YURI WICHER DAMASCENO Conversões e negociações: um estudo dos relatos de missionários protestantes da Church Missionary Society em Uganda-África (1876–1890) ASSIS 2015 YURI WICHER DAMASCENO Conversões e negociações: um estudo dos relatos de missionários protestantes da Church Missionary Society em Uganda-África (1876–1890) Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de mestre em História (Área de Conhecimento: História e Sociedade) Orientador(a): Profª Drª Lúcia Helena Oliveira Silva ASSIS 2015 2 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP Damasceno, Yuri Wicher D155c Conversões e negociações: um estudo dos relatos de mis- sionários protestantes da Church Missionary Society em Uganda-África (1876-1890) / Yuri Wicher Damasceno. - As- sis, 2015 115 f. : il. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista. Orientador: Drª Lucia Helena Oliveira Silva. 1.Missionários. 2. África Central - Historia - Séc. XIX. 3. Uganda. 4. Protestantismo. I.Título. CDD 266 3 AGRADECIMENTOS Dedico este trabalho a todos aqueles que estiveram ao meu lado com paciência e compreensão, assim, obrigado aos meus genitores Emílio e Maria Teresa que sempre me incentivaram e me legaram todos os valores que carregarei por toda a vida, à minha irmã Yasmin que partilha comigo esse mesmo carinho e atenção, à minha orientadora Professora Doutora Lúcia Helena Oliveira Silva por todos os ensinamentos acadêmicos e pessoais, à minha companheira Renata da qual muitas horas tomei e aos amigos que sempre estiveram ao meu lado em incentivo. 4 DAMASCENO. Yuri Wicher. Conversões e negociações: um estudo dos relatos de missionários protestantes da Church Missionary Society em Uganda-África (1876–1890). 2015. 115 f. Dissertação (Mestrado em História). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2015. RESUMO Trabalhamos a partir do conceito de representações utilizados pela “Nova” História Política que foi utilizado na compreensão dos relatos de missionários protestantes da Church Missionary Society liderados por Alexander Mackay, que atuaram na região central da África durante o final do século XIX (1876-1890), engajados em um projeto evangelizador para angariação de novos convertidos, principalmente a partir da análise da fonte primária The Wonderful History of Uganda publicado por Joseph Dennis Mullins em 1904 após a reunião de uma série de relatos produzidos no período utilizado como recorte temporal. O trabalho visa reconhecer e explanar a voz dos africanos suas atuações enquanto resistentes e negociadores do processo que levou à incursão da religião cristã protestante no território do antigo reino de Buganda. Palavras-chave: Missionários. África. Uganda. Protestantismo. 5 DAMASCENO. Yuri Wicher. Conversions and Negociations: a study of protestant missionaries from Church Missionary Society in Uganda-Africa (1876–1890). 2015. 115 f. Dissertation (MA in History). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2015. ABSTRACT We work from the concept of representations used by the “New” Political History that was used in the understanding of Protestant missionaries of the Church Missionary Society reports led by Alexander Mackay, who worked in Central Africa during the late nineteenth century (1876-1890 ), engaged in an evangelizing project for attracting new converts, particularly from the analysis of the primary source the Wonderful History of Uganda published by Joseph Dennis Mullins in 1904 after meeting a series of reports produced in the period used as a time frame. The work aims to recognize and explain the voice of Africans his performances as tough negotiators and the process that led to the incursion of Protestant Christian religion in the territory of the ancient kingdom of Buganda. Keywords: Missionaries. Africa. Uganda. Protestantism. 6 LISTA DE IMAGENS 1.Figura 1 - Mapa atual de Uganda ............................................................................16 2. Figura 2 - Região dos Grandes Lagos (COHEN, 2010, p. 19)...............................26 3. Figura 3 – Atividade comercial na região dos Grandes Lagos na segunda metade do século XIX (COHEN, 2010. p. 331)..............................................................................60 4. Figura 4 – The “Slug” Map – (MULLINS, 1904. p. 2)…………...........................71 5. Figura 5 - A. M. Mackay: Pioneer Missionary of the Church Missionary Society to Uganda – (http://www.wdl.org/en/item/7774/).....................................................99 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................10 CAPÍTULO I: O período precedente das missões cristãs e o ambiente colonial no leste africano e a incursão da Church Missionary Society na África...............................................................................................................................16 1.1 Contextualizando o espaço de ação missionária...................................................18 1.2 A região do reino de Buganda e suas características............................................26 1.3 A missão inglesa em Buganda: procedimentos e o ambiente para evangelização ...........................................................................................................................................31 1.4 O Imperialismo inglês, a religião cristã protestante e as teorias afirmativas do imaginário cultural dominante europeu................................................................33 CAPÍTULO 2: O universo religioso de Buganda e a CMS: assimilações e contrapontos....................................................................................................................38 2.1 Demais povos e culturas coexistentes na sociedade do reino................................41 2.2 O surgimento do cristianismo africano na região..................................................53 2.3 O chamado de Stanley: a organização e a partida dos primeiros missionários ingleses protestantes................................................................................................................61 CAPÍTULO 3: Joseph Dennis Mullins e “A Maravilhosa História de Uganda”: características da obra e o caminho traçado pela missão da CMS durante 1876 – 1890..................................................................................................................................66 3.1 Características da obra “The Wonderful Story of Uganda”, seu modo de escrita e organização.....................................................................................................................67 3.2 “A nação dos brancos tem outra religião?”: A primeira missão em Uganda, os caminhos traçados pelos primeiros missionários e as evoluções em campo evangelizador ................................................................................................................71 3.3 Mackay como único membro chefe da CMS em Uganda...................................99 CONCLUSÃO 8 .......................................................................................................................................108 BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................112 9 Introdução Quando pensado num primeiro momento este estudo de História da África visou investigar temáticas, para além dos estudos sobre a escravização e comércio das áreas de predomínio português. Isto é estudar regiões pouco conhecidas pelos pesquisadores brasileiros, lugares e paisagens que falassem da África, porém, de outras áreas. As ações missionárias inglesas, nas quais focamos, foram precedidas por missionários católicos e por muçulmanos numa região e chamou-nos atenção para um lugar em África, a denominada região dos “Grandes Lagos” 1. A respeito dela se escreveu e se formulou o imaginário ocidental através de narrativas de experiências de europeus e os diversos grupos étnicos. São essas fontes nossa porta de entrada para entender as construções, desconstruções e assimilações culturais que ali ocorreram durante boa parte do século XIX. Desde o início se pretendia realizar um estudo das representações sobre Uganda, durante o século XIX a partir do trabalho da Church Missionary Society2, na obra missionária “The Wonderful Story of Uganda”3. Este livro escrito por Joseph Dennis Mullins membro da instituição conta as relações entre missionários e grupos que viviam na região e é rico de informações e impressões presentes do caráter “civilizatório” do período. A periodização delimitada corresponde aos anos de intensificação da atividade missionária na região, mas, também temos o histórico de viajantes missionários portugueses católicos que passaram pelo território africano como um todo e estes se diferenciavam por missões, que segundo Rêgo4 e Montecúccolo5 eram patrocinadas pela própria Igreja Católica inclusive financiando a construção de prédios para estabelecerem-se e evitando contatos 1 Os Grandes Lagos Africanos são um conjunto de lagos de origem tectônica, localizados na África oriental, que incluem alguns dos lagos mais profundos do mundo. A maior parte destes lagos foi formada há cerca de 3,5 milhões de anos no Vale do Rift Ocidental, um dos ramos desta formação geológica que abrange a Etiópia, Quênia, Tanzânia, Uganda, Ruanda, Burundi, República Democrática do Congo, Malawi e Moçambique, ou seja , em meio a regiões desérticas do continente africano, uma região bastante vasta no que diz respeito a sua capacidade aquífera. 2 É uma sociedade missionária fundada por membros da Igreja Anglicana em 1799 com objetivo de evangelização de locais onde o cristianismo estava pouco presente, como África e Oriente. A instituição continua atuando em diversos locais no mundo. Estas informações são apontadas segundo o website oficial da mesma. Doravante usaremos a sigla CMS. 3 MULLINS,J.D. The Wonderful Story of Uganda. London, Church Missionary Society, 1904. 4 REGO, Alberto da Silva. Alguns problemas sociológico-missionários da África negra. Lisboa, Junta de Investigações Ultramar, 1960. P.11-12. 10 http://pt.wikipedia.org/wiki/Lago http://pt.wikipedia.org/wiki/Mo%C3%A7ambique http://pt.wikipedia.org/wiki/Malawi http://pt.wikipedia.org/wiki/Rep%C3%BAblica_Democr%C3%A1tica_do_Congo http://pt.wikipedia.org/wiki/Burundi http://pt.wikipedia.org/wiki/Ruanda http://pt.wikipedia.org/wiki/Uganda http://pt.wikipedia.org/wiki/Tanz%C3%A2nia http://pt.wikipedia.org/wiki/Qu%C3%A9nia http://pt.wikipedia.org/wiki/Eti%C3%B3pia http://pt.wikipedia.org/wiki/Geologia http://pt.wikipedia.org/wiki/Vale_do_Rift http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81frica_oriental diretos de aproximação com os chefes locais. Tal estratégia não foi adotada pelos missionários protestantes ingleses já que no primeiro contato desses homens com o reino de Buganda, o governante daquele local em atividade naquele momento, como estudaremos a frente, esteve em contato direto com os missionários, algo que não ocorre com seus descendentes. Missões da Igreja Católica também estiveram presentes no território de Buganda, vindos da França eles chegam posteriormente à chegada dos anglicanos ingleses e estiveram, ora em conflito direto, ora atuando em conjunto para combater a oposição aos cristãos por parte do governo local. Patrícia Teixeira Santos6 aborda as principais características das missões de cunho católico dentro da região da qual Uganda faz parte, diferenciando suas variadas vertentes quando estuda o Sudão e as tradições missionárias, italiana e francesa, e suas influências e apoio da instituição Igreja Católica para com essas incursões no território africano. Este último trabalho por abordar uma região fronteiriça com Uganda nos traz um nítido panorama das relações conturbadas entre os diversos povos que ali coabitavam bem como das missões protestantes inglesas que cresceram em influência na região. No projeto inicial um dos objetivos era contrapor as ideias propostas sobre catequização pelos missionários ingleses na região com a experiência cristã italiana, francesa e mulçumana exposta em trabalhos como os de Kefa M. Otiso7 e Patrícia Teixeira Santos. Contudo, no desenvolver das leituras se atentou para o modo como o missionário Mullins, que reproduziu o que havia sido publicado no periódico The Church Missionary Gleaner. Neste periódico foram reunidos artigos sobre as missões em África da instituição, principalmente nas publicações do ano de 1902 e, a partir disso resolvemos fazer um estudo sobre as suas representações sobre aquela missão, seus membros e como o período precedente à chegada dos missionários e o colonialista de Uganda funcionou com a presença dos missionários. Nosso foco são suas impressões e, por consequência, as da instituição Church Missionary Society. Nos interessam suas percepções a respeito do cotidiano, os problemas com as assimilações, aceitações e negações da presença de ingleses naquele local. A região possuía uma estrutura de governo chefiada pelo kabaka8 M’tesa I, rei dos baganda, povo do reino de 5 MONTECÚCCOLO, João.A.C, Descrição Histórica dos três reinos Congo, Matamba e Angola. Lisboa, Junta de Investigações Ultramar, 1965. P.291-295. 