Thiago Alves Valente Monteiro Lobato Um estudo de A chave do tamanho Thiago A lves Valente M onteiro Lobato: um estudo de A chave do tam anho Neste livro, Thiago Alves Valente faz um percurso panorâ- mico e histórico da fortuna crítica de A chave do tamanho, de Monteiro Lobato, configurando um quadro por cujas lacunas pretende caminhar. Ao organizar os vários estudos críticos por eixos temáticos (ideologia, pensamento filosófico, cientificismo, questões estéticas), o autor constata que há a “necessidade de empreender uma análise textual em que os elementos estrutu- rais da narrativa possam ser compreendidos sem sua funcionali- dade na construção da obra”. Com esse intuito, Valente realiza um confronto entre as modificações feitas por Monteiro Lobato nas várias edições do livro para, em seguida, apresentar com rara originalidade sua crí- tica desse texto lobatiano, comprovando, por meio de elementos que estruturam a narrativa, de que modo os temas centrais da obra de Lobato estão articulados na criação literária. 9 7 8 8 5 3 9 3 0 1 9 9 7 ISBN 978-85-393-0199-7 Embora a produção infanto-juvenil de Monteiro Lobato (1882-1948) venha sendo celebrada pelo público e pela crí- tica especializada desde seu lançamento entre as décadas de 20 e 40 do século passado, alguns títulos, considerados indi- vidualmente, não receberam toda a aten- ção que mereceriam. É o caso de A chave do tamanho, título lançado em 1942, obra de maturidade do autor e um dos últimos volumes da saga do Picapau Amarelo. Essa narrativa, que em sua primeira edição recebeu o subtítulo “A maior reinação do mundo”, foi lembrada por muitos daqueles que se propuseram comentar ou estudar esse título lobatiano. No entanto, de um modo geral, as consi- derações sobre a obra se concentraram na discussão de questões ideológicas, que a lançaram num clima de acirrada polêmi- ca, sem que houvesse por contrapartida um estudo mais vertical da narrativa; ou seja, sem que fosse, de fato, analisada sua composição em diferentes níveis e nas relações que estabelecem entre si. Este livro que ora nos apresenta Thiago Alves Valente vem cumprir um papel fundamental no sentido de situar em um novo patamar a produção crítica sobre a obra. O pesquisador buscou superar as abordagens que deixaram de lado ou em uma posição muito secun- dária a dimensão estética da obra do escritor, para, de modo decisivo, trazer esse questionamento ao primeiro plano, direcionando os olhos do leitor contem- porâneo para aspectos até então pouco explorados no exame da obra. O alicerce para seu trabalho de aná- lise consistiu num levantamento exaustivo da fortuna crítica de A chave do tamanho, comentada ao longo da primeira parte deste livro – “A tradição crítica” – segun- do uma perspectiva bastante exigente. Ao elencar e comentar estudiosos da obra de diferentes épocas e origens e aglutiná- los segundo tendências que os aproxi- mam, o autor permite aos pesquisadores das novas gerações não apenas expandir a visão sobre a obra em questão, mas delinear com maior clareza o projeto literário lobatiano como um todo. Sobre a segunda parte deste livro, “Uma leitura de A chave do tamanho”, é preferível quase nada adiantar, para não eliminar as boas surpresas que o texto propicia, na medida em que Valente realiza, efetivamente, o que o título dessa unidade do livro propõe – uma leitura, na melhor acepção do termo. Ao propor múltiplas camadas de significação para a obra, fun- damentadas numa análise minuciosa de sua estrutura profunda, de sua linguagem, das relações forma/conteúdo, atribuindo- lhes crescente unidade, o pesquisador faz o que se espera de um bom estudo literário e que, nem sempre, outros lei- tores, apressados e apegados apenas à epiderme narrativa, acabam por realizar. Temos aqui o encontro feliz de um texto brilhante e um leitor à sua altura. João Luís CeCCantini Thiago Alves Valente é doutorado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis, área de “Literatura e vida social”, e atua como professor- -adjunto no curso de Letras da da Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp), campus de Cornélio Procópio. MONTEIRO LOBATO Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 1Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 1 08/02/2012 17:34:2008/02/2012 17:34:20 FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Herman Jacobus Cornelis Voorwald Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto Editor-Executivo Jézio Hernani Bomfi m Gutierre Conselho Editorial Acadêmico Alberto Tsuyoshi Ikeda Áureo Busetto Célia Aparecida Ferreira Tolentino Eda Maria Góes Elisabete Maniglia Elisabeth Criscuolo Urbinati Ildeberto Muniz de Almeida Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan Nilson Ghirardello Vicente Pleitez Editores-Assistentes Anderson Nobara Fabiana Mioto Jorge Pereira Filho Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 2Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 2 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 THIAGO ALVES VALENTE MONTEIRO LOBATO UM ESTUDO DE A CHAVE DO TAMANHO Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 3Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 3 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 Editora afi liada: CIP – BRASIL. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ V249m Valente, Thiago Alves Monteiro Lobato: um estudo de A chave do tamanho / Thiago Alves Valente. São Paulo: Editora Unesp, 2011. Inclui bibliografi a ISBN 978-85-393-0199-7 1. Lobato, Monteiro, 1882-1948. A chave do tamanho. 2. Lobato, Monteiro, 1882-1948 – Crítica e interpretação. 3. Literatura infanto-juvenil brasileira – História e crítica I. Título. 11-7806 CDD: 869.98 CDU: 821.134.3(81)-8 Este livro é publicado pelo projeto Edição de Textos de Docentes e Pós-Graduados da UNESP – Pró-Reitoria de Pós-Graduação da UNESP (PROPG) / Fundação Editora da UNESP (FEU) © 2011 Editora UNESP Direitos de publicação reservados à: Fundação Editora da Unesp (FEU) Praça da Sé, 108 01001-900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br www.livraria.unesp.com.br feu@editora.unesp.br Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 4Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 4 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 SUMÁRIO Prefácio 7 Introdução 11 1 A tradição crítica 15 2 Uma leitura para A chave do tamanho 63 Considerações finais 117 Referências bibliográficas 123 Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 5Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 5 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 6Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 6 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 PREFÁCIO Embora a produção infanto-juvenil de Monteiro Lo- bato (1882-1948) venha sendo celebrada pelo público e pela crítica especializada desde seu lançamento entre as décadas de 20 e 40 do século passado, alguns títulos, con- siderados individualmente, não receberam toda a atenção que mereceriam. É o caso de A chave do tamanho, título lançado em 1942, obra de maturidade do autor e um dos últimos volumes da saga do Picapau Amarelo. Essa narrativa, que em sua primeira edição recebeu o subtítulo “A maior reinação do mundo”, foi lembrada por muitos daqueles que se propuseram comentar ou estudar esse título lobatiano. No entanto, de um modo geral, as considerações sobre a obra se concentraram na discussão de questões ideológicas, que a lançaram num clima de acirrada polêmica, sem que houvesse por contrapartida um estudo mais vertical da narrativa; ou seja, sem que fosse, de fato, analisada sua composição em diferentes níveis e nas relações que estabelecem entre si. Escrita e publicada em pleno desenrolar da Segunda Guerra Mundial, A chave do tamanho foi objeto, sobretu- do, de abordagens temáticas, muitas vezes marcadas pela Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 7Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 7 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 8 THIAGO ALVES VALENTE dicotomização política típica do pós-guerra ou por discus- sões que puseram na berlinda a postura transgressora e relativista da obra na formação das crianças e jovens, em especial pelo fato de tratar de questões darwinianas clássicas, como evolução e adaptação. A celeuma criada pelo Padre Sales Brasil cerca de uma década após a morte de Lobato, com a publicação do livro A literatura infantil de Monteiro Lobato ou Comunismo para crianças (1959), tornou-se no- tória e exemplar – no mau sentido – do modo ligeiro com que muitas vezes foi lido esse texto tão original de Lobato. O trabalho que ora nos apresenta Thiago Alves Va- lente, e que corresponde em linhas gerais à sua disserta- ção de mestrado, realizada e defendida junto ao Curso de Pós-graduação em Letras da Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da Unesp, campus de Assis, vem cumprir um papel fundamental no sentido de situar em um novo patamar a produção crítica sobre a obra. O pesquisador buscou superar as abordagens que deixaram de lado ou em uma posição muito secundária a dimensão estética da obra do escritor, para, de modo decisivo, trazer esse questionamento ao primeiro plano, direcionando os olhos do leitor contemporâneo para aspectos até então pouco explorados no exame da obra. O alicerce para seu trabalho de análise consistiu num levantamento exaustivo da fortuna crítica de A chave do tamanho, comentada ao longo da primeira parte deste livro – “A tradição crítica” – segundo uma perspectiva bastante exigente. Ao elencar e comentar estudiosos da obra de diferentes épocas e origens e aglutiná-los segun- do tendências que os aproximam, o autor permite aos pesquisadores das novas gerações não apenas expandir a visão sobre a obra em questão, mas delinear com maior clareza o projeto literário lobatiano como um todo. Nessa primeira parte do estudo, merece destaque, ainda, o trabalho substantivo de cotejo entre as várias edições da Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 8Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 8 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 MONTEIRO LOBATO 9 narrativa em pauta, em particular entre a primeira edição e a de 1947, das Obras completas, o que desnuda o mo- dus operandi de Lobato, modelando e remodelando seu texto no calor da hora, seja durante a Segunda Grande Guerra, seja no período logo após o término do embate. Revela-se sua plena sintonia com o dinamismo do processo histórico em curso e sua compreensão da necessidade de reelaboração contínua de conceitos e julgamentos que o momento impunha. Sobre a segunda parte deste livro, “Uma leitura de A chave do tamanho”, é preferível quase nada adiantar, para não eliminar as boas surpresas que o texto propicia, na medida em que Valente realiza, efetivamente, o que o título dessa unidade do livro propõe – uma leitura, na melhor acepção do termo. Ao propor múltiplas camadas de significação para a obra, fundamentadas numa análise minuciosa de sua estrutura profunda, de sua linguagem, das relações forma/conteúdo, atribuindo-lhes crescente unidade, o pesquisador faz o que se espera de um bom estudo literário e que, nem sempre, outros leitores, apres- sados e apegados apenas à epiderme narrativa, acabam por realizar. Temos aqui o encontro feliz de um texto brilhante e um leitor à sua altura. João Luís Ceccantini Professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Ciências e Letras (FCL), Unesp, campus de Assis Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 9Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 9 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 10Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 10 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 INTRODUÇÃO Aviões sobrevoam a cidade em exercício de guerra. Moças da classe média apressam-se, em uniformes bran- cos, para servir à nação com o exercício da enfermagem. Batalhões marcham nas datas cívicas: bravura, “pão de guerra”, gasogênio – a cidade de São Paulo na década de 1940. Em 1942, no auge do conflito mundial, Lobato con- tava 60 anos de idade, com uma experiência de vida, no mínimo, invejável. Escritor, jornalista, editor, empresário: dentre as muitas qualificações possíveis, surge também aquela que o coloca entre os poucos escritores brasileiros em cujos textos literários podem ser encontrados ecos da Segunda Guerra (Cytrynowicz, 2000). No caso da litera- tura infantil de Lobato, isso é característica relevante de uma de suas últimas obras, A chave do tamanho (1942). Antes da carnificina causada pela chamada “Grande Guerra” (1914-1918), Lobato