UNESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DE MARÍLIA PRISCILA CHAVES SGAVIOLI OS PROJETOS DE LEITURA E ESCRITA E A FORMAÇÃO DE LEITORES E PRODUTORES DE TEXTOS: UMA EXPERIÊNCIA COM PROFESSORES DO CICLO I DO ENSINO FUNDAMENTAL MARÍLIA 2007 UNESP FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DE MARÍLIA PRISCILA CHAVES SGAVIOLI OS PROJETOS DE LEITURA E ESCRITA E A FORMAÇÃO DE LEITORES E PRODUTORES DE TEXTOS: UMA EXPERIÊNCIA COM PROFESSORES DO CICLO I DO ENSINO FUNDAMENTAL MARÍLIA 2007 Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Educação da UNESP – Universidade Estadual Paulista Campus de Marília, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Educação. Área de concentração: Ensino, abordagem técnico pedagógica. Orientadora: Profª Drª Stela Miller PRICILA CHAVES SGAVIOLI OS PROJETOS DE LEITURA E ESCRITA E A FORMAÇÃO DE LEITORES E PRODUTORES DE TEXTOS: UMA EXPERIÊNCIA COM PROFESSORES DO CICLO I DO ENSINO FUNDAMENTAL Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do título de Mestre em Educação e aprovada em sua forma final pelo Orientador e pela Banca Examinadora. Orientadora: ____________________________________ Profª Drª Stela Miller, UNESP – FFC - Marília Banca Examinadora: ___________________________________________ Prof.ª Drª.Cyntia Graziella Gizelim Simões Girotto (UNESP — FFC — Marília) ______________________________________________ Profª Drª Renata Junqueira de Souza (UNESP — FCT — Presidente Prudente) Marília, fevereiro de 2007. Resumo A presente pesquisa teve como objetivo principal desenvolver e orientar estudos, reflexões e procedimentos metodológicos, sobre os projetos de leitura e escrita, com um grupo de seis professoras do ciclo I do Ensino Fundamental, de uma escola estadual da cidade de Marília (S.P.). Com isso, buscamos alterar as suas concepções de projetos e do processo de ensino e de aprendizagem. Para alcançar tal objetivo adotamos como metodologia de pesquisa a pesquisa-ação, por entendermos que essa metodologia prioriza os caracteres qualitativos, valorizando esses aspectos no problema estudado e porque todos os envolvidos na pesquisa se tornam agentes participantes do processo de resolução de um problema. Os resultados obtidos indicam que a realização dos projetos de leitura e escrita propiciou a transformação do processo de ensino e de aprendizagem, alterando a qualidade das produções (recepção e produção de textos) dos alunos envolvidos na pesquisa e também a prática pedagógica das docentes responsáveis pelas salas participantes da pesquisa. Palavras–chave: Pedagogia de projetos. Projetos de leitura e escrita. Leitura. Escrita. Ciclo I do Ensino Fundamental. Abstract The present research had as its main purpose to develop and direct studies, reflections and methodological proceedings, about projects of reading and writing, with a group of six teachers that worked with Cycle I of Elementary School, in an official school of Marília city (S.P.). By means of that work, we aimed to alter their conceptions about projects and processes of teaching and learning. In order to reach that aim, we adopted the research- action as our methodology, because we understand that this kind of methodology emphasizes the qualitative characteristics, giving value to those aspects in the studied problem and because all the persons involved in the research become participant agents of the process of a problem solving. The obtained results indicate that the accomplishment of the projects of reading and writing conducted to the transformation of the process of teaching and learning, changing the quality of the productions (reading and text production) of the students involved in the research and also the pedagogical practice of the teachers responsible for the classrooms that participate in the research. Key-words: Pedagogy of projects. Reading and writing projects. Reading. Writing. Elementary school. LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Primeira escrita do aluno K da professora D4 (08/04/04).............................. 65 Quadro 2 – Versão final da escrita individual do aluno K da professora D4 (23/06/04).... 65 Quadro 3 – Primeira escrita individual do aluno N da professora D4 (08/04/04).............. 66 Quadro 4 – Versão final da escrita individual do aluno N da professora D4 (23/06/04).... 66 Quadro 5 – Primeira escrita individual do aluno J da professora D4 (08/04/04)............... 67 Quadro 6 – Versão final da escrita individual do aluno J da professora D4 (23/06/04)..... 67 Quadro 7 – Primeira escrita individual do aluno A da professora F3 (08/04/04).............. 68 Quadro 8 – Versão final da escrita individual do aluno A da professora F3 (24/06/04)..... 68 Quadro 9 – Primeiro momento de escrita individual do aluno J da professora A3 (07/04/04 – 1º trecho)...................................................................................... 70 Quadro 10 – Segundo momento de escrita individual do aluno J da professora A3 (25/06/04 – 1º trecho)...................................................................................... 70 Quadro 11 – Primeiro momento de escrita individual do aluno J da professora A3 (07/04/04 – 2º trecho)...................................................................................... 70 Quadro 12 – Segundo momento de escrita individual do aluno J da professora A3 (25/06/04 – 2º trecho)...................................................................................... 71 Quadro 13 – Primeiro momento de escrita individual do aluno D da professora B1- 2(07/04/04)...................................................................................................... 71 Quadro 14 – Segundo momento de escrita individual do aluno D da professora B1- 2(25/06/04)....................................................................................................... 71 Quadro 15 – Primeiro momento de escrita individual do aluno S da professora B1- 2(07/04/04)....................................................................................................... 72 Quadro 16 – Segundo momento de escrita individual do aluno D da professora B1- 2(25/06/04)....................................................................................................... 72 Quadro 17 – Primeiro momento de escrita individual do aluno A da professora D4 (08/04/04)......................................................................................................... 72 Quadro 18 – Segundo momento de escrita individual do aluno A da professora D4 (23/06/04)......................................................................................................... 73 Quadro 19 – Primeiro momento de escrita individual do aluno J da professora D4 (08/04/04)......................................................................................................... 73 Quadro 20 – Segundo momento de escrita individual do aluno J da professora D4 (23/06/04)......................................................................................................... 73 Quadro 21 – Primeiro momento de escrita individual do aluno C da professora F3 (08/04/04 – 1º trecho)....................................................................................... 74 Quadro 22 – Segundo momento de escrita individual do aluno C da professora F3 (24/06/04 – 1º trecho)....................................................................................... 74 Quadro 23 – Primeiro momento de escrita individual do aluno C da professora F3 (08/04/04 – 2º trecho)....................................................................................... 74 Quadro 24 – Segundo momento de escrita individual do aluno C da professora F3 (24/06/04 – 2º trecho)..................................................................................... 74 Quadro 25 – Primeiro momento de escrita individual do aluno C da professora F3 (08/04/04 – 3º trecho)....................................................................................... 75 Quadro 26 – Segundo momento de escrita individual do aluno C da professora F3 (24/06/04 – 3º trecho)....................................................................................... 75 Quadro 27 – Primeiro momento de escrita individual do aluno G da professora F3 (08/04/04 – 1º trecho)....................................................................................... 75 Quadro 28 – Segundo momento de escrita individual do aluno G da professora F3 (24/06/04 – 1º trecho)....................................................................................... 75 Quadro 29 – Primeiro momento de escrita individual do aluno G da professora F3 (08/04/04 – 2º trecho)....................................................................................... 76 Quadro 30 – Segundo momento de escrita individual do aluno G da professora F3 (24/06/04 – 2º trecho)....................................................................................... 76 Quadro 31 – Primeiro momento de escrita individual do aluno J da professora F3 (08/04/04)......................................................................................................... 76 Quadro 32 – Segundo momento de escrita individual do aluno J da professora F3 (24/06/04)......................................................................................................... 76 Quadro 33 – Escrita da fábula do aluno J da professora F3 (26/08/04)................................ 77 Quadro 34 – Escrita da fábula do aluno C da professora F3 (26/08/04)............................... 77 Quadro 35 – Primeira escrita individual do aluno E da professora B1-2 (25/08/04)............ 78 Quadro 36 – Versão final da escrita individual do aluno E da professora B1-2 (19/11/04) 79 Quadro 37 – Primeira escrita individual do aluno R da professora D4 (16/09/04)............... 79 Quadro 38 – Versão final da escrita individual do aluno R da professora D4 (21/10/04).... 79 Quadro 39 – Primeira escrita individual do aluno G da professora E4 (16/09/04)............... 80 Quadro 40 – Versão final da escrita individual do aluno G da professora E4 (21/10/04).... 80 Quadro 41 – Primeira escrita individual do aluno A da professora F3 (26/08/04)............... 80 Quadro 42 – Versão final da escrita individual do aluno A da professora F3 (27/10/04)..... 81 Quadro 43 – Primeira escrita individual do aluno A da professora D4 (16/09/04)............... 82 Quadro 44 – Versão final da escrita individual do aluno A da professora D4 (11/11/04).... 82 Quadro 45 – Primeira escrita individual do aluno P da professora D4 (16/09/04)............... 82 Quadro 46 – Versão final da escrita individual do aluno P da professora D4 (11/11/04)..... 82 Quadro 47 – Observação da prática docente de E4 (22/04/04)............................................. 95 Quadro 48 – Observação da prática docente de C4 (04/05/04)............................................. 100 Quadro 49 – Observação da prática docente de B1-2 (23/04/04)......................................... 118 Quadro 50 – Observação da prática docente de B1-2 (19/05/04)......................................... 119 Quadro 51 - Observação da prática docente de B1-2 (01/06/04)......................................... 119 Quadro 52 - Observação da prática docente de C4 (26/05/04)............................................. 121 Quadro 53 - Observação da prática docente de C4 (18/06/04)............................................. 122 Quadro 54 - Observação da prática docente de D4 (22/04/04)............................................. 124 Quadro 55 - Observação da prática docente de E4 (22/04/04)............................................. 126 Quadro 56 - Observação da prática docente de E4 (22/04/04)............................................. 127 Quadro 57 - Observação da prática docente de F3 (20/05/04)............................................. 128 Quadro 58 - Observação da prática docente de F3 (17/06/04)............................................. 129 Quadro 59 - Observação da prática docente de B1-2 (07/04/04)......................................... 