6 SANTOS, Patrícia Teixeira. Dom Comboni: profeta da África e santo no Brasil. Rio de Janeiro. Mauad, 2002. 7 OTISO, Kefa M. Culture and Customs of Uganda. Westport, Greenwood Press. 2006. 8 Monarca dos baganda no ano de entrada dos missionários ingleses na região. 11 Buganda em território que corresponde à atual Uganda e sobre a qual o trabalho se desenvolveu. A chegada e permanência dos ingleses teve de ser negociada e as elites locais tiveram papel indispensável para que aquela missão pudesse ali permanecer. Os missionários não eram representantes oficiais do governo inglês mas propunham uma alteração no ambiente cultural e religioso ali consolidado. Assim adentrar naquele ambiente não seria uma tarefa fácil sem o apoio das lideranças locais que influenciaram o longo processo que veio a culminar na efetiva presença de ingleses, missionários ou não na região ora como resistentes ora como aliados dos missionários ingleses. Já no prefácio da obra analisada feito pelo próprio Mullins, o próprio autor revela sua concordância com a opinião da instituição CMS. Para os dirigentes da Sociedade da Igreja Anglicana que levou a missão religiosa à Uganda considerava-se que aquela empreitada iniciada em 1876, portanto, há trinta anos atrás, que a ação missionária de Buganda funcionou como “um milagre cristão dos dias modernos”. Esta afirmação tinha por base considerável aumento no número de cristianizados, bem como no espaço conquistado pelos religiosos ingleses naquele reino. É interessante observar que a tradição escrita ainda não era conhecida pelos baganda no momento da chegada dos missionários e foram estes religiosos que criaram a linguagem escrita e fizeram a tradução de obras como à Bíblia para a língua local. Também são esses missionários os primeiros a iniciar a história da região usadas no processo de alfabetização das populações locais. Assim, a história escrita de Uganda, ainda que com a presença do homem local para elaborá-la, carregará consigo elementos da missão no momento da formulação de documentos escritos, momento este despertado por Mackay que chega a região depois de mais de um ano de trajetos dentro do continente finalmente em 1878, porém, as construções da sede das missões onde os missionários iriam desenvolver seus trabalhos demoraram mais de um semestre para se estabelecerem de fato, e dai a possibilidade de se iniciarem as traduções e conversões da língua local para a forma escrita. No decorrer desta dissertação utilizaremos para as analises os conceitos de representações da nova História Política para compreendermos as visões pré-formuladas a partir da cultura e influencias do autor inglês na elaboração de julgamentos e justificativas para apresentar a atuação da instituição missionaria da Igreja inglesa Anglicana dentro do espaço cultural, politico e religioso do povo baganda. 12 Esta metodologia utilizada compreende dois importantes teóricos, são eles: Peter Burke9, Roger Chartier10, que utilizaram em seus trabalhos do olhar dos autores a partir das representações, ou construíram teorias para que isto fosse possível. Esses métodos foram analisados a partir do que foi empregado, portanto, por Roger Chartier em: Uma Mudança de Perspectiva” onde coloca a nova História Política em foco, conceitos que mudaram as possibilidades de análises de trabalhos literários, por exemplo. Peter Burke com “A Fabricação do Rei” trata da construção do soberano de forma a transformá-lo em alguém adorado, sem anacronismos mas utilizando do método de construção de um mito ou soberania de alguém economicamente mais poderoso sob um menos, podemos perceber em exemplos a seguir como o missionário foi colocado nas publicações em função privilegiada. Para Chartier, portanto, houve uma reformulação de várias propostas eminentemente estruturalistas de análise, nas quais os sujeitos acabam aparecendo como meros “suportes” das estruturas sociais11, ou seja, antes dessas novas teorias a sociedade e seus membros eram meros coadjuvantes e contribuíam para o processo de estudo de algo amplo e generalizado e, nesse contexto, a história seria chamada a reformular seus objetos, referências e princípios de inteligibilidade12. Essa nova vertente recusa o pressuposto de que os contrastes e as diferenças culturais estejam forçosamente organizados em função de um recorte social previamente constituído. A sua nova abordagem centra-se na atenção sobre os empregos diferenciados, nos usos contrastantes dos mesmos bens, dos mesmos textos, das mesmas ideias. A representação, segundo ele, designa o modo pelo qual em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade é construída, pensada e dada a ler por diferentes grupos sociais. A leitura dos diversos grupos sociais que tomavam conhecimento de Uganda através dos relatos missionários era diferente, o olhar dos missionários a respeito dos baganda e da leitura que fizeram daquela sociedade é diferente também dos islâmicos por exemplo. A 9 BURKE, Peter. “A Fabricação do Rei: a construção da imagem pública de Luís XIV”. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994. 10 CHARTIER, Roger; ROCHE, Daniel. O livro: uma mudança de perspectiva. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novos objetos. Trad. Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: Francisco Alvez, 1976. 11 CHARTIER, Roger. Introdução. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: _____. A História Cultural entre práticas e representações. Col. Memória e sociedade. Trad. Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 13-18. 12 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: _____. À beira da falésia: a história entre incerte- zas e inquietude. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002, p. 64. 13 construção das identidades sociais seria o resultado de uma relação de força entre as representações impostas por aqueles que têm poder de classificar e de nomear e a definição submetida ou resistente daquele que é nomeado e classificado têm de si próprio. Assim vemos a interpretação da história da maneira como os indivíduos e a sociedade concebem (representam) a realidade e de como essa concepção orienta suas práticas sociais, tomando como “noção” o relacionamento da imagem presente em objeto ausente, assim as práticas dos missionários esteve diretamente ligada à sua visão daquela sociedade. Dentro desta forma de análise o texto fora dividido em quatro partes, além da introdução, o primeiro capítulo tratando das diferenciações culturais e sociopolíticas dos europeus e dos baganda, as características fundamentais da região leste africana, a composição natural do ambiente e as etnias que ali coabitavam e eram fundamentais para o processo de estabelecimento. A formação da elite local foi também indispensável ja que esta por meio de afirmações aceitações e resistências foi uma das responsáveis pelo estabelecimento e permanência dos missionários na região. O contexto econômico e as disputas políticas entre as potências europeias e a ampliação da atuação de instituições missionarias também serão trabalhadas nesse primeiro capítulo dentro de suas subdivisões. O segundo capítulo abordara a respeito da formação do cristianismo e de seu desenvolvimento no leste africano, além da formação da primeira missão da CMS a partir da publicação de Henry Stanley enquanto esteve em uma de suas expedições e acabara encontrando o monarca baganda, chamado M’tesa e analisou a possibilidade da instauração do protestantismo inglês naquele reino. Este chamado fora o despertar da instituição missionária anglicana formular e organizar a primeira missão da qual efetuamos o estudo. O terceiro capítulo adentrara o universo da missão da instituição, os caminhos percorridos, as mortes ocorridas com os membros do primeiro grupo, as estratégias de escrita e traduções que ampliaram consideravelmente o número de fiéis, os conflitos com os padres católicos franceses, árabes muçulmanos comerciantes e com a perseguição do governante Mwanga na busca da contenção do cristianismo em Uganda. Terceiro capitulo irá mostrar principalmente o enaltecimento e a caracterização dos membros da primeira missão, com destaque para o mais influente, Alexander Mackay, como mártires e até mesmo em um enaltecimento messiânico trabalhado pelo autor para valorizar os andamentos das atividades missionárias protestantes ante as etnias, o rei e as vertentes religiosas ali presentes. No final deste, perceberemos que no fim do período delimitado teremos uma atuação veemente da Companhia Comercial Inglesa naquele território que auxiliou por sua vez na permanência dos missionários da CMS. Como resultado para as ações missionárias veremos 14 na conclusão os feitos não só na área religiosa com a ampliação do número de seguidores do cristianismo protestante inglês e diminuição da influencia do governo baganda e na manutenção de sua religião originalmente pagã, na tradução de textos religiosos cristãos e na formulação de escolas religiosas de mesma tendência que a partir desse método puderam se ampliar e angariar um maior número de fiéis. A construção de obras de engenharia pouco comentadas na obra nos revela uma conduta além dos incentivos religiosos mas também pautada na necessidade de comunicação e facilitação para as viagens dos grupos missionários na região, além das saídas pelo grande lago, como fora a construção de diversas estradas atribuídas a Mackay como comandante. 15 CAPÍTULO I: O período precedente à chegada das missões cristãs e o ambiente colonial no leste africano e a incursão da Church Missionary Society na África Figura 1 - Mapa atual de Uganda (http://www.worldatlas.com/webimage/countrys/uganda) Uganda e a África Central são pouco conhecidas nos estudos historiográficos no Brasil e, por isso, se faz necessário uma apresentação do contexto histórico ser abordado. Quando encontrada pelos exploradores europeus, a região onde se situa a atual Uganda estava organizada em pequenos reinos, provavelmente fundados desde século XVI, povoados inicialmente por bantus13 e nilotas14. Kefa M Otiso15 evidenciou uma divisão de dezenove grandes tribos convivendo neste mesmo espaço que precedeu o que fora encontrado pelos missionários em 1876. Nele observa-se que no ano que marca a entrada dos membros da CMS, algumas influências seculares como, por exemplo, a adoção dos costumes muçulmanos se fazia presentes na região sendo assim trouxeram suas tradições culturais para dentro daquele espaço. Práticas 13 Bantu ou banto1 (forma preferível a bantus) constituem um grupo etno linguístico localizado principalmente na África subsaariana e que engloba cerca de 400 subgrupos étnicos diferentes. A unidade desse grupo, contudo, aparece de maneira mais clara no âmbito linguístico, uma vez que essas centenas de subgrupos têm como língua materna uma língua da família banta. 