já voltara os olhos para outros conflitos, como a Guerra do Paraguai. Além dos textos escritos para os leitores adultos, como “Veteranos do Paraguai” e “Uruguaiana”, ambos publicados em A onda verde (1921), os conflitos são abordados em livros infantis Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 11Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 11 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 12 THIAGO ALVES VALENTE como História do mundo para crianças (1933) e Geografia de Dona Benta (1935). Mas a guerra, sem distinção de local e data, também aparece em histórias aparentemente sem compromisso com a realidade – em O Saci (1921), por exemplo, Pedrinho discute com o personagem folclórico apontado no título a estupidez das batalhas humanas. A Segunda Guerra Mundial, por sua vez, não iria ficar fora das histórias lobatianas. Em 1941 ela aparece em A reforma da natureza e, em 1942, ressurge com toda a força em A chave do tamanho. É interessante observar que essa preocupação huma- nística de Lobato se manifesta marcadamente em livros destinados ao público infantil, ou seja, há neles um caráter pedagógico, em sentido amplo, visando à formação das novas gerações. Uma obra como A chave do tamanho se opunha frontalmente a discursos oficiais nos quais a guerra constantemente aparecia como momento de manifesta- ção dos atos mais heroicos ou dos valores morais mais sublimes. O engajamento com a causa republicana levara a inte- lectualidade brasileira a ver na escola a possibilidade efetiva de mudanças sociais. A necessidade de legitimação da República, bem como de sua ideologia, encontrou na ins- tituição escolar um meio eficaz de alcançar seus objetivos. Empenhada em construir a imagem de um país em franca urbanização e significativo desenvolvimento econômico, a elite política empreendeu reformas institucionais a fim de levar a instrução pública a camadas mais amplas da população. O livro para crianças fazia parte desse projeto, com o trabalho, o amor à pátria e a dedicação à família como temas recorrentes. As personagens eram “crianças modelares cuja presença nos livros parece cumprir a função de contagiar de iguais virtudes e sentimentos seus jovens leitores” (Zilberman; Lajolo, 1999, p.33). Isso atendia a um projeto pedagógico calcado na reprodução passiva de Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 12Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 12 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 MONTEIRO LOBATO 13 comportamentos, atitudes e valores que os textos poten- cialmente poderiam inculcar nos leitores. O aparecimento de A menina do Narizinho Arrebitado (1920) é, sem dúvida, um marco na história da literatura infantil brasileira. O interesse de Lobato de escrever para crianças leva-o à constituição de uma série de histórias em que, se há também o caráter pedagógico, seja com a abordagem de matérias escolares, seja com o tratamento de temas do momento, prevalece, contudo, o aspecto lúdico, em que a fantasia encontra espaço privilegiado. Mas é com Narizinho Arrebitado, de 1921, que Lobato fixa o espaço que estará presente em todas as narrativas, mesmo que seja apenas como ponto de partida para a história: o Sítio do Picapau Amarelo. Junto com o espaço, o escritor fixa também um quadro de personagens: Dona Benta, Tia Nastácia, Narizinho, Pedrinho, Emília e o Vis- conde de Sabugosa, além dos animais falantes que farão parte das histórias – o porco Rabicó, o burro Conselheiro e o rinoceronte Quindim. A obra de Lobato se insurgia contra um modelo ufa- nista cultivado afoitamente pelos intelectuais brasileiros – os valores que perpassam a obra infantil lobatiana ins- tauram o espírito crítico que levaria Emília a ser objeto de polêmica especialmente no meio pedagógico. A preo- cupação com o ensino levou o escritor a realizar obras como Aritmética da Emília e Emília no país da Gramática. Porém, “pedagógico” em Lobato adquire outras dimen- sões no que diz respeito à formação humana, uma vez que suas aventuras estarão sempre ligadas ao conhecimento, à crítica, à reformulação de conceitos. Como uma das obras mais maduras do escritor, A chave do tamanho encerra as características literárias já apon- tadas em toda a série do Picapau Amarelo, tendo ainda a Segunda Guerra como elemento motivador para uma leitura mais instigante ao leitor mais atento. Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 13Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 13 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 14 THIAGO ALVES VALENTE O objetivo de resgatar a crítica e/ou os estudos que têm como objeto de análise uma obra lobatiana, no caso, A chave do tamanho, apresenta-se como meio de verificar a abrangência dos estudos realizados sobre essa obra, confi- gurando um quadro cujas lacunas poderão ser preenchidas por novas pesquisas. Para isso, o texto está dividido em dois capítulos: no primeiro, apresentam-se dados referentes a levantamento da fortuna crítica sobre A chave do tamanho, de 1942 a 2004; no segundo, propõe-se uma leitura para compreensão da obra a partir de seus elementos textuais, sejam aqueles já analisados pela crítica, sejam aqueles ainda não abordados em trabalhos de maior envergadura. Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 14Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 14 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 1 A TRADIÇÃO CRÍTICA Como uma das últimas obras infantis de Lobato, A chave do tamanho encontra um campo de leitores já ha- bituado à escrita lobatiana. Escritor consagrado, Lobato não deixaria de receber atenção cada vez que publicasse uma obra – embora já reconhecido escritor de literatura infantil, continuaria a causar estranhamento e admiração aos seus contemporâ- neos. Em 1945, por exemplo, o colunista do Estado, Léo Vaz (1945, p.51), escreve um artigo intitulado “A chave do tamanho” em que, após ressaltar a importância do escritor na produção de livros para crianças no país, apresenta A chave do tamanho, destacando aquilo que considera como ideias centrais da obra: “lendo-o é provável que as crianças absorvam, sem o saber, uma sadia dose do mais precioso elixir filosófico” – e acrescenta – “é bem capaz de lhes meter nas cabecinhas o mais precioso e raro dom com que pôde jamais dotar-se uma criatura neste conturbado planeta: e vem a ser o senso da relatividade”. O artigo de Vaz apresenta uma apreciação de leitura, elogiando A chave do tamanho no contexto da produ- ção literária para crianças dos anos 1940, o que aponta Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 15Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 15 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 16 THIAGO ALVES VALENTE a especificidade do texto no conjunto dessa produção. O comentário do colunista ainda traz um dos aspectos mais abordados posteriormente, seja por críticos, seja por pesquisadores: o conteúdo filosófico, a ideologia presente em A chave do tamanho. É, porém, o comentário de Edgar Cavalheiro que viria a estabelecer certa forma de pensar a obra – uma história de ensinamentos úteis, de amargo pessimismo, apesar de apresentar uma grande aventura; história ligada à perda dos filhos homens ainda jovens, por parte do escritor; à prisão, à situação tensa do Brasil e do mundo. Com efeito, as palavras de Cavalheiro (1956) em Mon- teiro Lobato: vida e obra foram retomadas por diversas vezes em trabalhos posteriores, servindo mesmo de ponto de partida para pesquisas cujo foco se lança sobre aspec- tos filosóficos do texto em questão, ou sobre o momento existencial do escritor. É importante notar que, sendo uma biografia escrita por alguém próximo de Lobato, a obra de Cavalheiro retoma palavras do próprio escritor – a questão da relatividade, por exemplo – e estabelece uma forma de interpretar a produção lobatiana partindo de elementos biográficos, e não de abordagens textuais. Na década de 1950, o espaço da crítica é sombreado pela obra do padre Sales Brasil (1959), A literatura infantil de Monteiro Lobato ou Comunismo para crianças, em que A chave do tamanho, como os demais livros de Lobato são duramente criticados por trazerem um “ideário co- munista” – a “chave” seria a própria literatura infantil, a fim de acessar a família brasileira e, ali, implantar ideias comunistas, pagãs, heréticas. Apresentando-se em tom de “denúncia”, a obra de Sales Brasil se propõe a realizar uma “análise” de toda a obra infantil lobatiana a partir de uma perspectiva religiosa. O tom de denúncia é seguido por um texto doutrinário visando mostrar ao público os “malefícios” das histórias Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 16Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 16 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 MONTEIRO LOBATO 17 de Lobato, destacando A chave do tamanho em que a di- minuição dos homens seria, por exemplo, a franca adoção do ideário comunista – homens do mesmo tamanho. É uma obra sem dúvida interessante, especialmente pelos elemen- tos contextuais que oferece por meio de suas observações, muitas das quais reveladoras de uma leitura superficial e desatenta: no exemplo dado, a respeito da igualdade do tamanho, é importante lembrar que, mesmo pequeninos, os homens continuam com diferença de tamanho, propor- cional à altura que tinham antes do apequenamento, o que mostra o tipo de análise insustentável empreendida pelo padre, talvez muito desatento a elementos que certamente não passaram despercebidos às crianças da época. Após a obra do padre Sales Brasil, nota-se um longo período de silêncio, ao menos em relação A chave do tama- nho, nas décadas de 1960 e 1970. Novas abordagens sobre A chave do tamanho e também sobre toda a produção de Lobato para crianças renovariam sua presença no cenário nacional a partir dos anos 1980. De 1981 são os textos de Ana Maria Lisboa Mello (1995), intitulado “A chave do tamanho: a instauração de uma nova ordem”, publicado novamente com o mesmo título em 1995; e o de Antonio Carlos Scavone (1981), “Reflexos do positivismo em A chave do tamanho”; e “Monteiro Lobato – 1882-1948”, de Ruth Rocha (1981). O texto de Mello ressalta a visão “universalista” de Lobato, que, no livro, aparece como a instauração de uma “nova ordem”, inaugurada por Emília ao abaixar a chave, ordem que se constitui como um dos aspectos principais da obra para a autora. Para sua análise, Mello também parte do contexto vivenciado pelo autor, recuperando elementos como a relatividade e a nudez com vistas a confirmar sua tese de que em A chave do tamanho existe uma visão uni- versalista do homem. Embora não empreenda uma análise mais pormenorizada em relação aos elementos narrativos, Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 17Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 17 08/02/2012 17:34:2408/02/2012 17:34:24 18 THIAGO ALVES VALENTE merece destaque a abordagem textual, trazendo a obra à luz das discussões a respeito da literatura infantil brasileira no começo da década de 1980. Scavone, por sua vez, como o título de seu texto já revela, apresenta o positivismo como característica mar- cante de A chave do tamanho. A presença desse ideário pode ser constatada pela ênfase na ideia de evolução e na experiência científica, presentes, por exemplo, na insis- tência do narrador de mensurar todas as coisas: o autor escreve que a ideologia positivista está presente tanto na estrutura da história quanto no pensamento e ação dos personagens. Como uma análise que se detém sobre um aspecto mais delimitado – o discurso cientificista –, o texto de Scavone busca identificar esse discurso por toda a obra, além de apresentar uma leitura em que a ciência está associada às relações de poder, observadas nas atitudes de Emília quanto ao Visconde, por exemplo. Contudo, o autor não aprofunda sua análise no sentido de revelar a importância do cientificismo como elemento estrutural do texto, sua relação com os demais elementos para a tessitura narrativa. No caso de Ruth Rocha, comenta-se de forma concisa o lugar da obra na produção lobatiana. Em poucas linhas a autora aponta A chave do tamanho como alegoria, propõe um paralelo com A reforma da natureza e, finalmente, identifica-a como “uma espécie de chegada da ficção de Lobato”. Tendo em vista o público escolar, Rocha faz considerações genéricas que, pelo caráter pedagógico da publicação, não apontam ao leitor indícios da complexi- dade da obra. Observando os três primeiros textos da década de 1980 que de alguma forma abordam A chave do tamanho, percebe-se certa tendência para abordagens