UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS LEANDRO ANTONIO DA SILVA GESTOS POLÍTICOS DE MEMÓRIA: CONSTRUÇÕES DE D. PEDRO II E DO SEGUNDO REINADO NAS COMEMORAÇÕES REPUBLICANAS (1925-1927) FRANCA 2025 LEANDRO ANTONIO DA SILVA GESTOS POLÍTICOS DE MEMÓRIA: CONSTRUÇÕES DE D. PEDRO II E DO SEGUNDO REINADO NAS COMEMORAÇÕES REPUBLICANAS (1925-1927) Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista (UNESP) como requisito para a obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karina Anhezini de Araujo. Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) processo nº 88887.703398/2022-00. FRANCA 2025 S586g Silva, Leandro Antonio da Gestos políticos de memória : construções de D. Pedro II e do Segundo Reinado nas comemorações republicanas (1925-1927) / Leandro Antonio da Silva. -- Franca, 2025 158 p. : fotos Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Franca Orientadora: Karina Anhezini de Araujo 1. RIHGB. 2. D. Pedro II na República. 3. Comemoração. 4. Memória e História. 5. História da Historiografia. I. Título. Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Dados fornecidos pelo autor(a). LEANDRO ANTONIO DA SILVA GESTOS POLÍTICOS DE MEMÓRIA: CONSTRUÇÕES DE D. PEDRO II E DO SEGUNDO REINADO NAS COMEMORAÇÕES REPUBLICANAS (1925-1927) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista (UNESP) como requisito para a obtenção do título de Mestre em História. BANCA EXAMINADORA Presidente: Prof.ª Drª. Karina Anhezini de Araujo, UNESP 1ºExaminador: Prof.ª Dr.ª Lucia Maria Paschoal Guimarães, UERJ 2ºExaminador: Prof.ª Dr.ª Virginia Célia Camilotti , UNESP Franca, 23 de maio de 2025. javascript:abreDetalhe('K4713667H9','Virginia_C%C3%A9lia_Camilotti',689736,) AGRADECIMENTOS Ao longo dessa trajetória tão intensa, por vezes árdua, mas frequentemente prazerosa, tive a oportunidade de aprender continuamente com o trabalho desenvolvido, com as pessoas que contribuíram para sua realização e, principalmente, com aquelas que me ajudaram a sonhar e transformar esse sonho em realidade. Sem o apoio da minha família, essa caminhada não teria sido possível. Registro, com profunda gratidão, o esforço e o suporte incondicional da minha mãe, Elisângela, e da minha avó, Iracema. Mulheres extraordinárias que acreditaram no meu sonho e estiveram ao meu lado durante toda a jornada. Ao meu avô, Milton, e ao meu pai, Clodoaldo, meu reconhecimento por terem sido alicerces fundamentais na minha formação, viabilizando todo o percurso, da graduação ao mestrado. Sou especialmente grato à pessoa que deu forma, consistência e sentido a este trabalho, Karina Anhezini. Profissional admirável, sempre atenta e cuidadosa na orientação, foi ela quem me acolheu com um “sim” ainda na graduação, durante a Iniciação Científica. Sua orientação foi essencial para que eu compreendesse os caminhos da pesquisa e estruturasse com clareza a dissertação. Agradeço também à banca avaliadora, composta pelas professoras Lúcia Guimarães e Virginia Célia Camilotti, cujas contribuições enriqueceram significativamente este trabalho, abrindo novas perspectivas e interpretações. São profissionais de excelência, cujo domínio do tema foi inspirador. Estendo minha gratidão aos colegas do grupo de orientação, pelo apoio constante e pelas valiosas sugestões: Aline Menoncello, Thiago Rudi, Meg Bogo e Viviane Conti foram fundamentais na construção deste texto. Às amigas Laura Duarte e Tatiane Neves, que não só realizaram diversas leituras críticas e ofereceram sugestões pertinentes, mas também tornaram essa jornada mais leve e menos solitária, meu muito obrigado. Agradeço igualmente à Natália Tamie e à Paloma Catelan, pelas conversas, risadas, parcerias e desabafos. Não poderia deixar de mencionar outros tantos amigos que me acompanharam desde a graduação, como Ana Laura Galvão, Vitória Marchetto e Maria Isabela, companhias fundamentais nesse percurso. A todos os funcionários da UNESP, minha sincera gratidão pelo suporte prestado ao longo da caminhada. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), o agradecimento pelo financiamento desta pesquisa. Por fim, registro meu carinho àqueles que estiveram presentes nos momentos finais desta jornada. À colega de trabalho Eliselda, pelo acolhimento nos dias mais solitários e desafiadores. Aos professores que contribuíram para minha formação básica e com os quais, hoje, tenho a honra de trabalhar em equipe; e aos meus alunos, que trouxeram vivências enriquecedoras, fundamentais para a construção deste percurso. SILVA, Leandro Antonio da. GESTOS POLÍTICOS DE MEMÓRIA: CONSTRUÇÕES DE D. PEDRO II E DO SEGUNDO REINADO NAS COMEMORAÇÕES REPUBLICANAS (1925-1927). 2025. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2025. RESUMO As edições da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB) dedicadas ao centenário de nascimento de D. Pedro II – o volume especial de 1925 e o comemorativo de 1927 – são concebidas, neste estudo, como gestos políticos de memória, reunindo e produzindo textos que reafirmam a centralidade do monarca e do Segundo Reinado em uma narrativa historiográfica e memorialística. Essas publicações integram um conjunto mais amplo de produções de diferentes gêneros, como romances, crônicas, dramas e peças teatrais, contribuindo para a reconstrução do passado imperial sob a ótica republicana. O volume de 1925 apresenta estudos biográficos e elementos característicos de uma narrativa histórica que buscava se afirmar como científica. Já a edição de 1927 representa a consolidação desse projeto de memória, funcionando como um gesto político que reforça um discurso já estabelecido sobre D. Pedro II e o Segundo Reinado. Este estudo, inserido no campo da História da Historiografia, investiga os sentidos dessas comemorações e os mecanismos de construção da memória imperial no contexto republicano. Para isso, analisa os textos reunidos e organizados pela RIHGB, com especial atenção aos volumes de 1925 e 1927, buscando compreender como esses gestos políticos de memória contribuíram para a elaboração de um discurso republicano sobre o passado imperial, tendo D. Pedro II como figura central. Palavras-chave: RIHGB; D. Pedro II na República; comemoração; memória; história; História da Historiografia. SILVA, Leandro Antonio da. POLITICAL GESTURES OF MEMORY: CONSTRUCTIONS OF D. PEDRO II AND THE SECOND REIGN IN REPUBLICAN COMMEMORATIONS (1925–1927). 2025. Dissertation (Master's in History). Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista, “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Franca, 2025. ABSTRACT The issues of the Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB) dedicated to the centenary of the birth of D. Pedro II—the special volume of 1925 and the commemorative volume of 1927—are conceived in this study as political gestures of memory. These editions gather and produce texts that reaffirm the centrality of the monarch and the Second Reign within a historiographical and memorialistic narrative. These publications are part of a broader set of productions of various genres—such as novels, chronicles, dramas, and plays— contributing to the reconstruction of the imperial past through a republican lens. The 1925 volume features biographical studies and elements characteristic of a historical narrative that aimed to establish itself as scientific. The 1927 edition, in turn, represents the consolidation of this memory project, functioning as a political gesture that reinforces an already established discourse about D. Pedro II and the Second Reign. This study, situated within the field of the History of Historiography, investigates the meanings of these commemorations and the mechanisms for constructing imperial memory within the republican context. To that end, it analyzes the texts compiled and organized by the RIHGB, with special focus on the 1925 and 1927 volumes, aiming to understand how these political gestures of memory contributed to the elaboration of a republican discourse about the imperial past, with D. Pedro II as a central figure. Keywords: RIHGB; D. Pedro II in the Republic; commemoration; memory; history; History of Historiography. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9 CAPÍTULO 1 COMEMORAR PARA SE FAZER JUSTIÇA, HONRA E LOUVOR: o projeto do centenário de D. Pedro II no IHGB ...................................................................................... 19 1.1 O IHGB, a historiografia e a Primeira República............................................................... 24 1.2 Definição de um programa comemorativo: a festa que a República manda guardar ......... 29 1.3 A construção de uma obra: estudos biográficos de D. Pedro II ......................................... 39 1.4 Tributos de veneração à memória do Imperador: a edição comemorativa da Revista do IHGB ........................................................................................................................................ 48 1.5 A comemoração, seus sentidos, significados e justificativas ............................................. 53 1.6 O papel da comemoração ................................................................................................... 60 CAPÍTULO 2 A CONSTRUÇÃO DO IMPERADOR: uma biografia entre memória e história ........... 67 2.1 O sábio, “homem de letras” ................................................................................................ 68 2.2 Patriota e republicano: as faces políticas do Imperador ..................................................... 75 2.3 Construção da heroicidade ................................................................................................. 81 2.4 Entre vícios e virtudes: outras exemplaridades nas condutas do Imperador ...................... 90 CAPÍTULO 3 A HISTÓRIA DO IMPÉRIO: a construção de um tempo monumental ........................ 108 3.1 Narrar o progresso, as tramas políticas e a exemplaridade de um tempo ......................... 109 3.2 A crítica ao presente e a idealização do passado imperial ................................................ 133 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 145 FONTES ................................................................................................................................ 147 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 149 REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRAPHICO BRASILEIRO. Contribuições para a biografia de D. Pedro II. Rio de Janeiro: Revista do IHGB, Tomo Especial, Parte I, 1925. REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRAPHICO BRASILEIRO. Instituto Histórico e Geographico Brasileiro (1924). Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1927, t. 96, vol.150. 