14 Os nilotas são um grupo de povos africanos que falam línguas nilóticas, um dos principais ramos da grande família das línguas nilo-saharianas e, como o nome indica, habitam a região sul do vale do rio Nilo, desde a Etiópia à Tanzânia, mas tendo-se espalhado também para o interior, incluindo a República Democrática do Congo. 15 OTISO, Kefa M. Culture and Customs of Uganda. Westport, Greenwood Press. 2006. 16 http://pt.wikipedia.org/wiki/Rep%C3%BAblica_Democr%C3%A1tica_do_Congo http://pt.wikipedia.org/wiki/Rep%C3%BAblica_Democr%C3%A1tica_do_Congo http://pt.wikipedia.org/wiki/Tanz%C3%A2nia http://pt.wikipedia.org/wiki/Eti%C3%B3pia http://pt.wikipedia.org/wiki/Nilo http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADnguas_nilo-saharianas http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADnguas_nil%C3%B3ticas http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81frica http://pt.wikipedia.org/wiki/Povo http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADnguas_bantus http://pt.wikipedia.org/wiki/Lingu%C3%ADstica http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81frica_subsariana http://pt.wikipedia.org/wiki/Grupo_lingu%C3%ADstico http://pt.wikipedia.org/wiki/Grupo_%C3%A9tnico http://pt.wikipedia.org/wiki/Bantos#cite_note-1 http://www.worldatlas.com/webimage/countrys/uganda como a circuncisão feminina feita no momento do nascimento era um dos costumes que chocava os missionários de origem cristã que para ali foram. Ou seja, as assimilações e a convivência trouxeram para o cotidiano conflitos ideológicos e resistências, mas também acomodações de costumes locais e dos assimilados secularmente e os que dos costumes cristãos. A presença de chefes locais consolidados e reconhecidos pela população foi um fator determinante no estabelecimento das relações dos missionários com os povos locais como iremos ver no desenvolvimento deste trabalho. Um exemplo é M’tesa rei dos baganda que havia ascendido ao trono após a morte de seu pai Suuna II em 1856, filho de uma das 148 mulheres do rei (chamado de kabaka pelos locais). Ele teve um longo governo até sua morte em 1884 e era considerado um homem visionário e negociador. Tinha nas habilidades de diplomacia uma forte estratégia para manter a ordem e a estabilidade, o que favoreceu a aproximação dos membros da missão inglesa para com a população. Essa sociedade que se desenvolvera na região correspondente à atual Uganda sob a qual M’tesa reinava de maneira soberana e com uma cultura secular com fortes influências muçulmanas fez com que as negociações fossem necessárias, já que os chefes locais não aceitaram as incursões e estabelecimentos de alterações no curso de vida sócio cultural naquela sociedade tão facilmente. Também houve as negociações dos religiosos para poderem se estabelecer no território e desenvolver seus projetos missionários sem que fossem atacados ou perseguidos. Para isso acordos foram feitos com a elite do reino de Buganda. Este grupo se constituía de uma corte representada pela absoluta minoria, não mais do que cinco por cento da população que era de aproximadamente quinhentos mil habitantes na segunda metade do século XIX e estava em constante proximidade com o monarca, além de serem os dominantes dentro daquela sociedade. Em muitas ocasiões são relatados conflitos algumas vezes com as lideranças nativas além de perseguições feitas a missionários. O rei sucessor filho de M´tesa de nome Mwanga tão logo ao assumir o trono em1884 passa a divergir da forte influência inglesa e passa a perseguir os missionários. Essas perseguições ocorriam oficialmente a mando dele o kabaka dentro de seu território mas também nas trilhas que cortavam o território e eram atravessadas pelos missionários ingleses e outros estrangeiros. Nessas trilhas muitos povos locais acabavam atacando aqueles considerados invasores em busca de evitar o que o rei entendia como a destruição de suas tribos. Nesse momento já tinha histórias e a ideia de que o homem branco era capaz de atrocidades e as ações do kabaka eram apoiadas por boa parte da população local. 17 Os missionários ingleses também tinham interesse em desenvolver um grupo de missionários povos locais, novos cristãos que espalhassem a crença o que era também uma forma de ampliar a influência da missão. Um cristão povo local teria mais facilidade em reunir novos fiéis para a empreitada da CMS. Era intenção, portanto, da primeira missão de Uganda, transformar a região num reduto do cristianismo na África e isso seria mais rapidamente alcançado a partir da conversão e da doutrinação para formação de sacerdotes locais. Além dos conhecimentos religiosos os missionários locais deveriam atuar com sabedoria diplomática e para isso deveriam conhecer bastante a língua europeia que também era ensinada dentro das casas de missão através das leituras sagradas. 1.1 Contextualizando o espaço de ação missionária A presença de missionários ingleses na região central do continente Africano se deu em um período que remete ao século XVIII e início do XIX e continuou durante o surgimento do colonialismo na região dos Grandes Lagos, na segunda metade do século XIX. Ali a mentalidade dos membros da CMS fundamentada nas crenças e cultura europeias bem como as influências científicas e literárias foram introduzidas juntamente com a missão. O uso desta cultura nem sempre era isento de críticas. Um bom exemplo disso Foi a obra de Charles Darwin A Origem das Espécies. Publicada em 1859 era uma obra considerada herege por parte dos grupos religiosos cristãos por apresentar uma vertente diferente e enfrentadora da concepção bíblica sobre a origem da humanidade. Contudo ela serviu para fundamentar teorias como o darwinismo social16 compartilhado por muitos religiosos e estudiosos de época. Para a teoria de Spencer apoiada na obra de Darwin considerava-se que o conflito e a seleção natural dos mais aptos são condições da progressão social. Tratava-se de aplicar ao mundo social humano, os princípios de luta pela vida e pela sobrevivência dos melhores das sociedades animais, defendidos pela corrente evolucionista. A competição relativa à luta das espécies prolonga-se, assim, na vida social, explicando a mudança e a evolução das próprias sociedades. O evolucionismo de Spencer adverte que a evolução depende de "condições diversas" que a favorecem ou inibem (relações do sistema social com o seu meio ambiente, dimensão da sociedade, diversidade, etc.). Spencer considera, igualmente, que os determinismos sociais são demasiado complexos; os indivíduos têm tendência a adaptar-se ao sistema social a que pertencem, do mesmo modo que as atitudes dos indivíduos facilitam ou inibem o aparecimento de determinado tipo social (o tipo "militar" ou o tipo "industrial", por exemplo). 16 Dicionário da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2015. 18 O darwinismo social tornou-se um argumento a favor do individualismo económico e político, contra o intervencionismo do Estado. Segundo Spencer, o Estado só deve, através do Direito, estabelecer as regras do mercado. Tratar o africano como inferior e salientar o desenvolvimento e o caráter civilizador do branco era uma adaptação desta teoria transformando-a no que conhecemos como o já mencionado darwinismo social. A partir desta teoria se acreditava que o africano não era dotado das mesmas características intelectuais dos brancos europeus e seria nas palavras do poeta britânico Rudyard Kipling17 “O grande fardo do homem branco” civilizar as populações menos inferiores, uma forma de justificar a presença dando a ela um caráter nobre que no caso dos religiosos ainda seria reforçado pela ideia de salvação feita pela conversão a religião cristã. Por sua vez, Durkheim, que segue o modelo evolutivo do darwinismo social, dando conta de tendências evolutivas na sociedade, considera (na sua obra A divisão do trabalho social) que o desenvolvimento do individualismo - que é uma consequência da complexidade crescente da divisão do trabalho - é um aspeto fundamental na passagem das sociedades tradicionais às sociedades modernas. No desenvolvimento das expansões europeias em busca de novos espaços de influência período que denominamos de imperialismo do século XIX ou Neocolonialismo esta teoria foi uma das utilizadas como justificativa da presença do europeu na exploração do continente africano. As ideologias eurocêntricas da qual o darwinismo social fazia parte do arcabouço ideológico que sustentava as convicções da necessidade de estar em África como regeneradores. Segundo Groves tal situação acontecia apesar do apelo filantrópico e humanista dos evangelizadores cristãos temos este discurso regenerador do continente como necessidade para a África como um todo a partir da presença missionária. (GROVES, 1969). 17 Em 1899, os Estados Unidos da América discutiam no Congresso a anexação das antigas colônias espanholas que tinham lutado pela sua independência, nomeadamente as Filipinas. Nessa altura, o poeta britânico nascido na Índia Rudyard Kipling escreveu um poema apologético para declarar que o facho da civilização tinha passado das mãos do Reino Unido. “O Fardo do Homem Branco” defendia que passaria a caber a Washington “tratar dos selvagens para o bem deles, sem contar com o seu agradecimento. Os povos locais do mundo tinham de ser dirigidos pelas potências ocidentais. Eram homens inferiores, de civilizações fracas que precisavam de ouvir a voz do dono. Os agitadores deviam ser castigados e eliminados, se necessário por meios violentos. Os selvagens deviam ser controlados, para seu bem”. ALMEIDA, Nuno. Artigo: O Fardo do homem branco (Leitura de noite). In: Revista eletrônica: Liberdade e Diversidade. Disponível em: Acesso em: 14/08/2014) 19 http://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/pi/pi06emdiante/pi200821.php É importante ressaltar que mesmo tendo uma visão eurocêntrica de mundo, os missionários não foram agentes do governo inglês, porém, sua incursão preparou o terreno para a efetiva presença e dominação por parte dos agentes políticos do governo bem, como num viés contrário a presença destes homens do governo inglês carregados de forças militares foram fundamentais para que as missões se ampliassem e pudessem permanecer naquela região, pois o futuro da missão por diversas vezes esteve abalado devido às constantes perseguições promovidas pelo governo local. Sem a manutenção das missões e o conhecimento regional daqueles primeiros ingleses que habitaram a região, teriam mais dificuldade na permanência no reino e em 1894 a condição de protetorado sendo implantada em Uganda poderia ter tido mais obstáculos. Em termos sociológicos surgiram algumas definições a respeito do imperialismo que assolaria a África principalmente na segunda metade do século XIX e início do XX, em uma delas, o imperialismo foi definido por Joseph Schumpeter (em seu livro de 1918, The Sociology of Imperialism.) que ele provinha de um desejo natural do homem de dominação sobre o outro, um egoísmo nacional coletivo de expansão pela força, o imperialismo que vivia-se no final do século XIX seria proveniente, segundo ele, de uma regressão aos instintos políticos e sociais primitivos do homem, ele alega ainda uma defesa do capitalismo que puro não teria essas características agressivas, porém, não partilhamos da mesma. As teorias diplomáticas são mais esclarecedoras no que concerne à presença do europeu, sua dominação do continente e a partilha da África, até porque as teorias diplomáticas também são complementadas pela sociológica ao afirmar a necessidade de dominação de uma nação sob outra ou outras e da ideia do prestígio nacional uma das características do imperialismo do século XIX. Entre 1876 e 1880 Portugal e França já demonstravam seus intuitos de exploração colonial da África. O primeiro anexou as propriedades rurais de Moçambique que estava praticamente independente e o segundo com o interesse junto ao Reino Unido de controle do Egito e buscava o restabelecimento das colônias francesas na Tunísia e em Madagascar e na vontade dos franceses de acordos com o chefe local do Congo. Essas ações demonstraram o interesse português e francês de exploração colonial no continente africano e despertou no governo do Reino Unido a necessidade de um controle mais efetivo de locais onde já obtinham influência a partir de 1880. Em 15 de novembro de 1884 temos um acontecimento que de fato coloca a África como certa na partilha entre as potências europeias, a Conferência de Berlim. 