130 Quadro 60 - Observação da prática docente de B1-2 (04/05/04)......................................... 130 Quadro 61 - Observação da prática docente de B1-2 (18/06/04)......................................... 131 Quadro 62 - Observação da prática docente de C4 (24/03/04)............................................. 132 Quadro 63 - Observação da prática docente de C4 (16/04/04)............................................. 132 Quadro 64 - Observação da prática docente de C4 (26/05/04)............................................. 133 Quadro 65 - Observação da prática docente de D4 (25/03/04)............................................. 134 Quadro 66 - Observação da prática docente de E4 (08/04/04)............................................. 135 Quadro 67 - Observação da prática docente de E4 (29/06/04)............................................. 135 Quadro 68 - Observação da prática docente de E4 (18/11/04)............................................. 136 Quadro 69 - Observação da prática docente de F3 (20/05/04)............................................. 137 LISTA DE FOTOS Foto 1- Cartaz do planejamento do projeto Biblioteca da Sala............................................51 Foto 2- Aluna em processo de escrita do livro para biblioteca da sala.................................52 Foto 3- Livro produzido por aluno envolvido na pesquisa...................................................52 Foto 4- Coleção de livros da biblioteca da sala I..................................................................53 Foto 5- Coleção de livros da biblioteca da sala II................................................................53 Foto 6- Coleção de livros produzidos no projeto Biblioteca da Sala...................................53 Foto 7- Aluna lendo sua história na festa de encerramento do projeto.................................53 Foto 8- Fábula escrita e ilustrada por um aluno para o painel I ...........................................54 Foto 9- Fábula escrita e ilustrada por um aluno para o painel II..........................................54 Foto 10- Ensaio para apresentação do teatro da E.E. Monsenhor Pirmino – Fazenda.........55 Foto 11- Apresentação do teatro da E.E. Monsenhor Pirmino – Fazenda............................55 Foto 12- Leitura do texto da peça teatral. Ensaio para apresentação do teatro da E.E. Maria Stella Cerqueira César – Cidade...........................................................................................55 Foto 13- Ensaio para apresentação do teatro da E.E. Maria Stella Cerqueira César – Cidade...................................................................................................................................55 Foto 14- Apresentação do teatro da E.E. Maria Stella Cerqueira César – Cidade I.............55 Foto 15- Apresentação do teatro da E.E. Maria Stella Cerqueira César – Cidade II............55 Foto 16- Alunos preparando o painel de fábulas..................................................................56 Foto 17- Painel de fábulas da E.E. Maria Stella Cerqueira César - Cidade..........................56 Foto 18- Alunos lendo as fábulas do painel da E.E. Monsenhor Pirmino – Fazenda I........56 Foto 19- Alunos lendo as fábulas do painell da E.E. Monsenhor Pirmino – Fazenda II......56 SUMÁRIO Introdução............................................................................................................. 10 Capítulo 1 Leitura e escrita...................................................................................................... 17 1.1 História da leitura e da escrita................................................................................ 17 1.1.1 Antigüidade............................................................................................................ 18 1.1.2 Idade Média............................................................................................................ 22 1.1.3 Idade Moderna....................................................................................................... 24 1.1.4 Idade Contemporânea............................................................................................ 26 1.2 Concepção de leitura e escrita presentes nesse trabalho........................................ 26 Capítulo 2 Pedagogia de Projetos: raízes históricas e contribuições atuais............................. 34 2.1 Pedagogia de Projetos: breve contextualização........................................... 34 2.2 Pedagogia de Projetos: concepção de educação.......................................... 37 2.3 Os projetos de trabalho e a aprendizagem significativa.............................. 38 2.4 Principais características da Pedagogia de Projetos.................................... 41 2.5 Os projetos de leitura e escrita............................................................................... 44 Capítulo 3 Percurso da pesquisa.............................................................................................. 47 3.1 Como a pesquisa ocorreu desde o início................................................................ 47 3.2 Escolha metodológica............................................................................................ 57 3.2.1 Pesquisa-ação......................................................................................................... 57 3.2.2 Observações e intervenções na prática docente e reuniões quinzenais.................. 60 3.3.3 Entrevistas............................................................................................................... 62 Capítulo 4 Descrição e análise dos dados................................................................................. 63 4.1 Os projetos e as produções escritas dos alunos...................................................... 63 4.1.1 O trabalho com os elementos da narrativa e sua estrutura...................................... 64 4.1.2 O trabalho com a organização dos diálogos........................................................... 69 4.1.3 O trabalho com a substituição................................................................................. 78 4.1.4 O trabalho com a concordância – nominal e verbal............................................... 81 4.2 Reuniões quinzenais, entrevistas e observações..................................................... 84 4.2.1 Os projetos de leitura e escrita................................................................................ 85 4.2.2 O envolvimento dos alunos na realização dos projetos de leitura e escrita...................................................................................................................... 90 4.2.3 A aprendizagem significativa................................................................................. 95 4.2.4 A avaliação docente sobre os alunos...................................................................... 96 4.2.5 As dificuldades do trabalho docente....................................................................... 99 4.2.6 Formação do professor........................................................................................... 101 4.2.7 A reflexão sobre a prática de sala de aula............................................................... 103 4.2.8 Mudança da prática................................................................................................. 106 4.2.9 Concepção de leitura e escrita................................................................................ 111 4.2.10 O trabalho com a leitura......................................................................................... 117 4.2.11 O trabalho com a escrita......................................................................................... 129 Conclusões............................................................................................................. 140 Referências bibliográficas................................................................................... 144 Anexos.................................................................................................................... 148 Anexo A: Atividades realizadas no projeto Biblioteca da sala............................... 149 Anexo B: Atividades realizadas no projeto Fábulas............................................... 156 Anexo C: Cronograma reuniões quinzenais........................................................... 162 Anexo D: Ficha de controle de leitura.................................................................... 163 10 INTRODUÇÃO Essa pesquisa lida, essencialmente, com projetos de leitura e escrita no ciclo I do Ensino Fundamental, colocando em discussão a busca de um caminho para viabilizar a formação de leitores e produtores de textos, que possam desempenhar a tarefa de ler e escrever com crescente segurança e autonomia. A partir do aporte teórico de Hernández (1996 e 1998 a b), Jolibert (1994 a b), Chassanne (1993), Legrand (1993), Girotto (1995 e 1999) e Abrantes (1995), entendemos pedagogia de projetos como uma concepção de educação que possibilita um processo educativo voltado para a aprendizagem feita em situação real, em contraposição ao ensino verbalista, com base na memorização de regras, conceitos, normas e na realização de exercícios para pô-los em prática. Um trabalho pedagógico concebido no âmbito dos projetos supõe que o processo de ensino-aprendizagem seja marcado por características que o definem como sendo capaz de englobar os conhecimentos escolares com a vida cotidiana, ou seja, com o real, para que o aluno melhor compreenda o mundo que o rodeia; considerar o aluno como agente participante e ativo no processo ensino-aprendizagem; seguir um planejamento flexível e coletivo para o desenvolvimento dos projetos; tornar o aluno autônomo frente à busca do conhecimento, ou seja, desenvolver a pesquisa; avaliar individual e coletivamente o projeto e socializar os resultados obtidos. Dessa forma, entendemos a pedagogia de projetos, como um processo educativo que estabelece relações, interpretações para se superar os limites das disciplinas escolares, favorecendo uma atitude de não fragmentação do saber e da formação constante dos docentes, 11 transgredindo, assim, a “visão de educação escolar baseada nos conteúdos, apresentados como ‘objetos’ estáveis e universais e não como realidades socialmente construídas”. (HERNÁNDEZ, 1998 a, p.12). Essa pedagogia também propõe ultrapassar a visão da aprendizagem centrada apenas em processos de aquisição de conhecimentos científicos, que desconsidera os intercâmbios simbólicos que ocorrem na sala de aula e na escola. Propõem, além disso, transgredir a visão do currículo escolar fragmentado centrado nas disciplinas e da escola que tolhe os indivíduos de se desenvolverem em suas respectivas etapas de vida. Procura superar a perda da autonomia dos docentes e a incapacidade da escola em dialogar com as transformações que ocorrem na sociedade, nos alunos e na própria educação. A concepção de educação defendida pelos projetos leva os alunos a compreenderem diversos conteúdos, mas não de forma decorativa e centrada na figura do professor, mas sim de maneira interdisciplinar e pela aquisição de meios para procurar autonomamente qualquer conteúdo que seja necessário para sua vida. A pedagogia de projetos é baseada no ensino para a compreensão, o que faz com que os alunos participem de um processo significativo, usando diferentes estratégias de estudo, participem do planejamento da própria aprendizagem, se tornem mais flexíveis, favorecendo a interpretação da realidade, o reconhecimento do outro e de seu próprio ambiente, sendo agentes ativos nesse processo. Surge como uma alternativa de superação de outras propostas pedagógicas vigentes, constituindo-se, basicamente, sobre dois eixos: de um lado, a idéia de que a escola não está condenada à reprodução ideológica e sócio-econômica, ao contrário, deve ser um lugar onde as pessoas (crianças e adultos) vivem em interação com o meio, como agentes, entre outros, de