9 INTRODUÇÃO No contexto social e cultural do século XIX, após a Independência, a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, representou um esforço para a construção de uma história nacional que estabelecesse um perfil para a jovem nação brasileira. Como instituição, o IHGB assumiu a responsabilidade de orientar, sistematizar e preservar uma produção historiográfica alinhada ao Estado Imperial. A Revista do Instituto, desde o Oitocentos, publicou periodicamente estudos inéditos, fontes históricas, biografias, relatos, itinerários de viagens, notícias e memórias, consolidando-se como um espaço central para a elaboração do passado nacional. Essa atuação do IHGB estava diretamente ligada à monarquia, pois a agremiação intelectual mantinha estreita proximidade com o Imperador D. Pedro II, designado protetor da instituição. Essa relação influenciou a própria forma como a imagem do Imperador e de seu reinado foi preservada e enaltecida ao longo do tempo. O Instituto não apenas sistematizou uma narrativa sobre o período imperial, mas também contribuiu para a construção de sua memória oficial. Nesse sentido, desempenhou um papel central na organização do centenário natalício de D. Pedro II, promovendo a produção historiográfica que consolidava sua importância histórica. Como resultado desse projeto comemorativo, o IHGB estruturou uma narrativa que buscava atribuir sentido à trajetória do Imperador e, ao mesmo tempo, projetar valores para o futuro da nação. Esse esforço se materializou na publicação de dois volumes especiais da Revista do IHGB, dedicados à construção da imagem de D. Pedro II e do período imperial: o primeiro, lançado em 1925, e o segundo, um tomo comemorativo, publicado em 1927. Diante desse contexto, esta pesquisa tem como objetivo analisar os textos produzidos, selecionados e reunidos pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro para publicação na Revista da agremiação (RIHGB), tomando como base esses dois volumes. A edição especial de 1925, intitulada Contribuições para a Biographia de D. Pedro II, e o tomo 98, a edição comemorativa de 1927, dedicam-se à figura do monarca e constituem um espaço privilegiado para compreender as representações construídas sobre D. Pedro II durante a República, especialmente no âmbito do IHGB. Nos textos analisados, os autores apresentam gestos políticos de memória, lembranças e sentimentos sobre o passado monárquico, enfatizando a figura do Imperador. Além disso, os letrados tecem projeções para o futuro, refletindo sobre os caminhos que a nação brasileira deveria seguir rumo ao progresso. 10 Nesse sentido, a pesquisa se orienta por algumas questões centrais: quais projeções de futuro foram formuladas pelos intelectuais no contexto das comemorações promovidas pelo IHGB? De que maneira D. Pedro II foi representado nesses discursos? Quais aspectos do período imperial interessava ao Instituto destacar? Qual foi a postura dos autores em relação ao Imperador e ao Império? Houve divergências entre as ideias, valores e crenças ressaltados pelos escritores? O estudo sobre a construção da imagem do Império e do Imperador na República, a partir das publicações do IHGB, se justifica pela relevância historiográfica desse processo. Desde sua fundação, em 1838, a escrita da história no Brasil esteve profundamente vinculada ao projeto de construção de uma narrativa nacional, sendo o IHGB o principal espaço institucional encarregado de direcionar esse empreendimento, em conformidade com as pretensões do Estado monárquico. Cabia à instituição definir o “perfil” da nação brasileira e refletir sobre os mecanismos de construção de sua identidade.1 Dessa forma, a historiografia desenvolvida nesse contexto enfatizava as questões ligadas à origem da nação, um processo conduzido pelos intelectuais reunidos no IHGB. Desde sua fundação, a agremiação esteve “debaixo da imediata proteção imperial”2, contando com a presença frequente de D. Pedro II, que acompanhava de perto suas discussões. Essa relação institucional reforçou o papel do Instituto na preservação da memória do Segundo Reinado e na legitimação da monarquia como um período fundamental na construção do Brasil. Assim, a produção historiográfica do IHGB não apenas registrou o passado, mas também desempenhou um papel ativo na formulação de discursos sobre a identidade nacional e os rumos do país. Fruto de uma tese de doutorado, a referida obra da historiadora Lucia Paschoal Guimarães demonstra que, entre os anos de 1838 e 1889, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro se consolidou como um espaço central na construção da memória nacional. Esse processo envolveu um longo e seletivo empreendimento historiográfico, no qual determinadas questões do passado foram escolhidas para auxiliar e legitimar as bases do Estado monárquico no tempo presente. Paralelamente à produção da memória do Império, desenvolveu-se a construção da imagem pública de D. Pedro II, moldada ao longo das diferentes fases do Segundo Reinado. O Instituto desempenhou um papel fundamental nessa representação, destacando nos relatórios institucionais as virtudes do Imperador, exaltando sua bondade, 1 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, v. 1, n. 1, 1988, p. 6. 2 GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. “Debaixo da imediata proteção de sua majestade imperial”: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). 2ª. Edição – São Paulo: Annablume, 2011. 11 sabedoria e papel de monarca “predestinado pela divina providência”3 para glorificar a grandeza do Império brasileiro. Dentro desse projeto de construção historiográfica, em 1839 foi criada a Revista Trimensal de História e Geografia, posteriormente reconhecida como Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brazil (RIHGB)4. A publicação desempenhou um papel primordial na produção e disseminação do saber histórico, sendo reconhecida como um espaço de “inovação intelectual”. Segundo Lucia Paschoal Guimarães, no texto Produção e disseminação do conhecimento histórico no Oitocentos: a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro5, o IHGB era formado por homens de destaque que se reuniam para debater temas relacionados à literatura, história, ciência e artes. O Instituto não se limitava à produção de conhecimento acadêmico; havia também uma forte dimensão política, já que a historiografia desenvolvida por seus membros visava consolidar o projeto imperial. Além de seu caráter científico, a Revista preservava elementos da tradição iluminista e continha aspectos de “natureza cortesã”, como homenagens fúnebres ao Imperador, evidenciando o estreito vínculo entre o IHGB e a Monarquia.6 No entanto, com a crise do Estado monárquico, intensificada por questões sociais, econômicas e políticas, a figura do Imperador perdeu prestígio. A proclamação da República, em 1889, colocou o IHGB diante de um novo desafio: adaptar-se às novas exigências políticas. Entretanto, grande parte de seus intelectuais ainda possuía uma mentalidade monárquica, o que dificultou essa transição. Como destaca Lucia Guimarães, “a Escola Palatina quase cerrou suas portas”7, evidenciando as crises sucessivas que a instituição enfrentou até conseguir redirecionar suas pretensões para atender aos interesses republicanos. Diante dessa ruptura da tradição imperial, José Murilo de Carvalho, em A formação das almas: o imaginário da República no Brasil8, analisa o esforço republicano em construir uma nova tradição, baseada em um aparato simbólico que legitimasse o novo regime e 3 GUIMARÃES, 2011, p. 110. 4 Para saber mais sobre a Revista do IHGB, ver: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. A Revista do IHGB e Os Temas de Sua Historiografia: Fazendo A História nacional. In: WEHLING, Arno. (org.). Origens do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ideias filosóficas e sociais e estruturas de poder no Segundo Reinado. Rio de Janeiro: IHGB, 1989, p. 21-41. BENTIVOGLIO, Julio Cesar. A História no Brasil Imperial: A produção historiográfica na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839-1850). História: Questões & Debates, vol. 63, n.2, 2015. 5 GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Produção e disseminação do conhecimento histórico no Oitocentos: a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. In: Cristiano Alencar Arrais; Julio Bentivoglio. (Org.). As revistas de história e as dinâmicas do campo historiográfico. 1ed.Vitória (ES): Milfontes, 2017, v. 1, p. 26- 45. 6 GUIMARÃES, 2017, p. 40. 7 GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Da escola palatina ao silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2007, p. 24. 8 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017 12 moldasse o imaginário popular de acordo com seus valores. Para tanto, foram elaborados projetos e estratégias para apagar a memória do Império e instaurar uma nova identidade cultural, por meio de símbolos e mitos republicanos. Entretanto, o autor destaca que, apesar desses esforços, a República falhou na criação de um imaginário popular sólido e convincente. A batalha política e ideológica9 entre monarquistas e republicanos resultou na permanência de elementos simbólicos do passado imperial, dificultando a consolidação da nova ordem republicana. Nesse contexto, os monarquistas obtiveram vitória no campo simbólico. A tradição imperial foi resgatada e reinterpretada sob uma ótica republicana, como evidencia a ressignificação da imagem de D. Pedro II. Em 1922, durante as comemorações10 do centenário da Independência, o ex-imperador foi reconhecido como um “herói nacional”11, consolidando sua presença nas festividades republicanas. Esse processo culminou na celebração de seu centenário de nascimento em 1925, reforçando sua permanência na memória coletiva. A construção da imagem de Pedro II sobreviveu à queda do Império e atravessou a República, sustentada pelos intelectuais monarquistas e pelas instituições culturais criadas no Segundo Reinado. Desde o século XIX, o IHGB, conhecido como “Casa da Memória Nacional”, dedicou-se à escrita biográfica, conforme analisa Maria da Glória de Oliveira em sua tese Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista.12 As biografias publicadas pelo Instituto exaltavam figuras notáveis, apresentadas como modelos de virtude e moralidade. Esse gênero literário assumiu um caráter encomiástico e memorialístico, transformando-se em uma empreitada coletiva para preservar e difundir exemplos de conduta para a sociedade. As comemorações nacionais, como aponta Helenice da Silva em "Rememoração"/comemoração: as utilizações sociais da memória13, têm como função revisitar eventos do passado para legitimar regimes e reforçar valores específicos. O ato de comemorar não apenas relembra, mas também ressignifica acontecimentos históricos, consolidando uma memória coletiva voltada para o futuro. Nesse sentido, as celebrações 9 Sobre os embates entre monarquistas e republicanos, ver: ALONSO, Angela. Arrivistas e decadentes: o debate político-intelectual brasileiro na primeira década republicana. Novos estudos CEBRAP, 2009, p. 131-148. 10 Sobre a comemoração, ver: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Usos da história: refletindo sobre identidade e sentido. História em revista, Pelotas, v. 6, 2000. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. As festas que a República manda guardar. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 4, 1989/2. p. 172 – 189. 11 SCHWARCZ, 1999, p. 748. 12 OLIVEIRA, Maria da Glória de. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista. 2009. Tese (Doutorado em História Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. 13 SILVA, Helenice Rodrigues da. "Rememoração"/comemoração: as utilizações sociais da memória. Rev. Bras. Hist. [online]. 2002, vol.22, n.44, pp.425-438. ISSN 1806-9347. 13 dedicadas a Pedro II na República revelam um processo de rememoração seletiva, que buscava reforçar determinados aspectos do passado imperial em benefício do presente republicano. Essa nostalgia do Império é analisada por Ricardo Salles em Nostalgia Imperial: escravidão e formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado14. O autor argumenta que não se pode dissociar a monarquia da estrutura escravista que a sustentava. O Império, fortalecido durante a primeira metade do século XIX, fundamentava-se na riqueza gerada pelo trabalho escravo, o que conferiu estabilidade ao regime. A República, ao rememorar esse passado monárquico, enfatizava sua grandeza, prestígio e prosperidade, omitindo, porém, os problemas sociais e políticos da época. Essa nostalgia foi alimentada por historiadores, políticos e intelectuais que projetaram uma valorização do período imperial, com repercussões até a década de 1950. As instituições republicanas, assim como as imperiais, desempenharam um papel crucial na fabricação de heróis nacionais. Como analisa Armelle Enders em Os vultos da Nação: fábricas de heróis e formação dos brasileiros15, tais instituições selecionaram figuras históricas consideradas exemplares, destacando suas virtudes morais, cívicas e intelectuais para fortalecer a identidade nacional. Essa construção simbólica visava não apenas preservar a memória dos “brasileiros ilustres”16, mas também fornecer modelos de conduta para a sociedade. No campo das interpretações historiográficas, Lucas de Nicola, em sua dissertação Flores, algumas com espinhos, para o rei: controvérsias acerca de D. Pedro II (1920-1940)17, investiga as representações literárias do monarca nas décadas de 1920 e 1940. O autor identifica duas vertentes principais: uma visão monarquista, que retratava Pedro II como um rei sábio, justo e benevolente, e uma perspectiva republicana, que o descrevia como tirano, medíocre e mesquinho. Essa dualidade revela as disputas políticas e ideológicas em torno da memória do Imperador, cujas imagens foram manipuladas conforme os interesses de cada grupo. 