20 O objetivo principal a ser discutido a fundo durante esta conferência, ao menos na pauta das discussões era a “regeneração” da África, ou seja, ações que deveriam levar aquele continente ao mesmo nível do chamado “desenvolvimento” , este conceito estava baseado na idealização europeia a respeito de sociedade, ou seja, do modelo ocidental de vida nos padrões do que se vivia na Europa. Dentre essas ações o combate ao tráfico de escravos no continente africano e os ideais humanitários de “salvação” do continente que estava acometido pela fome, doenças e problemas relacionados ao meio ambiente como a seca. Ou seja, a discussão que não pretendia colocar em pauta a partilha acabou fazendo uma distribuição de alguns territórios e tratando da livre navegação em alguns outros, bem como na elaboração de documentos para ocupação de territórios na faixa litorânea. O acordo exigia que qualquer ocupação e estabelecimento de protetorado em territórios ocupados deveria ser comunicado aos países participantes da Conferência. Também estabelecia que todo país ocupante deveria provar que tinha condições e autoridade suficiente para se estabelecer, além de se fazer respeitar dentro do território costeiro ocupado, garantindo a liberdade de comércio e trânsito. Era a ocupação efetiva e legal da África por parte das potências que estava em curso. Em 1885 ao fim da conferência a partilha do continente já era definitiva, o que veremos mais adiante é que esse processo contou com as revoltas e não aceitação da presença europeia de maneira tranquila ou submissa. É válido destacar que antes desta conferência, os Estados europeus já tinham suas áreas de influência, como é o caso do nosso local de estudo Buganda aonde a presença missionária inglesa protestante já acontecia. É válido salientar que esta presença missionária e a fundação das casas de missão da CMS em território africano não dependiam do governo para se estabelecer, mas carregava a ideia da necessidade de uma ação conjunta da missão e órgãos ligados ao governo inglês para a salvação do local, uma visão eurocêntrica cristã da incursão. Desse modo, percebeu-se que a presença do governo inglês era de certa forma, importante para que as missões conseguissem se desenvolver, mesmo em tese sendo totalmente díspares ideologicamente. Outras localidades também já tinham tratados de comércio, de influência, acordos com o dirigente local e até mesmo de ocupação colonial antes da Conferência de Berlim, porém, este acontecimento oficializou e legitimou as futuras definições territoriais e, no caso de Uganda, no que viria a ser o protetorado no ano de 1894. 21 Discutindo sobre colonialismo, Frederick Cooper18 entende que o colonialismo do século XIX como um momento com características homogêneas em alguns aspectos, porém heterogêneas em outros trabalhada na História Colonial recente. Segundo ele, a história colonial traz em sua abordagem as discussões emergidas dos diálogos com estudos literários e antropológicos. Para Cooper os críticos literários passaram a estudar as políticas de representação e o processo pelo qual a afirmação dentro de um discurso europeu de um senso de identidade nacional ou continental dependia das populações não-europeias serem consideradas como o “outro”. Ou seja, era importante distanciar o africano da realidade europeia para justificar o aparato colonial. Tanto para antropólogos quanto para críticos literários, os entendimentos sobre África se reduziram à visão de “tribos” ou “tradições” para justificar suas ideias de imposição cultural e econômica que eram repassadas para o papel em forma de teorias e justificativas. No caso dos missionários essas duas ideias serviram para o indivíduo africano a capacidade de pensar sob a individualidade da salvação da alma e não mais o pensamento comunitário, do bem comum e partilhado que era tradicional para aquelas sociedades. Cooper ainda recupera a teoria de Ranajit Guha, historiador do chamado Estudos Subalternos. Este grupo trabalha em uma perspectiva de romper com as tradicionais abordagens dos africanistas da década de 1960 pós-independências e com os europeus que escreveram durante o período colonial. A produção dos historiadores africanos na década de 1960, procurou se opor abertamente com os estudos coloniais feitos pelos europeus. A razão para isso era que tal produção era carregada de influências político-sociais que segundo os africanistas deturpavam a história e as fontes coloniais como uso das fontes orais e documentos coloniais. Neste sentido, os acadêmicos africanos deram maior ênfase uma história de viés africano do que propriamente questionar como o processo de construção histórica africana estava comprometido em estabelecer ou em contestar o poder colonial. Cooper demonstra ser consenso a ideia de superioridade do poder dos europeus e valida a ação africana em falar sobre como os conflitos que aconteceram segundo seu olhar. Ele também coloca seu parecer a respeito do colonialismo africano afirmando que os conquistadores podiam concentrar seus recursos militares na derrota dos exércitos africanos, “pacificar” aldeias ou massacrar rebeldes. Por outro lado, a rotina de poder exigia alianças com representantes de autoridades locais, fossem eles líderes de antiga linhagem ou reis que há pouco haviam sido derrotados. 18 COOPER, Frederick. Conflito e Conexão: Repensando a História Colonial da África. Anos 90, Porto Alegre, v. 15, n. 27, p. 21-73, jul. 2008. 22 Assim como na região estudada, onde a partir das alianças do rei local os missionários puderam exercer seu projeto de evangelização, outras regiões africanas tiveram as mesmas características. No caso de Buganda o monarca era M’tesa I no momento da incursão missionária protestante vimos tanto com os europeus e também com os muçulmanos a postura conciliadora e diplomática, já que manteve-se equilibrando seu poder em Buganda, diferente do filho Mwanga II em uma situação mais conturbada de perseguição aos cristãos que resultou em diversos conflitos até o fim efetivo controle político local que posteriormente desencadeou no estabelecimento do protetorado inglês. Uma leitura minuciosa das narrativas coloniais sugere que a missão “civilizadora” não terminou com a conversão africana ao cristianismo ou com a generalização de relações comerciais por todo o continente, embora a escrita colonial celebrasse as vitórias contra as “práticas bárbaras” e o “fanatismo muçulmano”. Ou seja, o cristianismo não fora determinante no estabelecimento do protetorado mesmo o poderio britânico auxiliando na ampliação dos espaços a serem conquistados pelas missões, mas uma ferramenta poderosa para a advento e manutenção do poder inglês. Contudo, na medida em que penetramos cada vez mais no conflituoso espaço político colonial, deveríamos enxergar além da noção de subalternidade (opressão do africano) – e de conceitos de colonialismo que supõem ser capazes de coerção, cooptação, categorização de desafios em suas próprias estruturas de poder e ideologia – com o intuito de examinar melhor os outros modos em que o poder foi constituído e contestado, rebatido, condenado, assimilado ou até mesmo acatado por aqueles que viam no europeu a possibilidade de alianças que mutuamente fossem vantajosas. (CARVALHO. 2001, vol.7, no.15, p.107-147) A violência dos colonizadores não é somente física, as transformações ideológicas impostas também tem esse caráter. Do mesmo modo, a arrogância das ideologias modernizadoras não foi reduzida pelo fato de que os africanos frequentemente desmontavam- nas e criavam algo mais. “Mas, se os “subalternos” querem ser vistos como parte vital da história, pelo menos, deve ser mantida aberta a possibilidade de serem destruídos os vários significados da dominação e da subalternidade”.19 No caso do texto em destaque, o autor aborda os processos de contestação da classe trabalhadora principalmente, na África de modo geral e na Índia, território também à época colonizado pelos britânicos. 19 COOPER, Frederick. Conflito e Conexão: Repensando a História Colonial da África. Anos 90, Porto Alegre, v. 15, n. 27, p. 56, jul. 2008. 23 Outro trabalho com a temática colonial importante para nossa dissertação foi elaborado por Nicholas Dirks20, Colonialismo e cultura que tratou das discussões a respeito do período em que focamos dentro do trabalho. Segundo ele o colonialismo foi um processo que se iniciou dentro da metrópole europeia e se expandiu para o exterior, sendo assim um momento de novos encontros no mundo que facilitaram a formação das categorias de metrópole e colônia primeiramente. É válido destacar que Dirks usa o termo encontros, já trabalhado por outros estudiosos no que concerne à visão das trocas, aceitações e negações entre os locais africanos e ingleses, por exemplo. O processo colonial também acabou por incentivar o acúmulo de muitas coisas, como o conhecimento até os temperos e as narrativas dos postos de comando militares. Durante a longa permanência europeia na África, existiu diversas razões para forjar crenças sistemáticas sobre diferenças culturais unindo projetos díspares com formações precárias da identidade nacional e as pesquisas recentes sobre exploração econômica. Cooper aborda a importância do conhecimento como fator de “superioridade” europeia frente às relações com os locais africanos. Neste sentido o termo mais apropriado para Dirks seria o termo hegemonia, embora o vocábulo seja equivocado para tratar do poder colonial. A imprecisão talvez decorra de que estaria implícito não somente um consenso, mas a capacidade política de se generalizar essa afirmação nos espaços institucionais da sociedade civil africana. Não somente as regras coloniais permitiram as inexoráveis forças universais da ciência, progresso, razão e modernidade como elas também dispuseram de muitos dos excessos das regras dentro das instituições e culturas onde houve rótulos das tradições. O processo colonial passou a ser visto como um ascendente e necessário para a construção do mundo colonialista com as naturais oposições: nós e eles, ciência e barbaridade, moderno e tradicional. E nessa construção o consenso foi menos valorizado do que a realidade do próprio poder. (DIRKS. 