transformação desse meio e, de outro lado, a escola não pode continuar a ser o universo de especialistas, um meio protegido das influências exteriores, o que leva à questão do alargamento da equipe educativa. (CHASSANE, 1993). Dessa forma, podemos afirmar que a pedagogia de projetos não consiste em apenas uma alternativa para a prática na sala de aula, mas é uma concepção de educação que propõe mudanças no processo de ensino e aprendizagem como também na organização da instituição escolar. Os tempos mudaram e a discussão da função da escola, do significado das experiências escolares para os que dela participam foi e continua a ser um dos assuntos mais polêmicos entre educadores. As recentes mudanças na conjuntura mundial, com a globalização da economia e a informatização dos meios de comunicação, têm trazido uma 12 série de reflexões sobre o papel da escola dentro do novo modelo de sociedade, desenhado nesse novo século. É nesse contexto e dentro dessa polêmica que a discussão sobre os projetos de leitura e escrita, hoje, se coloca. Ressalta-se que essa é uma discussão sobre uma atitude pedagógica e não sobre uma técnica de ensino mais atrativa para os alunos. Com a chegada dos meios eletrônicos de comunicação, previa-se o abandono da cultura do livro, porém o ato de ler e escrever tende a ser estimulado e a formação de um novo tipo de leitor e produtor de texto, capaz de dominar as novas formas que a escrita assume, passa a ser de fundamental importância, ou, ainda mais, uma necessidade, pois notamos que existe espaço para criarmos situações em que a criança sinta necessidade de ler. Acredita-se que uma das vias para se vencer esse grande desafio, de formar leitores e produtores de textos aptos para viver nessa sociedade globalizada, seja o desenvolvimento dos projetos de leitura e escrita nas salas de aula, sendo esses propiciadores de situações reais de aprendizado. Assim, propõe-se o ler e escrever verdadeiramente em sua função social, ou seja, que as crianças possam realizar tarefas que tenham sentido, que possam se engajar em sua própria aprendizagem, ao invés de serem submetidas unicamente à palavra do professor. A pedagogia de projetos permite viver em uma escola, apoiada no real, aberta para muitas relações com o exterior, um lugar em que as crianças possam trabalhar “de verdade” e adquiram meio de se afirmar como pessoas. (JOLIBERT, 1994 a e b). Tanto as atividades de leitura como as de produção escrita podem ser conduzidas com vistas à construção de um conjunto de competências lingüísticas nos alunos, que abrangem níveis de conceitos lingüísticos tais como a noção de contexto de um texto; os parâmetros da situação de comunicação; o tipo de texto; a superestrutura de organização textual; a lingüística textual; a lingüística de frase e a lingüística das palavras e microestruturas que as compõem. Os projetos podem permitir que o aluno escreva numa situação real, isto é, não produza mais escritos simulados como: “imagine que você está escrevendo para um amigo”. Trata-se não só de produzir um texto adaptado a uma determinada situação, mas também de aprender a produzi-lo e utilizar estratégias adequadas às situações: quem diz, onde diz, para quem diz, quando diz e as escolhas realizadas, de tal forma que logo depois, cada criança possa mobilizar suas competências de maneira autônoma, transpondo-as para novas situações. Frente a essas concepções, os projetos de leitura e escrita que foram realizados nessa pesquisa propiciaram o ler e o escrever em situações que cumpriam a sua função social, ou 13 seja, narrativas, produzidas pelos alunos, que foram incorporadas ao acervo da biblioteca da sala e fábulas expostas em um painel tendo, nas duas situações, leitores reais para as produções. Dentro desse contexto, a aprendizagem se dá pela mediação do professor, que propicia a interação adequada do aluno com o objeto de conhecimento e com os atores da situação de trabalho pedagógico, sendo gradual o que se ensina, o que se planeja e o que se espera atingir nos níveis de escolaridade. Enfim, por meio dos projetos, aprende-se a ler e escrever, não a partir de treinos mecânicos, repetições e modelos sem sentido, mas a partir de situações concretas, em que o aluno sabe o que está fazendo, para quê e para quem o faz. Só assim o aluno é capaz de atribuir um significado àquilo que lê e escreve e, dessa forma, desenvolve suas estratégias de leitor e produtor de texto autônomo. O interesse em focalizar a leitura e a escrita surgiu da realização de uma pesquisa de iniciação científica que focalizou os projetos de trabalho de forma interdisciplinares e que originou o trabalho de conclusão de curso Pedagogia de Projetos: uma alternativa metodológica para as séries iniciais. Tal pesquisa demonstrou que o cotidiano das salas de aula pode ser mudado por meio da realização de verdadeiros projetos. Nas intervenções realizadas na referida pesquisa notamos que os alunos, em geral, apresentavam, no início do processo, maiores dificuldades nas atividades de leitura e escrita, caracterizando um quadro crítico que se repete em muitas escolas: crianças inseridas no ciclo I do ensino fundamental que não entendem o que lêem e são copistas, não compreendem a função social da escrita e seu poder em nossa sociedade. Tal quadro foi revertido por meio da realização dos projetos de leitura e escrita, já que a maioria dos alunos não apresentava mais as dificuldades encontradas no início da pesquisa, ou seja, os alunos conseguiam ler e escrever significativamente e em situações de real aprendizagem. A observação desse processo gerou um interesse em aprofundar os estudos, mais especificamente nos projetos de leitura e escrita, como uma alternativa para o processo de ensino-aprendizagem significativo. Embora faça parte de praticamente todo discurso pedagógico citar, como objetivos de ensino, a formação de alunos autônomos, conscientes, reflexivos, participativos, cidadãos atuantes, felizes, dentre outras características similares, a prática pedagógica desenvolvida nas escolas, geralmente, não os confirma. Por outro lado, esse discurso, que, além disso, posiciona-se contra passividade, submissão ou alienação, deixa transparecer a 14 intencionalidade dos professores, que, em sua maioria, querem desenvolver bons trabalhos e estão dispostos a orientar seus alunos para uma boa formação. Entretanto, essas boas intenções dos docentes não são suficientes para propiciar uma formação de qualidade para seus alunos, pois a falta da formação continuada do profissional da educação, acrescida da desvalorização do magistério e outras mazelas do âmbito educacional têm gerado um quadro assustador no que diz respeito especificamente ao desenvolvimento dos estudos da língua materna: crianças que chegam ao final do primeiro ciclo do Ensino Fundamental sem serem leitoras e produtoras de texto. Dentro desse panorama, ajustar o foco para os projetos específicos de leitura e escrita, ampliando a área de atuação para um universo maior do que aquele abrangido pela pesquisa, de iniciação científica, citada anteriormente e aprofundando os estudos teóricos acerca do tema, pode tornar a pesquisa ora proposta um instrumento relevante para a resolução de um grave problema que atinge grande parte das escolas brasileiras, a saber, o baixo nível de aproveitamento dos alunos na área de leitura e de escrita. Pretende-se que os resultados obtidos por esta pesquisa sirvam como elementos que permitam, por um lado, uma reflexão acerca do processo de formação de professores e, por outro, a superação da visão ingênua que a pedagogia de projetos vem recebendo no meio escolar, auxiliando o desenvolvimento de discussões que levem à compreensão crítica da dimensão político-pedagógica dos projetos de trabalho. Outro aspecto relevante desse tema é a possibilidade que esta pesquisa tem de ampliar a produção científica da área, uma vez que, apesar da importância do ler e do escrever na escola e na sociedade, as obras que tratam dos projetos de leitura e escrita apresentam-se, ainda, em quantidade muito reduzida. Isso pôde ser constatado após uma breve pesquisa bibliográfica no acervo da biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências - UNESP de Marília e em sites de busca, via Internet, sobre o tema projetos de leitura e escrita. Por outro lado, foram encontradas publicações que tratam da pedagogia de projetos de maneira geral e há uma vasta bibliografia sobre o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita. Mas obras que tratem especificamente dos projetos de leitura e escrita são poucas e restringem-se, na maioria das vezes, a relatos de experiências docentes, que não exploram com profundidade teórica o referido tema. Em contrapartida, alguns poucos autores, que tratam de forma aprofundada o tema dos projetos de leitura e escrita, podem ser encontrados. Dentre eles destacam-se: Jolibert (1994), Hernández (1996 e 1998a/b) e Pizani e Zunino (1995). 15 Observa-se assim que é de fundamental importância a realização de pesquisas que originem publicações sobre a temática dos projetos de leitura e escrita no ciclo I do ensino fundamental, para colaborar na formação inicial e continuada de professores capazes de contribuir para a formação de leitores e produtores de textos. Para englobar todos esses aspectos, a presente pesquisa teve como objetivo principal desenvolver e orientar estudos, reflexões e procedimentos metodológicos com os professores no ciclo I do Ensino Fundamental que envolvam a discussão da natureza, do objetivo e da concepção de projetos de leitura e escrita e do processo ensino-aprendizagem. Sendo assim, objetivamos discutir a prática pedagógica real de leitura e escrita do professor do ciclo I do Ensino Fundamental; propor e analisar o trabalho com os projetos de leitura nesse nível de escolaridade, como um caminho para a formação de leitores e produtores de textos; possibilitar a compreensão da pedagogia de projetos como uma concepção de educação complexa, social e política; e colaborar na produção de material bibliográfico sobre os projetos de leitura e escrita. Para alcançar esses objetivos elegemos como via metodológica a pesquisa-ação, pois em sua realização é possível envolver tanto alunos como professores no processo de reflexão gerado pela pesquisa, nos momentos de desenvolvimento dos projetos na sala de aula e nas reuniões quinzenais com as docentes. O início da pesquisa ocorreu no ano de 2004, no qual desenvolvemos a coleta de dados na Escola Estadual “Maria Stela Cerqueira César”, com um grupo de seis professoras1, das quais três eram responsáveis por salas da escola sede, localizada na periferia da cidade de Marília (S. P.) e três ministravam aulas na escola vinculada, E. E. Monsenhor Pirmino, localizada na zona rural desse mesmo município; conseqüentemente, seus alunos também se constituíram como sujeitos da pesquisa. Dessa forma, a pesquisa pôde abranger dois eixos importantes: a formação continuada das professoras e a realização dos projetos de leitura e escrita em suas salas, proporcionando para os alunos um processo de aprendizagem baseado na reflexão sobre a linguagem escrita em situações reais. 1 A título de redação do trabalho as professoras serão categorizadas com letras do alfabeto e com o numeral da série em que ministravam aulas. Dessa forma, temos, por exemplo, a professora A da 3ª série representada por A3. Da mesma forma, ficarão identificadas as demais professoras: B1-2 (multiseriada), C4, D4, E4 e F3. Sendo que, as docentes A3, B1-2 e C4, ministravam aulas na escola vinculada e as docentes D4, E4 e F3 exerciam funções docentes na escola sede. 16 Os anos subseqüentes 2005 e 2006 foram destinados para o levantamento e estudos bibliográficos, que embasaram toda a pesquisa e a análise dos dados que originaram o presente trabalho. Cabe ressaltar que todos os dados coletados e publicados nessa pesquisa tiveram a autorização dos sujeitos da pesquisa, por meio de um termo de consentimento livre e esclarecido para serem divulgados. A organização do texto foi feita da seguinte forma: o primeiro capítulo, Leitura e escrita, discute as bases históricas e teóricas desses dois aspectos que envolvem toda a pesquisa. O capítulo dois, Pedagogia de projetos: raízes históricas e contribuições atuais, conceitualiza qual a concepção de Pedagogia de Projetos que norteia essa pesquisa e conseqüentemente o que entendemos por projetos de leitura e escrita. O terceiro capítulo, Percurso da pesquisa, apresenta todo o processo desenvolvido durante a coleta de dados; o capítulo quatro, cuidará da Descrição e Análise dos dados, e vem seguido de algumas conclusões sobre a pesquisa e suas referências bibliográficas. 