UNESP | UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO" INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS MESTRADO EM ABORDAGENS TEÓRICAS, HISTÓRICAS E CULTURAIS DA ARTE O PONTO DE VISTA CONTEMPORÂNEO DE SEBASTIÃO SALGADO EM RELAÇÃO DE DIÁLOGO COM O ROMANTISMO Virgilio Neves Orientador: Prof. Dr. Omar Khouri São Paulo 2019 UNESP | UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO" INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS MESTRADO EM ABORDAGENS TEÓRICAS, HISTÓRICAS E CULTURAIS DA ARTE O PONTO DE VISTA CONTEMPORÂNEO DE SEBASTIÃO SALGADO EM RELAÇÃO DE DIÁLOGO COM O ROMANTISMO Virgilio Neves Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Área de concentração: Artes Visuais Linha de Pesquisa: Abordagens Teóricas, Históricas e Culturais da Arte. Orientador: Prof. Dr. Omar Khouri São Paulo 2019 Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP N519p Neves, Virgilio, 1963- O ponto de vista contemporâneo de Sebastião Salgado em relação de diálogo com o Romantismo / Virgilio Neves. - São Paulo, 2019. 130 f. : il. Orientador: Prof. Dr. Omar Khouri Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes 1. Salgado, Sebastião - 1944. 2. Fotografia artistica. 3. Romantismo na arte. 4. Intertextualidade. I. Khouri, Omar. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. III. Título. CDD 770 (Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666) O PONTO DE VISTA CONTEMPORÂNEO DE SEBASTIÃO SALGADO EM RELAÇÃO DE DIÁLOGO COM O ROMANTISMO Virgilio Neves Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Banca Examinadora: _______________________________________ Prof. Dr. Omar Khouri - Orientador Departamento de Artes Plásticas/Instituto de Artes de São Paulo _______________________________________ Prof. Dr. Agnaldo Valente Germano da Silva Departamento de Artes Plásticas/ Instituto de Artes de São Paulo _______________________________________ Prof.ª Dr.ª Ana Lucia Gimenez Ribeiro Lupinacci Departamento de Design/ ESPM-SP Data de Defesa: São Paulo, 31 de maio de 2019 AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Omar Khouri, pela orientação sempre muito pontual e objetiva. Ao Prof. Dr. Agnus Valente e ao Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento, pelos comentários valiosos que enriqueceram minhas reflexões. À Prof.ª Dr.ª Rosângela Leote, pela parceria na elaboração do meu projeto inicial. À Prof.ª Dr.ª Maria Elisa Cezaretti, por me conduzir como ninguém aos caminhos pictóricos do Barroco. À Prof.ª Dr.ª Ana Lucia Lupinacci, pela disponibilidade, pela atenção e pela clareza na avaliação dessa dissertação. À Prof.ª Dr.ª Caru Duprat e à Prof.ª Dr.ª Suzana Torres, que sempre acreditaram e me apoiaram no meu percurso acadêmico. À Prof.ª Dr.ª Nancy Betts, por detectar em um trabalho de faculdade a possibilidade para um tema de mestrado. À minha família e à Alexandre Bergaminni, por acreditarem nesse percurso e me apoiarem 24 horas por dia. À Neuza de Souza Padeiro, Fábio Akio Maeda e Rodrigo Gutierrez Leão por estarem sempre disponíveis em todos os momentos que precisei. Aos meus amigos Aniely Mussoi e Diego Gozze, pela parceria e pelas inúmeras contribuições nos nossos bate-papos acadêmicos. RESUMO O ponto de vista contemporâneo de Sebastião Salgado em relação de diálogo com o Romantismo Essa pesquisa tem por objetivo esclarecer algumas questões que cercam a obra de Sebastião Salgado. Partindo do princípio de que o olhar contemporâneo do fotógrafo busca um registro pessoal de uma realidade frágil e sofrida no Brasil e ao redor do mundo, numa espécie de crítica à era pós-revoluções industriais, o estudo procurou mostrar que há um certo romantismo nessa abordagem. As fotografias, que vão além do mero registro objetivo dos fatos, ultrapassam as fronteiras do fotojornalismo e alcançam níveis de subjetividade tão intensos que estabelecem através de suas figuras e paisagens, não apenas um diálogo sensível com o espectador, mas uma estética que se aproxima da linguagem dos pintores românticos. Para tornar mais visível e clara essa análise, optou-se por um recorte cronológico das fotografias produzidas entre 1984 e 2000, período em que o fotógrafo mostrou o ser humano como vítima de um mundo consumido pelos efeitos das revoluções industriais. Através dessas fotografias, foi traçado um percurso de pesquisa que procurou construir possíveis relações de intertextualidade com pinturas românticas do século XIX, que também encontraram na subjetividade uma forma de expressar as próprias reações à nova realidade que se formava no período. A pesquisa buscou nos valores estruturais e temáticos das fotografias e das pinturas seus pontos de convergência, usando a metodologia iconográfica e iconológica de Erwin Panofsky. Essas relações revelaram que as fotografias de Sebastião Salgado contêm uma atitude tão romântica quanto a que levou Goya, Constable, Turner, Caspar-David-Friedrich e Géricault a produzirem suas telas. Palavras-chave: Sebastião Salgado. Fotografia. Pintura Romântica. Intertextualidade. ABSTRACT The contemporary point of view of Sebastião Salgado in relation to dialogue with Romanticism This research aims to clarify some issues surrounding the work of Sebastião Salgado. Assuming that the contemporary look of the photographer seeks a personal record of a fragile and suffered reality in Brazil and around the world, in a kind of criticism of the post-industrial revolutions era, the study tried to show that there is a certain romanticism in this approach. The research demonstrated that the photos, which go beyond the mere objective record of events, also go beyond the boundaries of photojournalism and reach such intense levels of subjectivity that they establish through their figures and landscapes, not only a sensitive dialogue with the viewer, but an aesthetics approaching the language of romantic painters. To make this analysis more visible and clear, a chronological cut of the photographs produced between 1984 and 2000 was chosen, during which the photographer showed the human being as a victim of a world consumed by the effects of industrial revolutions. Through these photographs, a research course was traced that seeks to build possible intertextual relations with 19th century romantic paintings, which also found in subjectivity a way of expressing their own reactions to the new reality that was formed in this period. The research sought the point of convergences between the structural and thematic values of photographs and paintings, using the iconographic and iconological methodology of Erwin Panofsky. These conections revealed that Sebastião Salgado's photographs contain a romantic attitude similar to the one that led Goya, Constable, Turner, Caspar-David-Friedrich and Géricault to produce their paintings. Keywords: Sebastião Salgado. Photography. Romantic painting. Intertextuality. LISTA DE IMAGENS FIGURA 1. "The Var department". Henri Cartier-Bresson. 1932.........................................................................31 FIGURA 2. "Equivalentes". Alfred Stieglitz. 1926...............................................................................................33 FIGURA 3. "Dia D". Normandia". Robert Capa. 1944.........................................................................................34 FIGURA 4. "Migrant mother". 1936. Dorothea Lange. 1936...............................................................................35 FIGURA 5. "Serra Pelada". Sebastião Salgado. 1986...........................................................................................61 FIGURA 6. "O 3 de maio de 1808 em Madri". Francisco José de Goya. 1814....................................................66 FIGURAS 7 e 8. "Serra Pelada". Sebastião Salgado. 1986. (Segmentação da área visual e eixo central)...........70 FIGURAS 9 e 10. "O 3 de maio de 1808 em Madri". (Segmentação da área visual e eixo central).....................70 FIGURA 11 "Zona de guerra". Sebastião Salgado. 1994......................................................................................72 FIGURA 12. "Zona de guerra". Sebastião Salgado. 1994. (Marcação do centro óptico)......................................73 FIGURAS 13 e 14. "Zona de guerra". Sebastião Salgado. 1994. (Detalhes das imagens)....................................74 FIGURA 15. "A carroça de feno". 1821. John Constable.....................................................................................76 FIGURA 16. "A carroça de feno". 1821. John Constable. (Segmentação da área visual)....................................77 FIGURAS 17 e 18. "Zona de guerra" e "A carroça de feno". (Estudo comparativo)...........................................80 FIGURA 19. "Hospital de Gourma-Rharous". 1985. Sebastião Salgado..............................................................83 FIGURA 20. "Hospital de Gourma-Rharous". 1985. Sebastião Salgado. (Segmentação da área visual).............84 FIGURA 21. "A monomaníaca da inveja". 1820. Théodore Géricault..................................................................88 FIGURA 22. "A monomaníaca da inveja". 1820. Théodore Géricault. (Segmentação da área visual).................90 FIGURAS 23 e 24. "Hospital de Gourma-Rharous" e "A monomaníaca da inveja". (Estudo comparativo)........93 FIGURA 25. "Desmantelamento de navio". 1989. Sebastião Salgado..................................................................95 FIGURA 26. "Desmantelamento de navio". 1989. Sebastião Salgado. (Segmentação da área visual).................97 FIGURA 27. "O Combatente Téméraire". 1839. Joseph M.W. Turner.................................................................99 FIGURA 28. "O Combatente Téméraire". 1839. Joseph M.W. Turner. (Segmentação da área visual)..............101 FIGURAS 29 e 30. "Desmantelamento de navio" e "O Combatente Téméraire". (Estudo comparativo)..........104 FIGURA 31. "Nos arredores de Tokar". 1985. Sebastião Salgado......................................................................106 FIGURA 32. "Nos arredores de Tokar". 1985. Sebastião Salgado. (Segmentação da área visual).....................107 FIGURA 33. "A árvore solitária". 1822. Caspar David Friedrich.......................................................................110 FIGURA 34. "A árvore solitária". 1822. Caspar David Friedrich. (Segmentação da área visual)......................111 FIGURAS 35 e 36. "Nos arredores de Tokar" e "A Árvore Solitária". (Estudo comparativo)...........................115 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10 1 A ARTE ROMÂNTICA ..................................................................................................... 15 1.1 A Revolução Industrial como força geradora da arte romântica ............................ 17 1.2 Os pintores românticos e a busca interna revelada nas telas ................................... 19 2 A FOTOGRAFIA E A ARTE ............................................................................................ 24 2.1 A Fotografia e as conexões com a Pintura ................................................................. 24 2.2 A Fotografia como expressão artística ....................................................................... 27 2.3 A Fotografia moderna e contemporânea e a transição para o fotojornalismo ....... 30 3 SEBASTIÃO SALGADO: O PERCURSO SUBJETIVO DE UM OLHAR ................. 39 3.1 Sebastião Salgado e a reação à era pós-revoluções industriais ................................ 44 3.2 Sebastião Salgado: a formação de uma identidade na Fotografia ........................... 46 4 IMAGEM: ICONOGRAFIA, ICONOLOGIA E INTERTEXTUALIDADE ............... 53 4.1 Pintura e Fotografia: imagens, signos e interpretações ........................................... 53 4.2 Aby Warburg: uma nova forma de ver e interpretar as imagens ........................... 54 4.3 A pré-iconografia, a iconografia e a iconologia de Panofsky ................................... 