temáticas, não deixando de ressaltar que Scavone nos remete à estrutura narrativa, mesmo sem analisá-la, e Ruth Rocha aponta Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 18Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 18 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 MONTEIRO LOBATO 19 a alegoria como elemento estrutural do texto, embora também não empreenda nenhuma análise da narrativa. No ano seguinte, 1982, Alfredo Bosi comenta a obra em texto publicado numa edição comemorativa da Bi- blioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Apontando o caráter iluminista dos textos lobatianos, o texto do crítico focaliza o conteúdo científico de A chave do tamanho, lembrando, porém, de que tanto A reforma da natureza quanto A chave do tamanho ainda não receberam a aten- ção que merecem. O texto de Bosi indica um caminho possível para a compreensão dessas obras no conjunto da produção lobatiana – a ideologia marcante do escritor cujo “iluminismo” está ligado a determinado conceito de desenvolvimento e felicidade humanas, concepção que se afasta de um naturalismo simplista (retorno à condição primitiva de dependência da natureza) e nega a tecnologia de morte (incentivo à implementação bélica). Iluminismo que pode ser uma chave para a compreensão do didatismo e proselitismo lobatiano, não só em A chave do tamanho, mas em toda sua obra infantil. Nesse mesmo ano, Bárbara Vasconcelos de Carvalho (1982), em obra panorâmica sobre a literatura infantil, A literatura infantil: visão histórica e crítica, identifica a obra como melancólica, apesar de reconhecer nela o inter- texto com Swift (1667-1745) e Carroll (1832-1898), bem como a forte presença da fantasia na história. É interes- sante notar que a autora destaca o humor e o conteúdo filosófico do texto, porém retoma a relação apresentada por Cavalheiro, afirmando que Lobato estava “brigado com a humanidade” em A chave do tamanho. Se o texto da autora reitera a ideia de que há certo pessimismo na obra de Lobato decorrente dos problemas vivenciados tanto no contexto sócio-histórico quanto no pessoal, não se pode esquecer da atenção dada por Carvalho à fantasia como elemento caracterizador da narrativa, bem como da Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 19Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 19 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 20 THIAGO ALVES VALENTE questão do didatismo lobatiano e de suas peculiaridades no campo da literatura infantil brasileira. Ainda em 1982, aparecem obras cujo foco de análise incide ora sobre o autor, ora sobre sua obra. No primeiro caso, Vozes do tempo de Lobato, organizado por Paulo Dantas (1982), apresenta um comentário desse autor para quem A chave do tamanho é uma obra de cunho nacio- nalista, um tipo de apreciação impressionista incidindo sobre questões temáticas e não representando efetivamente acréscimo aos estudos da narrativa infantil lobatiana. No segundo caso, O universo ideológico da obra infantil de Monteiro Lobato, Zinda Maria Carvalho de Vasconcelos (1982) procura explicitar os principais traços ideológicos da obra de Lobato, chamando a atenção do leitor para a intencionalidade de se abaixar a chave do tamanho, dado que o tamanho já fora criticado como problema em outros textos, como em História das invenções e A reforma da na- tureza. A autora ainda destaca a utopia de uma sociedade dirigida por sábios, o que reafirma a presença do ideário iluminista lobatiano e, consequentemente, remete ao texto de Bosi (1982), “Lobato e a criação literária”, também de 1982. Nota-se, ainda, que nesse trabalho A chave do tamanho, como as outras obras infantis de Lobato, não recebe nenhuma análise mais detalhada, o que se justifica pela natureza da própria pesquisa da autora cujo interesse está na apresentação de um quadro geral sobre os aspectos ideológicos dos textos lobatianos. Os textos de Laura C. Sandroni (1982), “A função transgressora de Emília no universo do Picapau Amarelo”, e Regina Zilberman (1982), “Monteiro Lobato e a aventura do imaginário”, ambos publicados na revista Letras de hoje, em 1982, também se inserem nesse segundo caso. O primeiro texto apresenta a possibilidade de realizarmos uma leitura segundo a qual a protagonista, Emília, opõe-se frontalmente à sociedade baseada no dinheiro. Como no Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 20Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 20 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 MONTEIRO LOBATO 21 caso de Carvalho (1982), as observações sobre A chave do tamanho são realizadas em razão da abordagem de um elemento narrativo no contexto do conjunto das obras lobatianas para crianças, e não com o objetivo de realizar uma análise mais pontual sobre essa obra. O segundo, por sua vez, ressalta a diálogo da obra com o contexto histórico e sua carga utópica em relação ao Brasil. Mais uma vez tem-se um texto cujo foco de análise está sobre um elemento narrativo abordado no contexto da obra lobatiana. Porém, é importante notar as observações de Zilberman a respeito de certa estética realista de Lobato, uma referência à estrutura e organização textual até então não realizada em textos anteriores. Com “A ‘imaginação miniaturizante’ em A chave do tamanho”, Maria Alice de Oliveira Faria (1992), em- preende, em 1983, uma análise do espaço a partir de um referencial teórico estabelecido, A poética do espaço, de Gaston Bachelard. Embora também trate de aspectos te- máticos como a ideologia e a utopia do texto, Faria analisa cuidadosamente os arquétipos do devaneio miniaturizante e aponta relações intertextuais entre a obra de Lobato e clássicos da literatura infantil, como Viagens de Gulliver, Alice no país das maravilhas e Pequeno Polegar. O texto da pesquisadora merece destaque tanto por ser uma análise que se detém especificamente sobre A chave do tamanho quanto por tratar de um elemento narrativo, o intertex- to, considerando sua relação com os demais aspectos da narrativa, bem como sua importância para a construção do texto ficcional. Obra panorâmica das mais importantes para os estudos na área de literatura infantil, Literatura infantil brasileira: história & histórias, de Regina Zilberman e Marisa Lajolo (1999), retoma, em 1985, a questão da utopia, ressaltando o pessimismo de Lobato diante da sociedade moderna. A chave do tamanho aparece no contexto das reflexões a Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 21Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 21 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 22 THIAGO ALVES VALENTE cerca do caráter metafórico do Sítio do Picapau Amarelo, sendo ela um exemplo dos ideais e desejos de Lobato, ou seja, a narrativa é citada no contexto dos aspectos políticos e ideológicos característicos da obra do escritor. Essa relação entre utopia/otimismo e desilusão/pessi- mismo é aprofundada por André Luiz Vieira de Campos, em 1986, no texto “A ambiguidade do progresso”. Para o autor, a ambiguidade das ideias lobatianas, oscilando entre a euforia do modelo norte-americano e a catástrofe de uma guerra mundial, está ligada tanto à formação intelectual quanto ao momento histórico e pessoal do escritor – Campos retoma a afirmação de Cavalheiro (1955), identificando o pessimismo diante da humanidade com os problemas vivenciados por Lobato. O autor ainda destaca a “impor- tância” de A chave do tamanho, sem, contudo, esclarecer a relevância dessa obra no conjunto da produção do escritor. Optando por um viés temático, Campos realiza uma análise da obra partindo de ideias já estabelecidas, como a ligação do texto com os problemas existenciais de Lobato. Contudo, ao apontar a presença de dois modos conflitantes no tratamento do progresso na literatura lobatiana, o autor afirma de forma pertinente que a “civilização natural” exaltada em A chave do tamanho não prescinde de uma herança antiga, o conhecimento acumulado ao longo da história da humanidade. Diante disso, o autor elabora seu texto revelando contrastes entre o otimismo e o pessimismo quanto ao desenvolvimento. Essa relação dialética que, segundo Campos, pode apresentar um Lobato que não deixa de ser crítico mesmo quando entusiasmado com a paisagem industrial norte-americana, leva o autor a uma compreensão político-ideológica de A chave do tamanho. Isso é perceptível também na conclusão de seu trabalho ao relacionar o fazer literário lobatiano à aproximação do escritor com o Partido Comunista. Esclarecendo ao leitor que não tentará uma investigação a respeito da prática Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 22Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 22 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 MONTEIRO LOBATO 23 marxista no pensamento lobatiano, esclarecimento que já afirma a existência de tal prática em Lobato, Campos acaba por dialogar com a obra do padre Sales Brasil, o que se faz por meio de um encaminhamento temático que se fecha numa abordagem política do texto analisado, como se a opção pelo socialismo fosse uma saída para a descrença no progresso orientado pelo capitalismo liberal e para a permanência do conhecimento humano – uma conclusão que não permite ao autor explorar a tensão otimismo/ pessimismo no conjunto dos elementos textuais. Em 1988, o saber científico em A chave do tamanho é tema da dissertação de mestrado de Carlos Ziller Ca- menietzki (1988), O saber impotente, trabalho segundo o qual Lobato não mais concebe o conhecimento como intrinsecamente bom ou mau – há sempre o fator da utili- zação para que o conhecimento traga este ou aquele efeito sobre a humanidade. Embora apresente a obra como “livro notável”, Camenietzki a identifica como escatológica, com abundante uso de “humor negro”, fazendo uma corre- lação em que o primeiro atributo se apresenta de forma antagônica quanto às outras características da obra. É importante o aprofundamento da análise a respeito do discurso científico em Lobato, contexto em que A chave do tamanho aparece e é comentada pelo autor. Se por um lado a dissertação de Camenietzki não apresenta nenhuma contribuição efetiva para a análise dos elementos textuais, por outro, o estudioso realiza uma abordagem que muito contribui para a compreensão da concepção de ciência e do próprio fazer científico nas obras infantis lobatianas. Márcia Kupstas (1988), em Monteiro Lobato, afirma que a obra é violenta, podendo marcar as crianças como modelo negativo. Os breves comentários da autora mostram uma leitura impressionista que despreza a riqueza da narrativa ao se prender a aspectos ideológicos relativizados pelo próprio discurso elaborado em A chave do tamanho. Num segundo Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 23Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 23 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 24 THIAGO ALVES VALENTE momento do comentário sobre a obra, Kupstas a compara com Fábulas, afirmando que a “presença do maravilhoso incorporado ao real” é um valor que continua válido em Lobato, mas isso a autora associa apenas à segunda obra e não à primeira, ou seja, A chave do tamanho não teria valores pertinentes como as outras histórias lobatianas, nem mesmo a presença do maravilhoso. Em sua monografia premiada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, intitulada Monteiro Lobato – um escritor brasileiro, em 1989, Núbia Soares Lima Maranhão volta a caracterizar A chave do tamanho como alegoria e, também, como portadora da crença lo- batiana no progresso. Dado o caráter do trabalho, o que a autora faz é uma apresentação dos livros de Lobato, atribuindo a cada um características estabelecidas pela crítica corrente – no caso de A chave do tamanho, Maranhão recorre às palavras do próprio escritor na carta enviada a Rangel em que concebe a obra como “filosofia que gente burra não entende”. Já na década de 1990, o texto de Otavio Frias Filho e Marco Antonio Chaga (1999), Monteiro Lobato, de 1992, destoa da concepção de obra violenta, identificando o li- vro como “libelo pacifista” e, ainda, aponta A chave do tamanho como, possivelmente, o melhor dos livros infantis de Lobato, sem apresentar argumentos que justifiquem tal afirmação. Merece destaque a leitura realizada pelos autores, mesmo que resultando em brevíssimo comentário, apontando a possibilidade de se compreender Emília no âmbito do discurso político autoritário dos anos 1930, o que não só se contrapõe a uma abordagem baseada em elementos antagônicos, mas também permite ver na per- sonagem a presença de discursos conflitantes, fato ligado à ideia de relatividade. Uma abordagem