17 CAPÍTULO 1 LEITURA E ESCRITA Nesse capítulo serão apresentados, primeiramente, um panorama histórico sobre a leitura e a escrita no mundo ocidental e frente ao seu desenvolvimento será discutida a concepção de leitura e escrita que norteia esse trabalho. 1.1 História da leitura e da escrita No nosso cotidiano, lemos o tempo todo, lemos placas, anúncios, outdoors, revistas, livros, jornais, enfim, somos expostos a uma infinidade de material escrito. Essa presença das letras em nossas vidas nos leva a ler por instinto, isso para leitores com uma certa vivência com a leitura. Dificilmente paramos para pensar sobre o ato de ler, especificamente, e como ele está presente e é importante em nossa sociedade. Ao parar para pensar nesse assunto podem surgir muitas indagações: Será que todas as pessoas lêem como eu? Será que sempre as letras, as palavras, as frases foram escritas dessa forma? E os livros sempre tiveram esse formato que conhecemos atualmente? E como a função social e política da leitura se desenvolveu através dos tempos? Frente a essas questões esse capítulo tem a intenção de instigar uma reflexão sobre a história da leitura. Para facilitar a compreensão do desenvolvimento da leitura ao longo dos anos, serão utilizados os quatro grandes períodos históricos: Idade Antiga; Idade Média; Idade Moderna e Idade Contemporânea; referentes à civilização Ocidental, embora, tenhamos a clareza de que o processo histórico não é linear e nem possui divisões rígidas. Também é necessário destacar que a história da leitura está interligada com a história da escrita, da escola, da alfabetização, da biblioteca, das religiões e de tantos outros aspectos que colaboraram para termos atualmente essa prática de leitura vigente no Ocidente. 18 Sendo assim, durante esse breve panorama histórico, alguns aspectos dessas demais histórias estarão, inevitavelmente, presentes. 1.1.1 Antigüidade (século XII a. C. – século I a. C.) Durante a Idade Antiga, a escrita tinha maior importância do que a leitura, na civilização grega. Tal fato fica confirmado pela existência dos escribas, pessoas de tinham notória importância nas sociedades da Grécia antiga, pois eram os únicos que podiam escrever; já o ato de ler, várias pessoas podiam aprendê-lo e executá-lo. Quanto ao sentido da leitura, também variou com o passar do tempo e conforme a região; dessa forma, não é e não foi uma convenção universal. A escrita, nessa época, era contínua, ou seja, não havia separação das letras e das frases, também não havia sinais gráficos de pontuação e nem a distinção entre maiúsculas e minúsculas. Isso se deve ao fato de a escrita ser destinada à leitura em voz alta (MANGUEL, 1997). Apesar de a prática da leitura em voz alta ser dominante, há exemplos de que a leitura silenciosa também era realizada, como no relato de Santo Agostinho sobre a forma de ler de Santo Ambrósio, “jamais lia em voz alta”, citado por Manguel (1997). Tal relato é o primeiro registro de leitura silenciosa do mundo Ocidental, pois os exemplos anteriores são muito incertos. Uma das sociedades mais organizadas dessa época foi a grega, e a leitura teve um papel fundamental para o desenvolvimento e manutenção dessa organização social, uma vez que, durante os séculos VI e V a.C. houve um grande movimento de alfabetização, porém o acesso aos livros era escasso; tal paradoxo existia porque a leitura era fundamental para o funcionamento da democracia ateniense. Na Grécia antiga tinha-se a noção de que o livro servia para conservar os textos, para que com o passar do tempo fosse possível trazê-los à memória, ou seja, o livro era uma espécie de “armazenador” de idéias. Mas, nas últimas décadas de século V a.C., houve a diferenciação do livro para conservação de textos e dos livros para a leitura. Também se percebe, por exemplos literários e iconográficos, que os textos eram utilizados na educação e que a leitura era uma prática social da época, sendo a leitura solitária uma prática rara, ou seja, as práticas de leitura silenciosa e oralizada coexistiram na Grécia antiga, no entanto a leitura em voz alta era a mais difundida. 19 A leitura verbalizada na Grécia antiga apresentava três características: (1) caráter instrumental do leitor ou da voz; (2) caráter incompleto da escrita, pois necessitava da oralização; e (3) os leitores eram na verdade ouvintes. (SVENBRO,2002). O caráter incompleto da escrita, nessa época, fica nítido, pois para que a escrita se completasse era necessário ser lida, e como foi citado anteriormente, a leitura era oralizada, por causa de alguns fatores como a escrita contínua, que tornava obrigatória a vocalização para o entendimento do texto. Sendo assim, a tarefa do leitor é “colocar sua própria voz à disposição do escrito [...] É ceder a voz pelo instante de uma leitura. Voz que o escrito logo torna sua, o que significa que a voz não pertence ao leitor durante a leitura”. (SVENBRO, 2002, p.49). O leitor tinha um papel passivo na leitura e, por isso, o leitor na Grécia arcaica era um escravo, para que os cidadãos livres não fossem utilizados pelo escritor e por ele fossem dominados. A separação da escrita contínua auxiliou a leitura silenciosa. Essa separação foi desenvolvida pelos monges para facilitar a cópia dos textos em silêncio. Entretanto, apenas a separação das letras não foi suficiente para a difundir da leitura silenciosa, mas foram as exigências da escolástica, na Idade Média, que demonstraram as vantagens da leitura silenciosa: rapidez e inteligibilidade, ou seja, a leitura silenciosa foi proporcionada por fatores quantitativos e também qualitativos, uma vez que a elaboração mental dos leitores tornou-se maior com essa prática de leitura. Na Antiguidade grega a leitura silenciosa era praticada apenas: [...] por profissionais da palavra escrita, mergulhados em leituras suficientemente vastas para favorecer a interiorização da voz leitora. Para o leitor médio, a maneira normal de ler permaneceu sendo a leitura em voz alta, como se fosse impossível apagar a razão primeira da escrita grega: produzir o som, e não representá-lo. (SVENBRO,2002, p.66). No período clássico (480 a 320 a.C.) desenvolveram-se diferentes práticas de leitura: 1) leitura atenta, que percorre todo o texto com detalhes; 2) leitura oral; 3) leitura que decifra as letras, sílabas, palavras e frases; 4) leitura superficial; 5) leitura com profundidade e 6) releitura de um livro várias vezes. Nesse período, o livro passa a ser o principal veículo da escrita, porém as grandes bibliotecas helenísticas não eram ambientes para a realização da leitura, mas espaço de trabalho para poucos eruditos e literatos. Sendo assim, os livros eram mais acumulados do que lidos. 20 O conteúdo e a forma dos livros eram, na sua maioria, de cunho profissional. Poucos eram os livros de entretenimento e sua forma foi se transformando dos rolos para tábuas de madeira (CAVALLO, 2002). Outra civilização que teve papel importante na história Antiga da leitura e da escrita foi a romana: ela herdou da Grécia não só a forma do livro em rolo como também suas práticas de leitura. Nos primeiros séculos de Roma, a escrita era privilégio dos sacerdotes e dos nobres, que utilizavam livros com folhas de linho ou tábuas de madeira para registrarem os escritos, que se restringiam a elogios fúnebres, relatos de magistrados e memórias da cidade. (CAVALLO, 2002). No início do século II a.C., Roma tinha um número escasso de livros que se expande, por causa das guerras ocorridas contra a Grécia. Dessa forma, os livros gregos invadem Roma, dando origem às bibliotecas particulares; no entanto, esses tinham apenas finalidade profissional. A partir do século I a.C., a leitura particular, doméstica e solitária torna-se uma prática na sociedade romana. Surgem assim as bibliotecas particulares, o que gerou um aumento do número de leitores, mas que se restringia a pessoas da pequena elite romana. Nessa mesma época, também ocorre o nascimento dos livros latinos (romanos), todavia sem a qualidade editorial dos gregos (CAVALLO, 2002). As bibliotecas particulares não eram restritas às pessoas da casa, mas sim abertas a consultas de outras pessoas, já que, na sociedade romana, era obrigação do leitor mais instruído, ou propiciar o contato das pessoas com os livros, ou lê-los em voz alta para os analfabetos. Já no século I, aparecem volumens latinos de alta qualidade: [...] papiro de primeira qualidade e de primeiro uso, cuidada paginação do escrito, escritas precisas e às vezes elegante, texto correto, uso de iniciais diferenciadas e de tipos diferenciados para o nome do autor e o título da obra ao final de cada unidade, hastes para desenrolar o volumem. (CAVALLO, 2002, p.75). A qualidade dos livros é acompanhada pelo surgimento de uma nova e grande literatura romana, que ainda possui seus modelos na Grécia. Paralelamente a essa melhora da qualidade dos livros latinos, eleva-se o número de leitores que não se importam com a qualidade dos livros nem com sua utilidade, mas lêem apenas por prazer. 21 Dessa forma, os leitores romanos, dessa época, podem ser caracterizados em três tipos: modestos, mediamente instruídos e cultos. Com surgimento do Império greco-romano, novas práticas de leitura começam a ser utilizadas, por causa do progresso da alfabetização e da diversidade de material escrito que começa a circular na sociedade como: cartazes, versos, prosas, dentre outros. Com um crescente número de leitores e com a maior circulação dos escritos, foi necessária a criação de bibliotecas públicas e o aumento do acervo das bibliotecas particulares, o que gerou a maior oferta de novos textos e a transformação do formato dos livros, antes feitos em volumen ou rolos, que passaram a ser codex ou códice, sendo mais adequado às necessidades dos novos leitores. A transformação do formato do livro teve grande êxito graças ao seu menor custo de fabricação, uma vez que era possível utilizar os dois lados de uma folha. Outra facilidade foi a de manusear, pois com os livros em códice era necessário somente virar as folhas e não mais enrolar as duas pontas dos rolos. As bibliotecas greco-romanas eram abertas a qualquer pessoa que quisesse freqüentá- la; entretanto quem a utilizava, na maioria das vezes, eram leitores da alta classe média, os quais já possuíam uma biblioteca particular. O grande número de bibliotecas públicas construídas nesse período pelo Império greco-romano não traduz a real necessidade de leitura do povo, pois os monumentos arquitetônicos erguidos para as bibliotecas eram impostos pelos imperadores como demonstração de poder. Além disso, os livros dessas bibliotecas passavam por uma censura, ficavam imunes apenas as obras que não atacavam o governo. Quanto às bibliotecas particulares, essas cresciam pela necessidade de leitura dos seus donos, porém a elite greco-romana, muitas vezes, utilizava os livros como objetos de ostentação e não de instrução. O processo de ensino da leitura em Roma ocorria da seguinte forma: As crianças em idade escolar [...] tinham, antes de mais nada, de aprender ‘as formas e os nomes das letras’ em ordem alfabética, eventualmente com a ajuda de pequenos modelos de marfim ou de outros objetos similares e, em seguida, aprender a escrever, seguindo em uma tabuinha de madeira o sulco de cada letra gravado pelo professor e realizando depois elas próprias a gravação. Os estágios posteriores eram constituídos pelo traçado das sílabas, de palavras completas e, finalmente, de frases. (CAVALLLO, 2002, p.79). O progresso da alfabetização colocou a leitura ao alcance das mulheres e de pessoas menos cultas, ocasionando o aparecimento de textos destinados a esse público. 