55 5 SEBASTIÃO SALGADO E OS PINTORES ROMÂNTICOS ....................................... 60 5.1 Relações intertextuais entre Salgado e Goya ............................................................. 60 5.2 Relações intertextuais entre Salgado e Constable ..................................................... 71 5.3 Relações intertextuais entre Salgado e Géricault ...................................................... 82 5.4 Relações intertextuais entre Salgado e Turner .......................................................... 95 5.5 Relações intertextuais entre Salgado e Friedrich .................................................... 105 6 O ROMANTISMO OCULTO DAS FOTOS DE SEBASTIÃO SALGADO ............... 117 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 122 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 125 10 INTRODUÇÃO As fotografias de Sebastião Salgado (1944) estão imersas num universo que remete o espectador a inúmeras interpretações. Não há como isolá-las apenas num contexto fotojornalístico, nem como desvinculá-las de suas propostas de crítica sensível ao mundo em que vivemos. Se, por um lado os registros contêm enquadramentos potentes que revelam o homem e a natureza, por outro, a sensibilidade de seu olhar preenche o campo visual do espectador, apontando para possíveis fraturas sociais, econômicas e ambientais decorrentes do processo industrial. Salgado, mineiro de Aimorés, Minas Gerais, iniciou sua carreira como economista, mas logo migrou para a Fotografia. Dedicando-se ao fotojornalismo em agências internacionais, percebeu que poderia ir além ao transportar para sua objetiva imagens de alto impacto gráfico, provocativas e potencialmente reflexivas. Mesmo havendo diferentes vertentes de interpretação de seu trabalho, incluindo aquelas que apontam para a criação de uma estética da miséria e destruição, não há como negar a existência de um intenso teor de subjetividade nas fotografias que percorreram o planeta e que lhe conferiram um caráter oposto ao que foi apontado por muitos críticos: uma visão humanista, transformadora e essencialmente crítica aos efeitos da era pós-revoluções industriais1. Essa pesquisa não tem a intenção de trazer à tona qualquer tipo de juízo de valor à obra do fotógrafo no que se refere a essas críticas. Ela se aprofunda em outro tipo de abordagem, essencial para esse estudo, que procura tornar visível uma possível relação das fotografias com o Romantismo. Essa percepção se dá, num primeiro momento, a partir de seus valores formais, quando neles se percebe uma visão romantizada nas figuras, nos enquadramentos, nos contrastes e até na ausência das cores. Numa análise mais minuciosa, nota-se que, do ponto de vista temático, Salgado cria imagens que escancaram as consequências nefastas de um mundo industrial e capitalista em constante transformação; mas o faz imbuído de sentimento e comentários visuais que não poupam reflexões de todas as ordens. Não apenas de dentro para fora, em direção ao espectador, mas também de fora para dentro, como se o fotógrafo quisesse refletir sobre si mesmo. Uma atitude tipicamente romântica, pois à medida que o faz, se refugia no próprio mundo. Entende-se atitude 1 A título de delimitação é importante ressaltar que a sociedade industrial surgiu a partir de 1750 e estendeu-se até 1950, momento em que se formou a sociedade pós-industrial, agora baseada na produção de novas tecnologias voltadas para a comunicação e informação. Segundo LUCCI (2008, p. 1), "a sociedade pós-industrial provém de um conjunto de situações provocadas pelo advento da indústria, tais como aumento da vida média da população, o desenvolvimento tecnológico, a difusão da escolarização e difusão da mídia". 11 romântica "como uma mudança na consideração das qualidades objetivas dos conceitos de realidade, obra, ciência e arte em direção a um subjetivismo, relativismo ou pluralismo em torno desses conceitos" (FLORES, 2011, p. 51). Uma das constatações que refletem esse tipo de comportamento surgiu por mero acaso, enquanto se observava uma fotografia realizada em 1986 por Sebastião Salgado, na região do garimpo em Serra Pelada (Pará). A princípio, a imagem chamou a atenção por conter uma certa relação estrutural com a pintura O 3 de maio de 1808 em Madri, produzida em 1814 por Francisco José de Goya (1746-1828), artista que se colocou na fronteira com o início do Romantismo. Apesar de separadas pelo tempo, pelas linguagens e pelos temas, em ambas o percurso narrativo trazia valores de composição bastante semelhantes entre si, além de um universo marcado por reflexões pessoais sobre as relações de poder e sobre a natureza humana. Surgiu então a questão: seria possível estabelecer uma relação de proximidade entre esses dois trabalhos já que Goya e Salgado, apesar de expressarem um certo tom de denúncia e realismo nas cenas, construíram duas obras com uma narrativa visual extremamente poética, harmônica e sensível? Essa questão fez com que o olhar se voltasse para outras fotografias de Salgado em busca das mesmas convergências, principalmente nas imagens produzidas entre 1984 e 2000, entre as quais se encontrava a fotografia de Serra Pelada citada anteriormente, e que resultaram em seu livro Trabalhadores, publicado em 1996. O insight também conduziu o estudo para uma outra tarefa: a de encontrar outras pinturas românticas que pudessem conter elementos para essa construção de relações de diálogo. É importante ressaltar que os dois processos ocorreram quase simultaneamente. Se, por um lado, a intuição continuou atuando nesse percurso, por outro, um certo senso de objetividade achou por bem traçar um eixo de busca que conduziu o foco para as duas categorias de representação da era romântica que mais se aproximavam da estética de Salgado: o retrato e a paisagem. De imediato, essa busca conduziu à famosa série de retratos de monomaníacos pintados por Théodore Géricault. Uma das mulheres que o pintor levou para a tela poderia se relacionar com um retrato de uma mulher frágil e doente feito em Mali por Salgado. Da mesma forma, as pinturas de paisagens de John Constable, William Turner e Caspar David Friedrich poderiam ter alguma conexão com as paisagens feitas pelo fotógrafo. A partir desse momento, o impulso intuitivo do olhar voltou a atuar sobre as diversas telas e fotografias pré- selecionadas dentro desse contexto, na tentativa de encontrar possíveis aproximações formais 12 entre elas. Foi através desse critério, que se chegou à seleção definitiva das outras imagens que fariam parte desse estudo. A próxima etapa seria reconhecer que tanto as pinturas quanto as fotografias se constituem de imagens e, como toda imagem, trazem valores intrínsecos, passíveis de significação e de interpretação. E para uma interpretação que se propusesse também traçar possíveis relações de intertextualidade2 entre obras de linguagens e tempos distintos, seria necessário eleger uma fundamentação teórica e uma metodologia de análise apropriada para esse fim. É evidente que, quanto mais adequadas elas fossem ao campo de estudo que se pretendia, mais precisas seriam as relações construídas. Nesse caso, uma mera análise estrutural e temática das fotografias e pinturas poderia gerar um sério ruído: o de tornar o estudo tão intuitivo que acabaria por conduzir a um discurso superficial e incompleto. Da mesma forma, um estudo extenso, complexo e apenas teórico, que desconsiderasse as possibilidades intuitivas de análise, poderia criar um certo afastamento de alguns elementos iniciais de percepção que foram essenciais nesse processo. Por isso, a busca de um aparato teórico e metodológico deveria contemplar essa intuição inicial e também uma reflexão sobre as forças que imantam cada fotografia e cada pintura às suas respectivas linguagens e tempos, averiguando, posteriormente, se entre elas existiria um outro tipo de magnetismo que poderia conectá-las. Nesse caso, um magnetismo que estaria além dos aspectos cronológicos e historicistas, mas, na essência romântica presente nos valores temáticos e formais de cada obra. De posse desse ferramental, o objetivo principal poderia ser mais facilmente alcançado, comprovando a existência dessa conexão romântica entre as fotografias e pinturas. E num segundo momento, outro objetivo também poderia ser contemplado, ou seja, aquele que agregasse ao trabalho de Sebastião Salgado desse período uma base teórica que fundamentasse ainda mais seu discurso expressivo, identificando suas forças motrizes, seus impulsos e sua visão de mundo. Assim, as bases dessa análise foram construídas através de uma metodologia trazida por Erwin Panofsky (1892-1968), cujos princípios se moldaram perfeitamente a essa busca, facilitando a compreensão de alguns percursos formais e temáticos contidos nos trabalhos a serem analisados. 2 Entendemos intertextualidade "como um conjunto de capacidades, pressupostas no leitor e evocadas mais ou menos explicitamente num texto, que concernem algumas histórias condensadas, já produzidas numa cultura por algum autor (ou melhor ainda, por algum texto) anterior. Assim o << intertexto >> de uma obra é o retículo de referências a textos ou a grupos de textos anteriores construído com o duplo objectivo de proporcionar a compreensão da obra individual e de produzir efeitos estéticos parcelares ou globais"(CALABRESE, 2015, p. 34-35). 13 Panofsky criou um sistema metodológico para a interpretação de obras de arte que parte de uma observação sistemática dividida, grosso modo, em três níveis. O pré- iconográfico, o iconográfico e o iconológico. O primeiro deles busca um aprofundamento nas formas puras e seus respectivos valores expressivos. O segundo, o iconográfico, pressupõe reconhecer nessas formas os conceitos trazidos pelas imagens, pelas estórias e pelas alegorias. O terceiro nível procura os significados intrínsecos ou de conteúdo, revelando os valores simbólicos que estão além das duas percepções iniciais. Assim, pode-se deduzir que esse nível, denominado por Panofsky de interpretação iconológica, é de crucial importância para que seja concluído o ato de "decodificação" da obra. Panofsky fala também de um impulso intuitivo que normalmente acompanha o estudioso na construção dessa interpretação e que estaria sujeito às diversas interferências psicológicas e arbitrárias. Portanto, para cada nível de análise, são aplicadas eventuais correções fundamentadas na história do estilo, dos tipos e dos sintomas culturais ou como ele afirma, "por uma compreensão dos processos históricos cuja soma total pode denominar-se tradição" (PANOFSKY, 2009, p. 64). É importante ressaltar que, para aplicação dessa metodologia, um número restrito de fotografias e pinturas poderia limitar o alcance de percepção das relações de intertextualidade e da possível convergência romântica entre elas. Por outro lado, uma quantidade excessiva de trabalhos poderia tornar o projeto inviável do ponto de vista analítico. Por isso, o estudo foi delimitado pela seleção de cinco pinturas e de cinco fotografias, aplicando sobre elas a análise pré-iconográfica, iconográfica e iconológica separadamente, para que, em seguida, o estudo pudesse aprofundar-se na pesquisa das possíveis relações de intertextualidade. Ao "desconstruir" cada uma das imagens sob a ótica da iconografia e iconologia de Panofsky, seus elementos compositivos tornariam-se mais visíveis, facilitando, assim, o processo de "reconstrução" com base nos valores comuns entre as fotografias e as pinturas. E ao serem identificadas essas equivalências e eventuais semelhanças, as respostas para o tema de estudo também ficariam mais evidentes. O primeiro capítulo traz uma abordagem sucinta sobre a arte do Romantismo e, mais especificamente, a Pintura, investigando nele suas forças e procurando destacar os artistas que fazem parte desse estudo. Além disso, o capítulo reforça também a Revolução Industrial como força geradora de expressões artísticas românticas. No segundo capítulo, o enfoque é dado à Fotografia e às suas relações com a Pintura enquanto ferramenta de representação do real. Vale ressaltar que, mais do que se aprofundar no aspecto histórico da Fotografia, esse capítulo traça os pontos de convergência e divergência entre as duas formas de expressão e 14 como, num certo momento, o gesto fotográfico ganhou autonomia para se inserir no polêmico território da arte. O terceiro capítulo tem como foco o percurso e as obras de Sebastião Salgado; já o quarto capítulo procura construir uma breve mas esclarecedora reflexão sobre o universo das imagens e os processos de significação e interpretação, com foco na metodologia de Panofksy para que, no quinto capítulo, se possa mergulhar nessa mesma metodologia aplicada às obras. Espera-se, com isso, que o estudo seja concluído da forma mais completa, coerente e objetiva possível em todas as etapas, identificando ao final as possíveis convergências entre as fotografias e as pinturas, e claro, a própria atitude romântica de Sebastião Salgado na contemporaneidade. 