esses educadores pertenciam à ordem religiosa dos padres Jesuítas chamada Companhia de Jesus, fundada recentemente por Inácio de Loyola, para promover a reorientação da cultura europeia católica, preservando sua herança clássica tradicional. A Ratio Studiorum 11 , que 8 Literatura informativa: são textos documentais que referem as condições de vida e a visão de mundo dos colonos portugueses em seu processo de ocupação e exploração da terra recém descoberta. Além de descrever hábitos e costumes indígenas, narram a nova terra com uma visão superlativa, ufanista, exaltando a exuberante variedade da flora e fauna. A ótica predominante é a da euforia, derivada da perspectiva de posse e exploração de matéria-prima, segundo a qual o Brasil parecia ter sido feito para ser desfrutado pelos europeus. Entre os textos de origem portuguesa destacam-se: a Carta (1500), de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel; o Tratado da Terra do Brasil (1537, editado em 1826) e a História da província de Santa Cruz, a que Vulgarmente chamamos Brasil, ambos de Pero de Magalhães Gandavo; o Tratado Descritivo do Brasil (1587), de Gabriel Soares de Souza e os Diálogos das Grandezas do Brasil (1618), de autoria atribuída a Ambrósio Fernandes Brandão. 9 Literatura formativa: realizada pelos jesuítas em sua missão de educar o índio e impedir o desmoronamento moral do colono português. Esta manifestação literária consistia, basicamente, em produzir textos didáticos, religiosos e morais. Durante muito tempo, estes textos foram a única forma de desenvolvimento cultural do país, pois os jesuítas detinham o monopólio da educação, reunindo em suas escolas os curumins e os meninos dos colonos para serem espiritualmente formados e culturalmente educados. 10 Educação literária, de fundo religioso, organizada sob as influências e consequências das lutas da Reforma e da Contrarreforma, para a propagação da fé. 11 A Ratio Studiorum regulou cursos, programas, métodos e disciplinas das escolas da Companhia e sintetizou a experiência pedagógica dos jesuítas. O saber era sistematizado e Miscelânea, Assis, v. 12, p.59-72, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 65 adota o aristolelismo, e a Inquisição 12 foram os instrumentos utilizados para a conquista dos objetivos da Companhia, a qual, nos fins do século XVI, dispersava-se, na Europa, em missões de combate à heresia e, além dos mares, à difusão da fé e do Evangelho. Essa educação, em princípio, tinha por objetivo ensinar a “ler, escrever e falar o português”. Posteriormente, conforme o plano de estudos da Ratio Studiorom, a educação consistia nos ensinamentos de gramática latina, da doutrina cristã e mais tarde da filosofia escolástica, das humanidades e da retórica, com o predomínio do latim 13 . A formação superior era orientada para “o cuidado da forma, o adestramento da eloquência e o exercício das funções dialéticas do espírito” (AZEVEDO, 1958, p. 44). Os colégios jesuíticos, no Brasil, eram primordialmente seminários religiosos e excepcionalmente, por caridade, é que aceitavam estudantes leigos para os cursos primários. Logo, todo currículo de estudos era organizado coerentemente para uma educação moral e religiosa. É nessa ordem de consideração que se deve entender a natureza dos cursos denominados Humanidades. A herança clássico-humanística, e escolástica, adquirida dos jesuítas vai formar na Colônia, em meados do século XVII, uma cultura de elite, constituída por uma pequena aristocracia de letrados, eruditos, futuros teólogos, padres, juízes, magistrados, desembargadores, escritores, poetas e oradores. Todos estudiosos, instigados, principalmente, pelos títulos acadêmicos e pela ânsia de ascensão social. A cultura intelectual difundida no Brasil situava-se ao nível das faculdades de teologia medievais. Assim, durante o período colonial, não havia ensino superior, com exceção das carreiras eclesiásticas. As primeiras escolas de engenharia e medicina, entre outras, seriam criadas dez anos após a mudança da corte de D. João VI (1808) para o Rio de Janeiro. A criação de uma universidade, stricto sensu, seria cogitada logo depois da independência, por iniciativa de José Bonifácio de Andrada e fundamentado na teologia, seguindo São Tomás de Aquino na filosofia, apreendida de Aristóteles. 