14 SALLES, Ricardo. Nostalgia Imperial: escravidão e formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. Rio de Janeiro: Editora Ponteio, 2013. 15 ENDERS, Armelle. Os vultos da nação: fábricas de heróis e formação dos brasileiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. 16 ENDERS, 2014, p. 177. 17 DE NICOLA, Lucas Santiago Rodrigues de. Flores, algumas com espinhos, para o rei: controvérsias acerca de d. Pedro II (1920 – 1940). 2014. Dissertação (Mestrado em Culturas e Identidades Brasileiras) - Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. doi:10.11606/D.31. 2014.de-12012015- 182258. Acesso em: 2020-03-23. 14 Por fim, Luciana Fagundes, em sua tese Do exílio ao Panteão: D. Pedro II e seu reinado sob olhares Republicanos18, analisa a reconstrução da imagem de Pedro II sob a ótica republicana. A autora examina eventos como sua morte em 1891, o retorno de seus restos mortais em 1921 e o centenário de seu nascimento em 1925, destacando como essas celebrações foram utilizadas para reformular sua memória no contexto republicano. O IHGB e a imprensa carioca tiveram um papel central nesse processo, reunindo e publicando material comemorativo que reforçava a relevância do ex-imperador para a história do Brasil. O conjunto desta produção evidencia a complexidade da construção da memória de D. Pedro II na República. O presente estudo, visa, portanto, somar-se aos citados acima, a partir da análise das edições especiais da Revista do IHGB, com o objetivo de aprofundar a compreensão sobre o significado dessas comemorações, investigando como foram construídas as memórias e narrativas históricas do Império e do Imperador utilizadas no contexto republicano. A partir dos traços biográficos apresentados na Revista, é fundamental analisar a estratégia narrativa adotada pelos intelectuais da época na construção da figura de D. Pedro II. Em outras palavras, como um homem de outro tempo e de outro regime político foi reconstruído como modelo para aquele presente? De que maneira as imagens criadas por esses escritos biográficos buscaram atribuir sentido às ações do presente a partir da trajetória do monarca no passado? Quais episódios históricos foram selecionados e tornaram-se mais atrativos para o momento republicano, considerando o contexto comemorativo? Para analisar os enunciados destacados como produção de um discurso sobre o Imperador e o Império, serão fundamentais as noções e os procedimentos de análise indicados por Durval Muniz de Albuquerque Júnior, presentes no texto A dimensão retórica da historiografia19. Para o autor, o discurso é uma “peça oratória” dirigida a um público definido pelo ato da fala ou da escrita, por meio da qual se busca veicular uma comunicação, podendo ser lido ou ouvido. Ao examinar os discursos proferidos sobre a figura do monarca, torna-se necessário projetar sobre ele questões pertinentes ao passado imperial e às narrativas construídas a seu respeito, de modo a investigar quais informações foram consideradas relevantes e ganharam representação na República. Além disso, será essencial interrogar a produção desse discurso na Revista do Instituto e os agentes políticos envolvidos nessa construção, levando em conta as questões políticas, sociais e econômicas da República. 18 FAGUNDES, Luciana Pessanha. Do exílio ao Panteão: D. Pedro II e seu reinado sob olhares Republicanos. Curitiba: Editora Prismas, 2017. 19ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Discursos e Pronunciamentos. A dimensão retórica da historiografia. In: PINSKY, C. B.; LUCA, T. R (Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, p. 223-249. 15 O discurso analisado neste estudo será concebido como um monumento e tratado como “matéria de análise”, de modo que sua produção seja questionada em si mesma, e não apenas pelas informações que transmite sobre o passado. Considerando a materialidade do objeto de estudo — a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro —, bem como a divisão do volume impresso em temáticas e a seleção de textos e autores que o compõem, faz- se necessário recorrer às contribuições de Júlio Bentivoglio no texto Revistas de História: objeto privilegiado para se estudar a História da Historiografia?20. O autor discorre sobre esse tipo de fonte como um locus onde se tornam perceptíveis os mecanismos epistemológicos e de poder empregados pelos letrados para materializar pesquisas e fundamentar o campo científico da História. A reflexão de Bentivoglio contribui para a identificação de redes intelectuais, além de permitir o reconhecimento da centralidade de determinadas temáticas e a identificação de alianças, adesões e disputas que fornecem parâmetros para analisar as atividades dos letrados da agremiação carioca. Além dessas questões, é importante considerar as contribuições da historiadora Tania Regina de Luca, que, no texto História dos, nos e por meio dos periódicos, lança luz sobre os “contextos socioculturais específicos” nos quais se insere a Revista. Isso significa que a publicação deve ser pensada em associação ao seu espaço de produção — no caso desta pesquisa, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro —, responsável por produzir, selecionar, ordenar, estruturar e narrar o conteúdo publicado. A obra A Escrita da História21, de Michel de Certeau (1925-1986), especialmente o capítulo A operação historiográfica, contribui para a presente pesquisa ao permitir uma reflexão sobre o lugar de fabricação da história e da memória. Tal abordagem possibilita compreender essa produção em relação ao meio institucional e às tendências e demandas políticas, culturais, econômicas e sociais do período, bem como às regras de produção historiográfica vigentes. O IHGB, tomado como local de produção de narrativa historiográfica sobre as comemorações do regime imperial e do monarca no ano do centenário de nascimento de D. Pedro II, instituiu métodos, delineou uma “topografia de interesses”22 — definindo os limites do que poderia ou não ser dito — e selecionou os textos e artigos a serem publicados. A partir do lugar social da instituição e de suas técnicas, regras e métodos, torna-se possível 20 BENTIVOGLIO, Julio Cesar. Revistas de história: objeto privilegiado para se estudar a história da historiografia? In: BENTIVOGLIO, Julio; ARRAIS, Cristiano Alencar. (Org.). As revistas de história e as dinâmicas do campo historiográfico. 1ed.Serra: Milfontes, 2017, v. 1, p. 7-25. 21 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. 22 CERTEAU, 2011, p. 47. 16 compreender as “práticas científicas”23 dos letrados na construção da história, sempre dentro dos limites do possível. Além disso, considerando os escritos reunidos na Revista, busca-se refletir sobre a escrita como meio de representação da memória e da história, articulando-se com o desdobramento da “operação científica” construída pelo “corpo social” e pela “instituição do saber”.24 Para compreender os conceitos de memória, lembrança, recordação e rememoração, bem como aprofundar o entendimento sobre o papel das comemorações na República, a partir da RIHGB, faz-se necessário recorrer ao texto A memória, a história e o esquecimento, do filósofo Paul Ricoeur (1913-2005)25. A relação entre história e memória, embora marcada por diferenças, apresenta diversos pontos de interseção. Ao analisar o IHGB como um espaço de construção de ambas, é necessário diferenciá-las, mas também considerá-las em seus pontos de contato, visto que, na narrativa apresentada pela Revista, memória e história frequentemente se confundem. As considerações de Paul Ricoeur são fundamentais para esclarecer a relação entre memória e história, bem como para compreender os conceitos de lembrança, recordação, rememoração e comemoração, tal como aparecem no volume comemorativo da Revista. Por fim, para analisar as projeções futuras formuladas pelos letrados em seus escritos na Revista, serão adotadas as categorias de análise “espaço de experiência” e “horizonte de expectativas”, presentes na obra Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos26, do historiador Reinhart Koselleck (1923-2006). Tais categorias auxiliam na compreensão das experiências vividas no presente republicano de 1925 e das expectativas em relação ao futuro da nação brasileira no contexto das comemorações. O espaço de experiência remete ao “passado atual”27, ou seja, ao repertório de acontecimentos incorporados e lembrados, que podem ser mobilizados no presente. Já o horizonte de expectativas corresponde ao “futuro presente”28, voltado para aquilo que ainda não foi experimentado, mas pode ser projetado. Partindo dessa abordagem teórica, o primeiro capítulo tratará do delineamento da proposta de um programa comemorativo do centenário de nascimento de D. Pedro II pelos sócios do IHGB, com especial atenção à construção do tomo especial Contribuições para a 23 CERTEAU, 2011. 24 CERTEAU, 2011. 25 RICOEUR, Paul. A memória, a história, e o esquecimento. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007. 26 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. 27 KOSELLECK, 2006, p. 309. 28 KOSELLECK, 2006, p. 310. 17 Biographia de D. Pedro II29, publicado em 1925. Para compreender a organização dessa obra, será analisada a formação da comissão responsável pelo projeto, o processo de edição, a escolha da estrutura dos capítulos, a definição das temáticas e a seleção dos autores. Além disso, será examinada a elaboração da edição comemorativa da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB)30, publicada em 1927, que retomou a mesma temática, voltada para a biografia de D. Pedro II e o Segundo Reinado. Assim como no tomo especial, serão apresentados os responsáveis pela organização desse volume, a estrutura dos capítulos, as temáticas abordadas e os letrados cujos textos foram reunidos no periódico. A análise desses dois volumes se insere no contexto mais amplo das comemorações e da construção de uma memória oficial sobre o Império. Considerando que ambas as produções do IHGB refletem sobre a memória e a história do Imperador e do Império e resultam de um empreendimento vinculado ao programa comemorativo, o capítulo discutirá o papel dessas celebrações, seus sentidos, significados e justificativas. Nesse sentido, será fundamental compreender de que maneira as comemorações foram mobilizadas como estratégias de construção de um passado que dialogava com os interesses do presente republicano. A relação entre passado e presente também será central no segundo capítulo, que investigará como D. Pedro II foi apresentado nos escritos da Revista como um modelo para a Primeira República. Os tons moralizantes e a exemplaridade atribuída à sua biografia foram responsáveis por construir D. Pedro II como uma figura quase divina, sobre-humana, exaltada por meio de práticas de escrita laudatória e elogios repetidos. No entanto, ao mesmo tempo em que se buscava construir a imagem de um monarca idealizado, alguns textos também se ocuparam em apresentar seus defeitos e condutas errantes. Assim, ao longo do capítulo, serão problematizadas as múltiplas faces atribuídas a D. Pedro II, observando-se como sua figura foi moldada conforme os interesses políticos e intelectuais da época. A construção da imagem de D. Pedro II como modelo exemplar se articula diretamente com a seleção de acontecimentos do passado imperial que foram destacados nos textos comemorativos, tema central do terceiro capítulo. Nesse sentido, será problematizada a escolha de quais aspectos do período monárquico foram celebrados na década de 1920 e quais eventos foram considerados notáveis do tempo de D. Pedro II. Os textos ressaltam o progresso do período monárquico, enfatizando a constituição de sociedades comerciais e 29 REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRAPHICO BRASILEIRO. Contribuições para a biografia de D. Pedro II. Rio de Janeiro: Revista do IHGB, Tomo Especial, Parte I, 1925. 