LUCAS DO NASCIMENTO SOUZA AVENTURAS DE ARQUITETO NO ANTIGO LEITO FÉRREO DE BAURU-SP: O CAMINHAR COMO MODALIDADE DE PESQUISA BAURU 2021 2 LUCAS DO NASCIMENTO SOUZA AVENTURAS DE ARQUITETO NO ANTIGO LEITO FÉRREO DE BAURU-SP: O CAMINHAR COMO MODALIDADE DE PESQUISA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", campus de Bauru, como requisito final para a obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Evandro Fiorin BAURU 2021 3 Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru. Dados fornecidos pelo autor(a). Essa ficha não pode ser modificada. S729a Souza, Lucas do Nascimento Aventuras de arquiteto no leito férreo de Bauru : O caminhar como modalidade de pesquisa / Lucas do Nascimento Souza. -- Bauru, 2021 87 p. : il., fotos, mapas Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Bauru Orientador: Evandro Fiorin 1. Bauru-SP. 2. Patrimônio urbano. 3. Caminhar. 4. Francesco Careri. 5. Cartografia. I. Título. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA Câmpus de Bauru ATA DA DEFESA PÚBLICA DA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE LUCAS DO NASCIMENTO SOUZA, DISCENTE DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO, DA FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES, COMUNICAÇÃO E DESIGN - CÂMPUS DE BAURU. Aos 14 dias do mês de maio do ano de 2021, às 14:00 horas, por meio de Videoconferência, realizou- se a defesa de DISSERTAÇÃO DE MESTRADO de LUCAS DO NASCIMENTO SOUZA, intitulada AVENTURAS DE ARQUITETO NO ANTIGO LEITO FÉRREO DE BAURU-SP: O CAMINHAR COMO MODALIDADE DE PESQUISA. A Comissão Examinadora foi constituida pelos seguintes membros: Prof. Dr. EVANDRO FIORIN (Orientador(a) - Participação Virtual) do(a) Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo / FAAC/Unesp/Bauru, Prof. Dr. EDUARDO ROMERO DE OLIVEIRA (Participação Virtual) do(a) Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo / FAAC/Unesp/Bauru, Prof. Dr. MÁRCIO JOSÉ CATELAN (Participação Virtual) do(a) Programa de Pós-graduação em Geografia / FCT/Unesp/Presidente Prudente. Após a exposição pelo mestrando e arguição pelos membros da Comissão Examinadora que participaram do ato, de forma presencial e/ou virtual, o discente recebeu o conceito final:_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ . Nada mais havendo, foi lavrada a presente ata, que após lida e aprovada, foi assinada pelo(a) Presidente(a) da Comissão Examinadora. Prof. Dr. EVANDRO FIORIN Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design - Câmpus de Bauru - AV. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube nº 14-01, 17033360 http://www.faac.unesp.br/#!/pos-graduacao/mestrado-e-doutorado/arquitetura-e-urbanismo/CNPJ: 48.031.918/0029-25. APROVADO 5 Dedico este trabalho aos protagonistas deste espaço, os outros. 6 AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente à Deus por me permitir chegar até aqui, enfrentando desafios e vencendo obstáculos. À minha família, pelo incontável apoio. À Profª. Tatiana Ribeiro de Carvalho por todo o incentivo desde a Iniciação científica, sendo grande propulsora da minha jornada acadêmica. À Profª. Rosio Fernandez Baca Salcedo por acreditar em mim quando entrar no mestrado ainda era um sonho, e, depois de mestrando, por me permitir aprender ainda mais tanto na vivência da sala de aula como no Estágio de docência. Aos amigos e colegas que partilharam dessa experiência da pós-graduação, por todo apoio e por acreditarem em mim desde o começo, mesmo perante as dificuldades, assim como eu acreditei neles também. Em especial, meus sinceros agradecimentos à minha parceira de idas e vindas profissionais que fez morada permanente: Laís da Silva Rodrigues, por, além de acreditar em mim, me erguer em meio aos tropeços e embaraços do processo, tanto do mestrado, como da vida. À coordenadora do Programa de Pós-graduação Profª. Renata Cardoso Magagnin pelo impecável trabalho desempenhado em suas funções, sempre com um sorriso no rosto, assim como todo corpo docente do PPG. À cozinheira preta e de voz estridente do restaurante da FEB que eu não sei o nome mas lembro-me muito bem do seu carisma e alegria ao lidar com aqueles panelões de comida para lá e para cá (e isso sempre foi um grande exemplo). Agradeço aquele que, se não existisse, nada disso teria existido também, o Prof. Evandro Fiorin, que me abriu as portas e me permitiu fazer parte do seu caminhar. E que caminhada... realmente eu mudei. As grandes transformações têm disso mesmo, aproximam-se em forma de vendaval e vão embora levando de nós sempre uma parte que não nos cabe mais... eu chamo isso de evolução. 7 “Meu Deus, meu Deus! Como tudo é esquisito hoje! E ontem tudo era exatamente como de costume. Será que fui eu que mudei à noite? Deixe- me pensar: eu era a mesma quando me levantei hoje de manhã? Estou quase achando que posso me lembrar de me sentir um pouco diferente. Mas se eu não sou a mesma, a próxima pergunta é: ‘Quem é que eu sou?’