15 1 A ARTE ROMÂNTICA3 Definir o Romantismo não é uma tarefa fácil. Muitos estudiosos debruçaram-se sobre o tema no intuito de compreender seus mecanismos, suas raízes, suas forças, suas fronteiras. Uma análise mais superficial pode conduzir a uma mera classificação estilística que percorreu a História da Arte das últimas décadas do século XVIII até meados do século XIX. Uma outra, mais cuidadosa, revela que ele foi um fenômeno de cárater histórico com implicações mais amplas que extrapolaram o senso da arte e avançaram para aspectos socioculturais, sob intensa influência dos ideais iluministas. Adotou-se aqui a visão de Guinsburg (2013, p. 14), que uniu as duas possibilidades em sua definição sobre o tema: [...] O Romantismo designa também uma emergência histórica, um evento socio- cultural. Ele não é apenas uma configuração estilística [...]. Mas é também uma escola historicamente definida, que surgiu num dado momento, em condições concretas e com respostas características à situação que se lhe apresentou. [...] Seja como for, o Romantismo é um fato histórico e, mais do que isso, é o fato histórico que assinala, na história da consciência humana, a relevância da consciência histórica. É, pois, uma forma de pensar que pensou e se pensou historicamente. Os pilares do Romantismo ergueram-se num momento em que os processos históricos já não eram mais conduzidos por visões teocêntricas, nem por princípios absolutistas, mas por forças oriundas da coletividade que exigiam um novo olhar sobre a sociedade. Imbuídos de um extremo nacionalismo, os povos europeus reconstruíram seus ideais, agora com forças propulsoras em direções diversas, como a política e as ciências que, aglutinando-se às formas individuais de expressão e pensamento, foram capazes de abalar as antigas instituições. As grandes revoluções que surgiram nesse período nas nações europeias, e que se alastraram por algumas de suas colônias em outros continentes, criaram um momento ímpar na história do ocidente, reverberando de forma intensa no âmbito das artes e da cultura. Foi algo que se revelou muito mais do que um simples movimento, trazendo uma nova maneira de posicionar-se e de expressar-se diante das mudanças. Uma atitude que procurou reavaliar o passado e projetar o futuro diante de um presente repleto de instabilidade, rupturas e transformações; uma atitude que foi capaz de transitar no tempo e tornar-se perene no decorrer dos anos que se seguiram, deixando marcas sensíveis e muito perceptíveis nas poéticas posteriores. 3 O capítulo 1 e o subcapítulo 1.1 foram escritos e publicados na introdução de um artigo para a revista Art&Sensorium, v. 4, ed. 2. 2017. eISNN 2358-0437. Qualis B1(Artes) com o título: "Théodore Géricault e Sebastião Salgado: conectados pelo olhar do Romantismo". Posteriormente à publicação, alguns ajustes e atualizações foram feitos no decorrer do texto para sua devida adequação a esta dissertação. Disponível em: http://periodicos.unespar.edu.br/index.php/sensorium/article/view/1811. Acesso em: 3 jan. 2017. 16 As fronteiras dos movimentos de arte são traçadas de forma cronológica para que se compreenda melhor seus percursos e suas influências. No entanto, uma visão menos cartesiana demonstra que todos esses caminhos se constroem de forma pendular, ou seja, nenhuma forma de expressão artística que se configura num determinado momento deixa de sofrer um certo recuo para carregar consigo as forças que estimularam processos poéticos anteriores. Essa relação dialética é a prova de que os movimentos artísticos nunca são isolados e se agrupam em forças equivalentes, mesmo que separadas por tempos distintos. Com o Romantismo não foi diferente. O movimento resgatou na arqueologia, por exemplo, as mesmas forças que, um dia, regeram a arte e, em especial, a arquitetura da Idade Média, como se o Gótico e o Românico estivessem ressurgindo dentro das novas condições históricas. Além disso, ao tentar negar o racionalismo imposto pelas academias neoclássicas e buscar maneiras mais sensíveis de se expressar, os arquitetos românticos encontraram no passado gótico e românico um refúgio tão eficaz quanto aquele encontrado pelos artistas no resgate da natureza, da utopia, do inconsciente e do imaginário. [...] Desde o gótico, a sensibilidade humana não recebera um impulso tão forte, e o direito do artista de obedecer ao chamado de seus sentimentos e disposição pessoal, provavelmente jamais fora enfatizado de maneira mais absoluta. (HAUSER, 1998, p. 664). Mas, dificilmente, essa nova formulação teria as mesmas bases desse passado. Na verdade, o momento em que o Romantismo começou a abrir sua frente de ação era de intensa reflexão sobre a arte e seus processos, não mais calcados no estudo da técnica para o alcance do real, ou na busca por temas religiosos doutrinários. Era o momento de dedicação ao próprio fazer artístico, à experiência única que só a arte poderia entregar sem qualquer outro fim. Assim, a partir da metade do século XVIII, a arte ganhou sua autonomia. No entanto, é importante ressaltar que, se o passado ganhava relevância e um novo futuro se deslumbrava a partir da autonomia das formas, o presente – repleto de racionalismo e aridez – não era muito bem-vindo, o que levava os artistas a se refugiarem em universos repletos de subjetividade. Como reforça Guinsburg (2013, p. 16): [...] o romantismo em si se apresenta envolto caracteristicamente em nebulosas mito poéticas ou em buscas que estão à frente ou atrás, dentro ou fora, mas sempre "além" do atual, jamais precisamente aqui e agora, distinguindo-se inclusive pela tensão e dinamismo de seu "estar aí", dionisíaco por natureza, em devir constante, sem nunca ser definitivamente. Ao mesmo tempo, porém, o movimento romântico efetua uma descida na escala metafísica, aproximando-se, ainda por cima, idealisticamente, do mundo das "realidades" no espaço e no tempo, mas não apenas das secas realidades racionais do universo físico-matemático, como outrossim, as da multiplicidade qualitativa, tópica, fenomenal dos tempos característicos e dos espaços ambientais - não mais sagrados - revestidos de cor local. 17 Um outro percurso pendular do Romantismo, agora em direção ao Barroco, encontrou caminhos que precisavam ser revistos por força da antítese. A reação já tinha sido iniciada num período anterior, quando a arte neoclássica procurou estabelecer novas bases temáticas e formais. Mas foi com o Romantismo que se efetuou a verdadeira mudança. Ao contrário da arte barroca, que tinha por objetivo perpetuar a visão de mundo dominante da Igreja e das monarquias absolutistas, através de uma linguagem de persuasão, a arte romântica buscou se adequar a um mundo novo que trazia em si uma dinâmica inédita até então. Era um mundo agora regido por ideais que propunham uma intensa transformação social como reação aos processos industriais emergentes e por amplas críticas às classes dominantes e que gerava também um novo tipo de artista. Pintores, escultores, escritores, músicos e arquitetos, inconformados com a realidade, e numa atitude intimista, buscaram formas também inéditas de expressar seus sentimentos reagindo a todas as mudanças que se processavam no período. O foco já não era mais a cópia, mas a reflexão interna contida no processo criativo. A natureza, por exemplo, passou a ser um tema de resgate do ser humano, o território onde estavam as questões existenciais e não mais um cenário em que a técnica apurada permitia copiar com fidelidade. É nela que o ser humano se espelhava e se via fragilizado por suas forças, reconhecendo sua pequenez e insignificância. Em suma, esse jogo de forças em ação na arte era a parte visível de um processo histórico repleto de mudanças e reflexões. Mudanças que já puderam ser sentidas a partir de 1750, quando novas relações sociais e econômicas foram estabelecidas a partir de outro fenômeno de intensa importância na poética romântica: a Revolução Industrial. 1.1 A Revolução Industrial como força geradora da arte romântica Falbel (2013, p. 24), afirma que "o período do Romantismo é fruto de dois grandes acontecimentos na história da humanidade, ou seja, a Revolução Francesa e suas derivações, e a Revolução Industrial". A Revolução Francesa fincou a bandeira da democracia na Europa e nas Américas e a Revolução Industrial deu um novo impulso à tecnologia e à organização da economia. Mas ambas reverberaram intensamente nas relações sociais e políticas do século XVIII e a arte não ficou imune a todas essas transformações. O período compreendido entre 1750 e 1850 agrupou dois importantes movimentos artísticos – o Neoclassicismo e o Romantismo – que sofreram consequências imediatas da nova realidade histórica. Se, por um lado, o Neoclassicismo aproveitou-se de um pensamento 18 revolucionário e buscou uma maneira de espelhar essas transformações nos valores estéticos do passado greco-romano, por outro, o Romantismo surgiu num momento em que se vivia também uma forte reação a um sistema que propunha novas ferramentas de trabalho que substituíram a forma artesanal de até então. O comércio das nações europeias com suas colônias tinha aberto um caminho favorável ao fortalecimento das economias locais e aos avanços tecnológicos nos sistemas de produção. A industrialização europeia foi inevitável, já que as necessidades do mercado também se ampliavam nesse período. Os artesãos, agentes de produção de até então, já não conseguiam atender a demanda e tornaram-se assalariados dos comerciantes e empreendedores que estavam à frente do processo industrial. Com isso, novas relações de trabalho foram estabelecidas; se por um lado, o empreendedorismo de alguns favoreceu o surgimento de inúmeras invenções ligadas às técnicas produtivas, por outro, a mão de obra teve que se tornar cada vez mais especializada para atender às novas exigências. Falbel (2013, p. 26), afirma que "podemos encarar a Revolução Industrial como ligada à divisão de trabalho, sendo em parte causa e em parte efeito dessa divisão, que significava uma ampliação do princípio de especialização". Assim, o panorama da vida social europeia modificou-se, especialmente na Inglaterra e na França, países que lideravam grande parte dos avanços, favorecendo a minoria detentora dos meios de produção e criando condições bastante precárias de trabalho para a grande massa trabalhadora, como a falta de regulamentação da jornada de trabalho, os salários ínfimos, as instalações rudimentares, a falta de segurança, entre tantos outros. Em pouco tempo, os reflexos foram sentidos, acarretando descontentamento e indignação nos trabalhadores e uma profunda inquietação no meio intelectual. Os ideais de igualdade e democracia entraram em conflito com a noção de progresso trazido pela Revolução Industrial, exteriorizando-se em diversas manifestações, tanto de ordem