30 REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRAPHICO BRASILEIRO. Instituto Histórico e Geographico Brasileiro (1924). Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1927, t. 96, vol.150. 18 industriais, a fundação de bancos, a criação de telégrafos e estradas de ferro e o desenvolvimento da navegação. Essa seleção do passado, no entanto, não é neutra: ao exaltar os feitos do Império, os autores estabelecem uma comparação com o presente republicano, muitas vezes marcada por críticas à realidade contemporânea. À medida que se destaca o progresso da monarquia, reforça-se a ideia de que a revisão do passado pode oferecer ensinamentos para o presente, criando um discurso de contraste entre o Segundo Reinado e a Primeira República. Dessa forma, busca-se compreender como os escritos da Revista não apenas retomaram e organizaram memórias do Império, mas também contribuíram para a construção de um passado idealizado que servia aos interesses políticos e intelectuais da Primeira República. A interseção entre memória e história, a seleção de eventos do passado e a projeção de expectativas para o futuro revelam a complexa relação entre comemoração e política na historiografia do IHGB. 19 CAPÍTULO 1 COMEMORAR PARA SE FAZER JUSTIÇA, HONRA E LOUVOR: o projeto do centenário de D. Pedro II no IHGB Nas intersecções entre história e memória, é importante destacar as comemorações e celebrações como eventos ricos que permitem entender as relações entre uma e outra, bem como compreender as conexões que uma sociedade guarda com o seu tempo, isto é, analisar as escolhas feitas sobre o passado, seus usos e ordenações temporais. As comemorações, como um trabalho de reapropriação do pretérito, tendem a “inscrever as construções humanas” em um certo “tempo mítico”, respaldando as criações de tempo social e cultural. Nesse movimento de comemoração acontecem as ritualizações da História, que sinalizam para o presente uma noção de passado a ser constantemente “recordado como forma de manutenção simbólica” no que se refere aos “laços de pertencimento coletivo”.31 No processo de construção dos Estados-Nação, ocorrido ao longo do século XIX, coube à História servir aos projetos políticos de nação, buscando respaldo e legitimação para identificar em tempos remotos as questões pertinentes que pudessem sustentar um projeto de memória capaz de alimentar a ideia de identidade. Essa operação marcou grande parte da escrita da História na “cultura oitocentista” no Brasil, momento em que houve uma forte relação entre “projetos de escrita sistemática das lembranças do passado e produção de memória social”.32 No processo de construção do passado como uma “projeção do presente” e expressão de aspirações para o futuro, a História moderna desempenhou o papel de domesticá-lo de acordo com os significados atribuídos pelo tempo presente. Nesse esforço de relembrar o passado, um conjunto diversificado de “estratégias rememorativas” é acionado, com as comemorações assumindo um papel central na ritualização do tempo histórico. Nesses rituais, os grandes feitos relembrados e a exemplaridade das ações atribuídas aos “grandes homens” tornam-se fundamentais para orientar e consolidar os valores de uma “coletividade”.33 No final do século XIX, observa-se o surgimento de uma “onda dos centenários”34, fenômeno presente em ambos os lados do Atlântico. Em 1876, por exemplo, a América do Norte celebrou o centenário de sua independência. Do outro lado do oceano, em 1889, a França comemorou o centenário da Revolução Francesa. Outras celebrações marcantes incluem os festejos relacionados aos “descobrimentos” na América, em 1892, e os eventos 31 GUIMARÃES; CEZAR, 2022, p. 38-39. 32 GUIMARÃES, 2022, p. 38-39. 33 GUIMARÃES, 2022, p. 43. 34 BONALDO, Rodrigo Bragio. Comemorações e efemérides: ensaio episódico sobre a história de dois paralelos. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2014. 20 que celebraram o início do século XX, no ano de 1900. Nesse mesmo período, a avalanche comemorativa também alcançou a Austrália, que, em 1888, comemorou o centenário de sua colonização. Em Portugal, destaca-se a celebração do “tricentenário de Camões”.35 No contexto das comemorações na França no final do século XVIII, observa-se o surgimento de novos símbolos nacionais destinados a promover a “coesão social” e romper com a tradição das ordens monárquicas e aristocráticas. Para reforçar essa ruptura, a França apostou na criação e substituição de símbolos que remetessem à República, como a bandeira, o hino, datas comemorativas, cerimônias, procissões, marchas, festas dedicadas à deusa da razão e figuras heroicas.36 O objetivo era fazer com que os cidadãos reconhecessem esses novos símbolos, fortalecendo sua identidade nacional e legitimando o regime republicano emergente. Nesse cenário, a comemoração desempenhou um papel fundamental na prevenção do esquecimento histórico, uma vez que os revolucionários utilizaram festividades como instrumentos para disseminar os ideais republicanos e fixar essas memórias no imaginário coletivo. Além das comemorações, destaca-se a reestruturação do calendário francês como ferramenta central para consolidar o poder do novo regime. A reorganização temporal foi concebida como uma forma de “controlar o tempo”, com o objetivo de estabelecer datas simbólicas que rompessem com o passado monárquico.37A nova França cercou-se de “datas, heróis, monumentos, músicas e folclore”38 para construir uma memória nacional capaz de projetar os valores republicanos e assegurar a legitimidade do sistema político instaurado. No Brasil, ao longo do século XIX, especialmente durante o Segundo Reinado, é possível identificar um esforço comemorativo que se manifesta na “seleção de datas memoráveis” e na realização de festas promovidas por órgãos civis e pela imprensa.39 Com a República, houve um enriquecimento do imaginário nacional, com a criação de novos heróis, datas e celebrações simbólicas, com o objetivo de dar concretude ao novo regime.40 O primeiro feriado republicano foi o 21 de abril de 1890, consagrando a figura de Tiradentes como um “mártir e precursor da Independência”. Ele foi considerado digno das “mais altas honras oficiais” pelos discursos das autoridades da época, como Deodoro da Fonseca e seus ministros, além de ser exaltado nos “desfiles dos clubes republicanos”.41 35 BONALDO, 2014, p. 45. 36 OLIVEIRA, 1989, p. 173. 37 OLIVEIRA, 1989, p. 173. 38 OLIVEIRA, 1989, p. 174. 39 BONALDO, 2014, p. 64. 40 ENDERS, 2014, p. 277. 41 ENDERS, 2014, p. 278. 21 Além dessa data emblemática, destacam-se outras que foram consideradas essenciais pelo Governo Provisório de 1890 para garantir a “continuidade” e fomentar a “solidariedade entre todas as gerações humanas”, criando “laços especiais” que unissem os povos em prol de uma nação e de um destino comum.42 São elas: 1 de janeiro (comemoração da fraternidade universal), 3 de maio (Descoberta do Brasil), 13 de maio (fraternidade dos brasileiros), 14 de julho (república, liberdade e independência dos povos americanos), 7 de setembro (Independência do Brasil), 12 de outubro (Descoberta da América), 2 de novembro (Dia de Finados) e 15 de novembro (Comemoração da República Brasileira).43 Somada a essa “liturgia anual” das principais datas nacionais, a Primeira República vivenciou o ciclo dos centenários, como as comemorações do “Descobrimento do Brasil” em 1900, da “Abertura dos Portos” em 1908 e, logo em seguida, o centenário da Independência, em 1922. O país se encontrava imerso em uma onda de festejos e centenários, criados com o objetivo de cultivar virtudes cívicas, conferindo maior concretude e vigor ao Estado44. Diversos agentes estiveram envolvidos na organização dessas festividades nos anos de 1900, 1908 e 1922, como historiadores, arquitetos, escritores e pintores. Entre eles, destacam-se João Capistrano de Abreu, Adolfo Morales de Los Rios, Olavo Bilac, Henrique Bernardelli e Ramiz Galvão.45 Poucos anos depois desta grande comemoração do Centenário da Independência, em 1925, a República comemorava o seu 36º aniversário. O evento, no entanto, foi pouco celebrado, se comparado a outro centenário, o centenário natalício de D. Pedro II, em 2 de dezembro. Esta comemoração, em particular, adquiriu grande importância, pois contou com a presença das mais altas autoridades governamentais e foi marcada por um imenso contingente de elogios ao imperador.46 A comemoração do centenário de D. Pedro II foi um movimento amplo, envolvendo instituições e periódicos de diversas regiões do país durante o regime republicano. Este estudo analisa como essa comemoração, ocorrida na década de 1920, contribuiu para consolidar a construção de uma memória monárquica, ao promover o encontro entre o presente republicano e o passado imperial. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, responsável pela produção e difusão do saber histórico nacional, desempenhou um papel fundamental na organização do centenário natalício do Imperador, atuando na construção memorial e historiográfica de D. Pedro II e de 42 OLIVEIRA,1989, p. 183 43 OLIVEIRA, 1989, p. 182. 44 ENDERS, 2014, p. 290-291. 45 ENDERS, 2014, p. 293. 46 ENDERS, 2014, p.276. 22 seu tempo. Coube a ele, como fruto do projeto comemorativo, “transformar as lembranças do passado” a fim de organizar um relato coerente e produzir sentido e significado para a vida coletiva, buscando espalhar valores pertencentes a um grupo em direção à “vida coletiva no futuro”.47 O trabalho de comemoração realizado pelo IHGB pode ser observado a partir da publicação de dois volumes de sua revista voltados à construção da imagem de D. Pedro II e do Segundo Reinado: o primeiro, publicado em 1925, e o segundo, um tomo comemorativo, publicado em 1927. Trata-se de duas edições distintas. A primeira, intitulada Contribuições para a Biographia de D. Pedro II, surgiu a partir de um projeto do Instituto, iniciado em 1922 por uma comissão eleita pela própria instituição. Em grande parte, os textos que compõem esse volume são frutos de pesquisas e estudos “histórico-biográficos” realizados pelos sócios do Instituto. Esses textos seguem as normas historiográficas da época e têm como intenção a veracidade, comprovada por procedimentos de pesquisa, como a presença de referências bibliográficas em notas de rodapé e citações de documentos históricos. A outra edição é composta pela seleção realizada pelo IHGB de matérias publicadas por diversos jornais que se dedicaram a publicar artigos comemorativos ao Centenário de D. Pedro II. Trata-se do tomo 98, volume 152, planejado para 1925, mas publicado apenas em 1927. Os textos reunidos aqui, em grande parte, são biográficos, discursos de louvor e homenagens, apresentando um conjunto memorialístico de D. Pedro II e do Segundo Reinado. Essas duas peças textuais, de caráter memorialístico e historiográfico, integram-se a outras produções de diversos gêneros, como romances, crônicas, dramas, peças teatrais, entre outros, compondo uma “narrativa de história ensinável”. Essa narrativa buscava atingir um público leitor mais amplo, além do restrito universo das academias e institutos. Por meio dessa abordagem, planejada e desenvolvida em diversos espaços, foi possível estabelecer uma organização de conteúdos e métodos de escrita que consolidaram a disseminação de uma “educação histórica” destinada a crianças, jovens e adultos. Esse processo contou com a atuação de historiadores, literatos, editores, artistas plásticos, entre outros, e objetivava a constituição de uma “matriz narrativa” voltada à integração da “cultura política” com a “cultura republicana” no país.48 Desde o início do século XX, esse modelo de história ensinável tem procurado conciliar a tradição monarquista com a escrita da história republicana, ao mesmo tempo em que dialoga com o legado colonial. Nesse contexto, construiu-se um enredo que conectou 47 GUIMARÃES, 2022, p. 50. 