12 Denominada oficialmente Tribunal do Santo Ofício tinha a missão de zelar pela integridade da fé. Tratava-se de uma instituição tipicamente medieval, com amplos poderes em relação à privação da liberdade religiosa. Em Portugal, foi restaurada em 1540, como parte da luta da Igreja Católica contra os protestantes. 13 O latim constituía o vínculo de unidade europeia e também de transmissão de toda cultura superior. Desempenhou papel fundamental como elemento de comunicação de ideias e ideais entre os eruditos e intelectuais. Miscelânea, Assis, v. 12, p.59-72, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 66 Silva (1763-1838), saído da universidade pombalina nas últimas décadas do século XVIII. Como a formação intelectual que os alunos recebiam, nos colégios e seminários, era exclusivamente latina, o desenvolvimento das atividades literárias e acadêmicas, que vai perdurar até o movimento academicista do século XVIII, seria igualmente pautado pelas humanidades clássicas. Pelos costumes e ideais de então, pretendeu-se manter o latim ainda erguido à categoria de língua universal da época e sustentar nos homens o fascínio pelas letras clássicas, para a transmissão do valor ideal clássico da humanitas. Entre os poetas e os prosadores, a produção poética escrita no Brasil, nesse idioma, vem comprovar o legado dos jesuítas no conjunto formador da cultura brasileira e com ela os primeiros alentos da literatura. A poesia latina escrita por brasileiros, ou por literatos radicados no Brasil, já despontava, no século XVI, ainda que de maneira restrita. Nos dois séculos posteriores, exímios latinistas entre os quais Pe. José de Anchieta, Pietro Angelo Spera 14 , Manuel de Lima 15 e Pero Rodrigues 16 valorizaram a língua de Cícero em suas obras. José de Anchieta, que foi figura verdadeiramente venerável, além da produção literária em português, castelhano e tupi-guarani, apresenta, no elenco de suas composições, vários escritos em latim. Ao lado de sua operosidade no campo missionário, na catequese e no magistério, compôs com vivo e raro engenho muitas obras poéticas, sobretudo as composições latinas, em toda sorte de metro. Na poesia do Pe. José de Anchieta destaca-se o texto De Beata Virgine Dei Matre Maria, poema elegíaco, com 5.786 versos, publicado pela primeira vez em 1663, pelo Padre Simão de Vasconcelos. Nesta 14 Autor de Paixão de Nosso Senhor Jesus Christo escripta com versos de Virgilio pelo Padre Pietro Angelo Spera, apresentada pelo Reverendo Padre Giovani Dulcetti, traduzida por Monsenhor João Onofre de Souza Breves. Rio de Janeiro, Dias da Silva Júnior Tipographo Editor, 1884. 15 A poesia latina de Manuel de Lima, S. J. (1554-1620) encontra-se no Códice 994, f. 470 v., da Biblioteca da Universidade de Coimbra. Juntamente com o Códice 993, constituem o 2º e o 5º tomos da coleção Rerum Scholasticarum, quae a Patribus hujus Conimbricensis Collegii Scriptae sunt. 16 Pero Rodrigues, S. J., (1542-1628), administrador, pregador e cronista. Autor de “Ad Reginam” e “Ad Divae Elizabethae insignibus...”, que fazem parte do Códice 993. F. 105 v. e f. 106, da Biblioteca da Universidade de Coimbra. Miscelânea, Assis, v. 12, p.59-72, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 67 obra, Anchieta narra, em linguagem bíblica e litúrgica, na língua latina, a vida e as glórias da Virgem Maria 17 . Elencados ainda no rol de sua produção de poemas latinos encontram-se, entre outros, De Gestis Mendis de Saa, Praesidis in Brasilia (epopéia clássica latina, em versos hexâmetros, que narra os feitos de Mem de Sá) e o Poema epicum (original acompanhado de introdução, versão e notas do Pe. Armando Cardoso). A Companhia de Jesus no Brasil 18 , fiel à tradição de sua cultura clássica e as suas preocupações de ordem espiritual, formou basicamente clérigos e letrados. Pouco interesse havia, por parte dos estudantes, pelas ciências físicas e naturais ou pelas atividades técnicas e artísticas. Formaram-se cronistas, historiadores, poetas e oradores, todos ativos participantes da incipiente sociedade literária da Colônia. Uma infinidade de obras, escritas tanto em vernáculo, como também em latim, compõem os primórdios da história da cultura brasileira. Somente no século XVIII, a educação, de certa maneira, se populariza verdadeiramente, espalhando nas novas gerações a mesma fé, a mesma língua e os mesmos costumes. Foi então que começou a ser forjada na unidade espiritual, difundida sob a influência dos jesuítas, uma nova mentalidade de unidade política