prática, como a criação de organizações defensoras dos direitos dos trabalhadores, quanto de ordem filosófica, que procuravam teorizar e questionar os efeitos nocivos desse novo momento. O Romantismo desenvolveu-se em meio a esse processo. Mas aí surge também uma questão sobre a arte romântica desse período: será que as reações tornaram-se suficientemente explícitas nas obras, a ponto de provocar uma reação transformadora? Quando se observa o Neoclassicismo, percebe-se claramente o esforço para desvincular-se dos excessos do Barroco e do Rococó, através dos novos valores formais, como a reordenação dos elementos de composição, a retomada da linearidade, a busca da simplicidade, o novo uso da cor e, principalmente, o resgate dos temas clássicos como modelo da nova forma de pensar. Mesmo que o Romantismo tenha dado continuidade a esse processo 19 de reformulação e até alcançado uma certa autonomia formal em relação ao passado, seu impulso de reação aos efeitos da era industrial ficou à deriva e não refletiu toda a vertigem causada pelos avanços tecnológicos. Ao contrário, tornou-se um instrumento que expôs um intenso escapismo da realidade. Portanto, surge aí um ponto de extrema importância para esse estudo e onde se encontra o grande paradoxo: a atitude romântica, que pregava uma luta radical contra as regras tradicionais de autoridade, não alcançou na arte seu objetivo primordial, pois os artistas acabaram optando por manifestações de extremo individualismo, refugiando-se melancolicamente nas próprias emoções. Esse é o momento em que "prepondera o elemento soturno, algo de selvagem e também de patológico e uma inclinação profunda para o mórbido" (GUINSBURG, 2013, p. 268). É importante ressaltar que o conceito de melancolia aqui exposto não se associa apenas aos sentimentos de desolação, mas também às sensações nostálgicas e prazeirosas sobre o passado. Como afirma Argan (2010, p. 347): A melancolia é, ela também, um movimento de atração e distanciamento: um desejo insatisfeito de união entre o indivíduo e o mundo. Não mais a justaposição clássica de sujeito e objeto, o equilíbrio ou o paralelismo entre si e o mundo; mas uma ligação sensível, uma alternância de exaltação, depressão, efusão do mundo e clausura em si mesmos. Em suma, o Romantismo, muito mais do que um movimento de contestação às mudanças externas, configurou-se como um movimento no qual forças de inquietação interna entraram em ação, tornando os artistas indivíduos sem espaço dentro da sociedade e profundamente incompreendidos. Assim, impregnados por uma certa melancolia, eles desconectaram-se das questões sociais e essa desconexão, por sua vez, abriu espaço para a conexão com o lado oculto de si mesmo, ocultando também nas obras a face mobilizadora dessa inquietação; algo que só foi resgatado mais à frente com a chegada do Realismo. 1.2 Os pintores românticos e a busca interna revelada nas telas A força do Romantismo como atitude subjetiva foi tão intensa que não só é possível identificar alguns indícios do espírito romântico em obras anteriores à chegada do movimento, como se percebe o quanto ele reverberou em épocas posteriores. Como nos diz Zanini (2013, p. 186): Tomado mais amplamente, ou seja, em termos de uma categoria estética de sentido absoluto como pensava Hegel - o espírito romântico pode ser localizado em momentos diferentes da história, (seja diluidamente em tempos contemporâneos ou ainda pelo exemplo maior da Idade Média). 20 Na verdade, Zanini (2013, p. 195) também argumenta, por conta disso, que muitos autores ampliam a abrangência do movimento romântico para aquilo que é chamado de "pré" e "pós" Romantismo, incluindo nele pintores que vão desde o período do Rococó, como Jean- Honoré Fragonard (1732-1806) ao realismo de Gustave Courbet (1819-1877) e, muitas vezes, até ao próprio Impressionismo, onde se encontram algumas "peculiaridades do temperamento romântico" na pintura das paisagens. O que caracteriza essa vertente é a presença cada vez mais constante de uma intensa experiência individual e subjetiva diante da tela. Assim, a pintura que surgiu da metade do século XVIII até boa parte do século XIX é o mais puro reflexo desse processo. Identifica-se aquilo que os pintores gostariam de ver e onde eles gostariam de estar, mas nunca a força geradora da mudança. Para eles, o estado ideal das coisas não estava na realidade social, mas nas questões individuais e interiores. Pinturas que traziam temas como natureza, paisagens marinhas, retratos idealizados ou cenas épicas eram apenas a face visível de uma insatisfação interna contida que precisava ser extravasada e compartilhada com o espectador. Apesar de externarem uma certa idealização de algo que pudesse existir no plano real, os pintores românticos recorriam à imaginação para transmitir um sentimento interior de contemplação muitas vezes acompanhado de descontentamento e angústia. Logo, o que estava sendo exposto não era mais para ser visto, e sim, para ser sentido. Era a emoção sobrepondo-se e, muitas vezes, até ocultando a razão. Um ótimo exemplo desse tipo de reação encontra-se na figura de Eugène Delacroix (1798-1863), um dos grandes expoentes da pintura romântica francesa. Utilizando-se dos temas mais recentes da história em suas telas, o pintor procurou criar metáforas com a angústia física e psicológica da condição humana. Apesar de se colocar como um pintor antiburguês, era um assíduo frequentador dos salões e das reuniões da alta burguesia francesa. O que, segundo estudiosos, tornava sua postura um pouco contraditória. Mesmo assim, tinha a liberdade como lema e acreditava ser ela o grande fator para a independência das nações. O registro mais emblemático desse pensamento encontra-se na pintura A Liberdade guiando o povo (1830), onde a figura de uma mulher com a bandeira da França – uma alegoria do seu país – reúne plebeus e burgueses em torno da libertação. Com a obra A Morte de Sardanapalo (1827), Delacroix resgata um outro tema histórico sobre um lendário tirano assírio que, cercado pelo inimigo em seu palácio, ordena que seja acesa uma pira para sacrificar todo o seu povo, evitando assim a vergonha da derrota. Ao final, o rei também se sacrifica com todas as suas mulheres e tesouros dentro de seu 21 palácio. A obra, além trazer uma temática repleta de erotismo, sadismo e violência, rompeu com alguns paradigmas formais em prol de uma narrativa mais dramática e intimista. Nas duas obras, o uso de cores vibrantes e complementares, de pinceladas soltas e extensas, de linhas tensas e de formas volumosas nos corpos contorcidos dos inúmeros personagens de suas telas são exemplos de que o pintor não poupou esforços para integrar sentimento e vivacidade aos campos visuais. Não há um detalhe que não possa ser percebido, não há um ponto sequer das obras que não emita uma nota intensa de vigor dramático. No entanto, na unidade que todos esses elementos agrupados proporcionam a quem observa a pintura, evoca-se uma certa angústia mortal e sinistra. A mesma angústia que acompanhava o pintor na própria vida. "Delacroix é um indivíduo solitário e isolado, num sentido mais rigoroso do que com os românticos em geral" (HAUSER, 1998, p. 722). Ainda no cenário francês, Théodore Géricault (1791-1824) impôs seu estilo romântico ao retratar cavalos, soldados, retratos de "loucos" e inúmeros outros temas que colocavam imagens sinistras e sombrias diante do espectador, através de cores fortes e explosivas, com uma informalidade típica das pinceladas barrocas e que anteciparam, e muito, a Arte Moderna. "O documento essencial desse artista, a Balsa da Medusa - crônica de um naufrágio - onde ao sofrimento e à morte se mescla a esperança - exibida pela primeira vez no salão ruptura de 1819, é um marco no desenrolar da pintura romântica." (ZANINI, 2013, p. 199). O pintor inglês William Turner (1775-1851) também produzia suas obras com o mesmo vigor dramático e sensorial de Delacroix, abrindo-se tanto quanto ele para as cores, para os contornos indefinidos e para os efeitos de luminosidade, visando obter atmosferas dinâmicas, incorpóreas e inusitadas em suas pinturas. Numa época de intensa prática da pintura betuminosa, (Turner) aclara os tons, trabalhados por empastes, impondo os verdes úmidos similares aos da natureza - uma temeridade face às proibitivas convenções acadêmicas. (ZANINI, 2013, p. 201). E por mais contido que parecesse o trabalho do também inglês John Constable (1776- 1837), percebe-se que, por trás de suas paisagens bucólicas e calmas, o pintor já trazia componentes também visionários, ao registrar a natureza com elementos mais fugazes e não tão comprometidos com a cópia fiel da realidade. A mesma reintegração do homem com a natureza se repetiu na pintura romântica alemã, na figura de Caspar David Friedrich (1774-1840), que procurou uma dimensão espiritual em seu contato com as formas naturais representadas na tela. Suas obras não só evocaram a Criação e o Criador, através de poderosas paisagens, como se tornaram 22 verdadeiros vestígios de sua reflexão existencialista sobre o homem diante da natureza. Na maior parte das vezes, as figuras que apareciam em suas pinturas observavam os fenômenos naturais de forma contemplativa, submissas a todo esplendor que elas geravam na alma. Tempo e espaço mesclavam-se às sutis reflexões psicológicas sobre a existência humana. Sobre Friedrich, Argan (1992, p. 169) nos lembra de que: [...] mais do que a angústia e a fúria, ele expressa a elevada e sublime melancolia, a solidão, a angústia existencial do homem diante de uma natureza mais misteriosa e simbólica do que adversa. A relação com a natureza é quase sempre de atração (como, aliás, do contemporâneo Blechen), porém isso não exclui a separação e incomunicabilidade, o isolamento nostálgico do homem "civilizado" frente à natureza. Não se poderia deixar à margem desse cenário da pintura romântica europeia a personalidade intensa do pintor espanhol Francisco José de Goya (1746-1828). Foi em meio a um momento ainda reacionário na arte, no qual se procurava resgatar os temas clássicos e históricos, que o artista levou para suas telas alguns fatos relevantes da história da Espanha, questionando de forma extremamente passional as relações de poder, a natureza humana e toda uma estrutura de convenções plásticas impostas pelo Neoclassicismo. Para muitos estudiosos, foi Goya quem levantou as primeiras bases do Romantismo na Europa. Pontuando esse fato, Argan (1992, p. 41) afirma que, "para ser do seu tempo, o artista deve ser contra seu próprio tempo; por isso, Goya, que numa Europa já totalmente neoclássica parece uma monstruosa exceção, é a verdadeira raiz do Romantismo histórico". Conflitos existenciais, passionalidade, intimismo, subjetividade, sensibilidade, irracionalidade, nostalgia e muitos outros sentimentos afloraram nesse período através da arte romântica. E a pintura foi a grande ponta desse iceberg, pois foi ela quem melhor transmitiu essas sensações através das imagens. Como nos diz Zanini (2013, p. 207): Entre as linguagens plásticas, é, aliás, a pintura a que melhor traduz o estado de espírito romântico em suas múltiplas contigências subjetivas. Apegadas à vida corrente, mas invocando tanto a história como o infinito, é uma arte ancorada na imaginação, uma virtude tão necessária ao artista quanto ao destinatário da obra: a rainha das atitudes, como a considerava Delacroix. Do ponto de vista formal, a pintura romântica herdou do Barroco e do Neoclássico alguns valores importantes, mas que agora se formatavam com outros fins. O movimento das formas e o destaque aos gestos dos personagens, a composição construída pela força das diagonais, a luminosidade intensificada pelos contrastes entre claros e escuros, a grande ênfase dada à cor e às pinceladas informais e expressivas estavam a serviço de uma subjetividade não contida. Nas paisagens, por exemplo, surgiram mares agitados, montanhas 23 grandiosas, atmosferas densas e carregadas. E, quando o ser humano surgia nas telas integrado a elas, estava sempre reduzido à sua insignificância diante do poder da natureza. Assim, imersos nessa subjetividade e numa aparente passividade diante da realidade, os pintores românticos, como agentes de novas experiências diante da arte, entregaram-se à imaginação e à busca pela originalidade, imprimindo uma marca tão profunda e tão definitiva que se tornou praticamente impossível não percebê-la na contemporaneidade. Como aponta Hauser (1998, p. 664): [...] Na verdade, não existe produto da arte moderna, nenhum impulso emocional, nenhuma impressão ou estado de espírito do homem moderno, que não deva sua sutileza e variedade à sensibilidade que se desenvolveu a partir do romantismo. Toda a exuberância, anarquia e violência da arte moderna, seu lirismo balbuciante, seu exibicionismo irrestrito e profuso, derivaram dele. Essa reflexão será de crucial importância na análise das fotografias de Sebastião Salgado e das possíveis relações que elas possam conter com as pinturas produzidas no Romantismo, como se o pêndulo da atitude romântica tivesse alcançado um arco de abrangência tão amplo no tempo que, ao avançar em direção ao presente, foi capaz de atuar na poética contemporânea do fotógrafo. 