22 Com essa discussão básica de como a leitura e a escrita se desenvolveram na Idade Antiga, apresentaremos, na seqüência, como essas práticas se desenvolveram na Idade Média. 1.1.2 Idade Média (século V – século XV) Durante a Idade Média, o Ocidente latino teve um retrocesso quanto à leitura, pois essa deixou de ser realizada em espaços públicos e foi confinada nas igrejas. A variedade de materiais de leitura se extinguiu, limitando-se às Sagradas Escrituras. Na Europa ocorre a passagem da leitura em voz alta, para a leitura silenciosa ou murmurada, pois a leitura tinha um cunho religioso, o que demandava uma atitude de meditação, de releitura e de memorização. Por causa do avanço da leitura silenciosa, foi necessária a separação das palavras, e algumas convenções gráficas apareceram para facilitar a compreensão do escrito. Com o desenvolvimento da leitura silenciosa se perdia o controle sobre o que e como as pessoas estavam lendo, “[...] a leitura silenciosa abria espaço para sonhar acordado, para o perigo da preguiça o pecado da ociosidade [...]” (MANGUEL, 1997, p.68). Esse avanço da leitura silenciosa não quer dizer que a leitura em voz alta desapareceu. As duas práticas coexistiram e eram utilizadas, cada qual nas situações apropriadas. Entre os séculos XI e XIV, a alfabetização e, conseqüentemente, a escrita se desenvolvem, e o uso dos livros se diversifica. Durante a Idade Média foram utilizados alguns métodos de ensino. Na alta Idade Média utilizavam-se as práticas monásticas, herdadas da Antigüidade, que tinham como função facilitar o processo da leitura. As práticas de leitura monásticas se apoiavam no preceito de que a leitura servia para tomar contato com a palavra divina e, para tanto, os estudos gramaticais consistiam em: Lectio, o leitor tinha que decifrar o texto; Emendatio, era a transmissão dos manuscritos que exigia que o leitor corrigisse o texto contido no seu exemplar para melhorá-lo; Enarratio, reconhecer as características do vocabulário e interpretar o conteúdo do texto; Judicium, o leitor deveria avaliar as qualidades estéticas ou o valor moral e filosófico do texto. (PARKES, 2002, p.103). A alfabetização medieval abarcava tanto meninos como meninas, e as primeiras letras eram ensinadas por amas ou mesmo por suas mães. Depois dessa fase, os meninos eram encaminhados para a escola e as meninas continuavam sua instrução em casa com suas mães, 23 mas esse processo só ocorria em lares abastados. Às vezes, as meninas não tinham acesso à instrução. A prática de leitura monástica foi substituída aos poucos pela escolástica: [...] o método escolástico consistia em pouco mais do que treinar o estudante a considerar um texto de acordo com certos critérios preestabelecidos e oficialmente aprovados, os quais eram incutidos neles às custas de muito sofrimento. No que se refere ao ensino da leitura, o sucesso do método dependia mais da perseverança do aluno que de sua inteligência. (MANGUEL, 1997, p.93). A escolástica propiciava a compreensão, pois julgava que essa era necessária para o conhecimento; defendia o ler para saber e não para acumular ou decorar textos. Dessa maneira, a leitura devia ser mais ágil, o que ocasionou mudanças na forma de escrever os livros. Recorre-se às abreviações para tornar a leitura mais rápida; o espaço da página é dividido em duas colunas um pouco estreitas, de forma que cada linha possa entrar num campo visual único, sendo portanto mais fácil de perceber; o texto é fragmentado em seqüências capazes de facilitar a compreensão. Acaba de nascer, em suma, o livro como instrumento de trabalho intelectual [...] (CAVALLO e CHARTIER, 2002, p.22). Para ensinar a leitura de acordo com esse método, os seguintes passos deveriam ser seguidos: 1) Lectio: análise gramatical; 2) Littera: sentido literal do texto; 3) Sensus: significado do texto segundo diferentes interpretações; 4) Sententia: discussão das opiniões segundo diferentes interpretações (MANGUEL, 1997). Sendo assim, esse método valoriza a capacidade de recitar e comparar interpretações de autores reconhecidos, não se valorizava a interpretação individual do aluno. Louis Dringenberg, em 1441, foi nomeado diretor da escola de Sélestat, escola da França na Idade Média, que ensina a leitura e a escrita. Ele foi o primeiro a não seguir o método escolástico para o ensino da leitura. Propunha a leitura de apenas algumas seções dos velhos manuais de leitura; na seqüência, deveriam ser feitas discussões em classe, as regras gramaticais ser explicadas e não decoradas, descartou as glosas e comentários tradicionais e utilizava os textos clássicos dos Pais da Igreja. Com essas mudanças Dringenberg propiciou um grau de liberdade na leitura dos estudantes que jamais havia ocorrido antes (MANGUEL, 1997). Seu sucessor foi Crato Hofman que, ao invés de utilizar os textos dos Pais da Igreja, preferia os clássicos romanos e gregos “(...) em vez de conduzir a classe por um atoleiro de regras gramaticais, avançava rapidamente para a leitura dos próprios textos, acrescentando- 24 lhes uma riqueza de informações arqueológicas, geográficas e históricas.” (MANGUEL, 1997, p.98). Hofman priorizava em seu ensino a leitura fluente, a correção e o significado do texto, mas não era permitida a interpretação livre dos estudantes frente aos textos. No século XV, as escolas humanistas começaram a incentivar a leitura individual o que foi se tornando, gradualmente, uma prática. Dessa forma, os métodos de ensino escolásticos foram sendo colocados em questão e substituídos. Essa substituição foi possível por conta da disponibilidade de livros após a invenção da imprensa e também pela crise social que levou os cidadãos a verem que a realidade não era estática, mas complexa e desnorteante. Sendo assim, o livro não mais serve apenas para registro, todavia é o objeto onde o conhecimento pode ser buscado. Em conseqüência desse fato, uma nova forma de ler surge. Não se lêem mais exemplares inteiros; a leitura passa a ser de fragmentos que dêem as respostas procuradas. Tal forma de ler ocasionou mudanças na organização dos livros que, para facilitar a procura dos leitores, apresenta rubricas, sinais de parágrafos e títulos de capítulos. As bibliotecas também sofreram modificações de espaços destinados ao acúmulo e conservação de livros: passa ser local de leitura silenciosa que era realizada fundamentalmente pelos olhos. Esse tipo de leitura influenciou “na formação de uma consciência crítica diante do texto escrito, na elaboração do pensamento, nas práticas de devoção, nos desacordos, no erotismo.” (CAVALLO e CHARTIER, 2002, p.23). Traçado o panorama da leitura e da escrita na Idade Média, passaremos a desenvolver as questões que nortearam essas práticas na Idade Moderna. 1.1.3 Idade Moderna (século XV – Século XVIII) Durante a Idade Moderna, o método escolástico de ensino da leitura é substituído por métodos mais liberais, como o global criado no século XVII por Nicolas Adam. A passagem do método escolástico para sistemas mais liberais de pensamento ocasionou, entre outras coisas, a prática de ler e pensar isoladamente, ressaltando a individualidade de cada leitor diante de um texto, fazendo com que o professor tivesse a função pública de difundir os textos e, por isso, os leitores passaram a se isolar para pensar sozinhos. Na época moderna, a primeira transformação que afeta a leitura é a transformação técnica, originada por Gutenberg com a invenção da imprensa, em meados do século XV. Tal invenção revoluciona o modo de produção dos textos e dos livros e também: 25 [...] permite a circulação dos textos numa escala antes impossível. Cada leitor pode ter acesso a um número maior de livros pode atingir um número maior de leitores. Além disso, a imprensa permite a reprodução idêntica [...] de um grande número de exemplares de textos, o que transforma suas próprias condições de transmissão e recepção. (CAVALLO e CHARTIER, 2002, p.26). Dessa forma, o século XVI foi de crescimento do acesso à leitura e, por isso, mais pessoas aprenderam a ler e a escrever e começaram a se preocupar com a caligrafia. Com o desenvolvimento da imprensa foi possível a formação de bibliotecas particulares, nas quais os exemplares eram menores e mais fáceis de guardar. Também foi desenvolvida a regra para utilização da letra maiúscula. Os livros ficaram mais baratos, pois perderam suas grandes dimensões e capas opulentas para se transformarem em livros de tamanhos médios ou de bolso, ideais para o estudo, mais fáceis de serem carregados e menos caros. Assim, a aquisição de livros não mais era um símbolo de riqueza, porém de intelectualidade e de estudo. Com o passar do tempo, os editores pararam de se preocupar com a qualidade do que imprimiam e publicavam livros comerciais, visando ao lucro, popularizando a leitura e a formação de bibliotecas. Também houve nesse momento histórico, o desenvolvimento dos romances, que incentivaram a leitura intensiva, afastando os leitores do aspecto crítico da leitura. A segunda revolução ocorre na segunda metade do século XVIII com a passagem da leitura intensiva para a extensiva. O leitor intensivo era aquele que tinha um número limitado de livros e os relia para memorizá-los e recitá-los. Já o leitor extensivo é aquele que possuía grande diversidade de livros para ler, lia-os rapidamente e com olhar crítico. Na Idade Moderna, o modelo de leitura teve influência das reformas religiosas, que mudaram a relação dos fiéis com o texto escrito, e a Igreja passou a apoiar a formação de leitores. A maneira de ler mudava de acordo com a religião. Os luteranos e católicos tinham a Bíblia como material de leitura coletiva e comandada por membros da Igreja para evitar leituras individuais que pudessem gerar interpretações heterodoxas e perigosas. Já os calvinistas tinham uma relação direta entre o texto e o fiel. Dependendo da situação, praticava-se a leitura silenciosa, ou em voz alta, o que permitia as várias interpretações do texto. Dessa forma, a Idade Moderna foi marcada pela diversidade de livros e aumento do acesso à leitura. Com o passar do tempo, pessoas de diferentes níveis sociais, culturais e 26 intelectuais tiveram acesso à leitura. Essa variedade de leitores originou, a partir do século XIX, uma grande gama de modelos de leitura e de material escrito. Para completar a discussão de como a leitura e a escrita se desenvolveram com o passar do tempo focalizaremos a Idade Contemporânea. 1.1.4 Idade Contemporânea (a partir do século XVIII) Atualmente temos uma infinidade de materiais escritos sendo produzidos todos os dias, a imprensa cada vez se torna mais ágil, jogando livros, jornais, revistas nas lojas, mercados, bancas, livrarias, estandes em shoppings, ou seja, além da produção rápida também se tornou fácil comprar material para leitura. Podemos encontrar pessoas lendo em filas de banco, na espera para um atendimento público, no cabeleireiro, no dentista, no médico, na academia de ginástica, na biblioteca, deitadas no sofá, na igreja, no parque, e em tantos outros lugares, porque temos uma diversidade de modelos de leitura. Cada leitura citada acima tem um objetivo - passar o tempo, distração, informação, busca de conhecimento, prazer - e é esse objetivo que leva a pessoa a optar por um modelo de leitura. Não se pode deixar de citar a forma mais moderna de apresentação do material escrito: a leitura na tela do computador. Essa leitura se diferencia de todas as outras já citadas, pois se têm vários textos num mesmo objeto e também se redefine a materialidade das obras e, essa forma de leitura, cruza aspectos da leitura em volumen ou rolo com a leitura em codex ou códice: “[...] está estabelecida uma relação totalmente original e inédita com o texto.” (CAVALLO e CHARTIER, 2002, p.30). Por todo esse contexto histórico, a reflexão sobre como ensinar a ler e a escrever hoje se faz necessária, para entender que leitor se quer formar e qual concepção de leitura é preciso levar em frente e desenvolver para a formação de verdadeiros leitores e produtores de texto, que saibam utilizar a seu favor toda essa diversidade de textos existente atualmente. É com o propósito de discutir essa formação que o próximo item apresenta a concepção de leitura e escrita que norteia todo o trabalho desenvolvido nessa pesquisa. 