. Ah, essa é a grande charada!” (Lewis Carroll, 2016, p. 6) 8 Convite ao caminhar 9 RESUMO Por meio do caminhar como modalidade de pesquisa, este trabalho busca apreender espacialidades do antigo leito férreo da cidade de Bauru-SP. As ferrovias, responsáveis pelo desenvolvimento de muitas cidades do interior paulista e, no caso bauruense, seu principal motor, são um patrimônio urbano que conta a história da cidade por entre as estações, vilas operárias, oficinas, entre outros edifícios emblemáticos e, apesar da subutilização e abandono, podem se configurar como um território para muitas descobertas. Dessa maneira, buscamos aqui dar visibilidade à configuração atual do antigo leito férreo por meio do caminhar como prática estética, amparados pela teoria do arquiteto italiano Francesco Careri, de modo a construir uma cartografia. Ao registrar essa experiência, espera-se contribuir de modo que se revele um lugar urbano mais sensível aos imaginários, promovendo o descortinamento de realidades e subjetividades ainda pouco exploradas nesse contexto espacial, lançando alguns olhares que ampliem o debate sobre a possibilidade de redemocratização do antigo leito férreo, muitas vezes destruído, transfigurado ou deixado à mercê do tempo, mas que guarda singularidades que podem ser lidas pelo caminhar atento e perspicaz. Palavras-chave: Bauru-SP. Patrimônio urbano. Caminhar. Francesco Careri. Cartografia. 10 ABSTRACT Through the development as a research modality, this paper seeks to apprehend spatialities of the old railroad bed of the city of Bauru-SP. The railroads, responsible for the development of many cities in the countryside of São Paulo and, in the case of Bauru, its main engine, are an urban heritage that tells the story of the city through stations, workers' villages, workshops and other emblematic buildings and, despite the underutilization and abandonment, can be configured as a territory for many discoveries. Thus, we seek here to give visibility to the current configuration of the old railroad bed through the development as an aesthetic practice, supported by the theory of the Italian architect Francesco Careri, in order to build a cartography. By registering this experience we hope to contribute in a way that reveals a more sensitive urban place to the imaginaries, promoting the unveiling of realities and subjectivities that are still little explored in this spatial context, casting some glances that broaden the debate about the possibility of re-democratization of the old railway bed, often destroyed, transfigured or left at the mercy of time, but that keeps singularities that can be read by attentive and perceptive analysis. Key-words: Bauru-SP. Urban heritage. Development. Francesco Careri. Cartography. 11 RESUMEN A través del caminar como modalidad de investigación, este trabajo busca aprender las espacialidades de la antigua vía férrea en la ciudad de Bauru-SP. Los ferrocarriles, responsables del desarrollo de muchas ciudades del interior de São Paulo y, en el caso de Bauru, su motor principal, son un patrimonio urbano que cuentan la historia de la ciudad entre las estaciones, pueblos obreros, talleres entre otros edificios emblemáticos y, a pesar de la infrautilización y el abandono, pueden configurarse como territorio de muchos descubrimientos. De esta manera, buscamos aquí dar visibilidad a la configuración actual de la antigua vía de hierro a través del caminar como práctica estética, sustentada en la teoría del arquitecto italiano Francesco Careri, con el fin de construir una cartografía. Al grabar esta experiencia, esperamos contribuir de manera que revele un lugar urbano más sensible al imaginario, promoviendo la comprensión de realidades y subjetividades aún poco exploradas en este contexto espacial, lanzando algunas perspectivas que amplían el debate sobre la posibilidad de redemocratizar la vieja vía férrea, muchas veces destruida, transfigurada o dejada a la merced del tiempo, pero que guarda singularidades que se pueden leer en el caminar atento y perspicaz. Palabras clave: Bauru-SP. Patrimonio urbano. Caminar. Francesco Careri. Cartografía 12 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Malha urbana e o leito férreo de Bauru ........................................... 32 Figura 2 – Traçado da ferrovia Noroeste do Brasil em direção a Mato Grosso 34 Figura 3 – Distribuição geográfica dos índios do oeste paulista no século XIX 35 Figura 4 – Fotomontagem das estações primárias: 1. EFS, 2. EFNOB e 3. CP ......................................................................................................................... 36 Figura 5 – Fotomontagem da Estação em construção (1935) e da construção finalizada (1939) ............................................................................................... 37 Figura 6 – Fotomontagem da implantação da estação defronte à Pça. Machado de Melo e vista geral do complexo ferroviário com as oficinas à esquerda ...... 37 Figura 7 – Recorte espacial do leito férreo ....................................................... 38 Figura 8 – Fotomontagem dos galpões da IRFM, galpões da Anderson Clayton e galpões da Sanbra, em períodos distintos .................................................... 39 Figura 9 – Localização do novo distrito industrial ............................................. 