de uma nova pátria. Fernando de Azevedo (1958, p. 39), em sua obra A Cultura Brasileira, cita os grandes nomes dessa época: os historiadores Frei Vicente de Salvador, Rocha Pita e Pedro Taques; os poetas Gregório de Matos, Cláudio Manuel da Costa e José Basílio da Gama e os oradores sacros Eusébio de Matos e Pe. Antônio Vieira. Relata, ainda, a supremacia da obra e o gênio de Vieira: o maior de todos os discípulos dos jesuítas, nos colégios coloniais — prosador notável e pregador sem rival, com quem aprenderam a polir a frase os maiores escritores. Vieira é possivelmente a expressão mais alta dessa educação intelectualista, dialética e formal, concentrada na cultura da palavra, da forma e do gosto 17 O poema foi elaborado mentalmente pelo jesuíta entre julho e agosto de 1563, durante seu cativeiro entre os Tamoios de Iperuí (Ubatuba). 18 “As missões jesuíticas que chegaram ao Brasil em 1549 e em 1553, estavam entre as primeiras legiões de missionários que atravessaram os mares, para a catequese do gentio, em longes terras desconhecidas. Todos ficam sabendo a que vieram esses religiosos, enviados a conselho de Diogo de Gouveia por D. João III a quem começava a preocupar a colonização do Brasil; com o compromisso essencial do jesuíta com a Igreja, na defesa e propagação da fé, criara desde a sua chegada, aqui como por toda parte, essa situação clara e definida, em que a sua espantosa atividade missionária, política e educadora, se apresentava subordinada inteiramente às exigências ecumênicas da Igreja e aos supremos interesses da religião” (AZEVEDO, 1958, p. 10). Miscelânea, Assis, v. 12, p.59-72, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 68 literário. As composições em latim de Pe. Vieira, ricas em conteúdo e significado, encontram-se, porém, quase que totalmente desconhecidas 19 . Vários outros poetas propagaram em suas produções, no século XVII, os valores dos missionários. Os autores que expressaram, tanto quanto permitia o meio, as culturas latinas e cristãs, assim como fizera Vieira, foram: Pe. Simão de Vasconcelos (1596-1671), Domingos Barbosa (1624-1685), João Felipe Bettendorf (1625-1698), Antônio da Fonseca (1628-1695), Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711) 20 , João Pereira (1646-1715), Salvador Mesquita 21 (1646- ?), Ângelo dos Reis (1664-1723) e Antônio de Lima (1689-1724). É de se notar que, a exceção feita aos autores Manuel Botelho de Oliveira e Salvador Mesquita, a poesia latina, dos séculos XVI e XVII, é produto exclusivamente dos jesuítas. Ao lado desses poetas, aparecem, ainda no século XVIII, os autores dos poemas didáticos, que descrevem a vida econômica e social do Brasil colônia. Os mais conhecidos, em face da importância de sua produtividade no campo latino são: Prudêncio do Amaral (1675-1715) (é da autoria de Prudêncio do Amaral o poema chamado de “Geórgicas Brasileiras”, escrito sobre a cana de açúcar, comparado à obra clássica de Vergílio), José Rodrigues de Melo (1723-1789) (escreveu obra sobre a economia rural do Brasil, composta pelos seguintes poemas latinos: De cultura radicis Brasilicae, De usu vario radicis Brasilicae, De cura boum in Brasilia e De cultura herbae nicotinanae in Brasilia), Francisco da 19 Foram elencadas por Serafim Leite, em sua obra História da Companhia de Jesus no Brasil (1965, t. IX, p. 192-363). 20 Natural da Bahia, capitão-mor de Jacobina e fidalgo da Casa de Sua Majestade, publicou Música do Parnaso (Oficina de Miguel Manescal, Imprensa do Santo Ofício, Lisboa, 1705) — dividida em quatro coros de rimas portuguesas, castelhanas, italianas e latinas e mais duas comédias (Hay amigo para Amigo e Amor e Engaños y Celos), oferecida ao excelentíssimo senhor Dom Nuno Alv’res Pereira de Melo, Duque de Cadaval (CASTELLO, 1969, p. 68). Também de sua autoria e com o título de Quarto coro das Rimas Latinas, apresentam-se, em dísticos elegíacos, seis epigramas latinos, um poema heróico em que se descreve o leão e um Colloquium Elegiacum, por ocasião da morte de Antônio Telles da Silva. 