1.2 Concepção de leitura e escrita presentes nesse trabalho No cotidiano escolar observa-se que o ensino da leitura está muito atrelado a conceitos fonológicos. Salvo algumas exceções, as aulas de leitura são, na maioria das vezes, aulas de soletração, nas quais os alunos primeiro aprendem o “nome” das letras, depois 27 tentam juntá-las num exercício sem sentido e enfadonho, quando não se tenta mesclar o método fônico com o global, que resulta mais uma vez na decodificação das letras, das palavras e das frases. Tais práticas são utilizadas sem o conhecimento de que a leitura não é a simples decodificação da escrita em sons, mas sim é uma atividade complexa que procura dar significado ao texto escrito. Uma vez concebido que a leitura não é a correspondência da fala rompe-se com uma das bases do ensino tradicional da leitura “[...] o de que a maneira de ensinar leitura é ensinar fonologia, ou as regras de correspondência ortografia-som.” (SMITH, 1999, p.51). Sendo assim, a fonologia para o aprendizado da leitura se constitui como um engano, porque não há correspondência termo a termo entre as letras e os sons, ou seja, cada letra apresenta mais de um som, então a relação que ocorre é na ordem de vários termos escritos possuírem várias correspondências fonológicas. Para ler se faz necessário considerar a totalidade das palavras e de seus significados, sendo desnecessária a aprendizagem da correspondência grafia e som, ou seja, a aprendizagem da fonologia. Assim, reconhecem-se palavras da mesma forma que se reconhecem outros objetos do mundo visual, apenas olhando para eles, “não existe nenhuma diferença fundamental entre a maneira pela qual aprendemos a reconhecer objetos e a maneira pela qual aprendemos a reconhecer palavras escritas.” (SMITH, 1999, p.57). A leitura inicia-se muito antes da alfabetização, uma vez que se trata de um comportamento que depende de várias estratégias a serem desenvolvidas antes da alfabetização. Desde muito nova a criança já sabe classificar, denominar e agir, por meio das significações que atribui a cada situação. Dessa maneira, seria natural que aprendesse a ler atribuindo significado aos textos. Para tanto, seria necessário que a escola permitisse à criança o arriscar-se a errar, a adivinhar, a formular hipóteses, a entrar em conflito, e tudo isso a levaria a ajustar progressivamente seus conhecimentos ao sistema de leitura e escrita. Contudo não é a prática recorrente nas escolas (FOUCAMBERT, 1994). 28 Nesse contexto, os projetos de leitura e escrita se constituem como uma alternativa para trabalhar o desenvolvimento de competências leitoras2, por meio das estratégias de leitura e, conseqüentemente, a atribuição de sentido e significado ao texto. Para aprender a escrita é necessário que se permita à criança escrever respeitando suas limitações em cada etapa de seu desenvolvimento. Cabe ao professor o papel de auxiliá-la a vencer suas dificuldades e, dessa maneira, constituir-se como autora. Dessa forma, propõe-se primeiramente que as crianças escrevam com uma finalidade bem definida e com um propósito dentro de um projeto desenvolvido na sala ou na escola. Essa contextualização é importante para que as crianças saibam qual situação discursiva envolve o texto que deve ser produzido; assim, elas terão meios para escrever coerentemente. Nessa diretriz Koch e Travaglia (1993) afirmam: [...] o professor deve trabalhar a produção e a compreensão de textos buscando sempre deixar muito claro em que situação discursiva o texto a ser produzido (como também o texto a ser compreendido) deve ser encaixado (p.104). O encaixe ou adequação do texto a ser produzido ou compreendido fica claramente definido quando o professor tem uma prática pedagógica calcada nos projetos, pois toda produção ou leitura realizada dentro de um projeto tem muito bem definida a situação de comunicação envolvida, uma vez que todos (professor e alunos) são parceiros durante todo o desenvolvimento do processo de escrita ou de leitura. Assim, não há o risco do professor planejar uma produção de texto ou uma leitura e não conseguir explicitar satisfatoriamente para seus alunos a situação discursiva em que a produção ou a leitura está inserida. Após essa explicitação, as crianças podem escrever uma primeira versão do tipo de texto trabalhado naquele momento do projeto. A partir dessa primeira escrita é possível começar a desenvolver as atividades epilingüísticas. O conceito de atividade epilingüística não é um consenso entre os estudiosos. Assim, podem-se encontrar várias definições. Gombert (1990) afirma que atividades epilingüísticas são comportamentos precocemente confirmados e se parecem com os comportamentos metalingüísticos, no entanto não são controlados conscientemente pelo sujeito. Trata-se de fato de manifestações 2 Competência leitora, diz respeito a capacidade de ler e atribuir um sentido e um significado a um texto escrito. Já as estratégias de leitura são os procedimentos cognitivos, diferentes da decodificação, que são acionados diante de uma situação de leitura real, são compreendidas em: seleção, antecipação, inferência e verificação. 29 explícitas, nos comportamentos dos sujeitos, de um domínio funcional de regras de organização ou de uso da língua. Esse autor afirma que as atividades epilingüísticas são não-conscientes, fato que pode ser contestado, pois pensando no exercício de escrever, quando se discutisse com os alunos os aspectos necessários para escrever um tipo de texto, qual material mais adequado a ser utilizado, quais palavras ficam melhores, fica evidente o quanto tais atividades exigem um certo grau de consciência e de reflexão dos sujeitos envolvidos no processo. Para Geraldi (1994) as atividades epilingüísticas são ações que se fazem sobre a linguagem, ocorrem nos processos interacionais e resultam de uma reflexão sobre os próprios recursos expressivos como objeto. Dessa forma, é um trabalho de reflexão sobre o material lingüístico. Nota-se que esse autor admite que durante a atividade epilingüística há a consciência e a reflexão. Nesse mesmo sentido, o documento oficial, Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, aponta que atividade epilingüística consiste na “reflexão voltada para o uso, no próprio interior da atividade lingüística em que se realiza.” (BRASIL, 1997, p.38). Assim, essa atividade focaliza o processo da produção de texto, o discurso, as situações de interlocução, possibilitando a reflexão sobre os recursos expressivos utilizados pelo produtor / autor do texto. Também, encontramos na Proposta Curricular para o ensino de Língua Portuguesa: 1º grau, que atividade epilingüística é o processo consciente sobre o uso dos procedimentos do lingüístico e da própria linguagem. As situações de construção do texto escrito são, muito freqüentemente, o espaço ideal dessa atividade: tornamos conscientes os propósitos do texto, procuramos antecipar a imagem dos interlocutores a que nos dirigimos, esforçamo-nos por adequar a organização do texto e a linguagem aos propósitos e aos interlocutores, comparamos e selecionamos para isso os recursos mais expressivos, as figuras mais relevantes, os argumentos mais convincentes (SÃO PAULO, 1991, p.25). Para alcançar essas especificidades da atividade epilingüística o ensino deve, segundo esse documento, desenvolver a reflexão sobre a linguagem. A conceituação de atividade metalingüística também não é unânime. Retomando os dois autores citados anteriormente, Gombert (1990) afirma que a atividade metalingüística é um subdomínio da metacognição que concerne à linguagem e sua utilização. Dito de outra forma, a atividade metalingüística pode ser divida em: (1) as atividades de reflexão sobre a 30 linguagem e sua utilização, (2) as capacidades do sujeitos de controlar e planejar seus próprios processos de processamento lingüístico (em compreensão ou em produção). Por outro lado, Geraldi (1997) afirma que as atividades metalingüísticas são ações da linguagem, em que a própria linguagem é dita como objeto que constrói um sistema sobre a língua, enquanto que as atividades epilingüísticas permitem uma reflexão sobre os recursos em uso no momento da produção, quer oral, quer escrita. Os documentos oficiais também discutem esse tipo de atividade. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais encontramos que atividade metalingüísticas “estão relacionadas a um tipo de análise voltada para a descrição, por meio da categorização e sistematização dos elementos lingüísticos.” (BRASIL, 1997, p.38). Dessa maneira, focaliza o produto, fala sobre a língua, não está vinculada ao processo discursivo. Essa atividade leva o aluno a conhecer os aspectos regulares da língua, podendo sistematizar e classificar essas características. Nas Propostas Curriculares para o ensino de Língua Portuguesa: 1º grau encontramos que as atividades metalingüísticas falam sobre a linguagem e descrevem o seu funcionamento e uso, por meio da sistematização e classificação dos seus termos. Quanto ao ensino se refere “a construção conjunta com os alunos das noções, relações, conceitos com que se opera na teoria gramatical para que possam falar sobre a linguagem, pesquisá-la como objeto de estudo e descrição.” (SÃO PAULO, 1991. p. 27). Tendo em vista a posição teórica desses autores, entendemos por atividade epilingüística a atividade própria integrante ao processo de produção textual que reflete sobre as diferentes possibilidades de escrevê-lo, ou seja, a atividade de reflexão sobre o uso dos conceitos implícitos no material escrito. Enquanto que por atividade metalingüística entendemos aquela que se realiza sobre a língua, como objeto de análise, com seus conceitos e normas, para sistematizar os conceitos que estão presentes na situação de produção textual em questão. Dentro dessa perspectiva, as atividades epilingüísticas dão conta de adequar a escrita ao tipo de texto proposto, ao destinatário, ao objetivo proposto, ao vocabulário necessário para tal situação de escrita, dentre outros aspectos que surgem durante as várias versões que as crianças fazem, até que se perceba que o texto está adequado para a situação e para o nível desenvolvimento das crianças. Ao chegar a uma última versão da escrita, são realizadas as atividades metalingüísticas que possibilitarão uma reflexão sobre as inadequações gramaticais como: pontuação, substituição, concordância, ortografia, etc., ou seja, por meio da adequação dos textos às normas da língua portuguesa, realiza-se o estudo, a reflexão e a sistematização 31 dessas normas, possibilitando à criança entender o que é um verbo, porque deve haver concordância entre os termos de um texto, o que é um substantivo, adjetivo, etc. O desenvolvimento de um trabalho dessa natureza leva à formação de um autor com consciência de suas responsabilidades na tarefa de escrever, buscando ter: coerência; respeito aos padrões estabelecidos, tanto quanto à forma do discurso como às formas gramaticais; explicitação; clareza; conhecimento das regras textuais; originalidade; relevância e entre várias coisas, ‘unidade’, ‘não contradição’, ‘progressão’ e ‘duração’ do seu discurso. (ORLANDI, 1988, p.78). Ao promover essa postura pedagógica, o professor propicia nos alunos a passagem de sujeito-enunciador para sujeito-autor, pois, nas produções inseridas nos projetos de leitura e escrita, como é o caso da presente pesquisa, eles se colocam como autores desde o início do processo. Assim, é feita a passagem do sujeito-enunciador para sujeito-autor, por meio de uma reflexão lingüístico-pedagógica, uma vez que durante o processo, propicia-se uma reflexão lingüística que visa à formação de crianças