1992. p. 15) Dirks trouxe em sua discussão a respeito do projeto missionário durante o período colonial, a respeito do tema traz seu olhar sobre o processo, como coloca no trecho: A expansão europeia também utilizou-se de velhas justificativas para suas viagens e conquistas. O poder colonial procurou não só os recursos naturais e posições estratégicas, mas também as almas dos povos locais. O projeto colonial de missão e conversão é central para discussão diferenciada de Vicente Rafael sobre a cristianização prematura na sociedade colonial de Tagalog. Para os espanhóis a conversão representou a última forma de conquista. Para converter foi preciso submeter a dominação divina e por implicação, a uma série de autoridades de mediação, incluindo a Igreja e seus sacerdotes. Mas mesmo sendo a submissão através da crença totalizante, a crença em si dependia de uma 20 DIRKS, Nicholas. Colonialism and Culture. Comparative studies in society and history book series. Michigan. Ed: The University of Michigan Press. 1992. 24 série de entendimentos, comunicados e organizados pela tradução, e na tradução, a conversão nem sempre era o que parecia.21 Essas crenças construídas e trabalhadas ao longo de décadas geraram o eficaz projeto de missão da CMS será abordada no objeto de estudo a primeira geração daqueles missionários que perceberam em Uganda um ambiente propício para a evangelização. A construção da narrativa da vida missionária em seu cotidiano, bem como a evolução do cristianismo graças ao trabalho missionário tem como destaque a figura heroicizada de Joseph Dennis Mullins. A CMS era uma fonte literária e confessional, pois os escritos que chegavam à Inglaterra e outros países iam além do apelo religioso. Eles falavam da geografia, fauna, flora e das populações e seus antigos e novos costumes o que despertava interesse no grande público. Assim, se cumpriam os objetivos de proselitismo em publicações propagandísticas, de condenação de práticas e costumes povos locais e da implantação de um cristianismo europeu baseado nos costumes de sua nação de origem. Somado a isso elas informavam aos europeus a vida nas regiões colonizadas fazendo parte do processo colonial embora corresse paralelo à suas ações e influenciando nas ações políticas como a transformação de Buganda à condição de protetorado em 1894. A Church Missionary Society contava principalmente com membros da Igreja Anglicana22 que durante o fim do século XIX, instituição esta escolhida para estudo já que nos forneceu material e instrumentos de compreensão de suas representações para com a sociedade do que viria a ser Uganda. Um pequeno reino que no século XIX contava com cerca de 500 mil habitantes, além de uma estrutura organizada de poder, cultura e religião, habitantes que partilhavam de contatos comerciais principalmente com povos árabes, além de um vasto número de reinos vizinhos com os quais mantinham contato direto, a fauna e a flora possibilitavam seus potenciais encontros devido ao desenvolvimento da navegação pelo Lago Victória. Essa população entrará em contato com a primeira geração oficial organizada pela 21 DIRKS, Nicholas. Colonialism and Culture. Comparative studies in society and history book series. Ed: The University of Michigan Press. 1992. p. 16. 22 O anglicanismo surgiu em torno de questões que envolviam diretamente os interesses da monarquia britânica. A monarquia Tudor, que na época controlava o trono inglês, buscava meios para reforçar a autoridade real frente à forte influência das autoridades eclesiásticas. Tal disputa se sustentava principalmente no fato da Igreja ter em mãos uma grande extensão de terras sob o seu controle. Na Inglaterra, o rei Henrique VIII (1491-1547) teve grande importância na consolidação da reforma religiosa. Henrique VIII e a Igreja já tinham uma relação pouco harmoniosa quando, no ano de 1527, o rei inglês exigiu que o papa anulasse seu casamento com a rainha espanhola Catarina de Aragão o então papa Clemente VII resolveu não atender as súplicas do monarca britânico. Inconformado com a indiferença papal, Henrique VIII obrigou o Parlamento britânico a votar uma série de leis que colocavam a Igreja sob o controle do Estado e em 1534, o chamado Ato de Supremacia criou a Igreja Anglicana. 25 instituição, mais precisamente no ano de 1876, data em que se inicia a o projeto de evangelização da atual religião de Uganda esta de certo modo auxiliada pelo processo colonizador da Inglaterra frente à África. Foi visando proteger e dar voz ao povo do reino de Buganda e a seus habitantes que se observa a partir de representações feitas por membros desta instituição que baseadas nos conceitos de Dan Sperber23 e Roger Chartier24 foram fundamentais para compreendermos os escritos missionários. 1.2 A região do reino de Buganda e suas características A África desde o início das primeiras navegações europeias pelo Oceano Atlântico no século XV se tornou parte das rotas em busca de um novo caminho para se alcançar as Índias, rica em especiarias e sendo ela também fonte de riquezas. Estas navegações resultaram em uma maior exploração dos territórios ao sul da África e também no conhecimento das terras da América resultando em um relacionamento entre os três continentes que incluía troca de costumes, assimilação e resistência. Os primeiros contatos dentro do continente africano se deram na faixa litorânea onde se formaram as primeiras vilas e agrupamentos de europeus e aliados africanos. Também no litoral estavam situados os armazéns que guardavam as riquezas obtidas como metais preciosos, escravos e demais produtos. Por isso o interior do continente foi paulatinamente explorado seja pela riqueza que ganharam anteriormente nas regiões costeiras somada à resistência dos habitantes seja pelo desejo de novos mercados consumidores para os produtos ocidentais com o advento da industrialização acelerada ou pela ânsia de conquistar espaços religiosos e novos fiéis a partir da evangelização proposta pelas atividades missionárias em suas mais diversificadas formas e doutrinas como fora o caso da incursão da CMS. Durante o fim do século XVIII e todo o século XIX percebe-se na região denominada de “Grandes Lagos”, localizada no leste da África que contava com uma grande riqueza 23 SPERBER, Dan. Estudar antropologia das representações: problemas e perspectivas, In: JODELET, Denise(organizadora); ULUP, Lilian (tradutora). ''As Representações Sociais''. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001. 24 CHARTIER, Roger; ROCHE, Daniel. O livro: uma mudança de perspectiva. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novos objetos. Trad. Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: Francisco Alvez, 1976. 26 aquífera e natural. A principal hipótese seria que ali estava a nascente do rio Nilo, tão buscada nestes períodos pelos diversos exploradores. Essa região vivia uma série de mudanças nos âmbitos da política, da sociedade. Os modelos de administração assimilavam-se bastante às estruturas ruralizadas e tinham chefes controladores de estruturas rurais no que concerne a divisão das terras e poucas características estruturais citadinas aos moldes do que se conhecia nas cidades ocidentais europeias. Estes chefes estavam dominando pequenas parcelas do território num primeiro momento e isto evolui aos poucos para governos centralizados sob o domínio de um monarca na grande maioria dos territórios. A política, portanto, se desenvolvia em todos os aspectos internos e externos com um aumento significativo de relacionamentos comerciais entre as tradicionais áreas da costa com os reinos do interior do continente. Quando abordamos a região dos “Grandes Lagos” estamos nos referindo e dando destaque aos quatro grandes reinos, o primeiro e mais importante para nosso estudo é o reino de Buganda, que corresponde atualmente a quase todo o território de Uganda do qual nos aproximaremos através do trabalho de Mullins, além de Ruanda, Burundi e Bunyoro, sendo estes os Estados mais organizados e em expansão desta região que foram importantes dentro do processo de trocas culturais e formação da tradição regional. Em tempos de conflito e perseguição esses lugares foram utilizados pelos missionários para fuga e refúgio enquanto articulavam também ali as suas atividades e construíam um processo evangelizador expansivo e regional. Assim como em Buganda esses reinos até a primeira metade do século XIX já mantinham-se, depois de um longo processo de formação nos séculos anteriores, com estruturas organizadas de governo, reis centralizadores, uma estabilidade econômica e social e o paganismo com crenças em divindades ligadas à natureza além de contatos com os comerciantes árabes de maioria muçulmana. Acompanhando o movimento de transformação da estrutura de poder dos reinos daquela região partindo de um ambiente ruralizado para um poder centralizado e com instituições mais sólidas e organizadas aos moldes do que se conhecia na Europa esses quatro reinos se aperfeiçoaram com cada vez mais eficácia com soberanos buscando alianças para perpetuarem seu tempo de governo, diferente do que acontecia durante o século XVIII onde as constantes disputas, inclusive dentro das próprias famílias dominantes não permitiam longos períodos de reinado devido os interesses nas riquezas e controle da população, sendo assim a alternância constante de chefes políticos durante o século XVIII acabou prejudicando a centralização do poder por um longo período. Ainda assim, mesmo com estas organizadas estruturas de governo, existia na região centenas de outros territórios que se mantiveram ruralizados, ou seja, que consistiam em 27 propriedades onde senhores proprietários detinham o domínio sob aqueles que moravam em suas terras. Com isso a maioria dos territórios que cercavam a região de Buganda, ou seja, a parte centro-africana e leste do continente, não possuía chefes de governos detentores de poderes centralizados totais. Assim, essas figuras de chefes basicamente rurais, bem como durante o período denominado medieval na Europa, eram aqueles que de fato possuíam domínio de terras e populações. Porém, isso não impediu que de forma mais lenta e gradual que com o passar do tempo algumas dessas organizações ruralizadas que de certa forma tinham uma hierarquia e eram bastante organizadas, passassem a se fortalecer ao longo das décadas e ganhar características de estruturas monárquicas de governo e centralização de poder. Figura 2 - Região dos Grandes Lagos (COHEN, 2010, p. 19) As estruturas de vilas e centros urbanizados de poder centralizado que se formaram a partir dos reinos de Buganda, Ruanda, Burundi e Bunyoro passaram a ser motivo de atração por parte de diversos grupos dos estados ou regiões menos atrativas da África, pessoas vindas das mais diversas localidades por diferentes motivos, seja pela riqueza natural, aquífera, também importante para o desenvolvimento do comércio que já acontecia com os comerciantes árabes e no final do século XIX já contava com uma companhia inglesa de comércio, riquezas possíveis das quais a atenção de Stanley ainda anterior a presença missionária se atentou, mas também da possibilidade no campo religioso de ampliação no 28 número de evangelizados que pudessem não somente seguir os dogmas mas assegurar a presença da Igreja Anglicana através da CMS na região. O universo religioso protestante também era capaz de desenvolver ações além da conversão como vimos no caso da fundação de escolas que garante a presença e manutenção da cultura missionária na tradição além de obras de urbanização, abertura e aperfeiçoamento de caminhos para que o trânsito dessas informações e riquezas ficasse cada vez mais acessível às gerações futuras. A maior parte dos exploradores europeus via com intenções individualistas e nem sempre tinham intenção de beneficiar um grupo ou um governo. Muitos deles buscavam a ajuda dos soberanos locais mais influentes destes estados maiores para que estes pudessem ganhar influência de poder em seus estados de origem, contribuindo para o fortalecimento destes territórios maiores. Esta estratégia de contato inicial do estrangeiro com os chefes locais também fora utilizada pelos exploradores coloniais e que vieram no século XIX da Europa e também pelos religiosos que chegavam a partir da ideia de evangelização em busca de espaço e, novos fiéis. As negociações dos missionários anglicanos, principalmente com o soberano no trono do reino de Buganda em 1876 M’tesae sua corte (kabaka lubiri) foram fundamentais para que conseguissem se estabelecer com sucesso naquele território. Segundo David W. Cohen em História Geral da África, volume VI, publicada em coleção pela Unesco25, Buganda, Ruanda, Burundi e Bunyoro a partir da segunda metade do século XIX passaram a monopolizar as mercadorias trazidas de fora por comerciantes, aventureiros e exploradores europeus, bem como membros de instituições missionárias cristãs e mulçumanas. Este processo explicitou ainda mais a diferenciação entre reinos maiores e os menores, inclusive aumentando as explorações tributárias dos primeiros sobre os demais. É válido destacar que a participação europeia, seja na figura de religiosos ou na de leigos, foi se intensificando no período (século XIX), o que mostra que o conhecimento sobre a região no continente estava aumentando. Os primeiros exploradores europeus provavelmente se interessaram pela abundância dos produtos presentes na região, principalmente alimentícios que ali eram produzidos e utilizados também como forma de cobrança de tributos dos pequenos reinos para os quatro maiores. Notícias sobre a “abundância” na verdade, parte de excedentes alimentares serviam como alimentos para artesãos especializados, caçadores, caravanas de comerciantes e cortes comuns na época como aponta J. Tosh26. 