21 Publicou em 1665 Labores Quinquaginta Christi Servatoris Excerpti e Libro R. P. Fr. Thomae A Iesu Eremitae Augustiniani, Et ad Lyram traducti A Salvatore Mesquita Lusitano Auspicijs Beatissimae Virgini Mariae Matris Dei, Romae, Typis Philippi Mariae Mancini. Trata-se de uma obra composta de 50 poesias latinas, em metros diversos, cada uma sobre um “trabalho” de Jesus. Os temas são tirados dos Trabalhos de Jesus de Frei Tomé de Jesus. Além de Labores quinquaginta.... Salvador de Mesquita publicou, em Roma, o drama sacro Sacrificium Jephtae (1682), e, em 1716, também em Roma, Decem Triumphi Summo Triumphorum Patri, ac Domino nostro D. Clementi P. XI a Salvatore Mesquita Brasilico Lusitano Romano Dicati. Romae. MDCCXVI (1716). Typis Ioseph de Mariis. Superiorum Permissu (MORAES, 1969, p. 250-251). Miscelânea, Assis, v. 12, p.59-72, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 69 Silveira (1718-1795), além do jesuíta italiano João Antônio Andreoni, que escreveu, em português, Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas (1711). Com o curso de humanidades, o verdadeiro alicerce de toda essa estrutura, solidamente montada, do ensino nos colégios, sob a responsabilidade exclusiva da Companhia de Jesus, formaram-se os doutos brasileiros. Desse modo, tiveram início, aqui, os processos literários então dominantes em Portugal 22 . Era dado assim ao povo brasileiro, apesar de ainda em formação, começar, em literatura, guiando- se pelos povos da Antiguidade, cujo espírito, o Classicismo tentava reanimar, com grande esforço. Em princípio, a necessidade de imitar e o gosto do artifício colocavam em plano secundário a inspiração e o sentimento. Nesse contexto histórico-social do século XVIII, floresceram as academias literárias brasileiras que caracterizam o marco inicial da nossa literatura, propriamente dita, por representarem um progresso considerável do cultural e artístico da Colônia, irmanadas a essa cultura humanística disseminada pelos jesuítas e demais ordens religiosas. Costuma-se agrupar o movimento acadêmico segundo a natureza das agremiações. A classificação das academias foi proposta por Antônio Cândido em sua obra Formação da Literatura Brasileira: “é possível classificar as manifestações de literatura associativa em permanentes, temporárias e ocasionais; as primeiras constituindo associações culturais propriamente ditas; a segunda e terceira, comemorações” (CÂNDIDO, 1981, p. 78). As atividades acadêmicas podem ser divididas em três categorias, de acordo com os objetivos pré-estabelecidos, como a duração de tempo, o conteúdo temático e o próprio corpus literário: a) academia ou conferência: nome dado à própria sessão ordinária onde os acadêmicos apresentavam trabalhos — estes previstos em programas e em estatutos — de caráter literário, histórico e científico. Essas reuniões aconteciam periodicamente durante a existência da academia; 22 No final do século XVIII, os antigos centros de cultura clássica em Portugal, as universidades, também cederiam lugar às novas formas de escolas profissionais e técnicas, que expressaram a modernidade científica, na Europa, desde o Renascimento. Como resultado houve uma coexistência entre as antigas e as novas formas de expressão cultural. No entanto, Portugal ainda permaneceu à margem da ciência moderna, isolado pelo jugo clerical da Contrarreforma e da Inquisição. A falta de transformações de ordem político- religiosa acarretou profundas consequências na herança cultural que o Brasil recebeu de Portugal. Miscelânea, Assis, v. 12, p.59-72, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 70 b) ato acadêmico: sessão literária em homenagem a uma autoridade de projeção no Brasil colonial; em louvor a reis e príncipes ou a santos, nas celebrações religiosas; de caráter laudatório; com programação de tempo definida e podendo apresentar, às vezes, normas redigidas; c) festejo público comemorativo: celebrações obrigatórias e oficiais de um acontecimento de regozijo ou fúnebre; de caráter religioso (missa, sermões, procissões) ou leigo (cavalhada, luminárias, representações dramáticas); de cunho aristocrático, seletivo ou popular; recitativos e panegíricos, geralmente mais longos que as sessões acadêmicas normais, podendo estender-se por dias, enquanto durassem as comemorações. Essa classificação é uma proposição de José Aderaldo Castello (1969, p. 100), 23 dedicado historiador crítico e literato, especialista em estudos referentes às academias literárias brasileiras. 