autoras. Desse modo, é possível formar autores competentes, já que o trabalho de escrever na escola não fica recluso aos seus muros. Ele está contextualizado histórica e socialmente, desempenhando sua função na sociedade. Um ensino pautado nesses conceitos certamente pode contribuir para o início da formação de leitores e escritores autônomos, capazes de compreender o texto não apenas na sua superficialidade, mas também nas estruturas profundas que possibilitam que ele elabore um significado ao texto. Todavia para que o professor possa compreender como o comportamento leitor se desenvolve em seus alunos e quais seriam as atitudes mais acertadas para colaborar com esse desenvolvimento, é necessário que tenha uma formação possibilitadora da compreensão dos métodos, das posições políticas existentes em cada um deles e, conseqüentemente, do tipo de leitor e escritor a formar. Se a proposição é formar leitores e escritores que entendam a função de instrumento do pensamento, de reflexão e de poder das práticas de leitura e de escrita, não se pode dirigir os ensinamentos para uma aprendizagem que focalize a transposição do oral para o escrito e, a decodificação das letras, mas sim ensinar a ler e a compreender. Foucambert (1994, p.10-11) nos auxilia nessa discussão apontando como necessidades da formação docente: (1) ter informação teórica sobre a leitura, teorias que são disponíveis, mas que não são divulgadas; (2) ter experiência de leitores, ou seja, precisam ser leitores para escolher as intervenções necessárias para ensinar a leitura; (3) conhecer os diferentes tipos de textos disponíveis. Para ensinar a criança a ler os textos que são veiculados 32 na sociedade, para isso não pode restringir a experiência leitora da criança a textos pedagógicos e facilitados que visam apenas ao ensino da leitura. É necessário, portanto, que o professor conheça também os escritos sociais, tornando-se um perito em textos para crianças. Por meio desses preceitos concebe-se que a leitura e a escrita devem ser trabalhadas em conjunto, pois são práticas complementares, caminham juntas. No trabalho com a leitura e com a escrita se constrói a aprendizagem dessas práticas, porém é necessário que, na sala de aula, se trabalhe com textos de boa qualidade, apresentados em sua íntegra e respeitando os níveis de aprendizagens das crianças. Assim, por exemplo, o professor pode servir de escriba dos pensamentos dos seus alunos e de leitor dos textos a eles interessantes até que se apropriem dos conhecimentos da leitura e da escrita. Todo esse trabalho permite um aprendizado da escrita “por meio da reescrita, do manejo de textos, envolvendo-se no exercício socializado da razão gráfica. É por essa intervenção no escrito que a escritura e a leitura devem caminhar juntas”. (FOUCAMBERT, 1997, p.156). Os projetos de leitura e escrita são uma alternativa para se consolidar esse processo de ensino e de aprendizagem, que visa à formação de verdadeiros leitores e produtores de texto, uma vez que, dentro dos projetos, as crianças podem vivenciar a prática da leitura e da escrita como uma produção social. Assim, propõe-se o ler e escrever verdadeiramente em sua função social, ou em contexto em que as crianças possam trabalhar com atividades que tenham sentido, para que possam se engajar em sua própria aprendizagem, ao invés de ficarem passivamente submetidas a um ensino baseado em cópias, treinos ortográficos, exercícios gramaticais, oralização de textos, etc. A pedagogia de projetos permite que os alunos vivam em uma escola apoiada no real, aberta para muitas relações com o exterior, nela trabalhando “de verdade” e “pra valer” (JOLIBERT, 1994 a/b). No desenvolvimento dos projetos, cada produção escrita tem uma finalidade, um leitor real, um contexto, por isso, as escritas e as leituras realizadas em um projeto têm sentido e significado para as crianças que, dentro desse processo, são agentes participantes da construção de suas aprendizagens. Inserida num ambiente de cooperação, elemento essencial dos projetos, a criança pode compreender o papel social da leitura, o poder da escrita e a responsabilidade que essas práticas carregam, despertando nela o gosto e o prazer pela leitura e escrita não só na escola, como também em suas casas, na comunidade, na biblioteca e em todos os lugares que sentir 33 que é necessário expressar sua opinião, seu pensamento, buscar conhecimento, informação ou mesmo distração. Diante das discussões aqui firmadas, a concepção de leitura presente esta pesquisa se constrói primeiramente sob o princípio de que é necessário ao indivíduo ler o mundo ao seu redor, para que, a partir dessa leitura, inicie o seu comportamento leitor de textos escritos, pelo levantamento de hipóteses que possibilita a atribuição de significado à escrita. Com essa capacidade desenvolvida, o indivíduo pode, cada vez mais, compreender as estruturas superficiais e profundas que engendram um texto e tornar-se um leitor de textos autônomo. Da mesma forma, concebemos a escrita como um processo de produção de sentido, realizado em contextos significativos, nos quais os escritos elaborados pelos alunos cumprem uma função social e se organizam dentro das especificidades que caracteriza os diferentes tipos de textos. Sendo assim, para propiciar um ambiente no qual a leitura e a escrita sejam práticas sociais, é preciso ultrapassar algumas estruturas de reprodução do sistema escolar, para que a vida cooperativa propicie uma “educação da autonomia pelo envolvimento do indivíduo (o que é o contrário de individualismo) [que] é a condição primordial de uma pedagogia de leitura”. (FOUCAMBERT, 1997, p.136). Dessa maneira, é possível reverter a divisão existente entre leitores e não-leitores, que reflete a realidade social de poderosos e excluídos, os que mandam e os que executam. Daí a importância da discussão do ensino da leitura, para que esse quadro não seja determinante, mas apenas um obstáculo a ser ultrapassado. 34 CAPÍTULO 2 PEDAGOGIA DE PROJETOS: raízes históricas e contribuições atuais Antes de iniciar esse capítulo é necessário esclarecer a escolha da nomenclatura pedagogia de projetos. Nessa pesquisa optamos por essa denominação por levar em conta o sentido da palavra pedagogia, que segundo Ferreira (1999) é referente ao estudo de ideais de educação, que seguem uma determinada concepção de vida e visa aos meios mais eficientes para efetivar estes ideais. Sendo assim, a denominação pedagogia de projetos abarca toda a complexidade dessa concepção de educação que será discutida nesse capítulo. 2.1 Pedagogia de projetos: breve contextualização A pedagogia de projetos tem suas bases teóricas na Pedagogia Nova, que surgiu no início do século XIX das críticas feitas à pedagogia tradicional. Propunham-se algumas mudanças na escola: ao invés dos professores transmitirem o conhecimento, passariam a ser mediadores, promotores de espaço para os alunos entrarem em contato com o objeto de conhecimento sendo os agentes do processo. Vários pensadores educacionais são representantes dessa vertente, dentre eles Pestalozzi, Decroly, Claparéde, Motessori, Dewey e Freinet, defensores da educação ativa presente na vida cotidiana dos alunos, sendo assim uma educação real. Saviani em sua obra Escola e Democracia categoriza a Pedagogia Nova entre as teorias não-críticas da educação, as quais, segundo ele, concebem a educação como um instrumento de correção da marginalidade da sociedade. De acordo com o mesmo autor, “marginalizado” não é só o ignorante, mas também o rejeitado. Observa-se nesta vertente, uma “biopsicologização da sociedade, da educação e da escola.”(SAVIANI, 1999, p.19). 35 A Pedagogia Nova contribuiu “para a constituição de uma sociedade cujos membros, não importam as diferenças de quaisquer tipos, se aceitem mutuamente e se respeitem na sua individualidade específica.” (SAVIANI, 1999, p.20). Quanto à relação professor e aluno dentro desse processo, Dewey (1993) defende a proposição que o docente deve estar sempre atento a dar sugestões aos seus alunos, sem que isso prejudique a liberdade desses, sugerindo, assim, um plano cooperativo, no qual ele mesmo e alunos socializem o conhecimento e a inteligência. Esses são, em linhas gerais, alguns dos principais ideais que a Pedagogia Nova trouxe para pensarmos uma nova concepção de educação, que possibilitasse um fazer pedagógico ativo, no qual os alunos interagissem com o conhecimento e o professor como mediador de todas as situações propiciadoras de novas aprendizagens. A pedagogia de projetos também recebe influências das correntes educativas da década de 1980, marcadas pelos estudos de Piaget, Ferreiro, Teberosky, dentre outros que se ocuparam em difundir a idéia de que o conhecimento que o aluno tem é pressuposto fundamental para que ele adquira novos conhecimentos e habilidades cognitivas. Hernández afirma: [...] leva-se em consideração as contribuições da pesquisa sociocultural, que enfatizou o valor que possui a criação de um modelo de participação e de interação para o favorecimento da aprendizagem, não apenas entre os alunos, mas na comunidade. (HERNÁNDEZ, 1998a, p.28). Atualmente, esses ideais da Escola Ativa ou Nova estão presentes nos anseios dos profissionais de educação que se deparam com as constantes mudanças do mundo e percebem que a educação estática, de perguntas e respostas dadas pelo livro didático e centrada na figura do professor, não é mais suficiente para auxiliar e encaminhar seus alunos a serem cidadãos desse mundo globalizado. Pode-se observar, a partir dos conceitos da escola nova, como, atualmente, os mesmos são contestados ou reavaliados; entretanto, a escola continua a trabalhar de forma a não garantir aprendizagens significativas para seus alunos. É nesse contexto que a discussão e os estudos sobre pedagogia de projetos se apresentam atualmente; no entanto cabe ressaltar que essa não é uma nova técnica de ensino, mas uma proposta metodológica que engloba uma concepção de educação e de ensino baseados na compreensão. Essa pedagogia surge para superar a monotonia vivida no âmbito educacional, nos anos 70, desenvolvendo-se através de três eixos principais com relação à instituição escolar: 36 (1) aponta que essa não está condenada à reprodução ideológica e socioeconômica, (2) que deve ser um lugar onde as pessoas (crianças e adultos) vivem em interação com o meio, como um agente de transformação deste meio e (3) que a escola não pode continuar a ser o universo de especialistas, um meio protegido das influências exteriores: o que leva o problema do alargamento da equipe educativa (CHASSANNE, 1993). Sendo assim, a pedagogia de projetos propõe mudanças de concepções tanto da estrutura organizacional da escola, quanto do processo ensino aprendizagem, representando: Uma maneira de entender o sentido da escolaridade baseado no ensino para a compreensão, o que implica que os alunos participem de um processo de pesquisa que tenha sentido para eles (não porque seja fácil ou agradável) e no qual usem diferentes estratégias de estudo; podem participar no processo de planejamento da própria aprendizagem e ajuda-os a serem flexíveis, a reconhecerem o “outro” e a compreenderem seu próprio ambiente pessoal e cultural (e dos outros). Tal atitude favorece a interpretação da realidade e o antidogmatismo. Essa é talvez a conclusão de todo esse percurso e uma das finalidades do trabalho por projetos. (HERNÁNDEZ, 1998a, p.31). A mudança na organização do espaço e do tempo escolar proposta por Hernández é destacada também por Jolibert e colaboradores (1994 a), quando enfocam a vida cooperativa, na qual professor e alunos decidem juntos todas as atividades que serão realizadas na sala de aula independente do tempo que essas durarão. Tais concepções estão fortemente entrelaçadas com pressupostos da pedagogia de projetos. A possibilidade dos educandos decidirem, opinarem, debaterem sobre o que estarão estudando é um processo que os leva, além da construção da autonomia, a uma aprendizagem significativa, pois ao participar de um projeto, o aluno está envolvido em uma experiência educativa em que o processo de construção de conhecimento está integrado às práticas vividas. O trabalho com projetos traz uma nova perspectiva para entendermos o processo ensino-aprendizagem. Aprender deixa de ser um simples ato de memorização e ensinar não significa mais repassar conteúdos prontos. Nessa atitude, todo conhecimento é construído em estreita relação com o contexto em que é utilizado, sendo, por isso mesmo, impossível separar os aspectos cognitivos, emocionais e sociais presentes nesse processo. A formação dos alunos não pode ser pensada apenas como uma atividade intelectual. É um processo global e complexo, pelo qual conhecer e intervir no real não se encontram dissociados. Aprende-se participando, vivenciando sentimentos, tomando atitudes diante dos fatos, escolhendo procedimentos para atingir determinados objetivos. Ensina-se não só pelas 37 respostas dadas, mas principalmente pelas experiências proporcionadas, pelos problemas criados, pela ação desencadeada (JOLIBERT, 1994 a). Nessa primeira reflexão mostramos um breve panorama histórico e de concepções que abarcam a pedagogia de projetos. Entretanto, faz-se necessário explicitar mais detalhadamente os aspectos que a constituem como uma concepção de educação. 