25COHEN, David W. História geral da África, VI: África do século XIX à década de 1880 / editado por J. F. Ade Ajayi. – Brasília : UNESCO, 2010. p. 319-322. 26TOSH, J. “The cash -crop revolution in tropical Africa: an agricultural reappraisal”, African Affairs Subscription Department, Oxford University Press, Press Road, Neasden, London NW10 ODD. ISSN 0001- 29 Portanto, a atividade comercial funcionava de forma efetiva e lucrativa dentro dessas estruturas políticas organizadas desde a metade do século XVIII, principalmente pela localização privilegiada. Se pensarmos na capacidade do comércio fluvial além do terrestre podia-se facilmente observar que a essa estrutura política contava também com o comércio de trocas que suplantava o terrestre. Estas lucrativas rotas foram tomadas dos povos como bagandas por mercadores árabes e swahilis, que passaram a administrar a atividade comercial antes mesmo das incursões europeias. Nessa tomada, o comércio de escravos e marfim se intensificou servindo inclusive como trocas para aquisição bélica. Os europeus, cristãos ou não e muçulmanos do Oriente passaram a fazer o mesmo no decorrer do século XIX à medida que adentravam na região. É neste contexto que os missionários também vão estar inseridos, inclusive conflitando e expondo suas divergências com todos esses demais grupos em busca de maior influência ainda que com ressalvas quando pensamos na postura que tomam diante das ações dos representantes do governo inglês. A vinda e estabelecimento dos europeus, principalmente na região de Buganda foi somada à um crescente processo de desigualdade facilitando o domínio religioso logo nos primeiros contatos durante o governo de M’tesa em Buganda, já que estavam em meio a um confronto civil entre os mais abastados e os mais explorados, podendo articular-se entre as duas vertentes. As constantes alterações dos cenários econômicos, políticos e sociais na região dos “Grandes Lagos” da qual faz parte a atual Uganda, a partir do momento da incursão dos missionários que estiveram ligadas ao processo que levou à chegada das influências do colonialismo europeu e das vertentes religiosas das quais os missionários da CMS estavam inseridos a partir de seu projeto de evangelização em solo africano. A primeira geração de missionários protestantes da CMS iniciada em 1876. O colonialismo do século XVI explorou a costa africana ocidental, ou seja, a região litorânea banhada pelo Oceano Atlântico que fora sendo ocupada durante o período denominado de Expansão Marítima. Já durante o século XIX o movimento de ocupação dos territórios no interior do continente foi cada vez mais frequente seja pelos exploradores e naturalistas, pelos interessados em mercados consumidores ou com a expansão de doutrinas religiosas como o caso das missões da CMS. Esse movimento em direção ao interior do continente foi uma ação parecida com aquela feita nas Américas durante a colonização do continente embora na África mais tardiamente, o processo se desse de forma bastante acelerada como afirma Godfrey N. 9909. 79, 314, 1980. p. 79 -94. Este é um jornal publicado pela Royal African Society da Oxford University Press. Membros desta sociedade devem estar diretamente ligados à secrataria da Royal African Society. 30 Uzoigwe27. Para este estudioso, a partir das teorias desenvolvidas dentro do imaginário imperialista se cria uma lógica para justificar a subordinação por parte dos africanos daquela região e o consequente avanço dos exploradores. 1.3 A missão inglesa em Buganda: procedimentos e o ambiente para evangelização Pode-se afirmar hoje que a Church Missionary Society e outras instituições missionárias europeias que atuaram na África ultrapassaram as barreiras do trabalho religioso e atuaram simultaneamente com as ações do colonialismo inglês. Tal condição com o tempo auxiliou a expansão missionária dentro do universo colonial e levaram a ações coloniais que por sua vez foram fundamentais para o estabelecimento e sucesso das missões como afirma Eric Hobsbawm28. Segundo este autor, o século XIX foi um período clássico dos empenhos dos missionários. Hobsbawm afirma que o trabalho missionário não foi intermediário da política imperialista e que muitas vezes se opôs às autoridades coloniais. Porém, o sucesso da empreitada das missões em busca da evangelização e expansão do cristianismo se deu em função do avanço dos imperialistas. É indiscutível, para ele, que a conquista colonial abriu caminho para a expansão e efetivação do trabalho dos missionários, usando como exemplo Uganda. Tal condição pode ser confirmada nos ideais de participação no meio político por parte dos missionários anglicanos da CMS e ainda podem ser observados no acordo com o legado deixado pelo secretário desta instituição até 1872, Henry Venn. Este homem foi fundamental para que nos anos seguintes a instituição traçasse seus planos para se efetivassem seu trabalho e consolidarem-se naquele espaço. Isto fica evidente no trabalho de Tudor Griffiths29 que em seu artigo aborda a respeito do período em que o Alfred Tucker fora o Bispo de Uganda, momento este que coincidiu com a implantação do protetorado britânico. Neste artigo traz algumas informações a respeito de como era a relação, ou pelo menos deveria ser, entre o governo britânico e as missões da CMS. 27 USOIGWE, Godfrey. História geral da África, VII: África sob dominação colonial, 1880-1935 editado por Albert Adu Boahen. – 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. p. 21. 28 HOBSBAWM, E. A Era dos Impérios, 1875-1914. 3ªed. RJ: Paz e Terra, 1988. 29 GRIFFITHS, Tudor. Bishop Alfred Tucker and the Establishment of a British Protectorate in Uganda 1890-94. Journal of Religion in Africa, Vol. 31, Fasc. 1 (Feb., 2001), pp. 92-114. 31 A influência de Henry Venn como secretário da CMS até 1872 sob o bispo Tucker fora nítida durante seu episcopado em Uganda, quando havia um acordo para que os missionários não interferissem nos assuntos políticos da região com relação às ações do governo britânico na África. Porém, deve-se ressaltar que a não interferência de Venn não era totalmente observada, pois em alguns momentos, os princípios cristãos contrariavam a política britânica que, muitas vezes passava por cima dos ideais missionários que combatiam explorações excessivas aos locais, condição não aceita pelos religiosos membros da CMS. Apesar da orientação de afastamento com relação aos assuntos essencialmente políticos que ficavam aos cuidados das autoridades seculares e dos chefes ingleses, os missionários da CMS e funcionários ingleses conviveram num mesmo espaço. Eles envolviam-se com a política ora concordando ou omitindo-se e ganhando o apoio e a segurança do governo inglês para efetivarem sua presença ora com pequenas ressalvas a respeito do que era considerado abuso sob o território e sua população. De acordo com as instruções de Venn, um missionário só poderia se envolver politicamente, por exemplo, no caso de escravidão, denúncias ou atentados aos princípios máximos de justiça, humanidade e dever cristão, sempre com discussões entre eles e principalmente na presença do missionário mais experiente. Ele enfatizou que o missionário deveria sempre que pudesse, evitar partidarismo político da mesma maneira que deveria ser cordial e cortês na apresentação de seus casos. As instruções de Venn eram no sentido de evitar envolvimento político por parte dos membros missionários da CMS ao mínimo, mas não sem excluíam a possibilidade de que algum envolvimento que pudesse ocasionalmente ser necessário. Quando ele escreveu em 1860, a maioria dos missionários da CMS trabalhavam em áreas onde havia algum nível de controle político britânico e os exemplos que ele deu de aprovação no envolvimento de missionários em questões políticas, em todos os casos, eram daqueles que de alguma maneira estavam relacionados a áreas e à situações onde a queixa foi expressa contra as autoridades britânicas. Venn foi menos enfático e até de certo modo omisso com os questionamentos sobre as relações políticas dos missionários da CMS do que com governos não-cristãos e não-europeus. Para os membros da CMS, as relações com o governo, apesar de por vezes estarem envolvidas em pequenos conflitos locais, aconteciam relativamente sem grandes problemas. Era claro para os próprios missionários que os representantes do governo britânico faziam parte da nação intelectualmente “mais preparada” e que conduziria de maneira efetiva Uganda, para a prosperidade. Tal ideia combinava um plano de salvação do legado bíblico “amaldiçoado” imposto à África e que será tratado mais a frente. Tal assertiva se baseava no 32 pensamento eurocêntrico de época, bem como a crença na influência da cor da pele branca para obtenção do status de “civilizados” que esteve presente em todo o século XIX com a teoria da superioridade branca, nada melhor do que associar o avanço intelectual dos ingleses com o avanço do cristianismo com a atuação dos missionários. Uma outra particularidade nas missões religiosas inglesas era que o participante pagava para participar da missão. O oferecimento de dinheiro para participar dessas missões se deu ainda com os primeiros missionários membros da CMS para que pudessem fazer parte daquela empreitada em 1876. Estes recursos mostraram-se fundamentais segundo o entendimento da CMS. É interessante ressaltar que o tema e a instituição são absolutamente atuais, visto que a religião cristã sempre foi um importante componente no processo de “civilização” trabalhado pela ideologia europeia tanto na África quanto na América. Contemporaneamente a CMS que fundada em 1799 continua existindo, levando influências de um grupo e de um Estado até os dias de hoje em diversas regiões espalhadas pelo mundo, inclusive mantendo missionários em Uganda e enaltecendo os feitos de suas gerações passadas da qual faz parte a que estudamos neste trabalho. Hoje um terço da população de Uganda segue o cristianismo pelo fato das ações evangelizadores protestantes terem propiciado o cristianismo reverso, desenvolvido com suas particularidades dentro do território. 