temática da obra lobatiana também é o objeto de estudo de Lílian Starobinas (1992), em O Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 24Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 24 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 MONTEIRO LOBATO 25 caleidoscópio da modernização: discutindo a atuação de Monteiro Lobato. Nessa dissertação de mestrado, a autora cita A chave do tamanho como exemplo da descrença do escritor na sociedade moderna, levando à relativização do poder das grandes potências. Descrença/ceticismo resulta- do da prisão e da desilusão do escritor, afirma Starobinas. Como proposta de trabalho, o recorte temático da autora não aponta caminhos para abordagens mais específicas de A chave do tamanho ou A reforma da natureza, antes as obras surgem como exemplos do “brincar” com as di- mensões da natureza. No contexto de um trabalho cujo recorte temático aborda toda a produção lobatiana, mais uma vez tem-se a ligação da obra com o ceticismo do escritor diante do mundo como algo estabelecido. Também realizando um recorte temático dos textos de Lobato, Rosa Maria Melloni (1995), com O imaginário e o ideário de Monteiro Lobato: um estudo antropológico, empreende uma análise dos mitos presentes na obra do autor, dada a sua construção de uma imagem ideal do homem e do seu meio. A chave do tamanho aparece, então, como obra em que a mudança de tamanho é elemento propiciador para a mutação dos estados de consciência, um exemplo do mito da transformação. Melloni volta suas atenções à importância do imaginário na constituição do universo infantil lobatiano, um foco de análise em que a citação de obras literárias permite observar concepções a respeito dos textos lobatianos. No caso de A chave do tamanho, obra da qual a autora destaca longo trecho para ressaltar o encanto do mundo imaginário construído por Lobato, Melloni destaca o “raciocínio dedutivo”, a dialética científica num mundo de fantasia e a importância do pen- samento no processo de adaptação mediante as mudanças. Também é um trabalho cuja abordagem apenas toma A chave do tamanho como fonte de exemplos. Nota-se, porém, a ausência da relação da obra com o momento vivenciado Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 25Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 25 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 26 THIAGO ALVES VALENTE pelo escritor, bem como o apontamento de características inerentes ao texto, como a dialética e a razão. Outro trabalho acadêmico, Prólogo de uma Paidéia Lobatiana fundada no fazer especulativo: A chave do tama- nho, de Mary de Andrade Arapiraca (1996), tem o fazer especulativo como objetivo do trabalho, manifestando a preocupação com o tratamento da ciência no texto lobatia- no. Sem empreender análise textual mais pormenorizada, a autora aborda o pensamento científico positivista e seus elementos mais pertinentes, como o método experimental, reiterando e aprofundando um foco de análise verificado em Scavone (1981) e também retomando a questão do caráter iluminista da obra lobatiana, tema abordado por Bosi em 1982. A escolha do tema leva a autora à conclu- são de que o “fazer especulativo” pode ser lido como a principal característica da obra. Também em 1996, em Revendo Monteiro Lobato: vida e obra, de Edgar Cavalheiro: uma leitura de Monteiro Lobato, Sandra M. Giovanetti Bertozzo (1996) retoma o comentário de Cavalheiro (1955), o que se justifica pelo tipo de trabalho realizado. Outro trabalho que nos remete às considerações de Cavalheiro é o de Hilda Junqueira Villela Merz (1996), Histórico e resenhas da obra infantil de Monteiro Lobato, em que se reafirma a ligação de A chave do tamanho com um momento difícil da vida do escritor. A resenha de Merz demonstra a visão corrente da obra – além da ligação com o momento vivenciado pelo escritor, o texto de A chave do tamanho destaca-se pelo seu caráter político-filosófico. Optando por abordar o conteúdo científico da obra, José Apóstolo Netto (1996), em “O discurso cientificista no livro A Chave do Tamanho de Monteiro Lobato”, publi- cado na revista Pós-História, o autor trata do positivismo, ao que acrescenta uma tentativa de breve análise formal identificando elementos textuais, o uso dos tempos verbais, Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 26Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 26 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 MONTEIRO LOBATO 27 por exemplo, como marcas do discurso científico. Esse artigo traz, em sua conclusão, a indicação de uma possível pesquisa no texto de A chave do tamanho – investigar a “visão mecanicista newtoniana”, o que representaria uma contribuição mais original para as investigações dos tex- tos lobatianos. A tentativa de análise formal apresenta-se como possibilidade de compreensão da estrutura narrativa. Deixando em segundo plano as questões temáticas, Juci- mar Cunha Ribeiro de Oliveira (1996), em sua dissertação de mestrado A chave do tamanho: um mundo às avessas, busca analisar a obra sob o foco da estética da recepção. O trabalho de Oliveira debruça-se sobre a estrutura narrativa a partir de teorias da área da Teoria Literária: a teoria do mundo às avessas de Ernest R. Curtius e a estética do efeito de Wolfgang Iser, sendo essa usada pela autora como fun- damento para abordagem no âmbito da estética da recepção. Merece destaque, portanto, a intenção da autora de tratar de elementos intrínsecos à construção do texto, sendo o mundo às avessas o portador de uma proposta de transformação. O “mundo às avessas” comportaria um aspecto didático, ou seja, a inversão da ordem estaria relacionada a uma pro- posta de transformação do mundo direcionada à criança. A estética da recepção é apresentada no âmbito da apreciação da pesquisadora que não chega a demonstrar o resultado de leituras realizadas por crianças – as considerações da autora apresentam-se mais como hipóteses a respeito de “como” as crianças teriam recebido o texto de A chave do tamanho, do que observação da prática desses leitores. Do ano de 1996 é um texto de caráter mais pessoal, de Alaor Barbosa (1996), O ficcionista Monteiro Lobato, que destaca a obra como texto primoroso, o que se deveria a certo ideal de clareza e objetividade de Lobato presentes em A chave do tamanho. Trata-se, sobretudo, de uma apai- xonada, cujo envolvimento pessoal não permite ao autor empreender considerações mais contundentes. Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 27Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 27 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 28 THIAGO ALVES VALENTE Entre as pesquisas acadêmicas da década de 1990, destaca-se a obra de José Roberto Whitaker Penteado (1997), Os filhos de Lobato, em que o autor realiza uma coleta de impressões dos leitores que se formaram lendo Monteiro Lobato. A obra é tratada pelo autor como uma das mais “loucas”, um tipo de ficção infanto-juvenil que se destaca como livro “crucial” da série, importância que não é esclarecida no trabalho de Penteado. A pesquisa apresenta um quadro das possíveis influências do pen- samento lobatiano sobre a geração que se formou lendo os livros do escritor, influências que remetem a certo “iluminismo” uma vez que esse levaria a uma narrativa cujo caráter formador implicaria na discussão de questões político-sociais, como a guerra, um dos temas principais no texto de A chave do tamanho. Uma análise voltada para os elementos narrativos é o trabalho de Carmem Silva Martins Leite (1998), Análi- se da narrativa carnavalizada A chave do tamanho, de Monteiro Lobato. Nessa dissertação de mestrado, tendo como referencial teórico a visão carnavalesca do mundo às avessas de Mikhail Bakhtin, a autora realiza uma análise estrutural de A chave do tamanho, identificando elementos da sátira menipeia e destacando o fantástico. Ao dialogar muito de perto com o trabalho de Oliveira (1996), Leite retoma a ideia do mundo às avessas enfatizando, porém, outras implicações desse processo como o dialogismo que, segundo a autora, perpassa todo o texto lobatiano. É im- portante notar a referência ao intertexto, o que remete novamente ao texto de Faria (1983). Finalmente, a autora ressalta a busca incessante pela verdade, o que se dá por meio de uma leitura prazerosa. Em 1998, Ana Mariza Ribeiro Filipouski (1998), em “A obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato”, publicado na Revista da Biblioteca Mário de Andrade, afirma que A chave do tamanho é uma obra que se projeta para o futuro, Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 28Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 28 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 MONTEIRO LOBATO 29 levando a criança à reflexão. A observação da autora mostra a compreensão da obra por um viés temático, destacando certo caráter “pedagógico”, um tipo de observação que, mesmo breve, retoma ideias estabelecidas a respeito do texto de A chave do tamanho, no caso, seu conteúdo como um conjunto de ensinamentos filosóficos, o que afirmara Cavalheiro em sua obra de 1955. As características apontadas como positivas seja por Leite (1998), seja por Filipouski (1998), não são, entre- tanto, suficientes para retirar a obra de uma perspectiva de periculosidade, como se vê nas observações de Nelly Novaes Coelho (2000), em Literatura infantil – teoria, análise, didática, para quem o texto lobatiano é marcado por distorções de valores que podem servir de modelo negativo aos pequenos leitores; um texto cujo perigo está em apresentar como valor a relatividade das crenças e atitudes humanas. Mais recentemente, no âmbito dos estudos temáti- cos, Mulheres em Lobato: uma leitura feminista das obras Reinações de Narizinho e A chave do tamanho, Sandra Araújo de Lima (2002) aborda A chave do tamanho porque nela uma personagem feminina, Emília, é a protagonista. Contudo, retomando até mesmo os traços positivistas do texto de Lobato, a autora afirma que não consegue ver nenhum enaltecimento da personagem feminina na obra. Também realizando uma abordagem temática, O Poço e a Chave: progresso e guerra na obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato, de Ana Amélia Vianna Gouvêa (2003), é uma dissertação de mestrado que merece destaque pelo trabalho de identificação da temática de guerra em toda a obra lobatiana. A escolha da autora, O poço do Visconde (1937) e A chave do tamanho (1942), tem como objetivo mostrar a mudança do ponto de vista do escritor, de uma defesa irrestrita ao desenvolvimento, na primeira obra, à descrença na capacidade humana de bem usar a tecnologia, Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 29Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 29 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 30 THIAGO ALVES VALENTE na segunda. Embora também relacione a obra ao momento vivenciado pelo escritor – morte dos filhos, idade, contexto histórico –, a autora avança em sua análise, realizando uma contextualização não só no âmbito da história factual, mas também da produção literária internacional, quadro em que se destaca A chave do tamanho. Último trabalho identificado por nossa pesquisa, a tese de Adriana Silene Vieira (2004), Viagens de Gulliver ao Brasil: Estudo das adaptações de Gulliver’s Travels por Carlos Jansen e por Monteiro Lobato, de 2004, trata de A chave do tamanho retomando a análise já realizada por Faria (1983). A presença da miniaturização é o elemento que estabelece o diálogo com Gulliver’s Travel, de Swift, porém, a autora também destaca a violência presente em A chave do tamanho, bem como a ironia, características que aproximam Lobato do escritor irlandês. É interessante notar que a proposta inicial do trabalho, o cotejo das tra- duções de Jansen e Lobato, acaba conduzindo a A chave do tamanho pelas discussões instauradas a respeito do diálogo das obras desses escritores. A autora conclui seu trabalho conduzindo nosso olhar para a presença de Gulliver em A chave do tamanho e abandonando a abordagem inicial das traduções; fato que poderíamos entender como resultante da atração exercida por uma história que se nutre de clássicos infantis universais, como a obra de Swift, e, ao mesmo tem- po, apresenta-se como uma narrativa original e complexa. Enfim, como notamos nesta breve observação da fortuna crítica sobre A chave do tamanho, a partir da década de 1980, quando os estudos acadêmicos voltam-se com mais atenção para a literatura infantil brasileira, delineiam-se alguns pontos constantemente retomados pelos pesquisa- dores. Um deles é a ênfase na abordagem temática, talvez ressaltada pela singularidade da obra em meio à produção tanto nacional quanto internacional nos anos da Segunda Guerra, como afirma Gouvêa (2003). Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 30Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 30 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 MONTEIRO LOBATO 31 Os textos críticos recolhidos nesta pesquisa constituem um conjunto de dados relevante para a melhor compreensão do texto de A chave do tamanho no contexto da literatura infantil brasileira. De modo geral, podemos encontrar algumas linhas de investigação que se constituíram desde a publicação dos primeiros textos abordando A chave do tamanho. Tendo como ponto de partida o comentário de Léo Vaz, em 1945, percebemos que a maioria dos textos se insere numa abor- dagem ideológica, enfatizando a carga filosófica da obra. O outro grupo, bem menor, é aquele formado por textos cujo foco de análise se encontra sobre os elementos narrativos. Essas duas abordagens podem ser encontradas tanto em obras de caráter mais panorâmico, como o trabalho de Vasconcelos (1982) que analisa aspectos ideológicos de toda a série infantil lobatiana, quanto em textos voltados para análises mais localizadas, como o trabalho de Lima (2002), que procura realizar uma leitura feminista de A chave do tamanho. Tendo em vista somente os textos críticos cujo objeto de análise é A chave do tamanho, ou seja, não conside- rando textos em que a obra é citada ou comentada em meio a outros temas, apresenta-se a seguir uma lista em que se delineiam pelo menos três principais tendências de abordagem da obra: 1 Ideologia, pensamento filosófico • Léo Vaz (1945), “A chave do tamanho”. Revista da Academia Paulista de Letras. • Pe. Sales Brasil (1959), A literatura infantil de Mon- teiro Lobato ou comunismo para Crianças. • André Luiz Vieira de Campos (1986), A República do Picapau Amarelo – uma leitura de Monteiro Lobato. • Lilian Starobinas (1992), O caleidoscópio da moder- nização: discutindo a atuação de Monteiro Lobato. Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 31Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 31 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 32 THIAGO ALVES VALENTE • Ana Maria Lisboa de Mello (1995), A chave do ta- manho: a instauração de uma nova ordem. • Rosa Maria Melloni (1995), O imaginário e o ideário de Monteiro Lobato: um estudo antropológico. • Sandra Araújo de Lima (2002), Mulheres em Lobato: uma leitura feminista das obras Reinações de Nari- zinho e A chave do tamanho. • Ana Amélia Vianna Gouvêa (2003), O poço e a cha- ve: progresso e guerra na obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato. 2 Cientificismo • José Apóstolo Netto (1996), O discurso cientificista no livro A chave do tamanho de Monteiro Lobato. • Mary de Andrade Arapiraca (1996), Prólogo de uma paideia lobatiana fundada no fazer especulativo: A chave do tamanho. • Carlos Ziller Camenietzki (1988), O saber impotente. • Antonio Carlos Scavone (1981), Reflexos do posi- tivismo em A chave do tamanho. 3 Questões estéticas • Maria Alice de Oliveira Faria (1983), A “imaginação miniaturizante” em A chave do tamanho. • Carmem Silva Martins Leite (1998), Análise da narrativa carnavalizada A chave do tamanho, de Monteiro Lobato. • Jucimar Cunha Ribeiro de Oliveira (1996), A chave do tamanho: um mundo às avessas. • Adriana Silene Vieira (2001), A chave do tamanho e as Viagens de Gulliver. • Regina Zilberman (1982), Monteiro Lobato e a aventura do imaginário. Pelo levantamento de dados, nota-se a preponderância de trabalhos voltados para a análise de conteúdos ideoló- Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 32Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 32 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 MONTEIRO LOBATO 33 gicos da obra, especialmente em estudos acadêmicos. As questões estéticas aparecem na maioria das vezes de forma periférica. A quase totalidade dos textos é produzida a partir dos anos 1980, momento em que obras fundamentais para os estudos na área de literatura infantil brasileira aparecem com grande apelo ao público acadêmico e escolar. Ou seja: a partir dos anos 1980 é que se encontra uma crítica estabelecida em relação aos estudos dos textos de Lobato, como A chave do tamanho. Observando somente os trabalhos acadêmicos e teses em que a obra é citada de alguma forma (considerando os trabalhos como foram consultados durante a pesquisa), têm-se os seguintes dados (até 2004): Dissertações – Mestrado Sandra M. Giovanetti Bertozzo (1996), Revendo Monteiro Lobato vida e obra de Edgar Cavalheiro: uma leitura de Monteiro Lobato. Carlos Ziller Camenietzki (1988), O saber impotente. Ana Amélia Vianna Gouvêa (2003), O poço e a chave: progresso e guerra na obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato. Carmem Silva Martins Leite (1998), Análise da narrativa carnavalizada A chave do tamanho, de Monteiro Lobato. Sandra Araújo de Lima (2002), Mulheres em Lobato: uma leitura feminista das obras Reinações de Narizinho e A chave do tamanho. Jucimar Cunha Ribeiro de Oliveira (1996), A chave do tamanho: um mundo às avessas. Lílian Starobinas (1992), O caleidoscópio da modernização: discutindo a atuação de Monteiro Lobato. Teses – Doutorado Mary de Andrade Arapiraca (1996), Prólogo de uma paideia lobatiana fundada no fazer especulativo: A chave do tamanho. Rosa Maria Melloni (1995), O imaginário e o ideário de Monteiro Lobato: um estudo antropológico. Adriana Silene Vieira (2004), Viagens de Gulliver ao Brasil: estudo das adaptações de Gulliver’s Travels por Carlos Jansen e por Monteiro Lobato. Podem-se ainda acrescentar aos títulos citados na tabela os trabalhos de Vasconcellos (1982) e Penteado (1997), já publicados em livro – o que daria um total de 12 pesquisas Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 33Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 33 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 34 THIAGO ALVES VALENTE entre produções de mestrado e doutorado. Desse conjunto, porém, somente três trabalhos têm A chave do tamanho como objeto central de análise, as pesquisas de Arapiraca (1996), Oliveira (1996) e Leite (1998) – a primeira com uma abordagem temática e as outras duas com um foco de análise muito próximo (carnavalização, mundo às avessas). Considerada em sua totalidade, a constituição dessa crítica mostra-se atrelada a ideias veiculadas por contem- porâneos de Lobato, como Léo Vaz e Edgar Cavalheiro, cujos comentários são retomados até o momento. Se isso confere certa legitimidade aos estudos, pois recorrem a fontes próximas do escritor, também acaba por configu- rar uma certa acomodação, levando os pesquisadores a se dedicarem a um grupo restrito de temas – o relativismo, a Segunda Guerra Mundial, o discurso científico. Pensar a figura de Monteiro Lobato no contexto da produção de livros para crianças leva ao reconhecimento da importância de seu trabalho tanto no que diz respeito à quantidade quanto no que se refere aos aspectos ineren- tes à qualidade de seus textos. Em relação à quantidade, observa-se na organização que realiza para as Obras com- pletas, 1947, uma vasta obra para o público infantil – são mais de vinte livros destinados a um público com grande potencial de crescimento em relação a aumento do número de crianças inseridas no universo da leitura pela escola. A qualidade, por sua vez, iria ser o elemento decisivo para a permanência dessas obras no circuito literário destinado às crianças brasileiras. Entre os títulos lançados, primeiro, pela Cia. Editora Nacional e, depois, pela Editora Brasiliense, encontram-se obras de caráter eminentemente didático, como Aritmética da Emília (1935), adaptações de clássicos infantis, como Peter Pan (1930) e, por último, textos em que a fantasia se sobrepõe aos ensinamentos e discursos pedagogizantes, é o caso de A chave do tamanho (1942). Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 34Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 34 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 MONTEIRO LOBATO 35 Como em outras histórias com a turma do Picapau Amarelo, em A chave do tamanho, depara-se uma aventura cheia de surpresas, pontilhada de nonsense, ironia, fan- tasia, elaborada com uma linguagem coloquial, próxima do público a que se destinava, tratando de temas tidos como “sérios”, mas dos quais Lobato não poupava seu público. Mas a obra em questão tem suas peculiaridades, características que levaram críticos a considerá-la como “escatológica”, “pitoresca”, “elixir filosófico”, “obra- -prima” da literatura infantil. O papel de destaque que A chave do tamanho acaba ocupando, seja no contexto da obra lobatiana seja no con- texto da produção nacional, pode ser constatado nas mais diversas abordagens realizadas por estudos que, em geral, têm por objetivo a(s) ideologia(s) presentes no texto. Essas abordagens, cujos estudos certamente comprovam a riqueza do objeto a que se dedicam, configuram um quadro que, se, por um lado, abre novas perspectivas para a leitura e compreensão da obra, por outro, encerram em si, por vezes, uma visão parcial do texto, cuja maior e melhor contribui- ção se dá quando colocada no conjunto da fortuna crítica. Essa fortuna crítica revela, ainda, a necessidade de se empreender uma análise textual em que os elementos estruturais da narrativa possam ser compreendidos em sua funcionalidade na construção da obra, o que permite o tratamento de temas e ideologias já percebidas e analisadas em outros estudos. Cotejo de edições A primeira edição de A chave do tamanho saiu em 1942, pela então existente Companhia Editora Nacional, fazen- do parte da chamada “1a série, literatura infantil”, como volume 33. Seu tamanho é de 15 cm x 22 cm (medidas Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 35Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 35 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 36 THIAGO ALVES VALENTE aproximadas), com 161 páginas. A capa e a contracapa são coloridas, formando uma só ilustração, realizada, tal como os outros desenhos do texto, por J. U. Campos. Abaixo do título, há o subtítulo “A maior reinação do mundo”, e, após a página de rosto, novamente o título com a seguinte mensagem: História da maior reinação do mundo, na qual Emilia, sem querer, destruiu temporariamente o tamanho das criaturas humanas. Ainda, antes de se iniciar a narrativa, consta uma “ex- plicação necessária” (registrada a seguir com a ortografia original): Os personagens deste livro vêm de obras anteriores. Todos nascem em Reinações de Narizinho e aparecem em O Saci, Viagem ao Céu, Caçadas de Pedrinho, Emilia no País da Gramática, Geografia de Dona Benta, Aritmética da Emilia, O Poço do Visconde, O Picapau Amarelo, O Minotauro e outros. Dona Benta, avó de Pedrinho e Narizinho, vive com eles no sitio do Picapau Amarelo, em companhia de tia Nastácia, uma preta cozinheira, e mais o visconde de Sa- bugosa, que é um sabugo de milho muito sábio, Quindim, que é um rinoceronte domesticado, o Conselheiro, que é um admiravel burro falante e a Emilia, uma ex-boneca de pano, antiga esposa do celeberrimo Marquês de Rabicó. Emilia foi evoluindo e insensivelmente passou de boneca a gente de verdade, conservando o tamanho inicial – 40 cen- timetros de altura. É o simbolo da independencia mental e da habilidade para enfrentar todas as situações. Pratica- mente é quem governa o sitio de Dona Benta – e sempre exerceu uma completa ascendencia sobre o visconde. A vida no Picapau Amarelo é um interminavel suceder de reinações maravilhosas, nenhuma das quais equivale em Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 36Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 36 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 MONTEIRO LOBATO 37 originalidade e imprevistas consequencias para o mundo á descrita nesta obra. Emilia excedeu-se, como disse o vis- conde – e por um triz não determinou no gênero humano a mais radical das mudanças – como o leitor verá. Antes do cotejo entre a primeira edição e a de 1947, a qual se mantém em circulação, torna-se necessário fazer algumas considerações sobre as indicações bibliográficas sobre A chave do tamanho. Diante das alterações perce- bidas na obra, buscou-se encontrar o momento em que teriam sido realizadas. Em geral, as buscas resultaram em poucas pistas, e a maior contribuição veio do trabalho de Bertozzo (1996), cujas informações permitiram o quanto foi possível melhor situar as edições da obra. Entre 1946 e 1947, Lobato realiza uma revisão de toda sua obra para a