24 2 A FOTOGRAFIA E A ARTE Até o surgimento da Fotografia, nas primeiras décadas do século XIX, as grandes formas de expressão da arte concentravam-se na Pintura e na Escultura. Com a Escola de Barbizon, a partir de 1838, novos parâmetros de representação do real foram estabelecidos, mas foi com o Realismo do final do século XIX que se efetuou a verdadeira reação ao movimento romântico, trazendo, ao contrário deste último, uma abordagem mais voltada aos temas sociais, à razão e à ciência. Ou seja, a grande transição que se manifestava na arte desse período tinha suas bases na reações contra os excessos das idealizações românticas, em busca de um olhar mais objetivo e preciso da realidade imposta pelos efeitos do avanço industrial. Mesmo sabendo que o conceito desse realismo não estava diretamente ligado às habilidades técnicas de execução de uma imagem real sobre um determinado suporte, é interessante observar que a Fotografia surgiu num momento em que a objetividade ganhava força numa das linguagens de expressão artística mais importantes da época, a Pintura. Partindo do pressuposto de que o momento favorecia um olhar menos romântico e menos idealizado, a própria Fotografia, por ser uma ferramenta técnica, encontrava nesse território um espaço possível de atuação. Enquanto percebida como dispositivo de registro fiel e preciso da realidade, ela conseguiu muitos adeptos; mas bastaram alguns experimentos voltados ao seu potencial poético e subjetivo para que surgissem forças de resistência que se recusaram a aceitar uma máquina agindo no território da arte. Era o pêndulo, mais uma vez, recuando para o Romantismo, buscando nele o refúgio para novos questionamentos. O percurso que a Fotografia fez no sentido de também ser aceita como instrumento de experimentação artística foi bastante lento. E isso não se deve apenas às forças de resistência atuantes na época, mas ao próprio movimento de aproximação dos fotógrafos com a Pintura; razão pela qual este capítulo procura destacar os principais pontos de convergência e divergência entre as duas linguagens, que permitiram tanto à Fotografia quanto à Pintura encontrarem, e até compartilharem, seus respectivos espaços nos movimentos artísticos posteriores. 2.1 A Fotografia e as conexões com a Pintura A busca pelo registro fiel da realidade sobre um determinado suporte marcou a História da Arte por muito tempo. O conjunto de avanços tecnológicos e científicos alcançados no século XIX, quando a humanidade preparava-se para viver a segunda 25 revolução industrial, foi fundamental para que novas experiências se manifestassem na representação da realidade. Alguns desses experimentos feitos por Joseph Nicéphore Niépce, Louis Jacques Mandé Daguerre, Hyppolyte Bayard, William Talbot, Hercule Florence, John Herschel e tantos outros, propiciaram o surgimento de uma técnica que iria modificar para sempre esse território: a Fotografia. Quando, em 1826, Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) conseguiu fixar uma imagem real sobre uma superfície de estanho com betume branco, usando um processo químico ainda rudimentar, não poderia supor que esse fato desencaderia, em 1839 – seis anos após a sua morte – o marco oficial do nascimento da Fotografia, estabelecido pela Academia de Artes e Ciências de Paris, e que teve como figura-chave, o francês Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851), seu sucessor nesse experimento. Por mais que Barthes (1984, p. 121) tenha afirmado que a Fotografia só foi inventada "a partir do dia em que uma circunstância científica (a descoberta da sensibilidade dos sais de prata à luz) permitiu captar e imprimir diretamente os raios luminosos emitidos por um objeto diversamente iluminado", isso só se tornou possível graças uma série de procedimentos anteriores que tinham como objetivo captar com mais fidelidade a realidade. Na Pintura, por exemplo, a adoção da perspectiva abriu caminho para que os artistas do Renascimento incorporassem em suas telas um movimento inclusivo do olhar do espectador para dentro das obras, através do senso de tridimensionalidade no plano bidimensional. No decorrer dos processos de produção artística, aprimoraram-se outros recursos que ampliaram ainda mais as sensações de realidade sobre o suporte. O recurso da câmara escura, por exemplo, criado com base nas leis da física, e que foi precursor da câmera fotográfica, permitiu transportar para as telas as imagens que estavam no seu exterior com bastante precisão. O processo era relativamente simples. Em uma pequena caixa escura, completamente lacrada, a luz entrava por um pequeno orifício de uma de suas paredes, projetando a imagem que estava do lado de fora, de forma invertida, na parede interna oposta. Mais tarde, uma lente convergente foi acoplada a esse orifício, devolvendo à imagem a sua disposição original. Através desse dispositivo, bastante usado até meados do século XIX, os artistas reproduziam desenhos e pinturas, visando alcançar o máximo de fidelidade às figuras que estavam procurando representar sobre os suportes. No entanto, por mais fiel que essa imagem fosse ao objeto representado, ela ainda continha uma certa idealização trazida pelo olhar do seu autor. Como afirma Dubois (2012, p. 32): 26 [...] Quer o pintor queira, quer não, a pintura transita inevitavelmente por meio de uma individualidade. Por isso, por mais "objetivo" ou "realista" que se pretenda, o sujeito pintor faz a imagem passar por uma visão, uma interpretação, uma maneira, uma estruturação, em suma, por uma presença humana que sempre marcará o quadro. É justamente sob o aspecto da subjetividade da arte, e, mais especificamente, da Pintura, e a suposta objetividade da Fotografia que se configurou o grande impasse da época entre as duas formas de expressão. O principal foco do início da linguagem fotográfica eram os retratos e objetos do cotidiano, fato que não apenas tonificou o poder da nova técnica em registrar de forma legítima e fiel a realidade, como a tornou refém do próprio processo, impedindo um avanço mais imediato no percurso da experimentação e de uma linguagem poética. Por outro lado, Barthes (1984, p. 129) nos diz que "Toda fotografia é um certificado de presença. Esse certificado é o gene novo que sua invenção introduziu na família das imagens". Assim, mesmo que essa nova técnica de captação de uma imagem fosse, a princípio, percebida como um "certificado de presença" objetivo, em poucas décadas, esse gene a que Barthes se refere foi o grande responsável para que a Fotografia avançasse como instrumento de uma poética pessoal. Ele próprio confirma esse ponto de vista ao dizer que "Certamente, mais que outra arte, a Fotografia coloca uma presença imediata no mundo – uma co-presença; mas essa presença não é apenas de ordem política ('participar dos acontecimentos contemporâneos pela imagem'), ela é também de ordem metafísica" (BARTHES, 1984, p. 125). Assim, a percepção de que a Fotografia poderia conter aspectos que iam além da captação objetiva de uma imagem abriu espaço para novas experimentações do olhar. Por conta disso, mesmo que a nova técnica tivesse logo de início conquistado inúmeros adeptos e simpatizantes em sua objetividade e precisão, em pouco tempo, a Fotografia teve que encarar intensas forças de resistência ao seu potencial de subjetividade. Em primeiro lugar, destaca-se a atitude reacionária da pequena burguesia diante da arte, que ainda via nos pintores criaturas inspiradas e divinas, recusando-se a aceitar que uma máquina pudesse ocupar o lugar dessa inspiração. Dauthendey (apud BENJAMIN, 2017, p. 52) escancara a visão reacionária do pasquim alemão Leipziger Anzeiger sobre a Fotografia: [...] O homem foi criado à imagem de Deus, e a imagem de Deus não pode ser fixada por nenhuma máquina humana. Só talvez o artista divino, tomado de inspiração celestial, poderá ousar, num momento de suprema graça, por uma ordem superior do seu gênio e sem ajuda de qualquer máquina, reproduzir os traços divinos dos homens. 27 Outra força de resistência estava em muitos dos pintores que, ainda contagiados pela visão trazida pelo Romantismo, enxergavam na Fotografia mais um efeito nocivo provocado pela Revolução Industrial na Arte, na individualidade e nos processos criativos. Sob esse aspecto, Dubois (2012, p. 28) lembra que: [...] Todo o século XIX, na esteira do romantismo, é trabalhado desse modo pelas reações dos artistas contra o domínio crescente da indústria técnica na arte, contra o afastamento da criação e do criador, contra a fixação no "sinistro visível" em detrimento das "realidades interiores" e das "riquezas do imaginário", e isso justamente no momento em que a perfeição imitativa aumentou e objetivou-se. Muitos teóricos tornaram-se também porta-vozes dessa resistência. Vale ressaltar aqui a emblemática posição de Charles Baudelaire (1821-1867) a respeito da Fotografia: [...] Se for permitido à fotografia substituir a arte em qualquer uma de suas funções, ela logo será totalmente suplantada e corrompida, graças à aliança natural que encontrará na tolice da multidão. É preciso então que ela retorne ao seu verdadeiro dever, que é o de ser a serva das ciências e das artes, a mais humilde das servas, como a imprensa e a estenografia, que nem criaram e nem suplantaram a literatura. Que ela enriqueça rapidamente o álbum do viajante e devolva a seus olhos a precisão que faltava a sua memória, que ela ornamente a biblioteca do naturalista, amplie os animais microscópicos, ou mesmo, que ela acrescente ensinamentos às hipóteses do astrônomo, que ela seja enfim a secretária e o guarda-notas de quem quer que precise, em sua profissão, de uma absoluta precisão material, até aí, nada melhor. Que ela salve do esquecimento as ruínas decadentes, os livros, as estampas e os manuscritos que o tempo devora, as coisas preciosas cuja forma irá desaparecer e que pedem um lugar no arquivo de nossa memória, ela terá nossa gratidão e será ovacionada. Mas se lhe for permitido usurpar o domínio do impalpável e do imaginário, de tudo aquilo que apenas tem valor porque o homem lhe acrescenta alma, então, que desgraça a nossa! (BAUDELAIRE, 1859 apud ENTLER, 2007, p. 12-13). Apesar de todos os impasses que cercavam a questão do confronto entre a Fotografia e a Pintura, no decorrer do tempo, os antagonismos foram também catalisadores de muitos efeitos positivos em ambas as linguagens. Se, por um lado, a Fotografia buscou cada vez mais seu espaço em experimentações subjetivas do olhar dentro de um contexto estético, por outro, as artes e, em especial, a pintura do início do século XX, lançaram-se em novos processos criativos que modificaram o hábito da mera representação do visível. 