24 No que se refere à primeira categoria, as principais e importantes academias são 25 : 1) Academia Brasílica dos Esquecidos — 1724/25; 2) Academia dos Felizes — 1736/40; 3) Academia Brasílica dos Renascidos — 1759; 4) Academia Científica do Rio de Janeiro — 1772/79; 5) Sociedade Literária do Rio de Janeiro — 1786/90 — 1794 e 6) Arcádia Franciscana Fluminense — 1786. O Archivum Generale Poetarum Latinorum Brasiliensium 26 , fundado e dirigido pelo Prof. Dr. Enio Aloísio Fonda, dedicou-se do ano 23 Na Formação da Literatura Brasileira, Antônio Cândido comenta a divisão das atividades acadêmicas de José Aderaldo Castello, chamando a atenção para a semelhança entre esta classificação e a que ele estabelece, dando como elementos diferenciadores a duração e o grau de organização das agremiações. 24 São obras do referido autor: a coletânea O Movimento Academicista no Brasil — (1641- 1820/22), São Paulo, Publicação da Comissão de Literatura do Conselho Estadual de Cultura. Deste vasto estudo já foram publicados quatro tomos de volume I, referentes às composições em versos da Academia Brasílica dos Esquecidos (1724/25). 25 Essas cinco academias definem e completam o quadro que representa o sentido geral do movimento academicista brasileiro; o número de academias, todavia, vai além de quarenta. 26 O Archivum Generale Poetarum Latinorum Brasiliensium, criado no âmbito das disciplinas de Língua e Literatura Latina, é devidamente reconhecido como Instituto Complementar de Pesquisas da Faculdade de Ciências e Letras de Assis — UNESP. Tinha por finalidade precípua a pesquisa da Latinidade Brasileira, coletando, organizando, inventariando, catalogando e arquivando as produções compostas em versos latinos e também em prosa, no Brasil, desde Anchieta até a atualidade. Foi fundado pelos Miscelânea, Assis, v. 12, p.59-72, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 71 de 1972 até a data de seu falecimento, em setembro de 2011, ao estudo da Literatura Brasileira de expressão latina. O Instituto, composto exclusivamente por pesquisadores de formação clássica, elaborou e trabalhou em um plano de pesquisa que visava o estudo da poesia latina que nos legaram os diversos Movimentos Academicistas no Brasil (1641- 1822). Assim, o Archivum aplicou especial atenção e importância às produções poéticas dos membros das Academias Literárias do Brasil, no século XVIII. CONCLUSÃO A partir do que foi apresentado nas seções anteriores sobre a educação clássica no Brasil Colonial, concluímos que um estudo mais detido da produção literária em latim na época colonial oferece o maior interesse para a compreensão da influência dos estudos clássicos na formação da cultura brasileira. Acreditamos que a humanitas como valor ideal adotado pelas academias e a produção literária novilatina, que é consequência direta da adoção desse valor, têm certamente um impacto na mescla que constituiu a base da nossa cultura letrada. Entendemos que esse impacto é ainda pouco compreendido e estudado. Este artigo representa meramente uma visada histórica e um convite a esse estudo. Para finalizar, em sentido mais amplo, futuras pesquisas no campo ainda quase virgem da latinidade brasileira poderão revelar a influência da educação jesuítica e das academias setecentistas na constituição dos costumes e formas de organização social, na fixação de valores de vida e sistemas éticos e legais, traços de psicologia individual e coletiva e vivências estéticas que constituíram historicamente o Brasil em seu período colonial. Todavia, para que isso aconteça, a latinidade brasileira, como objeto de estudo, ainda aguarda por abordagens teóricas adequadas, sejam literárias sejam linguísticas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, F. de. A cultura brasileira. Melhoramentos: São Paulo, 1958. v. 13, t. 2. Profs. Drs. Enio Aloisio Fonda e Celso Pontara e, como cofundadora, a Profª Mirtes Rocha Rodrigues. Miscelânea, Assis, v. 12, p.59-72, jul.-dez. 2012. ISSN 1984-2899 72 CASTELLO, J. A. A literatura brasileira: era colonial. São Paulo: Cultrix, 1969. CÂNDIDO, A. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. v. 2. CIVIL. In: HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. CONTE, G. B.; PIANEZZOLA, E. Il libro della letteratura latina: la storia e i testi. Firenze: Le Monnier, 2004. ESPARZA TORRES, M. A. Las ideas linguísticas de Antonio de Nebrija. Munster: Nodus Publikationen, 1995. GILSON, E. A Filosofia na idade média. São Paulo: Martins Fontes, 1998. LE GOFF, J. A civilização do ocidente medieval. Bauru: EDUSC, 2005. TRINGALI, D. Escolas literárias. São Paulo: Musa Editora, 1994. Data de recebimento: 15 fev. 2013. Data de aprovação: 30 abril 2013.