48 GOMES, Angela de Castro. A Marquesa de Santos: história, memória e ficção histórica no Brasil da primeira metade do século XX. ESTUDOS IBERO-AMERICANOS, v. 45, 2019, p. 91. 23 “eventos e figuras do passado colonial, imperial e republicano”, projetando um “passado histórico comum”49. Exemplifica essa abordagem o romance histórico A Marquesa de Santos, de Paulo Setúbal, publicado em 1925. A obra aproveitou o contexto das comemorações do Centenário da Independência de 1922, privilegiando o Primeiro Reinado como marco fundador do Império do Brasil, com um tom iconoclasta. Outros romances históricos reforçam essa perspectiva, como As Maluquices do Imperador (1927), também de Paulo Setúbal, e D. Pedro I e o Grito da Independência (1927), de Assis Cintra. É nesse cenário de produções literárias e históricas que se investiga o papel desempenhado pelo IHGB. Nos anos 1920, em um período marcado por tempos de nacionalismos, é pertinente questionar o papel dessa produção sobre o passado monárquico, particularmente no que se refere à importância e ao espaço assumido pela Revista do Instituto ao publicar duas edições vinculadas à agenda comemorativa do Centenário de D. Pedro II. O objetivo geral deste capítulo é demonstrar como as edições da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB) de 1925 e 1927, originadas de um projeto comemorativo esboçado pela agremiação intelectual em 1922, atuaram, no contexto republicano, na construção de um passado glorioso. Essas edições destacaram a figura de D. Pedro II e seu período como dignos de reconhecimento, justiça, honra e louvor. Ao longo do capítulo, será analisado como essas publicações constituíram um projeto de memória e história, materializando o empreendimento comemorativo do IHGB. Isso foi viabilizado pela mobilização de seus sócios e pela seleção de artigos da imprensa que homenagearam D. Pedro II e o Segundo Reinado. Para compreender esse processo, será necessário examinar quando e como essa agenda foi definida, a constituição da comissão responsável pelo projeto, a estrutura dos volumes publicados e os significados atribuídos ao evento comemorativo. Nesse contexto, serão consideradas as discussões prévias que sustentaram o evento e a organização dos dois volumes da Revista, bem como o papel dessas comemorações na construção de um passado inventado pelo IHGB. Este primeiro capítulo analisará a formulação do programa comemorativo do centenário de nascimento de D. Pedro II, elaborado pelos sócios do Instituto. A atenção recairá especialmente sobre o tomo Contribuições para a Biographia de d. Pedro II, publicado em 1925, com foco na estrutura editorial da obra, incluindo a definição das temáticas, a escolha dos autores e a organização dos capítulos. Também será examinada a edição comemorativa50 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB), de 49 GOMES , 2019, p. 91. 50 REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRAPHICO BRASILEIRO. Instituto Histórico e Geographico Brasileiro (1925). Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1927, t. 98, vol.152. 50 GUIMARÃES, 1988, p. 5. http://lattes.cnpq.br/6423116545839346 24 1927, que retomou o tema da biografia de D. Pedro II e do Segundo Reinado. Serão destacados os responsáveis pela edição, a forma de organização do conteúdo e os temas abordados, estabelecendo paralelos com a primeira publicação. 1.1 O IHGB, a historiografia e a Primeira República Como um espaço privilegiado da produção historiográfica do Brasil durante o século XIX, o IHGB desempenhou um papel central na construção da “historiografia”, das “visões” e das “interpretações” sobre o nacional.51 O reduto intelectual buscou apontar caminhos para a concretização da produção escrita histórica, logo, era necessário delimitar o perfil da “nação”, ou seja, forjar uma fisionomia que representasse o nacional, por meio da homogeneização da visão do Brasil no imaginário das “elites brasileiras”. A escrita da história procurou, então, atender a um projeto de “Nação brasileira”, fornecendo uma “identidade própria, capaz de atuar tanto externamente quanto internamente”. Nesse movimento de delimitação do nacional, os indígenas52 e os negros53 foram tendencialmente excluídos do projeto, por serem considerados não “portadores da noção de civilização”, sendo definidos como o “outro”.54 No mesmo ano de sua fundação, a instituição se colocou “debaixo da imediata proteção imperial”55. Em 1838, D. Pedro II foi convidado a ser o “protetor” da entidade, a qual passou a visitar com frequência e a manter-se inteirado das discussões.56 A associação intelectual não mediu esforços na construção do perfil do monarca. A serviço de um projeto político bem estruturado, os sócios do Instituto se empenharam em forjar a “imagem pública de D. Pedro II” – para o que muitas vezes utilizaram os conceitos de “perfeição” e a “idade de ouro” como formas discursivas –, e as representações se deram “em consonância com as diferentes fases do seu longo reinado”. Nesse processo de construção, “passado e presente se conjugavam na figura do único monarca americano”.57 Desde pequeno, acompanhado de seu tutor e de suas irmãs, Pedro II prestigiava “as sessões magnas” do Instituto, e sua presença se tornou assídua nas atividades, de modo que 51 GUIMARÃES, 1988, p. 5. 52 Sobre os indígenas, ver: TURIN, Rodrigo. Tempos cruzados: escrita etnográfica e tempo histórico no Brasil oitocentista. 2009. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. 53 Sobre os negros, ver: MANHANI, Luís Roberto. O discurso sobre o negro na historiografia e na etnografia do IHGB (1839-1925). 2021. 156 f. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2021. 54 GUIMARÃES, 1988, p. 6. 55 GUIMARÃES, 2011. 56 SCHWARCZ, 1998, p. 127. 57 GUIMARÃES, 2011, p. 109. 25 “nem de longe se comparava a uma visita protocolar”.58 Pedro II participou ativamente, por meio da instituição de prêmios anuais, incentivou a produção intelectual, “atribuía aos sócios temas para dissertações” e chegou a delegar onze programas históricos, abordando diversas temáticas. O monarca correspondia aos esforços intelectuais dos integrantes da “associação de sábios” e se interessava por todos os assuntos retratados, “ora participando de debates, ora trazendo livros recém-publicados” para serem discutidos.59 Com o primeiro volume publicado em 1839, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB) se constituiu como um “fórum privilegiado do debate político-intelectual”60, ocupando um lugar de destaque no “cenário cultural brasileiro” da época. Desempenhou um papel fundamental na “produção e disseminação do saber histórico”, entendido como um espaço de “inovação intelectual”61. Essa Revista contemplava práticas de cunho científico e apresentava, em certa medida, traços de modernidade, identificáveis na presença da comissão de redação e do editor, ambos responsáveis por elaborar a política editorial e aplicá-la, além de considerar as avaliações submetidas pelos pares antes da publicação. Com a crise do Estado monárquico, agravada por questões sociais, econômicas e políticas, o prestígio da figura real foi abalado. A deterioração acelerada da “ordem senhorial- escravocrata”62, juntamente com outros princípios desequilibradores das forças políticas imperiais, como a “questão religiosa” e a “questão militar”, enfraqueceu fortemente a monarquia. A crise do Império se intensificou ainda mais com as transformações em curso, sendo sentida pela “correlação das forças sociais do país”, como o surgimento do Partido Republicano em São Paulo e a força do abolicionismo63. Além disso, foi na segunda metade do século XIX, mais precisamente a partir da década de 1870, que surgiram dissensões partidárias, acompanhadas por alianças entre grupos divergentes dos partidos Liberal e Conservador. A descentralização político-administrativa, a limitação do Poder Moderador e os empréstimos concedidos à agricultura foram questões que evidenciaram as dificuldades do Parlamento, contribuindo para a instabilidade política do Segundo Reinado.64 A ausência de uma corrente ideológica sólida entre os políticos ligados ao Império favoreceu a formação de 58 GUIMARÃES, 2011, p. 110. 59 GUIMARÃES, 2011, p. 111. 60 GUIMARÃES, 1989, p. 23. 61 GUIMARÃES, 2017, p. 26-45. 62 FAUSTO, Boris; CARDOSO, Fernando [et al.]. História geral da civilização brasileira. O Brasil republicano, v.8 : estrutura de poder e economia (1889-1930). 8ª. ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 19. 63 FAUSTO; CARDOSO et al., 2006, p. 29. 64 JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. O Diálogo Convergente: Políticos e Historiadores no Início da República. FREITAS, Marcos Cezar(org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 6.ed. São Paulo: Contexto, 2007, p. 126. 26 uma base republicana forte, marcada pelas adesões de grupos liberais e conservadores à República.65 Frente às crises do regime monárquico, a solução apontada foi a “República cafeicultora”, antecedida por uma “ditadura militar”.66 Diante desse processo, gradualmente a monarquia perdeu espaço, e a República ganhou corpo, difundindo ideias ligadas ao mérito, à ciência e à evolução histórica, as quais dariam concretude para a vigência da civilização, do progresso e da modernidade na Primeira República.67 No entanto, essa transição68 de um regime a outro não se deu de forma harmônica e consensual. Lutas políticas, dissensões e fraturas partidárias marcaram as primeiras décadas republicanas. Havia grupos políticos que protagonizavam sangrentas disputas, como a Revolução Federalista — o movimento mais contundente que agitou os primeiros anos republicanos.69 Dissidências estaduais, a liberdade de imprensa e a organização de grupos monarquistas foram arrastados no roldão da violência.70 Os grupos dominantes, que travavam lutas pelo poder, se entrechocavam para estabelecer uma concepção unânime de República e, por sua vez, tinham distintas expectativas sobre o destino político do regime.71 Por mais que o discurso republicano vigorasse em alto e bom som, vozes subjugadas não deixaram de denunciar as iniquidades, os conflitos e as várias decretações de estados de sítio, além de inúmeros problemas, como as prisões de políticos civis e militares, o empastelamento de jornais, assassinatos, depredações e intenso conflito parlamentar.72 Do ponto de vista da escrita da história, com o advento da República, em 1889, o IHGB enfrentou grandes dificuldades para cumprir as demandas do sistema político vigente, visto que a mentalidade monárquica prevalecia na maioria dos intelectuais que compunham a agremiação. A Escola Palatina73 quase cerrou suas portas74 e passou por sucessivas crises, até transformar e canalizar suas pretensões voltadas aos interesses republicanos. Dessa forma, a escrita histórica estava sujeita a um processo de redefinição; era preciso reescrever e revisar a história da nação, fazendo uso de novas práticas e procedimentos. Os letrados deveriam se 65 JANOTTI, 2007, p. 127. 66 JANOTTI, 2007, p. 147. 67 SILVA, Bárbara Winther da. A escrita da história no IHGB no final do Império e Primeira República. 2015. 101 f. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2015, p. 16. 