2.2 A Fotografia como expressão artística Logo que a subjetividade ganhou força na Fotografia, a câmera nas mãos do fotógrafo passou a ter a mesma equivalência do pincel nas mãos do pintor. E o gesto de enquadrar uma cena tornou-se tão importante quanto o gesto de compor uma pintura. De certa forma, o fotógrafo ganhou mais autonomia sobre o próprio trabalho, permitindo-se agregar à função 28 técnica e utilitária de sua atividade um olhar mais estético e autoral, algo que os pintores já haviam alcançado em épocas anteriores. Não havia mais espaço para se perceber o fotógrafo como um mero agente captador da realidade visível; ele captava aquilo que via, mas o que via agora transitava também pela lente subjetiva. Surgia assim a legitimidade de seu papel de criador, tanto quanto o do pintor. Argan (1992, p. 79) comenta: A hipótese de que a fotografia reproduz a realidade como ela é e a pintura reproduz como se a vê é insustentável: a objetiva fotográfica reproduz, pelo menos na primeira fase de seu desenvolvimento técnico, o funcionamento do olho humano. Também é insustentável que a objetiva seja um olho imparcial, e o olho humano um olho influenciado pelos sentimentos ou gostos da pessoa; o fotógrafo também manifesta suas inclinações estéticas e psicológicas na escolha dos temas, na disposição e iluminação dos objetos, nos enquadramentos, no enfoque. Portanto, o primeiro grande passo dado pelos fotógrafos foi reconhecer nos mecanismos técnicos da câmera inúmeros potenciais poéticos, para assim começar a erguer sua bandeira no território artístico. Parte da lentidão que acompanhou esse processo foi de responsabilidade da própria experimentação fotográfica. Durante uma boa parte do final do século XIX, mergulhados nas referências pictóricas da época, os fotógrafos limitaram-se a exprimir os mesmos temas abordados nas pinturas, sacrificando assim todo o potencial técnico oferecido pela Fotografia. Esse movimento, conhecido como Pictorialismo4, não trouxe para a Fotografia o impulso necessário para que ela se tornasse relevante enquanto forma de expressão por conta desse insistente vínculo com a Pintura. No entanto, ajudou a alimentar as forças de resistência a ela impostas pela pequena burguesia, pelos teóricos e pelos próprios pintores. Sobre esse tema, Argan (1992, p. 81) comenta: [...] As fotografias "artísticas" tão em voga no final do século passado (XIX) e no início do século XX, são semelhantes às estruturas perfeitas em ferro ou cimento que os arquitetos "estruturais" revestiam com um medíocre aparato ornamental para dissimular sua funcionalidade: e assim como só surgirá uma grande arquitetura estruturalista quando os arquitetos se libertarem da vergonha pelo suposto cárater não-artístico de sua técnica, só surgirá uma fotografia de alto nível estético quando os fotógrafos, deixando de se envergonhar por serem fotógrafos e não pintores, cessarem de pedir à pintura que torne a fotografia artística e buscarem a fonte do valor estético na estruturalidade intrínseca à sua própria técnica. Na transição para o século XX, surgiram novas tentativas que procuraram agregar algo próprio da Fotografia, não apenas através de alguns atributos técnicos que permitiriam uma 4 O movimento pictorialista surgiu na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos a partir da década de 1890 e durou até 1920, reunindo fotógrafos que viam na fotografia artística, um ponto de contato com os processos artísticos convencionais. Para serem reconhecidos, eles buscavam os mesmos processos de produção e acabamento das pinturas, gravuras e desenhos da época, em vez de explorarem o novo potencial poético e técnico trazido pela Fotografia. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3890/pictorialismo. Acesso em: 12 jan. 2018. 29 avaliação crítica mais precisa e pertinente à linguagem – como recursos de fotometria, de emulsão e controle dos grãos dos sais de prata – e também de atributos não técnicos – como a temática, o enquadramento, a composição e o próprio olhar poético dos fotógrafos. Outro grande dilema que a Fotografia enfrentou no final do século XIX e meados do século XX estava na fronteira que separava a ciência e a arte e, consequentemente, na definição ontológica dessa nova linguagem. Se a Fotografia estava associada a procedimentos mecanicistas e tecnológicos, como então poderia vingar uma concepção que fosse capaz de enxergá-la como uma manifestação artística? Apesar de todos esses impasses e questionamentos sobre a linguagem fotográfica enquanto forma de expressão artística, a maior prova de que o tempo trouxe mais convergências do que divergências entre elas está na maneira como alguns artistas absorveram muitos dos recursos fotográficos para construir nos anos seguintes suas narrativas pessoais, aprimorando, fortalecendo e até reiventando suas poéticas e processos criativos. Impressionistas como Degas, Monet e Toulouse-Lautrec, por exemplo, não apenas utilizaram fotografias como referências mas, influenciados pelo olhar fotográfico, levaram para suas pinturas novos enquadramentos, com cortes inusitados de figuras, quebrando assim alguns paradigmas de composição do espaço visual estabelecidos anteriormente pela pintura. E, indo mais além, alguns efeitos ópticos, provenientes das experimentações fotográficas e relacionados com a formação e composição das cores na retina do observador, foram fundamentais para a construção das bases do movimento impressionista. São inúmeros os impulsos artísticos que exemplificam a presença do gesto fotográfico nas mãos dos artistas do século XX. Marcel Duchamp (1887-1968), por exemplo, ainda que não tenha se firmado como fotógrafo, construiu todas as suas obras com algo "conceitualmente fotográfico". Para Dubois (2012, p. 257), o termo serve para definir a relação indiciária de seus objetos com seus referentes, relação essa também presente na Fotografia, daí a proximidade e convergência do seu trabalho com a nova técnica. As fotos aéreas inspiraram Malevich (1879-1935) e Lissitzky (1890-1941), permitindo aos dois artistas transformar céus e paisagens do solo em composições abstratas. As colagens e montagens típicas do Dadaísmo e Surrealismo tornaram-se fragmentos e vestígios de uma realidade sob a forma de metáforas. E até no Expressionismo Abstrato Jackson Pollock (1912-1956) parece transformar suas inúmeras linhas obtidas pela técnica do dripping num emaranhado de cores e texturas que agrega ao campo visual a sensação de um registro fotográfico. Sobre esse artista, 30 Rosalind Krauss5 tece uma reflexão bastante reveladora no que concerne à sua relação com a Fotografia: [...] Como notou judiciosamente Rosalind Krauss, no instante em que pinta, a relação de Pollock com seu suporte de inscrição é justamente aquela que fundamenta a fotografia aérea: flutuação do ponto de vista, perda de qualquer quadro de referência prestabelecido (as ortogonais), deslocamentos multidirecionais, sentimento físico de liberdade, indecifrabilidade aparente do "solo"[...] (KRAUSS, 1978, p.15-24, apud DUBOIS, 2012, p. 266). Ainda sob o enfoque do Expressionismo Abstrato, Dubois cita Robert Rauschenberg (1925-2008), em cujas telas podem ser observadas sobreposições diversas, muitas delas obtidas mesclando fotografias a outros fragmentos do cotidiano. Elas são "ao mesmo tempo um objeto, um suporte material, concreto como tal literalmente devorado, incorporado pela e na obra pintada, mas também uma metáfora desta e de seu processo de constituição: uma questão de película, de véu e de tela, de estratificação de imagens, de descamação do real" (DUBOIS, 2012, p. 270). O trabalho do artista americano da Pop Art, Andy Warhol (1928-1987), também exemplifica essa convergência. O artista utilizou em suas pinturas registros fotográficos com as figuras mais emblemáticas da sociedade de consumo da segunda metade do século XX. Sobre esse momento da Arte, Dubois (2012, p. 273) nos diz que "a relação entre a Pop Art e a Fotografia é privilegiada: não é simplesmente utilitária, nem estético-formal, é quase ontológica: essa última quase exprime a 'filosofia' da primeira. A Pop Art é um pouco a polaróide da pintura". Por fim, Dubois (2012, p. 274) menciona o Hiper-realismo, sublinhando o papel do movimento em tornar a Pintura mais fotográfica que a própria Fotografia. Através de seu excesso de minúcia e exatidão, a sensação de realidade tornou-se tão intensa que acabou extrapolando o senso da própria realidade. Foram diversos os cenários onde a arte se apropriou da Fotografia para reiventar a própria linguagem. Mas os exemplos citados já trazem evidências de que o ferramental trazido pela nova linguagem, tanto pelos seus aspectos técnicos quanto pelos não técnicos, agregou atributos estéticos não apenas à Pintura, mas à própria Fotografia. 2.3 A Fotografia moderna e contemporânea e a transição para o fotojornalismo No decorrer do século XX, a Fotografia, cada vez mais plural, tornou-se presente na vida das pessoas, através de seu uso para fins jornalísticos, editoriais e publicitários. 5 "Emblèmes ou lexies: le texte photographique", em Atelier de Jackson Pollock (Hans Namuth), Paris, Éd. Macula, 1978, p. 15-24. 31 Paradoxalmente, quanto mais relevância ganhava essa pluralidade, mais reações de oposição surgiam aos seus atributos documentais e comerciais em prol de uma postura voltada ao espaço da arte. O hiato entre os dois territórios tornou-se, assim, cada vez maior. E, dentro do intervalo que os separava, surgia um público cujo olhar encontrava-se esteticamente mais preparado para perceber as diferenças. Parte desse novo olhar formatou-se já no final do século XIX, quando A Escola de Paris reuniu fotógrafos como Eugéne Atget (1857-1927), André Kertész (1894-1985) e Brassaï (1899-1984), em cujos retratos, paisagens e costumes percebemos tendências significativamente autorais. Mas é com Henri Cartier-Bresson (1908-2004) que ela viveu seu grande apogeu. Influenciado principalmente por esses três fotógrafos e ainda por Man Ray (1890-1976), fotógrafo dadaísta e surrealista, Cartier-Bresson procurou incluir em seus registros fotográficos aquilo que ele chamava de "momento decisivo", ou seja, o instante preciso em que a ação se concretizava, enquadrando não apenas uma imagem, mas o significado contido nela [Figura 1]. FIGURA 1. "The Var department". Hyères, França. Henri Cartier-Bresson. 