Editora Brasiliense; inferiu-se, a partir dos dados levantados, que as mudanças foram realizadas nesse momento. Ainda pode-se constatar, a partir do co- tejo da 1a, da 17a, da 42a edições e da edição de 1947 que modificações ortográficas (alteração de letras, colocação ou retirada de artigos, substituição de travessão por dois pontos e vice-versa, utilização ou não de letra maiúscula – visconde/Visconde, por exemplo) estão ligados à forma adotada pela editora para a publicação lobatiana, pois muitas alterações não são encontradas nos livros con- temporâneos do escritor. O subtítulo e a “explicação necessária”, por exemplo, ora apareceriam ora não nas edições posteriores – na 42a, utilizada neste trabalho, não aparece nem uma nem outra dessas partes, e na capa, não consta o subtítulo “A maior reinação do mundo”. Mas, a alteração mais importante verificada entre essas duas edições é a redução do número de capítulos, de 28 (1942), para 25 (1947). A seguir, capítulos da 1a edição (os trechos alterados estão em itálico) que foram modificados ou suprimidos posteriormente: Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 37Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 37 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 38 THIAGO ALVES VALENTE Capítulo XIX Viagem a Europa Tudo estava pronto para a viagem. No ultimo momento o visconde achou melhor desistirem do plebiscito e, em vez do passeio pelo mundo, tocarem diretamente para a Casa das Chaves. Alegou que cada minuto de demora eram mais milhões de seres humanos que pereciam em todos os continentes. – E não se perde grande coisa – respondeu Emília. – O infinito é um colosso, visconde. Há lá pelos céus milhões e milhões de astros muitíssimas vezes maiores que esta pul- guinha da Terra. E nesta pulguinha da Terra a humanidade é uma poeirinha malvada. Para o Universo tanto faz que essa poeirinha exista como não exista. Aquele pouco caso da Emilia pela humanidade não im- pressionou o visconde. Ele viu no fundo que não era pouco caso, e sim muito caso. Emilia revoltava-se com as guerras e as outras formas de crueldade dos seres humanos. O apequenamento causado pela sua reinação evidentemente não fora de propósito. Quando Emilia virou a chave, sua intenção não fora fazer mal a ninguém, e sim bem: acabar com as guerras. Havia de haver uma chave da guerra, e o seu pensamento foi ir experimentando todas as chaves até acertar. Mas assim que virou a primeira, aconteceu o tal apequenamento, e ela nem sequer pôde suspender outra vez a chave, quanto mais experimentar as outras. “Emilia é filósofa”, pensou o visconde, “e quando se põe a filoso- far parece que tem coração duro mas não tem. Emilia é filosoficamente boa.” Depois de tudo bem combinado, e de tomadas lá na cômoda todas as providências, partiram. O fiun foi formi- dável, porque quanto mais novo é o superpó, mais forte. Emilia, coitadinha, perdeu completamente os sentidos, e o visconde ficou mais tonto que das outras vezes. Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 38Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 38 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 MONTEIRO LOBATO 39 Por fim chegaram. O visconde levou minutos sentado, de pernas estiradas, olhando sem ver, ouvindo sem ouvir. Quando se pôs de pé, quase caiu, de tão tonto. Emilia! – chamou ele, e repetiu três vezes o chamado. Como não obtivesse resposta, tirou a cartola e espiou pela janela. A coitadinha estava desacordada. O visconde despejou-a na palma da mão, cuidadosamente, e soprou-a de leve. Nada. Soprou mais forte. Nada. – Parece incrível – murmurou ele – que essa grande coi- sa chamada humanidade dependa desta formiguinha sem sentidos que eu tenho na palma da mão! Se Emilia voltar a si, tudo poderá ser salvo; mas se morrer, é bem provável que estes insetos descascados também morram todos, e só fiquemos no mundo eu, o Conselheiro e o Quindim – os únicos seres falantes e escreventes – e que adiantará a “História do Grande Desastre” que eu possa escrever em minhas memórias? Não existirá ninguém para lê-la. E o curioso é que o mundo continuará [não tem a expressão “a rodar”] como se não tivesse havido nada. O burro, Quindim e todos os mais rinocerontes e hipopótamos e leões e tigres e a bicharada inteira desde os pintos suras até os micróbios, continuarão a existir como até hoje – e até ficarão muito contentes com o sumiço do Homo sapiens. Porque o Homo sapiens era o que mais atrapalhava a vida natural dos bichos. Até Rabicó, aquele patife, continua- rá a fossar os brejos em busca de minhocas – e já sem medo nenhum do bodoque de Pedrinho ou das ameaças de Emilia. Estava nesse ponto da conversa consigo mesmo, quan- do a “formiguinha desmaiada” fez um leve movimento e logo em seguida outro. O visconde respirou aliviado. – Ora graças que está acordando. Emilia despertou e sentou-se. Passou a mão pelos olhos ainda turvos. – Onde estou? Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 39Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 39 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 40 THIAGO ALVES VALENTE – Aqui comigo, na palma da minha mão, em qualquer parte da Europa – disse o visconde. Emilia sorriu e pôs-se de pé, ainda tontinha; firmou-se logo, porém, e pediu a cartola. – Erga-me para a cartola, visconde. Sua mão está muito quente e suada. Assim foi feito. – Onde será que estamos? – perguntou, logo que re- apareceu em sua janelinha. – Isto aqui parece um campo de trigo sem trigo, mas de que país? Os campos de trigo sem trigo são todos semelhantes, de modo que por meio deles ninguém consegue identificar um país. Para isso, só as cidades. – Vamos tomar por aquele caminho, visconde – disse ela referindo-se à estrada que se via dali. – Todo caminho dá em cidade. O visconde dirigiu-se para a estrada e pôs-se a cami- nhar. Uma larga estrada deserta, com sinais de tráfego nas curvas e pontos perigosos. Esses sinais também não permitiram a identificação do país, porque são os mesmos em toda parte. Só quando chegaram a um cruzamento puderam ler a tabuleta indicadora da direção. Havia de cada lado uma flecha com um nome embaixo. O viscon- de viu imediatamente que o superpó os havia largado na Alemanha. – Muito bem, este nome de Furstenwalde mostra que estamos perto de Berlim. O melhor é irmos diretamente para lá. – Ótimo – concordou Emilia. – Com a cheirada de alguns grãos de superpó, estaremos em Berlim em meio segundo. – Mas não vá perder os sentidos outra vez – disse o visconde, dando-lhe apenas meio grãozinho de superpó e aspirando um inteiro. Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 40Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 40 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 MONTEIRO LOBATO 41 Capítulo XX Em Berlim O passeio do visconde e da Emilia pela cidade de Ber- lim dava assunto para um livro inteiro. Quanta coisa obser- varam! A capital da Alemanha pareceu-lhes perfeitamente morta. A enorme quantidade de montinhos de roupa em todas as ruas revelava a sua grande população. Na maioria eram montinhos de farda, com um capacete ou quepe em cima. Inúmeros automóveis despedaçados, quase todos militares. O apequenamento havia acontecido às 4 hora, que é a hora de Berlim correspondente às 10 da manhã lá no sítio. A população estava em plena atividade nas ruas, quando subitamente desapareceu. O que de fato havia acontecido à humanidade inteira fora isso – um desapa- recimento. No mesmo instante, em todos os continentes, em todas as cidades, em todas as casas e ruas, em todos os navios e trens, os seres humanos derreteram-se como sorvete, dentro das roupas, mas de modo instantâneo, e as roupas ficaram no lugar, em “montinhos largados”, quase sempre com um chapéu em cima. E em substitui- ção de cada criatura apareceu dentro de cada montinho de roupa um inseto bípede de várias cores – uns cor-de- -rosa, outros amarelos, outros cor de cobre, outros pretos como carvão. Foi isso o que se deu: completa extinção da Humani- dade, porque os insetos de dois pés que a substituíram já não eram propriamente a Humanidade – eram a Bichidade, como a Emilia classificou. E, portanto, ela, a Emilia, a Emi- linha do sítio de Dona Benta, havia realizado um prodígio sem nome: suprimido a Humanidade! O que os gelos dos períodos glaciais não conseguiram e o que não conseguiram as erupções vulcânicas, e os terremotos, e as inundações, e as grandes fomes, e as grandes pestes, e as grandes guerras, a marquesinha de Rabicó havia conseguido da maneira mais Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 41Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 41 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 42 THIAGO ALVES VALENTE simples – com uma virada de chave! Aquilo era positiva- mente o Himalaia dos assombros. Todas as casas de Berlim estavam abertas e desertas. Ninguém, de ninguém , de ninguém. Só cachorros e gatos. Esses novos antropófagos andavam livremente por toda parte; os cães tinham aprendido a revolver os montinhos de roupa e os gatos pescavam com a mão os insetos mal escondidos nas frestas. Muitos passarinhos do campo também vieram caçar em Berlim. Emilia recordou o tem- po da saída de içás lá no sítio em outubro, coisa que tanto assanhava os passarinhos e as aves domésticas. – Veja! – exclamou o visconde filosoficamente. – Esta gente, que era a mais terrível e belicosa do mundo e estava empenhada numa guerra para a conquista do planeta, ainda é mentalmente a mesma – quero dizer, ainda sente e pensa da mesma maneira. E ainda sabe tudo quanto aprendeu. Os químicos sabem fazer prodígios com a com- binação dos átomos. Os físicos e mecânicos sabem todos os segredos da matéria. Os militares sabem todos os segredos da arte de matar. Mas como perderam o tamanho, já não podem coisa nenhuma. Sabem, mas não podem. Que coisa terrível para eles! – Estou vendo que a grande força dos homens estava no tamanho – disse Emilia. – O tamanho era como o cabelo de Sansão. Quando Dalila cortou o cabelo de Sansão, o coitado perdeu toda a força. – Exatamente – concordou o visconde. – O tamanho era tudo, isto é, todo o aparelhamento mecânico da hu- manidade fora feito para os homens daquele tamanho. Assim que aquele tamanho mudou, adeus viola! Tudo ficou absolutamente inútil. Até as invenções dependem do tamanho. Agora compreendo porque as formigas não inventam nada. Não podem, por falta de tamanho. Que coisa tremenda o tamanho! Está aí uma idéia que nunca me passou pela cabeça. Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 42Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 42 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 MONTEIRO LOBATO 43 E realmente era assim. Aquela grande cidade com todas as suas máquinas e veículos e organizações, valia menos, para os novos insetos louros, do que um buraquinho na terra (dos sem dono dentro) ou uma fresta de rodapé. O visconde parou diante do palácio do governo e ficou a balançar a cabeça filosoficamente. – Aqui morava o ditador que levou o mundo inteiro à maior das guerras, e destruía cidades e mais cidades com seus aviões, e afundava os navios com os seus submarinos, e matava milhares e milhares de homens com seus canhões e as suas metralhadoras – o homem mais poderoso que já existiu. Tudo isso por quê? Porque tinha oito palmos e meio de altura. Assim que foi reduzido a quatro centíme- tros, todo o seu poder evaporou-se. Ele, se é que ainda não foi para o papo de algum pinto sura, permanece o mesmo, com a mesma energia mental, a mesma disposição destrui- dora e a mesma vontade de aço – mas não pode mais nada. – Ah, se nós conseguíssemos encontra-lo! – suspirou Emilia. – Quem sabe? É possível que ainda esteja dentro deste palácio. O visconde subiu as escadarias e entrou. Enormes salões desertos, com o chão coalhado de montinhos de farda. Aqui e ali, um gato ou cachorro vagabundo. O silêncio era impressionante. O visconde lembrou-se de sacudir um dos montinhos de farda e viu cair pela manga um inseto louro, nu, mortíssimo. O pano amontoara-se de mal jeito em cima dele; o inseto, que não pudera sair, mor- rera abafado. Examinando os bolsos da blusa, o visconde encontrou a carteira de identificação do falecido. Era um grande general, famoso pelas destruições feitas na Polônia. Emilia ficou a olhar para aquela tripinha que o visconde erguia no ar por um pé. – Extraordinário! – disse ela. – Esta simples tripinha foi um dos terrores do mundo, só porque era dotado de Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 43Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 43 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 44 THIAGO ALVES VALENTE tamanho. Estou vendo, visconde, que o tamanho dos ho- mens era realmente a pior coisa que havia – e fiz muito bem de acabar com ele. O melhor será irmos à Casa das Chaves e também suprimirmos o tamanho de todos os outros animais. Para que tamanho? Um micróbio vive perfeitamente – e é pequenininho a ponto de ser invisível. Outros montes de farda foram sacudidos sem que nada caísse de dentro. Os insetos destas roupas puderam safar-se, disse Emi- lia – mas onde andam? Não tardaram a descobri-los. Embaixo dos moveis, nos caminhos mais escuros, nas frestas, por toda parte onde houvesse minúsculos abrigos naturais, o visconde desco- briu medrosos ajuntamentos de insetos louros. Inúmeros já estavam no papo da gataria invasora e dos cães. Cão não come inseto, mas inseto feito de carne humana é petisco diferente e raro. Além disso, os gatos e cães da Alemanha andavam com rações muito curtas de modo que se apro- veitavam daquela imprevista oportunidade. O visconde foi andando de sala em sala. Uma delas parecia a do Grande Ditador. – Era aqui – disse Emilia – que ELE mandava e des- mandava. Agora, com certeza, anda escondido nalgum buraquinho. Mas como poderemos reconhece-lo? Pelo bigode. Nada mais fácil. Com um pauzinho o visconde começou a tirar os aria- nos escondidos nas frestas ou debaixo dos móveis. De sob a secretária do Grande Ditador saíram vários, eviden- temente generais e homens de governo. Um deles tinha bigodinho. A entrevista de Emilia com o Grande Ditador dava um livro de mil páginas, mas temos de resumir. A pedido dela o visconde ergueu-o até a altura da janelinha para que pudesse ouvir o seu discurso. Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 44Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 44 08/02/2012 17:34:2508/02/2012 17:34:25 MONTEIRO LOBATO 45 – Meu senhor – disse ela – tenho a honra de apresen- tar a Vossa Excelência o visconde de Sabugosa, o milho falante lá do sítio de Dona Benta. E também me apresen- to a mim mesma – frau Emilia, Marquesa von Rabicó. Viemos dar uma vista d’olhos pelas Europas e o acaso nos largou nesta Alemanha de Vossa Excelência. Mas estou admirada do que vejo. Esperei encontrar o grande arsenal das ditaduras dando tiros de canhão e espirrando fogo, e o que no próprio palácio do Grande Ditador eu vejo são montinhos de fardas vazias e arianos insetiformes, tímidos, nus, escondidos pelos cantos e vãos e frestas. Que foi que aconteceu, Excelência? Para uma criaturinha de quatro centímetros, um “mi- lho” como o visconde, de dois palmos de altura, equivalia a um formidável gigante. Nada mais natural, pois, que o Grande Ditador se encolhesse todo, sem ânimo de soltar uma só palavra. Mas Emilia o sossegou. – Não se assuste, Excelência. O visconde é o maior gigante do mundo, mas também é milho – um vegetal ex- tremamente pacato. Além disso é um grande sábio – hoje o maior sábio do mundo. E não é judeu, não, Excelência. Não tenha medo. O visconde é arianíssimo. Quando esteve no milharal que foi o seu berço, o vento dava na sua linda cabeleira platinum blonde. Hoje está velho e careca e anda sempre com o meu sítio na cabeça. Não entende? Meu sítio é esta cartola. Pois bem, Excelência. Cheguei até cá para dizer uma coisa só – que o Tamanho morreu. E quem acabou com o Tamanho eu sei quem foi, e sei também que essa pessoa é a única que pode novamente restituir aos homens o antigo e querido tamanho – aquele tamanho malvado, porque se não fosse ele os homens não teriam sido maus como foram, fazedores de guerras, incendiadores de cidades, afundadores de navios, judiadores de judeus. Mas esse misterioso alguém só restaurará o tamanho perdido se tiver a certeza de que Vossa Excelência vai fazer a paz, Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 45Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 45 08/02/2012 17:34:2608/02/2012 17:34:26 46 THIAGO ALVES VALENTE e botar fora todas as horrendas armas que andou amon- toando, e desse momento em diante viverá na mesma paz e harmonia com o mundo em que vivem as formigas e abelhas. Se o Tamanho voltar e tudo ficar como estava, quero vida nova, sem guerras, sem ódios, sem matanças, sem armas, está entendendo? E se por acaso algum dos futuros poderosos romper o trato, o castigo será terrível. Sabe qual será o castigo? O tal “alguém” desce a chave duma vez, e o Tamanho fica reduzido a zero. Em vez de 4 centimetros, como Vossa Excelência tem hoje, passará a ter 4 milimetros, ou menos, e será devorado até pelas moscas e pulgas. Está entendendo? Claro que estava entendendo. Quem não entenderia uma linguagem tão pão pão queijo queijo como aquela? O Grande Ditador animou-se e quis falar. Emilia o deteve com um gesto. – Não diga nada, meu senhor. Já houve falação demais. Quem fala agora sou eu. Quero todos muito direitinhos e humildes. Esta semana de “redução” não passa duma ad- vertência que o tal “alguém” faz ao mundo. Compreende? Assim terminou Emilia o seu sermão ao chefe do Eixo. Depois ordenou ao visconde: Enfie-o no buraquinho onde estava e vamos ver o outro. O visconde enfiou o Grande Ditador na fresta do ro- dapé, de onde seu Estado Maior espiava com os olhos arregalados. Em seguida cheirou o grão de superpó que os iria levar à Itália. Capítulo XXI Na Itália e na Inglaterra Em Roma o super-pó largou o visconde diante do palácio do outro Grande Ditador. O visconde foi entrando. Viu lá a mesma coisa: fardas e mais fardas aos montinhos e também Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 46Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 46 08/02/2012 17:34:2608/02/2012 17:34:26 MONTEIRO LOBATO 47 montinhos de roupas civis – as dos funcionários do palácio. Por mais que procurasse, entretanto, não conseguiu descobrir o paradeiro do Ditador número dois. Uma galinha leghorn que passava por ali chamou a atenção de Emília. Estava de papo cheio. Hum! fez Emilia. Já sei o destino que ele levou. Como nada mais houvesse a fazer na Itália, partiram para a Inglaterra. Em Londres tiveram a sorte de descobrir o tremendo velho que dirigia os destinos do mundo britânico durante a catástrofe mundial. Era um homem de 70 anos, mais rijo que um couro cru. E grande fumante. Andava sempre com um enorme charuto na boca, e foi exatamente esse charuto o que o denunciou numa das salas do palácio do governo. O visconde viu no chão um grande charuto apagado e sentado perto dele um homenzinho gordo. Como por muito tempo o seu retrato houvesse aparecido em todos os jornais do mundo, foi fácil a identificação. Emilia fez o visconde descer a cartola. Ficou de pé no alto e pronunciou um discurso um pouco diferente do pronunciado em Berlim. O Primeiro Ministro inglês não revelava medo nenhum do gigantesco visconde. Parecia um homem com- pletamente livre de todos os medos possíveis e imagináveis. – Meu senhor, disse ela por fim, o que houve foi um castigo por causa do crime da guerra. E nem haverá mais necessidade disso. A verdadeira causa das guerras sempre foi o excesso de gente, diz dona Benta. Ora, este mal está remediado. Com dois dias de apequenamento, as galinhas, pintos suras, os pardais e os galos já devem ter posto a pique mais de um terço da tonelagem humana. Quer dizer que se o Tamanho reaparecer, haverá espaço vital para todos. Mas se apesar disso os homens teimarem em resolver os problemas humanos a tiros de canhão em vez de acordos, o remédio eu já sei: uma voltinha na Chave do Tamanho e mais uns dias de novo apequenamento. Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 47Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 47 08/02/2012 17:34:2608/02/2012 17:34:26 48 THIAGO ALVES VALENTE O Primeiro Ministro do Império Britânico franziu a testa. Não estava compreendendo nada, nem podia com- preender. Era um homem extremamente simpático e inteli- gente. Emilia concordou com a admiração que dona Benta sentia por ele. Um dos mais interessantes aspectos mundo novo era o da enorme quantidade de aviões despedaçados. Todos os aparelhos que haviam erguido vôo no dia do apeque- namento ficaram sem governo e foram caindo aqui e ali. O mesmo sucedeu aos trens e navios. Os trens em movi- mento descarilaram todos, depois que seus maquinistas viraram insetos. O mesmo desastre nos oceanos. Os navios transformaram-se em “navios fantasmas”, isto é, que an- dam soltos pelo mar ao sabor dos ventos sem tripulação que os dirija. A cada passinho as ondas arremessavam um deles à praia. Depois de longo passeio pelas ruas de Londres, muitas delas reduzidas a montões de ruínas, o visconde foi para o Japão. O aspecto das cidades japonesas era o mesmo das eu- ropéias. Montinhos de roupa por toda parte, fardas, e também quimonos. Automóveis escangalhados, trens arrebentados, aviões despedaçados. – Onde é o palácio do Imperador? quis saber Emilia. – Em Tókio, respondeu o visconde e foram para lá. Foi fácil em Tókio darem com o palácio do Imperador, e por mero acaso descobriram o soberano amarelo. O visconde vira numa das salas um gato brincando de dar tapinhas numa tampa de caneta-tinteiro caída no chão. Era o Gato Imperial – o gato de estimação de Sua Majestade. Evidentemente havia dentro da tampa qualquer coisa que o interessava. Não conseguindo fazer com que essa qualquer coisa saísse lá de dentro, o gato ficou de banda, imóvel, como fazem os gatos do mundo inteiro quando encontram um buraquinho de camundongo. Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 48Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 48 08/02/2012 17:34:2608/02/2012 17:34:26 MONTEIRO LOBATO 49 O visconde espantou o Gato Imperial e tomando a tampa da caneta virou-a de boca para baixo, sacudindo-a. Caiu de dentro uma tripinha cor de cuia. Era o Imperador do Japão, o filho do Sol. Capítulo XXVII No Kremlin A viagem à Rússia foi a mais trágica de todas. O vis- conde parou na zona da guerra e assombrou-se. O frio era horrível, muitos graus abaixo de zero, e aqueles mi- lhões de homens que os Ditadores tinham remetido para os gelos estavam todos mortos. Ao lado dos tanques e canhões viam-se montinhos de fardas em quantidade incrível, em muitos pontos já totalmente recobertos pela neve. Nenhum inseto beligerante pôde salvar-se depois do apequenamento. Nem procuraram sair de dentro das roupas desabadas, porque então morreriam ainda mais de- pressa no entanguimento do frio exterior. Ficaram dentro das roupas e capotes, aproveitando o último calorzinho. Em minutos, porém, os exércitos alemães e soviéticos viraram picolés. Parece incrível, mas não se salvou ninguém, nem mes- mo os que estavam dentro das casas ainda de pé, porque logo que os fogos acesos se apagaram o congelamento foi geral. O palácio do governo era o celebre Kremlin, onde haviam residido tantos tzares da Rússia antiga. – O chefe soviético deve estar ali, disse o visconde. É um que também usa bigodes – não bigodinhos, mas bigodões. O número de insetos existentes naquele ponto devia ser grande, não só por causa da imensidão do palácio como pelos bons abrigos que os inúmeros montes de peles proporcionavam aos insetos russos. Os russos sempre Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 49Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 49 08/02/2012 17:34:2608/02/2012 17:34:26 50 THIAGO ALVES VALENTE se defenderam do frio por meio de roupas e capotes de peles – e dos pêlos que deixavam crescer na cara – as formidáveis barbas e os bigodes. Cada monte de pele em que o visconde mexia, levantando uma aba ou manga de capote, punha à mostra vários insetos apavorados que corriam a esconder-se. Emília lembrou-se dos tatuzinhos ou bichos-de-conta que vivem debaixo dos vãos de pedra ou tijolo: assim que a gente ergue o tijolo, eles correm a esconder-se no escurinho mais próximo. Como fosse difícil, daquele modo, encontrar o Ditador, Emilia fez aplicação do faz-de-conta. Mandou que o vis- conde agarrasse um dos insetos mais bigodudos e, fazendo de conta que ele era o Ditador, disse-lhe: – Senhor Ditador, isto que houve foi uma simples amos- tra do fim do mundo, mas estou inclinada a garantir que o mundo vai recomeçar com os mesmos tamanhos antigos. Já estive em Berlim, onde intimei o Grande Ditador a parar com sua mania de matar gente. O Grande Velho de Londres também está avisado, e também o Filho do Sol, no Japão. Com o Ditador da Itália não pude falar porque estava oculto num papo de galinha. Mas a verdade é que o período de guerras da humanidade chegou ao fim. Daqui por diante só haverá paz, paz e mais paz. Paz e amor. Paz e beijos. Paz e bigodes. Paz e bolinhos de Tia Nastácia. Não sabe quem é? Apareça um dia lá no sitio