2. 2 Pedagogia de projetos: concepção de educação Hernández (1998a) utiliza a expressão projetos de trabalho, ao invés de pedagogia de projetos, e conceitualiza-os como um processo educativo que estabelece relações, interpretações para se superar os limites das disciplinas escolares, favorecendo uma atitude de não fragmentação do saber e da formação constante dos docentes. Assim, faz-se a superação da “visão de educação escolar baseada nos conteúdos, apresentados como ‘objetos’ estáveis e universais e não como realidades socialmente construídas”. (p.12). Na mesma direção, refere-se à superação: (1) da visão da aprendizagem centrada apenas em processos de aquisição de conhecimentos científicos, desconsiderando os intercâmbios simbólicos que ocorrem na sala de aula e na escola; (2) da visão do currículo escolar centrado nas disciplinas e fragmentado; (3) da escola que tolhe os indivíduos de se desenvolverem em suas respectivas etapas de vida; (4) da perda da autonomia dos docentes e (5) da incapacidade da escola em dialogar com as transformações que ocorrem na sociedade, nos alunos e na própria educação (HERNÁNDEZ, 1998a). Essa explanação permite observar a complexidade da proposta da pedagogia de projetos, e afirmar que não é apenas mais uma vertente metodológica, mas uma concepção de educação e de escola, que exige mudanças profundas na estrutura organizacional da instituição, no pensar e fazer pedagógico dos docentes e na vida dos estudantes e de todos que se propõem a pensar a educação de maneira diferenciada. Quanto à organização curricular, Hernández (1998a) propõe que essa seja feita de forma interdisciplinar ou até transdisciplinar, para que os alunos possam não só compreender ou assimilar disciplinas, mas para que esse indivíduo adquira “[...] habilidades básicas para responder e interpretar o mundo em mudança [...]” (p.19). A concepção de educação defendida pelos projetos leva os alunos a compreender diversos conteúdos, porém não de forma decorativa e centrada na figura do professor, mas sim de maneira interdisciplinar e através da aquisição de meios para procurar autonomamente qualquer conteúdo que seja necessário para sua vida. 38 A pedagogia de projetos é baseada no ensino para a compreensão, o que faz com que os alunos participem de um processo significativo, usando diferentes estratégias de estudos, elaborem o planejamento da própria aprendizagem, tornando-se mais flexíveis e favorecendo a interpretação da realidade, o reconhecimento do outro e de seu próprio ambiente, sendo agentes ativos nesse processo. Sendo assim, essa pedagogia visa a construir democraticamente regras que possibilitem a convivência entre todos os indivíduos da comunidade escolar e prima por desenvolver o ensino a partir da necessidade e interesse dos indivíduos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Quanto à relação professor e aluno, esses devem ocupar o mesmo patamar, para ocorrência de uma relação horizontal, na qual todos os envolvidos no processo estejam abertos a aprender e a ensinar, não ocorrendo assim, a “educação bancária”, onde o ensino pressupõe o professor como centro do processo de ensino e de aprendizagem e o aluno é apenas um receptáculo das informações transmitidas pelo docente (FREIRE, 2002). Tal relação é propiciada na pedagogia de projetos, pois nessa concepção de educação, tanto professor quanto alunos devem procurar construir o conhecimento para compreender melhor o mundo que os rodeia. Dessa maneira, contribui-se para a formação de alunos e de professores, pois ambos são concebidos como agentes participantes do processo de ensino e de aprendizagem, e como ressalta Freire (2002), seres inacabados. Por serem agentes participantes, alunos e professores acabam por ter como meta fundamental o alcance de uma aprendizagem significativa para ambos, o que é explicitado no item a seguir. 2.3 Os projetos de trabalho e a aprendizagem significativa Ao participar de um projeto, o aluno está envolvido em uma experiência educativa em que o processo de construção de conhecimento está integrado às práticas vividas. Esse aluno deixa de ser, nessa perspectiva, apenas um “aprendiz” do conteúdo de uma área de conhecimento qualquer. É um ser humano que está desenvolvendo uma atividade complexa e que nesse processo está se apropriando, ao mesmo tempo, de um determinado objeto de conhecimento cultural e se formando como sujeito cultural. Isso significa que é impossível homogeneizar os alunos, é impossível desconsiderar sua história de vida, seus modos de viver, suas experiências culturais, e dar um caráter de neutralidade aos conteúdos, desvinculando-os do contexto sócio-histórico que os gerou. 39 Segundo Salvador (1994) aprendizagem significativa é: [...] antes de tudo, pôr em relevo o processo de construção de significados como elemento central do processo de ensino/aprendizagem. O aluno aprende um conteúdo qualquer – um conceito, uma explicação de um fenômeno físico ou social, um procedimento para resolver determinado tipo de problemas, uma norma de comportamento, um valor a respeitar, etc. – quando é capaz de atribuir-lhe um significado. (p.148). O mesmo autor comenta como, atualmente, a aprendizagem significativa é vista como importante na educação escolar, pois acreditamos que apenas esse tipo de aprendizagem possa desenvolver os alunos como pessoas. Um outro aspecto destacado como relevante é o de que o conceito aprendido possui significados diferentes para o professor e para seus alunos, ou melhor, a aprendizagem ocorre em diferentes graus para diferentes pessoas. Esse aspecto de tentar uma aprendizagem o mais significativa possível, mostra o caráter aberto e dinâmico da aprendizagem escolar. A construção de significados ocorre “(...) cada vez que somos capazes de estabelecer relações ‘substantivas e não-arbitrárias’ entre o que aprendemos e o que já conhecemos” (AUSUBEL apud SALVADOR, 1994, p.149), porém ela nem sempre acontece, pois, segundo Salvador (1994), são necessárias três condições para que ela ocorra: (1) condição lógica: o novo conteúdo deve possuir uma estrutura lógica interna e ser apresentado para o aluno de forma que ele perceba essa estrutura interna; (2) condição psicológica: o aluno deve relacionar o novo conteúdo a algo que já conhece, ou seja, “que possa inseri-lo nas redes de significados já construídas no decurso de suas experiências prévias de aprendizagem” (SALVADOR, 1994, p.151). Nessa condição é de extrema importância o conhecimento prévio dos alunos para a aquisição de novos conhecimentos. (3) atitude favorável, pela qual o aluno deve ser o protagonista e o responsável por sua aprendizagem, ou seja, o aluno deve estar disposto e comprometido a relacionar o novo conteúdo ao que ele já conhece. Pela perspectiva apontada, a pedagogia de projetos se constitui como uma forma viabilizadora de construção de significados, uma vez que propicia a condição lógica, pois o conteúdo trabalhado em um projeto possui uma estrutura interna, uma lógica intrínseca, sendo apresentado o conteúdo dessa maneira para o aluno. Quanto à condição psicológica, os projetos a atendem, pois todo o conteúdo trabalhado possui uma relação com as experiências prévias de aprendizagem dos alunos, ou seja, leva em consideração os seus conhecimentos prévios. 40 Os projetos ainda se caracterizam como uma forma de o professor motivar em seus alunos uma atitude favorável, pois um trabalho desse tipo propicia que o aluno faça relação entre o novo conteúdo com o que já aprendeu. Mas a aprendizagem significativa não ocorre apenas quando o aluno estabelece relação do novo com o seu conhecimento prévio. A construção de significados considera o aluno em toda a sua complexidade, objetivando inseri-lo em situações em que ele possa atribuir sentido às atividades de aprendizagem. Essas atividades podem ser focalizadas de três formas pelos alunos: (1) Enfoque em profundidade que propicia a aprendizagem altamente significativa e: [...] que se caracteriza, entre outros fatores, porque os alunos mostram um elevado grau de implicação no conteúdo, tentam aprofundar-se ao máximo em sua compreensão e exploram as suas possíveis relações e interconexões com conhecimentos prévios e experiências pessoais. (SALVADOR, 1994, p.153); (2) Enfoque superficial que propicia a aprendizagem pouco significativa, ocorre por meio de repetições mecânicas e: [...] os alunos que adotam este enfoque perante uma tarefa determinada preocupam-se sobretudo em memorizar a informação cuja a lembrança, supõem, será avaliada posteriormente, por aterem-se de forma estrita às exigências ou instruções proporcionadas para a sua realização, por não se interrogarem acerca dos objetivos ou da finalidade da tarefa, por concentrarem-se em aspectos parciais da mesma e por uma certa incapacidade para distinguir os aspectos essenciais dos acessórios ou circunstanciais. (SALVADOR, 1994, p.153); (3) Enfoque estratégico, visa a render ao máximo o esforço e o tempo disponível para o estudo e se caracteriza “pela intenção de alcançar o máximo rendimento possível na realização da tarefa mediante a planificação cuidadosa das atividades, do material necessário, dos esforços e do tempo disponível.” (SALVADOR, 1994, p.153). A adoção de um ou outro enfoque depende da intenção que o aluno tem frente à tarefa e também da motivação que esse recebe (MARTON e ENTWISTLE apud SALVADOR, 1994). Dentre esse três enfoques o mais desejável para a aprendizagem significativa é o enfoque em profundidade, que pode ser proporcionado pela pedagogia de projetos, pois em seu desenvolvimento o aluno mostra interesse no conteúdo e dedica-se a aprofundar a compreensão, relacionando-o com seus conhecimentos prévios, realizando, dessa forma, um enfoque em profundidade do conteúdo estudado. 41 Outros elementos também considerados para a adoção de um enfoque ou outro são a maneira que o professor apresenta a tarefa, o autoconceito acadêmico do aluno, os hábitos de trabalho e de estudo e os estilos de aprendizagem. [...] a construção do conhecimento é, nesta perspectiva, uma construção claramente orientada a compartilhar significados e sentidos, enquanto que o ensino é um conjunto de atividades sistemáticas mediantes as quais professor e aluno chegam a compartilhar parcelas progressivamente mais amplas de significados com relação aos conteúdos do currículo escolar. (SALVADOR, 1994, p.157). Nesse processo o professor exerce a função de guia e mediador para a construção do conhecimento de seus alunos, sendo desejável que professor e aluno possam compartilhar, em maior ou menor grau, o sentido e o significado que construíram durante o processo. Frente a essa concepção de ensino, é possível afirmar que não se pode separar o processo de aprendizagem dos conteúdos disciplinares do processo de participação dos alunos, nem desv