68 A mudança na forma de regime não alterou a composição da classe que dominava, muito menos na sua “fração hegemônica”, como a “burguesia agrária” e a “cafeicultora”. Houve nesse período uma “rearticulação” de instituições repressivas que pudessem manter a ordem (FAUSTO; PINHEIRO, 2006, p. 266). 69 JANOTTI, 2007, p. 127. 70 JANOTTI, 2007, p. 129. 71 JANOTTI, 2007, p. 130. 72 JANOTTI, 2007, p. 124. 73 É uma expressão cunhada pelo letrado Araújo Porto-Alegre (1806-1879) para remeter ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). O termo faz uma alusão à primeira universidade medieval surgida na corte do rei dos francos, Carlos Magno (742-814) (GUIMARÃES, 2007, p. 15). 74 GUIMARÃES, 2007, p. 24. 27 conformar a uma nova tendência e desvincular suas questões do período monárquico. Com isso, a associação buscava apresentar uma nova forma de escrita que contemplasse a ordem que se impunha.75 No referido contexto, houve um processo de reconstrução da escrita da história e de uma cultura cívica republicana, que se daria por negociação e apropriação de tradições. Tratava-se da criação ou recriação de uma história e de memórias nacionais.76 Para construir sua legitimidade, a Primeira República investiu na criação de uma nova tradição, composta por um aparato simbólico inédito, visando contemplar e remodelar o imaginário popular de acordo com os princípios republicanos. Nesse movimento de inventar uma nova tradição, foram publicadas biografias dos "velhos republicanos", que serviriam como modelo e inspiração para as gerações vindouras, a fim de prepará-las para ocupar seu lugar em um Brasil moderno. Entre as biografias publicadas, destacam-se as escritas por Antônio Joaquim de Melo (1794-1873), como as de Natividade Saldanha, Abreu e Lima, Luís Alves Pinto, José Correia Picanço e Gervásio Pires Ferreira.77 Somado a esse esforço, na tentativa de propagar a visão republicana, destaca-se o livro de Gonzaga Duque, Revoluções Brasileiras (1897), um tipo de ensino pedagógico voltado para o uso nas escolas, para que as crianças pudessem entender a história do Brasil, mais precisamente o contexto republicano, como uma revolução. O livro afirmava que, dentre todas as revoluções, a proclamação da República seria o "coroamento de todas as revoluções".78 Foram idealizados projetos e estratégias para apagar a memória do Império e construir uma nova configuração cultural79, o que desencadeou batalhas ideológicas e políticas entre monarquistas e republicanos. Se, por um lado, os republicanos preservaram a ideia do Império como decadente, lançando-se à edificação de uma tradição republicana que superasse a imperial, por outro, os monarquistas se dedicaram a resgatar a tradição imperial, colocando o regime anterior como o ápice da civilização, enquanto a República era vista como uma ruína.80 No embate, os esforços republicanos para consolidar a legitimidade do regime não foram bem-sucedidos, sobretudo no plano imagético e simbólico. Apesar da intencionalidade, os agentes da República não conseguiram criar um imaginário popular republicano81, e os monarquistas venceram o embate simbólico com diversos empreendimentos para reconstruir a 75 GOMES, Angela de Castro; A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009, p. 9. 76 GOMES, 2009, p. 12. 77 MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira vol. IV (1877-1896). São Paulo, Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1978, p. 497-498. 78 _________. História da inteligência brasileira vol. V (1897-1914). São Paulo: Cultrix: Ed. da Universidade de São Paulo, 1978, p. 18-19. 79 CARVALHO, 2017. 80 ALONSO, Angela. Arrivistas e decadentes: o debate político-intelectual brasileiro na primeira década republicana. Novos estudos CEBRAP, 2009, p. 133. 81 CARVALHO, 2017, p. 11 28 tradição imperial na República, a partir da remodelagem de imagens e símbolos monárquicos. Nesse contexto, a própria figura de D. Pedro II esteve sujeita a tais interesses, e a festa do centenário da Independência do Brasil, em 1922, o elegeu como um herói nacional.82 Em meio a esse espaço de disputas, ocorreu o processo de ressignificação da imagem de Pedro II — processo que tomou grande parte do período republicano — não mais como uma figura de Estado, mas como um símbolo apropriado à República. No âmbito do IHGB, a grandeza da figura imperial não era ofuscada83, e havia uma forte memória da atividade do Imperador como grande mecenas da agremiação, cujos sócios não mediram esforços na comemoração de seu centenário de nascimento, em 1925. O contexto em que se deu o centenário natalício de D. Pedro II, mais precisamente no período compreendido entre 1922 e 1926, durante o governo de Arthur Bernardes (1875- 1955), foi marcado por uma grande escala de repressão do Estado. Essa repressão não atingiu apenas os participantes das revoltas tenentistas de 1922 e 1924, mas também o movimento político em favor da causa operária. O governo Bernardes foi caracterizado por uma série de decretações de estado de sítio. Ele era uma figura extremamente impopular, especialmente em algumas áreas urbanas da região do Rio de Janeiro, onde agiu com forte repressão policial.84 Além dos decretos de estado de sítio, o governo republicano recorria à deportação e expulsão, o que alimentava a violência policial contra as organizações operárias, tidas como inimigas do governo e da sociedade.85 Do ponto de vista financeiro, o governo de Arthur Bernardes não conseguiu agradar a todos os setores: o Nordeste reclamava do abandono dos planos contra a seca, os gaúchos se queixavam da inflação e a insatisfação dos assalariados era constante.86 Foi durante o seu mandato que ocorreu a fase heroica do movimento tenentista, com os principais acontecimentos, como as marchas, os levantes e as colunas, destacando-se a Marcha dos 18 do Forte em 1922, o levante de São Paulo em 1924 e a Coluna Prestes em 1925 – ano do centenário natalício de D. Pedro II.87 82 SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 503. 83 AVELAR, Alexandre de Sá. Entre a tradição e a inovação: o IHGB e a escrita biográfica nas primeiras décadas republicanas. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 13, n. 33, 2020, p. 400. 84 FAGUNDES, 2017, p. 284. 85 FAGUNDES, 2017, p. 284. 86 FAUSTO; PINHEIRO, 2006, p. 442. 87 JÚNIOR, Mário Cléber M. Lanna. Tenentismo e crises políticas na Primeira República. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org.). O Brasil Republicano. O tempo do liberalismo excludente. Da Proclamação da República à Revolução de 1930. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v. 1. p. 317. http://lattes.cnpq.br/4838146606344520 http://lattes.cnpq.br/4838146606344520 29 No ano paradigmático de 1922, ocorreram marcos considerados pela historiografia como fundadores de um Brasil inédito, como o surgimento do Partido Comunista Brasileiro, a Semana de Arte Moderna, a manifestação precursora do movimento tenentista e a comemoração dos cem anos da Independência do Brasil.88 O Centenário da Independência, em 1922, incitou a participação da intelectualidade e da população em geral, envolvendo os principais centros urbanos do país, como Rio de Janeiro e São Paulo. Foi nesse cenário que os intelectuais se dedicaram de forma intensa a criar um saber próprio sobre o país. O imperativo era conhecer, desvendar, investigar e mapear o Brasil e sua realidade, assim como desenhar os contornos e atribuir formato à identidade da nação.89 A comemoração do Centenário da Independência despertou discussões sobre a formação e as visões da sociedade brasileira, permitindo recolocar no debate os dilemas da salvação nacional. A questão a ser enfrentada era a construção de um Brasil moderno; os intelectuais do período deveriam se dedicar de corpo e alma aos estudos sobre o país. Muitos foram os intelectuais responsáveis por refletir sobre essa questão, com destaque para Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Menotti dei Picchia, Oliveira Viana, Lima Barreto, Licínio Cardoso, Tristão de Ataíde, entre outros.90 Em relação às celebrações de 1922 promovidas no âmbito do Instituto Histórico, considerando os centenários mais conhecidos como "fastos nacionais", com especial atenção às comemorações da Independência, esse fenômeno trouxe novas interpretações para o estudo da história pátria. As comemorações visaram fomentar e difundir virtudes cívicas, a fim de criar e cultivar cidadãos de bem, apontando direções para uma historiografia que buscava legitimar o presente ao "reanimar o passado".91 Foi nesse marco temporal que se deu a definição de uma agenda comemorativa do centenário natalício de D. Pedro II, um programa executado pelo IHGB, que desempenhou um papel fundamental na preparação das comemorações em meados de 1922. 1.2 Definição de um programa comemorativo: a festa que a República manda guardar O anno glorificador de 1922, como para os fastos brasileiros foi o seu correlato historico, o Anno da Independencia de 1822, representa para esta casa um marco heroico de productiva lucta e immarcessiveis trophéos, colhidos em prol do bom renome, defesa e guarda-fiel de nossas tradições e de nossa Historia [...]. Foi o anno de 1922, para esta companhia, de intenso e 88 MOTTA, Marly Silva da. A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência. Rio de Janeiro: Editora FGV/CPDOC, 1992. p. 1-13. 89 MOTTA, 1992, p. 4. 90 MOTTA, 1992, p. 6. 91 GUIMARÃES, 2007, p. 17. 30 indefesso labor patriótico, e nelle como symbolo de consagração nacional á nossa maior data [...].92 Com bastante antecedência, a comemoração do centenário da Independência começou a ser preparada pela agremiação intelectual. Em 1898, Manuel Francisco Correia sugeriu que o grêmio se voltasse aos órgãos públicos na tentativa de orquestrar o programa celebrativo da efeméride de 1922.93 Mais tarde, em 1921, Max Fleiuss apresentou um projeto que visava celebrar os centenários das chamadas grandes datas de 1822, com o objetivo de rememorar as glórias que antecederam e sucederam o evento da Independência. Apoiado por Afonso Celso, Fleiuss destacou a urgência de se comemorar essas datas, concebendo-as como um verdadeiro curso da história nacional.94 O caráter propulsor das grandes consagrações cívicas, identificado no ato de celebrar os marcos do passado, esteve presente no Instituto desde sua fundação. O projeto de consagração das glórias históricas tem acompanhado a instituição, que se dedica a homenagear os principais vultos e abordar pontos controversos da história, geografia e etnografia nacionais.95 No contexto que envolveu o Centenário da Independência, merece destaque o discurso do presidente da República e sócio efetivo do IHGB, Epitácio Pessoa (1865–1942), proferido à Câmara dos Deputados em 1920. Nele, Pessoa argumentou a favor da autorização para o translado e funeral no Brasil dos restos mortais de D. Pedro II e da Imperatriz D. Teresa Cristina.96 Segundo ele, a celebração do Centenário era uma oportunidade de praticar um ato de elevação moral, revelando a consciência de uma continuidade histórica e ressaltando a importância de lembrar os servidores do passado. Pessoa destacou a missão e os notáveis serviços prestados por D. Pedro II à nação, sobretudo na moralização do serviço público, no desenvolvimento das letras e na defesa nacional.97 O planejamento do ritual fúnebre – empreendido com sucesso em 1921 – foi justificado pelo argumento de que honrar a memória dos grandes homens era um dever do 92 FLEIUSS, Max. Relatorio do sr. Max Fleiuss, secretario perpetuo. RIHGB, t. 92, v. 146, Parte II, 1922, p. 571. 93 GUIMARÃES, 2007, p. 133. 94 GUIMARÃES, 2007, p. 134. 95 FLEIUSS, Max. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro através de sua Revista”. Boletim do Instituto Histórico. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. 96 Sobre o funeral de d. Pedro II, ver: GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Os funerais de d. Pedro II e o imaginário republicano. In: SOIHET, Rachel et al. (Org.). Mitos, projetos e práticas políticas: memória e historiografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 69-92. 