1.4 O Imperialismo inglês, o protestantismo e algumas teorias afirmativas do imaginário cultural europeu Para compreensão da mentalidade do europeu e as bases fundamentais para formulação de seu universo cultural afirmativo que pôde enaltecer as ações não só governamentais, mas de todos os cidadãos ingleses que partilhassem de versões a respeito da necessidade de se alterar um modelo sociocultural que estivesse fora dos padrões daquele construído na Europa, alterações estas em vários setores sociais, dos quais faz parte a religião. Assim algumas teorias foram por muitas vezes apropriadas e difundidas não só pela Inglaterra, mas pela Europa como um todo e no decorrer do século XIX estiveram ainda mais em evidência. Nesta parte de texto visa-se reunir algumas para maior compreensão do ambiente sociocultural do qual provinham os ingleses que se espalharam pelo leste africano a partir do século XIX. São elas: a teoria econômica, teorias psicológicas, teorias diplomáticas e teoria da dimensão africana. Para melhor explicitar ele coloca-as em tópicos separados, quanto à teoria econômica, ainda que trate do período posterior ao nosso estudo, Uzoigwe fala das 33 continuidades de uma política eficaz por parte das imposições europeias, por isso, podemos aplicá-la. O autor acrescenta ainda o pensamento clássico de John Atkinson Hobson que no final do século XIX e início do século XX se difundiu sendo recuperado muitas vezes para a compreensão do Imperialismo na era Vitoriana da Inglaterra para enfatizar o processo que levou à crise da superprodução e à necessidade de se buscar rapidamente novos territórios consumidores a qualquer custo, como vemos: a superprodução, os excedentes de capital e o subconsumo dos países industrializados levaram -nos a colocar uma parte crescente de seus recursos econômicos fora de sua esfera política atual e a aplicar ativamente uma estratégia de expansão política com vistas a se apossar de novos territórios. (USOIGWE, 2010, p.23) Logo percebemos que, no âmbito econômico a superprodução europeia que já acontecia há muito tempo desde o avanço da indústria inglesa pioneira ampliada na Segunda Revolução Industrial na segunda metade do século XIX com a produção de bens de consumo comercializáveis que necessitava de novos mercados consumidores, assim como nos pactos coloniais nas primeiras décadas do século XVI foram pautados visando não somente a obtenção de novos produtos, mas também em novos mercados consumidores para os países imperialistas. Além disso, a região de Uganda ainda contava com valiosos recursos naturais que diferiam devido à fertilidade de outros territórios africanos. Em “A partilha da África 1880-1900” John Mackenzie30 também trará suas afirmações a respeito do imperialismo como conceito econômico do século XIX onde a Inglaterra e outros países europeus ocidentais estão em busca de novos mercados consumidores e fornecedores de matéria prima. Este imperialismo irá chegar pelas mãos do governo inglês e atuará simultaneamente à empreitada missionária. Logo, as relações entre o governo inglês e os membros religiosos estiveram presentes naquele contexto da instituição CMS, não era interessante para os missionários conflitarem com o governo inglês naquele território, pois isso confundia os objetivos religiosos com os políticos, embora nem sempre se pudesse delinear uma ação da outra como afirma Hobsbawm (1988). Segundo Mackenzie o imperialismo também se deu pela imposição cultural e religiosa a povos que eram considerados inferiores utilizando também da força militar no momento da ocupação desses territórios. No caso da CMS era fundamental que os povos locais aprendessem os preceitos religiosos e o evangelho cristão a partir da sua própria língua para que auxiliassem no processo de expansão do número de evangelizados, transformasse a Igreja local com aspectos cada vez mais próximos da realidade de Buganda como forma de garantir 30 MACKENZIE, J. M. A Partilha da África 1880-1900. São Paulo, Ática, 1994. 34 a permanência e a aceitação dos baganda com relação ao processo de conversão e convencimento da necessidade do cristianismo protestante para os africanos. Não só a língua local de forma escrita nos textos bíblicos, mas também as pregações feitas por sacerdotes africanos, com formação religiosa em Buganda, possibilitaria um maior reconhecimento dos africanos com a religião do europeu. Para isso a tradução dos materiais para o ensinamento dos dogmas cristãos foi fundamental. Na década de 1880, os preceitos cristãos já eram traduzidos do inglês para diversas línguas locais como swahili e a língua inglesa já era ensinada a uma grande parcela da população local, assim, puderam surgir pastores locais que garantiram a permanência daquelas ideias. No âmbito econômico, por parte do governo inglês durante o fim da década de 1880 e início da década de 1890 até o estabelecimento do protetorado, o que ocorria era uma espécie de novo colonialismo, não mais aquele lento e analítico de ocupação territorial do século XVI, mas sim ações rápidas que atendessem ao mercado e as mentes em uma disputa mais acirrada. Boa parte da Europa precisava de recursos naturais para suas indústrias além de riquezas naturais que atraíram novos exploradores. As ações deste grupo muitas vezes entrou em desacordo com os grupos locais. Apesar dos abusos os membros da CMS na maioria das vezes, não se opunham abertamente aos exploradores e mesmo algumas atitudes do governo inglês. Contudo, a tolerância era quebrada quando se havia denúncias de escravidão. Neste caso, sempre era recomendado pelos superiores que intervissem, sendo assim em alguns momentos pontuais os missionários tomaram partido para tentar evitar práticas escravistas. Os pensamentos que justificavam a ação do europeu, portanto, na maioria dos momentos influenciou a postura desses estrangeiros dentro do território de Buganda, tradições e cultura ocidental sempre representavam algo muito diferente do que era vivido dentro das sociedades do leste-africano. Assim, mesmo quando missionários e o governo inglês através de seus representantes na região tinham posicionamentos contrários eles eram muito mais facilmente acordados e solucionados entre si do que com relação aos pensamentos da sociedade local devido aos universos diferenciados. Por isso, havia a mínima intervenção possível por parte dos religiosos ingleses nos assuntos ligados à esfera política. Algumas teorias difundidas faziam com que a ação dos missionários da CMS partisse de um pensamento comum ao dos representantes do governo inglês no que concerne a ideia de uma religião “melhor e necessária” do que as crenças pagãs africanas, somente pelo fato de terem se desenvolvido na Europa. Estas teorias, por exemplo, as enfatizadas por Atkinson Hobson, dentre outras, pelas quais foi refletida ideia de superioridade intelectual e de desenvolvimento da civilização que precisava ser levado até a África, fosse pela vertente da 35 imposição política representada pelo governo inglês, fosse pelo conhecimento e aceitação do cristianismo protestante como religião “correta” para “salvação” daquela sociedade. Dentro dessas teorias que mostram a religião presente num contexto geral imperialista Usoigwe denomina como teorias psicológicas. Temos um grande exemplo a partir de sua posição em relação a teoria do darwinismo social: A obra de Charles Darwin, “A origem das espécies por meio da seleção natural, ou a conservação das raças favorecidas na luta pela vida” publicada em inglês em novembro de 1859, parecia fornecer caução científica aos partidários da supremacia da raça branca, tema que, depois do século XVII, jamais deixou de estar presente, sob diversas formas, na tradição literária europeia. Os pós-darwinianos ficaram, portanto, encantados: iam justificar a conquista do que eles chamavam de “raças sujeitas”, ou “raças não evoluídas”, pela “raça superior”, invocando o processo inelutável da “seleção natural”, em que o forte domina o fraco na luta pela existência. (USOIGWE, 2010, p. 25) O autor também traz suas reflexões quanto ao cristianismo evangélico: O cristianismo evangélico, para o qual A origem das espécies era uma heresia diabólica, não tinha, por sua vez, o menor escrúpulo em aceitar as implicações racistas da obra. As conotações raciais do cristianismo evangélico eram moderadas, todavia, por uma boa dose de zelo humanitário e filantrópico sentimento muito disseminado entre os estadistas europeus durante a conquista da África. Sustentava-se, assim, que a partilha da África se devia, em parte não desprezível, a um impulso “missionário”, em sentido lato, e humanitário, com o objetivo de “regenerar” os povos africanos. Já se afirmou, além disso, que foram os missionários que prepararam o terreno para a conquista imperialista na África oriental e central, assim como em Madagáscar. No entanto, se é verdade que os missionários não se opuseram à conquista da África e que, em certas regiões, dela participaram ativamente, esse fator, por si só, não se sustenta como uma teoria geral do imperialismo, em razão de seu caráter limitado. (USOIGWE, 2010, p. 25-26) Nota-se, portanto, que a religião tornou presente dentro do contexto cada vez mais de forma efetiva e fora apoiada e auxiliada pelos governos imperialistas como mais um meio de levar a cultura europeia para essas regiões no século XIX. É nesta vertente que esta dissertação segue já que adiante demonstraremos mais ativamente as relações da política com as instituições religiosas na África e as formas de afirmação de seus preceitos, rituais e dogmas. Além da ideia de superioridade e capacidade intelectual que estariam levando a religião “correta” que era a cristã protestante, os missionários se apoiavam em interpretações bíblicas e programas que buscavam uma “salvação” do continente a partir da religião trazida pelos grupos missionários. A teoria da África amaldiçoada por Noé, a chamada “maldição de 36 Cam”31 também esteve ligada à esta tentativa de justificação ideológica para a incursão e formação das missões. A CMS adentra neste contexto na busca por áreas de influência religiosa e acaba atuando simultaneamente na expansão inglesa dentro de Buganda. Assim, embora não oficialmente, autoridades inglesas e missionários atuassem na mesma área da África central e leste eles ampliaram e colonizaram Buganda em uma empreitada que tinha mais alianças do que conflitos. Usoigwe observando pelo viés sociológico observa um ativismo social, e mostra esta vertente utilizando outro teórico: Foi Joseph Schumpeter o primeiro a explicar o novo imperialismo em termos sociológicos. Para ele, o imperialismo seria a consequência de certos elementos psicológicos imponderáveis e não de pressões econômicas. Seu raciocínio, exposto em termos antes humanistas do que da preponderância racial europeia, funda-se no que ele considera ser um desejo natural do homem: dominar o próximo pelo prazer de dominá-lo. Essa pulsão agressiva inata seria comandada pelo desejo de apropriação, próprio do ser humano. O imperialismo seria, portanto, um egoísmo nacional coletivo: “a disposição, desprovida de objetivos, que um Estado manifesta de expandir-se ilimitadamente pela força”. (USOIGWE, 2010, p. 26) Havia também as teorias diplomáticas do imperialismo, utilizadas para fundamentar as ações de exploradores e políticos da época com relação à partilha da África no final do século XIX. A partir dessas teorias percebemos mais nitidamente a intenção das nações europeias em enfrentar todos os obstáculos que atravessassem seus projetos expansionistas de alcance de novos mercados consumidores, de possibilidade de obtenção de matéria prima, na abertura de estradas e na presença cada vez mais efetivas e comuns da Companhia de Comércio Inglesa, que facilitou a presença e continuidade do trabalho missionário através da postura de seus membros com relação ao apoio dado aos missionários. No caso da vertente chamada de prestígio nacional, o principal teórico é Carlton Hayes 32 que faz a defesa do Reino Unido em sua política imperialista. Segundo ele, a nação que aspirava compensar seu isolamento na Europa engrandecendo e exaltando o império britânico. 