para conhecer essa ditadora do sal e da pimenta. O bigodudo inseto olhava, olhava, sem entender coisa nenhuma. – Pois é, continuou Emilia. Isso de “ordens novas” está muito bem. Façam quantas ordens novas quiserem, mas sem bombardeios de cidades, sem destruição de inocentes. Nós vivemos muito felizes no sitio do Picapau Amarelo, sem incomodar pessoa alguma, brincando de todos os brinquedos imagináveis. Somos a própria felicidade em pessoa. Mas Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 50Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 50 08/02/2012 17:34:2608/02/2012 17:34:26 MONTEIRO LOBATO 51 imagine que um dia os senhores brigam e mandam os seus aviões despejar bombas por lá, a torto e a direito. E uma cai em nossa casa, e mata dona Benta, e explode tia Nastácia, e deixa Narizinho sem nariz, e Pedrinho sem mão para esticar o bodoque, e queima as barbas de milho aqui do meu amigo visconde. Então isso é direito? O inseto russo fez uma cara esquisita, que Emilia inter- pretou a seu modo. – Sim, bem sei que não foram vocês que começaram. Quem começou, quem botou fogo no mundo, foi o de bigodi- nho. Mas já estive lá e passei-lhe um bom pito. Garanto que não se mete em outra. Esta lição do apequenamento foi uma lição de mestre. E se depois que o Tamanho volta (se voltar) os senhores Ditadores cometerem a asneira de nova guerra, sabe o que acontece? Uma certa pessoa vai ao Chavorio e desce a chave até o último ponto – o ponto do micróbio. Que chave? A Chave do Tamanho, homem. A chave que reduziu o seu bigode a esse tamanho e que pode também aumenta-lo ao tamanho antigo. Nesse momento Emilia firmou melhor a vista e começou a lembrar-se dum general russo cujo retrato aparecera em muitas revistas, um general de bigodes tão grandes que até espantava os inimigos. – Espere. Não estarei falando com o general Budieni, o bigodudo? Que acha visconde? O visconde achou que podia ser. – Pois muito bem, concluiu Emilia. Se Vossa Excelência não é quem penso e sim o general do bigodão, faça o obsequio de dizer ai Ditador que senti muito não encontra-lo no Kre- mlin, e repita-lhe as minhas palavras. O Tamanho talvez volte, mas as guerras acabaram-se para sempre, senão... E voltando-se para o visconde: – Podemos embarcar numa pitada para os Estados Unidos. O visconde enfiou o general sob uma manga de pele e pitadeou um fiunnnn para Califórnia. Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 51Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 51 08/02/2012 17:34:2608/02/2012 17:34:26 52 THIAGO ALVES VALENTE Hipóteses para as modifi cações Instigados pelas modificações observadas no cotejo, podem-se levantar algumas hipóteses que, embora de di- fícil comprovação, mostram-se amparadas pela história da produção infantil de Monteiro Lobato, bem como pelas opiniões manifestadas pelo próprio escritor a respeito da literatura endereçada às crianças. As alterações que poderiam ser associadas a um processo comum de “lapidação” do texto estão ligadas a preocupa- ções que o autor demonstrava sobre o modo de se fazer textos literários. Numa carta a Rangel, por exemplo, Lobato comenta o emprego adequado dos adjetivos em textos lite- rários e, em A chave do tamanho, nota-se a redução desses na edição de 1947, como no capítulo intitulado “Berlim”, momento em que o discurso de Emília sofre um “enxu- gamento”: em vez de “as grandes fomes” e as “grandes pestes”, o autor prefere “fomes” e “pestes”. Observe-se um trecho da correspondência enviada ao amigo mineiro em 19 de agosto de 1905: A observação sobre os teus adjetivos pode ser genera- lizada. Apliquei-a aos teus porque me veio enquanto te lia. Nos grandes mestres o adjetivo é escasso e sóbrio – vai abundando progressivamente á proporção que descemos a escala dos valores. Um jornalistazinho municipal, coitado, usa mais adjetivos no estilo do que Pilogenio na caspa. (Lobato, A barca de Gleyre, 1956a, p.106) O cuidado com a confecção do texto seria por vezes assunto de discussões com seus contemporâneos, compa- rando obras, recebendo e fazendo críticas de conhecidos, como faz com Rangel, comentando com muito bom humor o apuro estilístico do amigo: Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 52Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 52 08/02/2012 17:34:2608/02/2012 17:34:26 MONTEIRO LOBATO 53 O teu estilo ainda revê traços dos hipossulfitos , que no caso são as influencias dos teus fatores. É por meio do hipossulfito que a chapa se faz, mas é também o hipos- sulfito sobejante o que a desfaz. Assim, do alto dos meus tamancos eu te digo, ó Homem Superior de Moura Rangel, que ainda deves dar muito banho de água corrente em teu estilo, porque nele ainda restam traços da flaubertite gonocócica e da ecite apanhada nos tempos do Minarete. Ria lá os teus melhores risos de superioridade, finca-me as esporas da ironia – mas pensa no meu conselho. (ibidem, p.124-5) Pode-se, pois, inferir algumas pistas a respeito do in- tento de escrever algo “estranho” e que viria a se realizar nos últimos anos de vida de Lobato. A ideia de contar uma história a partir de um ponto de vista se não humano ao menos distanciado das convenções humanas encontra-se, por exemplo, em outra carta, de 1912, em que Lobato, fazendeiro, admira Kipling (1865-1936) e deseja realizar algo semelhante na literatura: Ando às furtadelas, escondido de mim mesmo, a reler Kipling, e meu próximo conto será feito sob sua égide. Um conto de animais, aves. Fiz um grande lago perto da casa e enchi-o de marrecos de Pekin, patos indígenas, gansos, mergulhões. E estou estudando o palmípede para escrever a historia do tanque. Contar a historia do fio d’agua que primitivamente alimentava um brejo e hoje me alimenta o tanque – um brejo todo capituvas, peris, taboas – todo um pedaço da miúda flora aquática. E com guarusinhos nos rasos, e trairas amigas do lodo, e batuíras e saracuras amigas das minhocas e vermes paludicos. Fechei a saída da água e ela foi crescendo e fogando as capituvas, expelindo as batuíras – e por fim os meus marrecos tomaram conta da superfície. Tudo isso olhado do ponto de vista dum Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 53Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 53 08/02/2012 17:34:2608/02/2012 17:34:26 54 THIAGO ALVES VALENTE pequeno picapau de cabeça vermelha que mora num velho esteio fincado ali na água antigamente, não sei com que fim. Ele abriu na madeira, que é de lei, um buraco assim do tamanho duma jaboticaba das grandes e escuro como ela. Mora ali. Há de ter ninho lá dentro, e espia pela entrada do buraco redondo, com apenas a cabecinha vermelha de fora. Evidentemente se julga dono da minha lagoa e dos meus marrecos. É a sua janelinha, aquele buraco. A qual- quer ruído estranho, uma grita de gansos, uma pedra que eu atire contra o esteio, lá aparece a cabecinha vermelha a ver o que é. Em suma: a crônica do tanque, porque creio que não passo dum cronista. (ibidem, p.332-3) E Vasconcelos (1982) afirma que o “engano” de Emília, ao abaixar a chave, é simbólico, pois a ideia de tamanho como atraso já aparecera em obras anteriores como His- tória das invenções e A reforma da natureza, o que tam- bém está relacionado à valorização do universo infantil, por vezes tido como “menor” de acordo com uma visão adultocêntrica. Desses dados, o que fica evidente é uma certa intenção de inverter, modificar, alterar o ponto de vista de um narrador em relação à humanidade, remetendo à ideia de carnavalização, de Bakhtin (1981) e ao topos do mundo às avessas de Curtius (1996). À estética realista de Lobato, conforme ressalta Zil- berman (1982), pode ser atribuída à preocupação com o elemento descritivo, com os problemas sociais, com as questões de seu tempo. Mas, se nas cartas Lobato já apresenta a ideia de uma história sob o ponto de vista diferenciado, não humano, o trecho a seguir, de outra carta enviada a Rangel em 9 de maio de 1913, é mais significativo ao indicar um projeto literário cuja realização mais consistente se dá em A chave do tamanho: Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 54Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 54 08/02/2012 17:34:2608/02/2012 17:34:26 MONTEIRO LOBATO 55 O meu grande sonho literário, jamais confessado a ninguém, é um livro que nunca foi escrito e talvez não o seja nunca – porque Rabelais o esqueceu. É uma visão da humanidade extra-humana. O homem visto pelos olhos dum ser extra-humano, um habitante de Marte, por exem- plo, ou dum átomo, ou da Lua. Um quadro da humanidade feito com idéias de um não-homem (que maravilhoso ab- surdo!. Uma pintura objetiva apenas, nada de julgamento de juiz. Toda literatura, todo romance, todo poema, por mais impessoal que procure ser, não passa de um julga- mento. A idéia moral, que domina mesmo o autor mais liberto de tudo, não permite a simples pintura objetiva. E essa pintura seria um susto e um assombro para o homem, que não consegue jamais conhecer-se a si mesmo porque ninguém o desnuda. Livro de um louco. Livro para o Marquês de Sade, se não fosse a sua obsessão sexual – ele tinha gênio para tanto. Sinto que se apenas esboçar esse livro, metem-me no Juqueri. Encostemos por enquanto o pesadelo. (ibidem, p.341) Embora não trate de seres de outros planetas, em A chave do tamanho a redução do tamanho instaura uma “nova ordem” com o consequente desnudamento do ser humano. Alegoria ou carnavalização, o processo desenca- deado cumpre a função que Lobato manifestara na carta ao amigo em 1913, e, no plano da narrativa, o “desnudamento” dos personagens que, após a redução se encontram nus, corresponde ao “desnudamento” das atitudes humanas, de suas contradições, da relatividade das coisas. A visão extra-humana pretendida por Lobato, numa descrição que lembra o devaneio no início de Brás Cubas, de Machado de Assis (1839-1908), toca o universo da fantasia, no qual a mudança de tamanho ou de forma é um dos elementos fundamentais, como nos contos de fadas e em outras histórias que ao longo do tempo acabaram por Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 55Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 55 08/02/2012 17:34:2608/02/2012 17:34:26 56 THIAGO ALVES VALENTE integrar este universo, como Viagens de Gulliver (1726), de Jonathan Swift. O topos da mudança, estudado na perspectiva da mito- crítica por Melloni (1995), irá se constituir como tema re- corrente em Lobato, tal como o processo de carnavalização. Como se pode notar na série produzida para crianças, a presença de personagens fantásticas, em Reinações de Narizinho (1931), por exemplo, bem como de viagens a lugares “estranhos”, em Viagem ao céu (1932), são co- muns, bem como o uso de objetos mágicos, como o pó de pirlimpimpim, é constante na vida do pessoal do Picapau Amarelo. Mas, se nessas histórias a carnavalização está relacionada a personagens do reino da fantasia – em Caçadas de Pedrinho (1933), por exemplo, observam-se jogadas políticas entre os carnívoros da floresta para atacarem o Sítio –, em A chave do tamanho há uma história fantástica que se constitui com elementos do mundo real, postos em evidência justamente pelo papel que ocupam na realidade. Em Reforma da natureza o leitor já encontrara Emília transgredindo as leis da natureza, tentando “melhorar” os seres vivos por meio de sua criatividade, ou seja, a personagem se insurgia contra o que estava estabelecido e buscava modificar o mundo em sua estrutura mais íntima. Em A chave do tamanho, porém, a boneca (ou ex-boneca) não se contenta em modificar apenas aquilo que está ao seu alcance, mas provoca a alteração do mundo inteiro: a carnavalização se instala no mundo da Segunda Guer- ra Mundial, rompendo os limites da lógica cartesiana e instaurando uma nova possibilidade de ser. Diante desse quadro, torna-se pertinente observar as mudanças realizadas pelo escritor, especialmente a dimi- nuição dos capítulos na edição de 1947. Os trechos retirados da edição revista para a Editora Brasiliense estão relacionados à viagem feita por Emília e Visconde ao redor do mundo. “Mundo” definido em Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 56Monteiro_Lobato_(FINAL).indd 56 08/02/2012 17:34:2608/02/2012 17:34:26 MONTEIRO LOBATO 57 termos de guerra, uma vez que os personagens passam apenas pelos países envolvidos diretamente no conflito: Alemanha, Itália, Japão, Rússia e, por último, Estados Unidos. Em 1942, ano da 1a e 2a edições de A chave do tamanho, as potências envolvidas no conflito ainda se encontravam numa situação de impasse. O historiador Eric Hobsbawm (1995, p.162), ao comentar o envolvimento da Inglaterr