97 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRAPHICO BRASILEIRO, Transladação dos restos mortais de D. Pedro II e de D. Teresa Cristina. Rio de Janeiro: Revista do IHGB. Tomo Especial, 1925, p. 17-18 Apud GUIMARÃES, 2007, p. 165. 31 cidadão de bem. Portanto, tornou-se urgente arquitetar uma grandiosa assembleia de talentos e virtudes. Foi nesse contexto, em meio à organização das celebrações do Centenário da Independência e ao projeto das exéquias, que o centenário natalício de D. Pedro II foi proposto. Esse gesto político tinha como objetivo glorificar a memória do Imperador e, dentro das atribuições do IHGB, domesticar98 o passado do Império Brasileiro. Tratava-se de uma celebração que o tempo republicano demandava preservar, e cuja preparação ficou a cargo do IHGB. Daqui a pouco mais de tres annos, a 2 de Dezembro de 1925, ocorrerá a data centenária do nascimento de d. Pedro II. Este facto não póde deixar de ser convenientemente apreciado pelo INSTITUTO, a que o imperador tanto se dedicou.99 Na primeira sessão ordinária de 1922 no IHGB, realizada em 21 de abril, foi apresentada a proposta de Max Fleiuss (1868–1943) para a comemoração do centenário natalício de D. Pedro II. Para ele, o evento não poderia ser negligenciado, considerando a dedicação do Imperador ao Instituto. Em suas palavras, “a figura de D. Pedro reflete toda a nossa existência política num largo trecho de 49 anos”.100 Posteriormente101, os membros do IHGB se dedicaram à discussão do programa de comemorações elaborado por Augusto Tavares de Lyra, vice-presidente e relator da comissão promotora das homenagens. Após aprovação pelos membros do Instituto, o programa estabeleceu que, em 2 de dezembro de 1925, seriam publicadas contribuições escritas sobre a vida e o período de governo de D. Pedro II. Entre essas obras estavam os estudos de Joaquim Nabuco (Em S. Vicente de Fóra) e Carlos Magalhães de Azevedo (Traços da sua physionomia moral), além do discurso proferido por Oliveira Lima no Instituto da França, considerados subsídios valiosos para a biografia do monarca.102 Além disso, ficou definido que, na mesma data, seriam realizadas cerimônias religiosas solenes na Catedral ou uma missa campal na Quinta da Boa Vista, com o apoio das autoridades eclesiásticas do Arcebispado. No IHGB, ocorreria uma sessão solene com dois 98 GUIMARÃES, Manoel L. S. “Escrever História, Domesticar o Passado”. In: LOPES, Antônio H. (org.). História e Linguagens: texto, imagens, realidade e representações. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. 99 FLEIUSS, Max. PRIMEIRA SESSÃO ORDINARIA, A 21 DE ABRIL DE 1922. RIHGB, Rio de Janeiro, t. 92, v. 146, 1926, p. 388. 100 FLEIUSS, 1926, p. 388. 101 Entre os anos de 1922 e 1925 não foi registrado nas atas do periódico nenhum acontecimento notável no tocante a agenda das comemorações do centenário. 102 ROURE, Agenor. 87º ANNOS – SEGUNDA SESSÃO ORDINARIA, REALIZADA EM 29 DE MAIO DE 1925. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 351. 32 discursos: um do presidente da instituição, Afonso Celso, e outro do orador perpétuo, Ramiz Galvão, ressaltando o papel histórico e a personalidade marcante do monarca.103 Essa celebração evidencia a vivacidade da memória de D. Pedro II na República. Sua figura transformou-se em uma representação atemporal104; embora seu corpo físico houvesse perecido em 1891, o “corpo político”105 permaneceu – um ente invisível e imortal que transcendeu os limites do regime político. Esse “corpo místico”, que ultrapassava a materialidade e se mantinha imutável no tempo, foi cristalizado no imaginário republicano como um exemplo de cidadania, patriotismo, retidão administrativa e serviço à nação. 103 ROURE, Agenor. 87º ANNOS – SEGUNDA SESSÃO ORDINARIA, REALIZADA EM 29 DE MAIO DE 1925. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 350. 104 GUIMARÃES, 2007, p. 174. 105 KANTOROWICZ, Ernst H.. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 21. Figura 1 – D. Pedro II no leito de morte, desenho da senhora Jacquemart-André Fonte: REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO EGEOGRAPHICO BRASILEIRO. Contribuições para a biografia de D. Pedro II. Rio de Janeiro: Revista do IHGB, Tomo Especial, Parte I, 1925, p. 915. 33 Em 1925, havia, portanto, a necessidade de valorizar o passado, ou melhor, revisitá-lo por meio de um plano comemorativo. Nesse contexto, o Instituto se encarregou de fazer um apelo aos poderes públicos para que fossem decretadas homenagens à memória do "venerando e benemérito brasileiro". Além disso, solicitou aos governos de todos os estados que atribuíssem o nome de D. Pedro II a um dos grupos escolares de suas respectivas capitais.106 Officios dos presidentes de São Paulo, Minas Geraes, Paraná, Parahiba e Alagôas; do dr. Carlos Xavier Paes Barreto, presidente do Instituto Historico e Geographico do Espirito Sancto, e officio da Associação de Sciencias e Letras, de Petropolis, os quatro primeiros comunicando o recebimento do officio-circular do sr. presidente do INSTITUTO, apelando para ss. exas., no sentido de darem, nas respectivas capitães, o nome de d. Pedro II a um dos seus grupos escolares, e os dous últimos, adherindo, em nome das respectivas associações, ás homenagens projectadas por este INSTITUTO ao mesmo ínexquecivel imperador. 107 Definido o programa comemorativo, o mesmo foi aplaudido pelos membros. Entre eles se encontravam presentes Ramiz Galvão (1846-1938), Tavares de Lyra (1872-1952), Fleiuss, Oliveira Vianna (1883-1951), Alfredo Valladão (1873-1959), Laudelino Freire (1873-1937) e Agenor de Roure (1870-1935). [...] o INSTITUTO aplaude a iniciativa, tomada pelo seu presidente, de promover, juntamente com outros illustres brasileiros, a inauguração da estatua do Imperador em 2 de Dezembro na Quinta da Bôa Vista e lhe delegue poderes para se associar a quaesquer outras homenagens que, sem caracter politico e como preito da gratidão nacional, forem promovidas oficialmente ou por instituições particulares, para commemorar condignamente o nascimento do homem e do estadista, que foi, sem contestação possível, uma das figuras máximas da nossa Historia.108 Destaca-se o protagonismo da agremiação carioca na definição de um programa comemorativo do centenário, momento em que se empreenderam homenagens a Pedro II e ao seu tempo, trazendo para a República a presença de um passado monárquico. O Instituto Histórico desempenhou um papel de grande relevância na construção da história do Brasil no século XIX e, na década de 1920, continuava a representar o principal espaço de produção historiográfica. 106 ROURE, Agenor. 87º ANNOS – SEGUNDA SESSÃO ORDINARIA, REALIZADA EM 29 DE MAIO DE 1925. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 350. 107 ROURE, Agenor. 87º ANNOS – SEGUNDA SESSÃO ORDINARIA, REALIZADA EM 29 DE MAIO DE 1925. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 357. 108 ROURE, Agenor. 87º ANNOS – SEGUNDA SESSÃO ORDINARIA, REALIZADA EM 29 DE MAIO DE 1925. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 350-351. 34 Embora a Casa da Memória tenha exercido um papel significativo nessa efeméride, ela não atuou sozinha. Merecem menção as iniciativas de outros atores que contribuíram para o programa elaborado pelo IHGB, incluindo o projeto apresentado na Câmara dos Deputados por nomes como José Wanderley Pinho (1890-1967), Francisco Sá Filho (1862-1936), Homero Pires (1887-1962), Octavio Mangabeira (1886-1960), Ubaldino de Assis (1858- 1928), João Mangabeira (1880-1964), Alfredo Ruy (1879-1939), Rodrigues da Costa (1853- 1929), Augusto de Lima (1859-1934) e Francisco Valladares (1918-1930). Venho occupar, sr. presidente, a atenção da Camara para apresentar um projecto que abre no Governo um credito de 1.500:000$000. Esse projecto, que pensei apresentar o anno passado, honra-se agora com a colaboração e a assingnatura de eminentes deputados, entre os quaes não ha de deixar de salientar o sr. Sá Filho. Não é, pois, um projecto meu e não serei ousado de dizer que é projecto nosso, de toda a Camara. As divergencias partidárias que dividem esta Casa, conto que aqui se diluirão para unanimidade perfeita e a solidariedade absoluta com a uma idéa que todos reputarão nobre e com deliberações que julgarão patrióticas e justas.109 O discurso, transcrito na seção da Revista em 1925, abordou as divergências partidárias na Câmara dos Deputados, conforme mencionado por José Wanderley Pinho. Ele defendeu a necessidade do projeto que previa a construção de um “condigno monumento a d. Pedro II”, cujo custo estimado seria de 1.500:000$000. Segundo o deputado, essa quantia não representava apenas uma obrigação financeira, mas também uma dívida moral, uma “dívida de honra”.110 Em suas palavras: “o que propomos será amortização de um débito”.111 O pagamento dessa quantia, conforme explicou, não visava apenas reconhecer os méritos pessoais de Pedro II, nem se tratava de uma “verdade disfarçada em um lance de retórica”. O objetivo era valorizar as “renúncias do imperador”, as “confissões de República” e as “obrigações do Brasil” em quitar tais dívidas históricas.112 As renúncias mencionadas referem-se às doações oferecidas pelo governo provisório ao ex-imperador após a proclamação da República. Mesmo exilado, Pedro II recusou essas ofertas, incluindo a pensão determinada pela Constituinte republicana, e faleceu sem jamais 109 CENTENARIO DE PEDRO II, discurso pronunciado na Camara dos Deputados, pelo deputado José Wanderley de Araujo Pinho. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 93. 110 CENTENARIO DE PEDRO II, discurso pronunciado na Camara dos Deputados, pelo deputado José Wanderley de Araujo Pinho. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 93. 111 CENTENARIO DE PEDRO II, discurso pronunciado na Camara dos Deputados, pelo deputado José Wanderley de Araujo Pinho. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 94. 112 CENTENARIO DE PEDRO II, discurso pronunciado na Camara dos Deputados, pelo deputado José Wanderley de Araujo Pinho. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 94. 35 usufruí-las. Para Pinho, cabia ao Brasil — especialmente à República — quitar esse débito. Ainda que o valor fosse elevado, ele argumentava que “ergue-se mais alta uma dívida moral, uma grande dívida moral”.113 Além do montante destinado à construção do túmulo em homenagem a Pedro II, o deputado também propôs a alocação de recursos adicionais para a realização das celebrações do centenário de nascimento do imperador. Uma parte apenas dessa quantia agora pedíamos como quitação final de taes contas. Pedimol-a para o tumulo de Pedro II; pedimol-a para as comemorações do centenario do seu nascimento a celebrar-se no próximo dia 2 de dezembro.114 Em seu discurso, o deputado solicitou que o Congresso honrasse os compromissos nacionais, permitindo ao Poder Executivo atender às demandas necessárias para realizar o “nobilíssimo gesto” de repatriação dos restos mortais do Imperador. Além disso, o parlamentar também defendia a celebração do centenário daquele que considerava um “grande brasileiro”.115 Na sessão do dia 17 de julho de 1925, Wanderley Pinho apresentou a proposta do projeto comemorativo, destacando que sua essência estava na “simples enunciação”. Diferentemente de outros discursos registrados na Revista, ele justificou que seria desnecessário, cansativo e inadequado “lembrar o quilate das obras e a têmpera do caráter”116 de D. Pedro II, uma vez que essas virtudes eram amplamente reconhecidas, dispensando maiores explicações. Desfiar uma resenha biográfica; cantar um panegyrico, esmiuçar com friezas de critico analyses de pretencioso historiar, para justificar essa ânsia nacional por homenagens completas a d. Pedro II seria desconchavo a que eu, por menos sensato ou por mais audacioso, não me abalançaria.117 O deputado expressava um incômodo evidente ao justificar a necessidade da atividade comemorativa, sentimento que também se fazia presente, de forma nuançada, em outras 113 CENTENARIO DE PEDRO II, discurso pronunciado na Camara dos Deputados, pelo deputado José Wanderley de Araujo Pinho. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 94. 114 CENTENARIO DE PEDRO II, discurso pronunciado na Camara dos Deputados, pelo deputado José Wanderley de Araujo Pinho. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 94. 115 CENTENARIO DE PEDRO II, discurso pronunciado na Camara dos Deputados, pelo deputado José Wanderley de Araujo Pinho. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 96. 116 CENTENARIO DE PEDRO II, discurso pronunciado na Camara dos Deputados, pelo deputado José Wanderley de Araujo Pinho. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 97. 117 CENTENARIO DE PEDRO II, discurso pronunciado na Camara dos Deputados, pelo deputado José Wanderley de Araujo Pinho. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 97. 36 narrativas nos textos da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB). Para ele, abordar o projeto comemorativo era equivalente a recapitular os considerados “progressos materiais de seus cinquenta anos de governo”, mencionar sua influência moral e o “grau de prestígio que alcançou no exterior”. Seria, enfim, um “repetido sediço e martelar de verdades sabidas”.118 Embora não negasse os avanços e a grandeza do passado, o deputado deixava transparecer, em sua argumentação, o quanto considerava cansativo, enfadonho e repetitivo tal empreendimento. Sua postura, no entanto, revelava um elevado grau de crença na relevância da figura do Imperador para seu tempo. Essa convicção ficava evidente em sua retórica, ao afirmar que seria desnecessário reiterar verdades amplamente conhecidas sobre a importância de D. Pedro II. O projeto seguiu para debate na Câmara, onde enfrentou muitas críticas e “algumas emendas muito polêmicas”. 119A chamada “querela do centenário”120 levou diversos grupos representados no Congresso Nacional a discutir se seria apropriado, ou não, à República enaltecer o Imperador. Inicialmente, destacaram-se as reações dos deputados Ranulfo Bocaiúva Cunha, Simões Lopes e Joaquim Mello, que se posicionaram contra o projeto, considerando-o um “indício inaceitável de reação monárquica” ou mesmo uma crítica ao governo republicano estabelecido.121 A controvérsia ultrapassou o âmbito do Congresso Nacional, repercutindo na imprensa, que, em sua maioria, apoiou a causa do centenário. Após aprovação, o Congresso decretou o dia 2 de dezembro de 1925 como festa nacional em comemoração ao centenário de nascimento de D. Pedro II. No entanto, o projeto para tornar a data um feriado nacional não foi discutido nem votado pelos deputados, o que não impediu o presidente Arthur Bernardes de firmar o feriado. Entre as festas estabelecidas pelo regime republicano em 14 de janeiro de 1890 para preservação da memória nacional, destacavam-se as que celebravam a “fraternidade universal” (1º de janeiro, 14 de julho, 12 de outubro e 2 de novembro) e as que promoviam a “fraternidade nacional” (21 de abril, 3 de maio, 7 de setembro e 15 de novembro).122 Posteriormente, por ordem presidencial, o dia 2 de dezembro de 1925 também foi reconhecido como festa nacional, reafirmando a importância de D. Pedro II no imaginário republicano. 118 CENTENARIO DE PEDRO II, discurso pronunciado na Camara dos Deputados, pelo deputado José Wanderley de Araujo Pinho. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 97. 119 FAGUNDES, 2017, p. 288. 120 SILVA, Eduardo. A República comemora o Império: Um aspecto político-ideológico da crise dos anos 20. Revista do Rio de Janeiro, Niterói, RJ, v. 1, n. 2, p. 59-71, jan./abr. 1986. 121 FAGUNDES, 2017, p. 288-289. 122 OLIVEIRA, 1989, p. 186. 37 Nesse mesmo dia, foi inaugurado, em Petrópolis, o mausoléu destinado a abrigar os restos mortais da família imperial, financiado por uma “subscrição nacional”. O Governo Federal também se comprometeu a construir um monumento em homenagem ao Imperador em uma praça da capital. Além disso, a Estrada de Ferro Central do Brasil passou a se chamar D. Pedro II, com o nome inscrito na fachada principal do edifício, e foram emitidos selos postais com valores a partir de 200 réis estampando a efígie do Imperador. Para financiar as homenagens oficiais, o Poder Executivo liberou os “necessários créditos” no valor de 1.500:000$000, reforçando o compromisso nacional com a memória de D. Pedro II e sua contribuição à história do Brasil.123 Os esforços que envolveram tais iniciativas evidenciam a importância do evento naquele momento histórico. Além do Instituto Histórico, o Estado brasileiro também participou ativamente. Na narrativa de José Bonifácio Lafayette de Andrada (1904-1986), relator da comissão de finanças da Câmara dos Deputados, a execução desse projeto foi considerada pelos responsáveis – o IHGB e as autoridades políticas – uma medida necessária, que correspondia “aos justos e louváveis intuitos signatários do projeto”. Essa iniciativa era vista como uma forma de consolidar a consciência nacional e afirmar uma “inabalável fé no regime proclamado em 1889”.124 Comemorar D. Pedro II e seu tempo não colocava em questão o regime republicano; ao contrário, evidenciava o quão forte e consolidado ele estava. Não havia qualquer “perigo real” de um possível retorno da monarquia.125 Restava à República demonstrar sua solidez e lançar um olhar sobre o passado “sem ter medo de errar”. Esse olhar para o passado permitia capturar as grandezas do período imperial – as “experiências” vividas – e, a partir delas, projetar “expectativas” para a construção de um futuro de glória.126 Conforme as crenças da época, expressas no discurso do deputado Bonifácio, fazia-se justiça aos “excelsos servidores da nossa Pátria”, entre os quais figurava o “ex-imperador”. 127 Esse é um dos significados atribuídos ao ato comemorativo: reparar simbolicamente o passado, destacando figuras ilustres como D. Pedro II. Celebrar a vida e os feitos do antigo monarca configurava uma tentativa de promover uma reparação histórica, reconhecendo sua importância para a nação. Esse sentido de reparação estava possivelmente associado ao fato de que o Imperador fora deposto, exilado e proibido de adquirir propriedades no Brasil, além 123 Sexta sessão ordinaria em 12 de Septembro. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 410. 124 ANNEXO – Parecer do sr. José Bonifacio de Andrada e Silva, sobre as commemorações que deverão ser feitas por ocasião do centenario de d. Pedro. RIHGB, t. 92, v.146, 1926, p. 408. 125 SCHWARCZ, 1998, p. 508. 126 KOSELLECK, Reinhart. "Espaço de experiência" e "horizonte de expectativa": duas categorias histórica. In: Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos, tradução do original alemão Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro : Contraponto : Ed. PUC-Rio, 2006, p. 306. 127 ANNEXO Á ACTA DA 6º SESSÃO ORDINARIA. RIHGB, t. 97, v. 151, 1927, p. 416. 38 de ter perdido os direitos sobre suas posses existentes. Condenado junto com a monarquia, D. Pedro II sofreu as consequências de sua posição social e do regime ao qual pertencia. No contexto da época, proclamava-se urgente um ato de justiça em seu nome, como forma de corrigir os erros cometidos no passado. No entanto, o significado da comemoração não se limita a essa perspectiva. É essencial explorar outros sentidos atribuídos à execução desse projeto político, que adquire múltiplas interpretações. A celebração do centenário natalício de D. Pedro II inscreve-se em uma batalha político-intelectual que aponta para os embates entre diferentes projetos de futuro para o Brasil nas primeiras décadas do século XX. O golpe republicano de 1889 trouxe à tona uma ampla produção de “manifestos, ensaios, romances, historiografia, memórias e autobiografias”128, evidenciando o confronto entre duas correntes intelectuais. Esse embate se desdobrava no campo da dominação política e operava pela “representação simbólica” do “Império deposto” e da “República nascente”.129 Do lado republicano, destacava-se a promoção de valores nacionais atrelados ao novo regime, propagados por meio de uma literatura de educação moral e cívica – como os escritos de Sílvio Romero, José Veríssimo e Luís de Andrade em 1890 – e pela exaltação de líderes republicanos, como Floriano Peixoto. Em contrapartida, a tradição monárquica construiu um discurso consistente, idealizando o passado e criticando a nova ordem por meio de “ensaios, manifestos e romances”.130 Autores como Eduardo Prado, Afonso Celso, Joaquim Nabuco, Visconde de Taunay, Oliveira Lima e Rocha Pombo despontaram como expoentes dessa historiografia monarquista.131 O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) tornou-se um espaço central para a produção e disseminação dessas ideias, consolidando-se como um local de construção e divulgação da intelectualidade monarquista.132 Longe de encerrar essa batalha, em 1895 surgiu o Partido Monárquico, que, em um manifesto, afirmou que “A República trouxe para este país a miséria, a carestia dos gêneros, a baixa do câmbio e a guerra civil com todas as crueldades”. Em resposta a essas alegações, o Deputado Costa Machado, em discurso na tribuna da Câmara, em 10 de dezembro do mesmo ano, argumentou que os problemas materiais enfrentados pela República eram heranças da Monarquia, um período que qualificou como marcado por “revoltas e guerras civis”. Antes disso, em 1892, em resposta a um inquérito do jornal Gazeta da Tarde, do Rio de Janeiro, o Conselheiro Tito Franco de Almeida havia defendido a restauração da monarquia, rejeitando a 128 ALONSO, 2009, p. 131-132. 129 ALONSO, 2009, p. 131-132. 130 ALONSO, 2009, p. 139. 131 OLIVEIRA, 1989, p. 185-186. 132 OLIVEIRA, 1989, p. 187. 39 República implantada. Para ele, apenas três instituições poderiam salvar a integridade do país: o “monarquismo”, o “militarismo” e o “clericalismo”.133 Na primeira metade da década de 1920, essa disputa política e simbólica continuou a se desenrolar, repercutindo no campo político e intelectual. O projeto de comemorar o centenário de D. Pedro II inscreveu-se nesse contexto de enfrentamento, com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) mantendo um forte apreço pelo regime monárquico, seja pela incerteza em relação ao futuro da “nascente República” ou pela intenção de “restaurar a Monarquia”. Nesse cenário, a corporação intelectual procurou preservar sua conexão com o período imperial, criando uma “memória institucional” que, ora destacava a proteção de um imperador que já não poderia mais oferecê-la, ora privilegiava o dia 15 de dezembro – data em que D. Pedro II havia prometido proteção – para realizar as Sessões Magnas.134 Portanto, pode-se interpretar essa efeméride comemorativa de D. Pedro II como uma estratégia política daquele momento, destinada a resgatar e fixar a memória do monarca e de seu Império, utilizando a figura de Pedro II como uma alegoria do passado imperial. Para isso, foram produzidas duas peças textuais. A primeira, publicada em 1925, consistiu em estudos biográficos e nos elementos característicos de uma narrativa histórica que se pretendia científica, como será analisado a seguir. A segunda, publicada em 1927, pode ser vista como a celebração da vitória desse projeto de memória, um gesto político que se repete em um discurso já consolidado, como demonstrado pela reunião de um vasto material publicado na imprensa em 1925. 1.3 A construção de uma obra: estudos biográficos de D. Pedro II Retomando a proposta comemorativa do IHGB naquela sessão de 21 de abril de 1922, o Instituto formou uma comissão dedicada à composição de uma obra biográfica de Pedro II. Essa comissão foi integrada por Benjamin Ramiz Galvão (presidente), Augusto Tavares de Lyra (vice-presidente), Max Fleiuss (secretário-ger