31SANTOS, Patrícia Teixeira. Dom Comboni: profeta da África e santo no Brasil. Rio de Janeiro. Ed. Mauad, 2002.p. 64. 32HAYES, Carlton. The Novelty of Totalitarianism in The History of Western Civilization, Proceedings of the American Philosophical Society, vol. 82, no 1, fev. 1940, p.91-102. 37 CAPÍTULO 2 O universo religioso de Buganda e a Church Missionary Society: assimilações e contrapontos Antes de adentrarmos ao universo missionário da CMS é preciso considerar como era o universo religioso na visão do colonizador europeu e, através da cultura religiosa, perceber qual era o contexto em que se encontrava o continente. As religiões africanas por muito foram negadas como religião pelos europeus. As primeiras recuperações deste universo vieram através dos estudiosos africanistas naturais do continente africano. Um grande estudioso desta 38 temática é Emmanuel Obiechina33. Sua posição sobre as crenças religiosas nativas são um marco e também importante aspecto para entender a visão de mundo dos povos das sociedades tradicionais como aparece em um trecho de sua obra: Não existe qualquer dimensão importante da experiência humana que não esteja ligada ao sobrenatural, ao sentimento popular religioso e à piedade [...]. Tudo isso constitui parte integrante da estrutura ideológica da sociedade tradicional e é essencial para uma interpretação exata da experiência no contexto social tradicional. (OBIECHINA, 1978. p. 208) A religião nativa, segundo Obiechina, estava ligada ao contexto regional, compreendendo além do sobrenatural, a natureza divina e o lugar do ser humano no mundo. A divindade maior tinha suas variações de acordo com a localidade. Ainda segundo o autor, deus funcionava como um suserano nas sociedades, podendo beneficiar ou castigar o indivíduo de acordo com o que este tivesse feito, ou seja, o que faz bem recebe o bem e o que faz mal, recebe o mal. O ser superior não possuía uma imagem física, sua existência era essencialmente espiritual. Abaixo do superior temos outros espíritos hierarquizados com base na ancestralidade. A ancestralidade é uma condição presente na política e a sociedade nos territórios da África como um todo sendo fundamental para compreensão de seu universo cultural, religioso e político. A influência dos ancestrais está indiscutivelmente interagindo com a hierarquia de poder, com a cultura e é fundamental para essas populações. Mesmo nesta linha hierárquica aparecem os deuses que tinham responsabilidade de castigar ou premiar os seus seguidores. Ainda existiam os feiticeiros e bruxos trabalhando com o místico e eram reconhecidos pelos membros dos reinos. Segundo o autor, todas estas esferas religiosas nativas eram necessárias para harmonia na comunidade. Segundo um outro autor do tema (universo religioso nas sociedades africanas), Mbiti34, muitas novas crenças poderiam ser incorporadas a tradição, já que, inclusive nas lutas étnicas respeitava-se muitas vezes a crença do vencedor e também a do perdedor. Isso era comum e coeso nas sociedades africanas e é algo que olhar das potências imperialistas avaliou muitas vezes, segundo relatos, como ausência religiosa. Para os missionários da primeira geração da CMS e os posteriores essas características pagãs também eram tidas como necessidade de conversão ao cristianismo. A salvação só seria possível a partir da aceitação da religião ocidental. Para o reverendo Mullins, “a ausência religiosa” era o fator que motivava o que ele chamou “um pulo do escuro”, para salientar que 33 OBIECHINA, E. Culture, Tradition and Society in the West African Novel. Cambridge. Cambridge University Press. 1978. 34 MBITI, John S. Africa religions & philosophy. Biddles Ltd, King’s Lyn, Norfolk. 1969. p. 2. 39 a conversão de milhares de pessoas de grupos locais a partir do trabalho evangelizador dos missionários. Devemos observar, entretanto, que a conversão implicava em um processo de negociação de ambas as partes. Muitas vezes durante os batizados e as pregações era necessário algumas assimilações com a cultura religiosa local para que os convertidos pudessem compreender a intenção dos pregadores missionários, e mesmo nas passagens que serviam como ilustração para convencimento dos novos fiéis do “caminho correto a ser seguido” na visão do europeu, era colocado muitas vezes artifícios pagãos e costumes locais para indicar o que era correto ou não após a conversão. Uma passagem que traremos adiante mostrará inclusive um doente a beira da morte que implora a um não convertido que borrife água em seu rosto e profira as palavras do ritual cristão “em nome do pai, do filho e do espírito santo” para concretizar antes da morte o desejo de se tornar cristão, e essa conversão fora aceita mesmo sendo feita pelas mãos de um descrente no Evangelho. As assimilações, adaptações ou negações do ambiente cultural pagão local eram necessárias como meio de alcançar um maior número de fiéis, ou seja, o contexto histórico, político e cultural local influenciou o modo de evangelizar dos missionários da CMS, que sem adaptações não teriam obtido sucesso na empreitada como a necessidade de se criar uma língua escrita que pudesse contribuir neste processo evangelizador além da necessidade de fazê-la a partir da língua inglesa. Para a instituição missionária a tradição afirmava a condição de “atraso” com relação ao inglês, era a forma como representavam “o outro” africano em seus textos, mas, além disso, era uma maneira mesmo que fruto do ideal comum na Inglaterra, de justificar a necessidade de se expandirem com o processo evangelizador pelo território de Buganda. Nessa perspectiva, John e Jean Commaroff35 nos trazem fundamentos para melhor compreensão da necessidade que o europeu tinha em afirma-se dentro no universo africano e da suposta indispensável colaboração que os africanos dos reinos do leste do continente, durante o século XIX, representados como sem cultura e desorganizados necessitavam para alcançarem a “civilidade”. Isso fica evidente, por exemplo, no trecho: Na medida em que uma sociedade civil em África é amplamente tomada a depender “do triunfo do capitalismo liberal” seu futuro não é geralmente percebido como uma mera questão de materialidades, de interesses econômicos. Algo mais elevado está em questão: “o abraço do espírito histórico mundial” que investe projetos cívicos com “finalidade imanente”. 35COMAROFF, John L. COMAROFF, Jean. Civil Society and the Political. Imagination in Africa: Critical Perspectives. Chicago and London: University of Chicago Press, 1999. 40 Para os espíritos “menos elevados” a chave para a civilidade reside em mundanidades; (...) a consolidação da sociedade capitalista do século XVIII e XIX, com seus arranjos sociais e culturais característicos, seus sujeitos portadores de direitos, suas maneiras “refinadas”. Assim é que os intelectuais ocidentais, advogados, empresários, acadêmicos, professores, e às vezes Líderes cristãos (nunca muçulmanos) foi orientada. - E são tipicamente vistos de fora como as vanguardas de informação da sociedade civil. São eles que são pensados com maior probabilidade de se comprometerem com o desenvolvimento de uma esfera pública ativa, juntamente com os seus meios necessários e organizações voluntárias; em gerar lugares e associações através do qual a burguesia pôde perseguir os seus interesses sem entraves, por lealdades paroquiais, a política de identidade ou governos intrusivos; a equiparar esses interesses com o bem da sociedade em geral, até mesmo através de "humanidade".36 Nesta ideia, mantiveram os diversos grupos provindos da Europa para a África sejam eles ou não religiosos, uma mentalidade equivocada de superioridade do europeu em função dos africanos, representá-los como aqueles que necessitam de auxílio para construção de sua política e religiosa é uma maneira dos ocidentais europeus de personificarem as informações do mundo “civilizado” para serem “repassadas” para a sociedade civil dos reinos como o estudado, por exemplo. 2.1 Demais povos e culturas coexistentes na sociedade do reino Além do ambiente religioso dos baganda existiram também outros povos que coabitavam e exerciam influência na região dos quatro grandes reinos. Os muçulmanos surgiram no período anterios à chegada dos missionários cristãos, os registros indicam que o Islã chegou a Buganda, por volta de 1844, quando Ahmed Ibn Ibrahim conhece o então palácio sede do monarca. No entanto, também acredita-se que alguns outros árabes muçulmanos ligados ao comércio já exerciam suas atividades desde 1830, durante o reinado do kabaka Suuna II`s. É também possível que os muçulmanos possam ter chegado mais cedo 36 Do original: “Insofar as a civil society in Africa is widely taken to depend on "the triunfo of liberal capitalism" its future is not generally perceived to be a mere matter of materialities, of economic interests alone. something more elevated is at issue:"the embrace of the world historical spirit" that invests civic projects with "immanent purpose". For the less high minded the key to civility resides in mundanities;(...) the consolidation of eighteenth and nineteenth century capitalist society, with its characteristic social and cultural arrangements, its rights- bearing subjects, its "refined" manners. Thus it is that Western intellectuals, lawyers, entrepreneurs, academics, teachers, and sometimes Christian leaders (never Muslim) was oriented. - and are typically seen from outside as the vanguards of civil society information. It is they who are thought most likely to commit themselves to the development of an active public sphere, along with its requisite media and voluntary organizations; to criate places and associations through which bourgeoisies might pursue their interests untrammeled by parochial loyalties, identity politics, or intrusive governments; to equate those interests with the good of society at large, even means of “humankind”.” Tradução Propria. In: COMAROFF, John L. COMAROFF, Jean. Civil Society and the Political. Imagination in Africa: Critical Perspectives. Chicago and London: University of Chicago Press, 1999. p. 19. 41 em Buganda através do eixo norte do Egito e do Sudão. O fato é que esses homens chegaram naquele reino pelo menos 33 anos antes do cristianismo e, assim como em certas áreas da África oriental se interessavam por vias de comércio. Junto com sua atividade divulgavam e seguiam o Islão há muitos séculos, como menciona Kofi Asare Opoku37: Foi se desenvolvendo uma nova cultura muçulmana e, a partir dessa mistura com a cultura bantu, nasceu a cultura swahili. O kiswahili é, hoje, a língua franca da maior parte da África oriental. Antes da chegada das potências coloniais, o islão já avançara em proporção considerável. Dentre seus progressos, assinalemos a substituição do ciclo de festas tradicionais pelo calendário muçulmano em várias partes da África e a incorporação de numerosas palavras e conceitos árabes por línguas africanas como o haussa, o fula e o mandinga, o que contribuiu muito para enriquecê-las. No retorno da viagem, os peregrinos já seguiam novas modas de vestuário; e, com o exemplo de religiosos e clérigos muçulmanos residentes ou de passagem por diversas regiões da África, a cultura árabe tinha começado a causar grande impacto sobre os africanos. A influência se fazia sentir também na arquitetura, nos títulos, na música e em outros aspectos da cultura, principalmente entre as camadas mais favorecidas da população africana, sobretudo no Sudão. M