1932. Magnum Photos. Disponível em: http://pro.magnumphotos.com/C.aspx?VP3=SearchResult&VBID=2K1HZO42092KBI. Acesso em : 16 jan. 2018. Sobre seu processo criativo, o fotógrafo relata: Andava o tempo todo com o espírito alerta, procurando nas ruas a oportunidade de fazer, ao vivo, fotos como de flagrantes delitos. Tinha sobretudo o desejo de captar 32 numa só imagem, o essencial de uma cena que surgisse. (CARTIER-BRESSON, 2004, p. 16). Em suas palavras, encontra-se definida a essência de sua poética, e foi essa mesma poética que fez de Cartier-Bresson, um fotógrafo de extrema aceitação diante do público. Como nos diz Janson (2001, p. 1049): [...] Cartier-Bresson é mestre naquilo que ele designou como "o momento decisivo", que para ele significa o reconhecimento instantâneo e a organização visual de um acontecimento no momento mais intenso da ação e da emoção, de modo a revelar o seu significado intrínseco e não apenas registrar a sua ocorrência. Ao contrário dos outros membros da Escola de Paris, parece-se sentir-se à vontade em qualquer parte do mundo e estar sempre em sintonia com o que fotografa, de tal forma que suas fotografias tem um apelo quase universal. Interessado pela composição e pelo movimento, Cartier-Bresson imprimiu em seus trabalhos influências surrealistas – por conta das inúmeras imagens marcantes e perturbadoras que produziu – e dadaístas, visíveis na ironia com que tratava muitos dos temas fotografados; a mesma ironia com que Doisneau (1912-1994), pertencente à mesma escola, registrou as fraquezas humanas. No breve histórico que Janson construiu sobre a Fotografia, identifica-se a presença de outros importantes fotógrafos. O americano Alfred Stieglitz (1864-1946), por exemplo, considerado o pai da fotografia moderna, não se contentava em apenas registrar imagens do real; procurava expandir seus registros para um universo artístico que ia além da representação e, muitas vezes, aproximava-se de linguagens intencionalmente expressionistas. A série Equivalentes, de 1922, apresenta composições de nuvens registradas pela sua câmera, comprovando que ele poderia abrir mão da figura e da paisagem tradicional, para poder expressar-se visualmente e provocar no espectador uma reação fundamentalmente plástica [Figura 2]. Sobre as fotografias produzidas nessa série, KRAUSS (2014, p. 142) afirma que: [...] No nível mais literal, Stieglitz suprimiu do campo a imagem de toda referência ao chão, à terra, ao horizonte. Em outro nível, mais gráfico, os sulcos vericais das nuvens nos evocam a ideia da coisa ausente, parodiando-a. No campo do céu, os sulcos edificam um sólido sistema de vetores, de linhas de orientação, de eixos e, em determinadas imagens, dividem o campo em zonas luminosas e escuras. Apelam portanto para nossa necessidade de orientação e, ao mesmo tempo, aos recursos habituais que utilizamos para garantir essa orientação, reportando-nos a um horizonte que organiza e reafirma nossa relação com a terra. (...) Em Equivalentes, Stieglitz realiza a proeza de transformá-las (as nuvens) em signos não naturais, transpondo-as para a linguagem cultural da fotografia. 33 FIGURA 2. "Equivalentes". Alfred Stieglitz. 1926. Gelatin silver print, 3 5/8 x 3/4 in. The Alfred Stieglitz Collection. Gift of Georgia O'Keefe, 1949. The Georgia O'Keefe Foundation / Artists Rights Society (ARS), New York. Disponível em: http://www.phillipscollection.org/research/american_art/artwork/Stieglitz- Equivalent1839+.htm. Acesso em: 16 jan. 2018. Assim, foram muitos os discípulos, diretos e indiretos, que seguiram seus passos. Edward Weston (1886-1958), Ansel Adams (1902-1984), Margareth Bourke-White (1904- 1971), Edward Steichen (1879-1973) e Wayne Miller (1918-2013) são alguns bons exemplos. Mesmo trilhando caminhos distintos, suas rotas traziam a mesma essência da poética de Stieglitz. Já na Alemanha, nas décadas de 1920 e 1930, o percurso tendia a uma contraposição dessa vertente. Inspirados pela materialidade das formas, em certo sentido herdada pela Escola Bauhaus, fotógrafos como Albert Renger-Patzsch (1897-1966) e August Sander (1876-1964) procuraram reduzir os excessos de subjetividade na captação das imagens, concentrando-se, ao máximo, nas formas puras e essenciais. Mesmo em sua ampla série dedicada aos retratos, Sander manteve-se fiel à realidade, tentando registrar de forma controlada as emoções dos retratados que deixavam transparecer apenas pequenas sutilezas em seus gestos e expressões. A respeito desses dois fotógrafos, Janson (2001, p. 1057) reflete: "a beleza intrínseca dos objetos era realçada pela clareza das formas e da escultura das suas fotografias". Entre 1930 e 1945, a Fotografia ganhou nuances mais documentais, voltando-se para o registro dos fatos. Mas mesmo assim, as fotografias mais importantes da época preservaram o olhar estético e até crítico. É nesse sentido que a fotografia documental traçou uma sutil fronteira com o fotojornalismo. O fotojornalismo, grosso modo, procurava registrar o fato como ele era, dentro de seu contexto dinâmico e imediatista; nele, o tempo desafiava o fotógrafo, que agia para contê-lo em sua lente, procurando o máximo de objetividade, a serviço da informação de grandes grupos editoriais. Já na fotografia documental a relação 34 com o tempo era outra: o fotógrafo procurava domar o tempo em benefício de outro tipo de elaboração, menos instantânea, que favorecia uma rota com mais envolvimento prévio no tema. Assim: [...] Chamamos de documental o trabalho fotográfico que começa a ser desenvolvido a partir de um projeto elaborado, que requer algum tipo de apuração prévia, estudo, conhecimento e envolvimento com um tema. A fotografia documental se refere, portanto, a projetos de longa duração, que não sejam apenas o registro momentâneo e de passagem sobre determinado assunto. (LOMBARDI, 2007, p. 34, apud REZENDE, 2016, p. 32). Robert Capa (1913-1954), por exemplo, lançou-se aos campos de batalha em diferentes guerras espalhadas pelo planeta, como a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial, em busca de imagens jornalísticas. Muitas de suas fotografias acabaram extrapolando o contexto de uma mera reportagem, tornando-se verdadeiras referências do trabalho documental, não apenas pelo projeto previamente preparado, mas por conta de sua imersão e envolvimento ao tema fotografado numa situação de extremo risco. Uma série de fotografias feitas no "Dia D" na costa da Normandia, e publicadas na revista americana LIFE, mostra o desprendimento do fotógrafo ao lançar-se em um cenário de guerra com os soldados. Em meio a um momento decisivo e marcante da história da Segunda Guerra Mundial, Capa obteve imagens de altíssimo impacto [Figura 3]. Grande parte dos negativos foi perdida e são diversas as versões, incluindo as mais polêmicas, que justificam o desaparecimento. Mas as onze imagens que restaram, atestam o valor das fotografias como registro documental de um momento histórico importante presenciado pelo fotógrafo. "Se as fotos não são boas o suficiente, é porque o fotógrafo não esteve perto o suficiente" (PIRES, 2015).6 FIGURA 3. "O Dia D e o desembarque na praia de Ohama". Normandia. França. Robert Capa. 6 de junho de 1944. © Robert Capa. © International Center of Photography Magnum Photos. Disponível em: https://www.magnumphotos.com/photographer/robert-capa/. Acesso em: 18 jan. 2018. 6 Extraído do artigo de Francisco Quinteiro Pires sobre Robert Capa. Disponível em: https://revistazum.com.br/radar/polemica-robert-capa/. Acesso em: 9 fev. 2018. 35 Destaca-se também nessa época o trabalho de Dorothea Lange (1895-1965), cuja linguagem fotográfica ganhou uma força descomunal no registro da realidade. Ao registrar milhares de trabalhadores numa colheita de ervilhas na Califórnia, expulsos de suas terras durante a Grande Depressão Americana, Lange não apenas documentou um fato, mas deixou seu olhar sensível impregnado nele. A imagem feita em 1936 [Figura 4], retrata uma jovem viúva com seus filhos, imersa numa luz natural e extremamente dramática, acentuada pela alternância entre claros e escuros. O olhar distante da mulher ao centro, emoldurado pelas cabeças dos filhos que se debruçam sobre seus ombros esquivando-se do mundo, tem um poder expressivo que dificilmente passaria despercebido pelo olhar do espectador. FIGURA 4. "Migrant mother". Nipomo. Califórnia. Dorothea Lange. 1936. Library of Congress. Washington D.C. Disponível em: http://www.loc.gov/pictures/resource/fsa.8b29516/. Acesso em: 18 jan. 2018. Nos Estados Unidos, outros fotógrafos que também se lançaram à fotografia documental, como W. Eugene Smith (1918-1978) e Robert Frank (1924), procuraram preservar o enfoque subjetivo nas suas narrativas visuais. 36 Já no território das experimentações, logo após a Primeira Guerra Mundial, as fotomontagens e os fotogramas deram espaço à imaginação para diversos fins, como o de propagar uma idéia política. John Heartfield (1891-1968), Herbert Bayer (1900-1985), Man Ray (1890-1976) e László Moholy-Nagy (1895-1946) são alguns nomes que merecem destaque nesse período. Posteriormente, após a Segunda Guerra Mundial, as experimentações técnicas se diversificaram ainda mais, tanto na manipulação das câmeras e negativos para a obtenção de efeitos visuais inesperados e surpreendentes quanto no uso de enquadramentos diferenciados que desestabilizaram a figuração. Era a imaginação ganhando força novamente e revelando a natureza interna dos fotógrafos, agora nas mãos de Aaron Siskind (1903-1991), Minor White (1908-1976), Jerry Uelsmann (1934) e Joanne Leonard (1940). Destaca-se, ainda, o trabalho do artista inglês David Hockney (1937), que propôs uma intensa aproximação com a Pintura. Suas colagens, obtidas a partir de fotos em diversos ângulos da mesma figura, estabeleceram um diálogo com o Cubismo, pela forma com que eram distribuidas no campo visual. É importante ressaltar também que, do ponto de vista técnico, a Fotografia alcançou inúmeros avanços em curto espaço de tempo. Mesmo que seus princípios fundamentais tenham sido preservados até a chegada do filme colorido, logo em seguida, novas tecnologias permitiram o surgimento de equipamentos que não apenas trouxeram qualidade e baixo custo, mas que popularizaram seu uso. A chegada da tecnologia digital permitiu ampliar ainda mais essa democratização através de máquinas fotográficas digitais e smartphones, colocando em crise os processos tradicionais de revelação e ampliação, mas permitindo que outros avanços fossem incorporados em prol de uma maior agilidade, praticidade e qualidade de imagem. Esse histórico favorece a compreensão do contexto que antecede a fotografia contemporânea. Michel Poivert (2015, p.134-142), trouxe algumas reflexões bastante interessantes sobre o tema. O autor parte do princípio de que a história da Fotografia é relativamente recente para que se possa traçar, com precisão e com um certo distanciamento, o seu papel estético dentro da História da Arte. Mas mesmo assim, é possível delimitar alguns de seus percursos no decorrer do tempo nesse processo de legitimação. Para o autor, a autonomia da fotografia artística inicia-se a partir da década de 1930, mas só começa a dar sinais de sua contemporaneidade no final dos anos 1970. [...] O que a arte fez da fotografia durante muito tempo, e com genialidade, consistiu em arruinar seu valor utilitário, reciclando-a e tornando-a uma proposta estética. Mas a arte soube preservar uma relíquia desse valor utilitário, por ter indicado em suas próprias práticas que a fotografia carrega parte de trivialidade (recorte de 37 jornais, por exemplo). A aura niilista da fotografia vai contudo ceder espaço a algo completamente diferente nos final dos anos 1970, e é dessa mudança que sairá a fotografia contemporânea. (POIVERT, 2015, p. 138). Para Poivert, esse fato poderia estar associado a alguns reposicionamentos. O primeiro deles estaria ligado à experimentação plástica e a seus resultados inovadores, que passaram a ocorrer mais intensamente a partir dos anos de 1980, resgatando uma certa prática experimental das vanguardas modernistas, em busca de poéticas mais inusitadas e criativas. Das práticas ditas pobres, às sofisticações extremas dos processos digitais, encontramos nessa fotografia experimental a vontade de romper com as práticas normativas e instituir um jogo com o visível como propulsor da criatividade. A serviço de uma poética, por vezes crítica, por vezes onírica, a fotografia experimental desafia o uso da imagem, sonha com uma relação com o real construída sobre a subjetividade, arruína toda uma tradição de uma imagem definida pela sua continuidade descritiva. (POIVERT, 2015, p. 140). Em um segundo tipo de produção fotográfica contemporânea, ainda nesse mesmo período, o autor enxerga uma espécie de incursão a um universo menos experimental. Nele, as imagens, mais do que se comportarem como enigmas a serem decifrados, voltam-se para a adoção de princípios e valores de uma arte já estabelecida. Através de composições estudadas e construídas, retoma-se um discurso autorreferencial, que se projeta para o universo da arte não por mecanismos de rupturas vanguardistas, mas assumindo seus valores e sua autonomia. Poivert (2015, p. 140) afirma que "Uma certa ideologia da arte entra em cena nessa parte da fotografia contemporânea, no sentido em que a fotografia como meio específico, não vem aqui atuar com a desordem da arte estabelecida, mas ao contrário, vem confirmar a ordem histórica". A terceira vertente, segundo Poivert, vigorou a partir dos anos 1990. De maneira contrária à fase anterior, aqui se recuperou um caráter documental e mais politizado, típico desse período, refletindo o peso que a comunicação estabeleceu no campo das imagens. Assim, por exemplo, quando uma fotografia artística e uma fotografia publicitária foram confundidas em seus aspectos de valor e função, a fotografia documental recuperou seu espaço para se fixar como alternativa estilística. Era o documento mais uma vez atuando no intervalo existente entre a informação e a arte, num espaço neutro, onde a historicidade ganhou relevância, sem perder seus componentes subjetivos e seu valor como vestígio da memória. Como coloca Poivert (2015, p. 141): [...] Trata-se, com o documento, de se situar um pouco fora da arte e um pouco fora da informação, em um espaço mais neutro onde a historicidade está marcada pela figura da utopia. Então, não é "o mundo como ele é", nem o testemunho nu, é a reflexão aprofundada sobre o estatuto da imagem e do sujeito em que atuam. 38 Por último, Poivert coloca essa característica documental em um novo processo de revalidação a partir do final dos anos 1990: o da reportagem. Através dela, buscou-se uma certa legitimidade artística, na tentativa de uma aproximação com a arte do fim do século XX. Alimentados pela ruptura com a cultura fotojornalística tradicional, muitos fotógrafos procuraram formatar uma certa estetização nesse segmento de atuação, como forma de "articular arte e mídia sob a bandeira da história" (POIVERT, 2015, p. 141). Assim, segundo o autor, de onde menos se esperava, surgiu a conexão com a arte contemporânea. É possível perceber nessa visão bastante clara e objetiva de Poivert algumas lacunas onde o fotógrafo Sebastião Salgado parece atuar. Mesmo tendo se dedicado inicialmente ao fotojornalismo, o trabalho de Salgado ganhou nuances mais documentais no decorrer de seu percurso. Sua conexão ao processo histórico (muitas vezes denominado por ele como um registro arqueológico da era industrial) e todos os recursos formais aplicados às suas fotografias conferiram valores estéticos à sua poética, inserindo-a ao território da arte. Além disso, a completa imersão de Salgado ao tema fotografado criou uma necessidade tão intensa de aproximar-se do objeto representado e de perpetuar-se diante de sua presença que acabaram por tornar o tempo parte integrante de sua identidade na Fotografia. Tempo esse que, em parte, o aproxima da linguagem e do método de Dorothea Lange, mas, que por outro lado, o afasta do acaso buscado por Cartier-Bresson, cujas lentes fotográficas agiam em benefício da captura do "instante decisivo". Serva (2017) resgata uma reflexão de Salgado sobre o assunto: [...] Faço uma imersão na cultura dos locais que documento, fico um período longo, em que a qualidade das imagens cresce com a convivência; até que, em certo momento, começa a ser ocioso, a curva começa a baixar. Meu trabalho se desenvolve ao longo de todo esse processo, não em um 'instante decisivo'. Um aprofundamento mais minucioso da história, dos percursos, das percepções de mundo e da estética de Sebastião Salgado se faz necessária a partir de agora, para que se possa estabelecer posteriormente as eventuais conexões de suas fotografias com as pinturas românticas. 39 3 SEBASTIÃO SALGADO: O PERCURSO SUBJETIVO DE UM OLHAR Sebastião Salgado nasceu em Aimorés, Minas Gerais, em 1944. Sua infância foi vivida na fazenda de seu pai, dentro dos costumes regionais de uma fazenda tradicional mineira. Por conta disso, a relação de Salgado com a natureza sempre foi bastante intensa. Antes de se tornar fotógrafo, suas raízes permitiram que ele contemplasse com plenitude aquilo que o cercava: além das relações humanas, seu olhar era voltado para as montanhas, vales, tempestades, plantações, e a própria luz que emanava delas. Seu discurso vem sempre impregnado de uma grande nostalgia daqueles tempos. "Nasci com imagens de céus carregados atravessados por raios de luz. Essas luzes entraram em minhas imagens. De fato, vivi dentro delas antes de começar a produzi-las." (SALGADO; FRANCQ, 2014, p. 18). Na fazenda moravam cerca de 30 famílias que, além de trabalharem no cultivo das plantações e no cuidado do gado, tinham pequenos espaços de terra para a própria sobrevivência. Desde cedo, Salgado foi um observador da natureza humana e das relações sociais no campo e na cidade. O tempo foi o eixo dessas reflexões. Observar a lentidão dos processos vividos na área rural em contraponto à velocidade com que as coisas aconteciam no cenário urbano e também constatar a crescente evasão do homem para os grandes centros em busca de novas oportunidades foram determinantes para que ele pudesse perceber muito rapidamente que algo estava se perdendo. E essa perda tinha íntima relação com o distanciamento do homem do seu espaço natural. O processo de industrialização transformava cada vez mais as relações sociais e intensificavam as diferenças entre os seres humanos e Salgado tornou-se cada vez mais sensível a esses contrastes. Talvez, por isso, tenha se decidido pelo curso de Direito assim que concluiu o ensino médio. Mas bastou o plano JK de desenvolvimento ser implantado, em 1956, para que Salgado encontrasse nele um estímulo para mudar de faculdade e optasse pela carreira de economista. Com uma visão de mundo cada vez mais crítica sobre as diferenças sociais, passou a adotar ideias de esquerda. Com a implantação da ditadura de 1964 no país, ele e sua esposa Lélia – com quem havia se casado poucos anos antes – tornaram-se politicamente engajados em movimentos de resistência. Essa postura política os forçou a uma saída estratégica do Brasil para a França. Na época, o país europeu era o berço do pensamento moderno democrático e um árduo defensor dos direitos humanos. Além disso, Salgado ocupava uma das vagas na École Nationale de la Statistique et de l'Administration Économique – Ensae (Escola Nacional de Estatística e Admnistração Econômica), em Paris, na França, o que lhe favoreceria na continuidade dos 40 estudos no velho mundo. Rapidamente formou-se uma rede de solidariedade e ajuda mútua entre o casal e outros exilados do Brasil e de outros países que chegavam a Paris. A aproximação com a Fotografia se deu exatamente nesse período, quando Lélia, estudante de Arquitetura, muniu-se de uma câmera para fotografar prédios antigos. Mesmo ainda participando como economista de projetos de implantação de desenvolvimento agrícola na África, através de instituições como o Banco Mundial e a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), o interesse de Salgado pela Fotografia começou a ganhar cada vez mais força. Como ele mesmo recorda, "durante minhas viagens a Ruanda, Burundi, Zaire, Quênia e Uganda, percebi que as fotos que tirava me deixavam muito mais feliz do que os relatórios que precisava escrever ao voltar" (SALGADO; FRANCQ, 2014, p. 35). Assim, em 1973, com 29 anos, decidiu abandonar sua carreira de economista para dedicar-se à Fotografia. Com total apoio da esposa, que, a princípio, trabalhava num laboratório ampliando e copiando suas fotos, Salgado passou a investir o dinheiro que recebia com seus pequenos registros fotográficos na África em novos equipamentos. Nessa época, já tinha o hábito de adotar o preto e branco como linguagem expressiva. Depois de muito fotografar retratos, nus e eventos esportivos, o fotógrafo migrou seu olhar para temas sociais e encontrou aí um ponto de contato com a sua juventude no Brasil. Ao tentar detectar a origem dessa decisão, Salgado refletiu sobre sua postura diante das imagens produzidas na África e sobre os inúmeros registros feitos com os emigrados e clandestinos na Europa, e percebeu que, por trás desse material, não estavam apenas as paisagens ou as diversidades culturais, mas o tema social da fome e repressão. [...] Lélia e eu constatamos que o mundo está dividido em duas partes: de um lado a liberdade para aqueles que têm tudo, do outro a privação de tudo para aqueles que não têm nada. E foi esse mundo digno e privado de quase tudo que eu decidi retratar, por meio de minhas fotografias, a uma sociedade europeia suficientemente alerta para ouvir um apelo. (SALGADO; FRANCQ, 2014, p. 45). Sebastião Salgado passou por algumas agências de fotojornalismo como a Sygma e a Gamma (1975-1979). Na Gamma, dedicou-se ao seu aprimoramento técnico, absorvendo experiências em diversos projetos jornalísticos ao redor do mundo. Mas essas experiências o levaram a uma constatação maior ainda: apesar de estar inserido num contexto jornalístico, suas fotografias estavam num outro plano de percepção. Ele mesmo reconhece que seu trabalho sempre extrapolou a objetividade, por captar imagens que expunham a essência do próprio sentimento sobre os temas. 41 [...] Para alguns, sou um fotojornalista. Não é verdade. Para outros, sou um militante. Tampouco. A única verdade é que a fotografia é minha vida. Todas as minhas fotos correspondem a momentos intensamente vividos por mim. Todas elas existem porque a vida, a minha vida, me levou até elas. Porque dentro de mim havia uma raiva que me levou àquele lugar. Às vezes fui guiado por uma ideologia, outras, simplesmente pela curiosidade ou pela vontade de estar em dado local. Minha fotografia não é nada objetiva. Como todos os fotógrafos, fotografo em função de mim mesmo, daquilo que me passa pela cabeça, daquilo que estou vivendo e pensando. (SALGADO; FRANCQ, 2014, p. 49). Muitas vezes, o retorno ao mesmo local repetidamente permitia que o olhar sensível de Salgado ganhasse mais força, pois, em vez de registrar apenas um episódio, captava a narrativa de toda uma história. Sobre a postura do fotógrafo diante do tema, Salgado reflete: [...] Colocando-se num estado de total integração com aquilo que o cerca, o fotógrafo sabe que assistirá a algo inesperado. Quando ele se funde com a paisagem, com o lugar, a construção da imagem acaba vindo à tona diante de seus olhos. Mas, para conseguir vê-la, ele precisa fazer parte do fenômeno. Todos os elementos começam então a atuar para ele. (SALGADO; FRANCQ, 2014, p. 52). A trajetória de Sebastião Salgado continuou na Agência Magnum, fundada por Cartier-Bresson, Robert Capa, David Seymor e George Rodger em 1947, onde ficou por quinze anos (1979-1994). Foi a serviço dessa agência, ao cobrir os cem primeiros dias do governo Reagan, que Salgado presenciou e fotografou o atentado ao presidente americano. E foi trabalhando nesta mesma empresa que decidiu adotar o preto e branco como linguagem definitiva. No entanto, em 1994, percebeu que a filosofia e o método de trabalho da agência já não tinham mais ressonância com sua forma de enxergar a Fotografia e, por conta dessa incompatibilidade, acabou se desligando da empresa. No mesmo ano, montou a própria agência com a esposa Lélia, a Amazonas Images, no Canal Saint-Martin, em Paris. A obra de Sebastião Salgado é extensa e composta por milhares de fotografias feitas ao redor do mundo e que foram reunidas em diversas publicações. Em 1985, lançou seu primeiro livro, Outras Américas, que reuniu fotografias de inúmeras viagens realizadas pela América Latina entre 1977 e 1984, captando imagens de camponeses e indígenas que lutavam pela preservação de suas próprias culturas. Em 1986, o livro Sahel: L'homme en détresse (Sahel: O homem em agonia) foi o resultado de 18 meses de trabalho com o grupo Médico sem Fronteiras, sobre a devastação causada pela seca e pela guerra no norte da África. Em Trabalhadores (1996), registrou o trabalho manual e as difíceis condições de vida dos trabalhadores em várias regiões do mundo. Com Terra (1997), a questão agrária no Brasil foi documentada através de imagens que revelaram a intensa pobreza de algumas regiões brasileiras. Seguiram-se outras publicações como Serra Pelada (1999), Retrato de crianças do êxodo (2000) e