40 Figura 10 – Fotomontagem da situação do prédio IRF Matarazzo antes de ser demolido, área pós-demolição e vazio gerado na malha urbana ..................... 41 Figura 11 – Configuração atual da Vila Antarctica ........................................... 43 Figura 12 – Contexto do patrimônio versus novas edificações ........................ 43 Figura 13 – Segregação do patrimônio ............................................................ 45 Figura 14 – Isolamento do leito férreo .............................................................. 47 Figura 15 – Passado x Presente (O carro não é colagem) .............................. 48 Figura 16 – Detalhe da gare ............................................................................. 49 Figura 17 – Passagem sob os trilhos alagada.................................................. 50 Figura 18 – Primeiros percursos realizados no leito férreo .............................. 53 Figura 19 – Outros percursos ........................................................................... 56 Figura 20 – Rizoma observado ........................................................................ 58 Figura 21 – Página 1 do diário de campo ......................................................... 59 Figura 22 – Página 2 do diário de campo ......................................................... 60 Figura 23 – Página 3 do diário de campo ......................................................... 61 Figura 24 – Página 4 do diário de campo ......................................................... 62 Figura 25 – Página 5 do diário de campo ......................................................... 63 Figura 26 – Página 6 do diário de campo ......................................................... 64 Figura 27 – Página 7 do diário de campo ......................................................... 65 13 Figura 28 – Página 8 do diário de campo ......................................................... 66 Figura 29 – Página 9 do diário de campo ......................................................... 67 Figura 30 – Ilustração da heterotopia ............................................................... 68 Figura 31 – Fotomontagem da sobreposição de temporalidades e conexões . 70 Figura 32 – Cartografia do leito férreo .............................................................. 72 Figura 33 – Fotomontagem do percurso: buraco ............................................. 73 Figura 34 – Fotomontagem da estação central ................................................ 75 Figura 35 – Transeunte transpondo a Av. Nações Unidas entre os trilhos ...... 76 Figura 36 – Conjunto de abrigos. Ou de vagões? ............................................ 78 Figura 37 – Estação da EFS e visão lateral da gare e da Estação .................. 80 Figura 38 – Colônia de casas da CP e Estação desativada da CP...................81 Figura 39 – Grafites no entonto do leito férreo..................................................82 Figura 40 – Expressões no viaduto...................................................................83 14 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ALL América Latina Logística S/A CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior EFNOB Estrada de Ferro Noroeste do Brasil CODEPAC Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Bauru-SP CONDEPHAAT Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico Artístico e Turístico CP Companhia Paulista de Estradas de Ferro DAUP Departamento de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo EFS Estrada de Ferro Sorocabana FAAC Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação IDESP Infraestrutura de Dados Espaciais do Estado de São Paulo IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IRFM Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo PPGARQ Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo RFFSA Rede Ferroviária Federal S/A SEPLAN Secretaria do Planejamento de Bauru SP Estado de São Paulo TICCIH The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage USC Universidade do Sagrado Coração (Atual UNISAGRADO) 15 SUMÁRIO 1 PRÓLOGO ................................................................................................ 16 2 INTRODUÇÃO .......................................................................................... 18 3 CAPÍTULO 1 – O CAMINHAR COMO MODALIDADE DE PESQUISA.... 22 4 CAPÍTULO 2 – O ANTIGO LEITO FÉRREO DE BAURU-SP ................... 31 5 CAPÍTULO 3 – AS AVENTURAS DO ARQUITETO ................................. 52 6 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ................................................................ 84 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 85 16 1 PRÓLOGO Não é fácil caminhar por terras rasas. As correntes que nos prendem à superfície não nos garantem enxergar a luz do sol e nem tudo o que ela toca. A nova dimensão que se apresenta como um lago profundo pode significar liberdade. Tal como na obra de Lewis Carroll, “As aventuras de Alice no país das maravilhas”, todas as respostas seriam encontradas ao nos permitirmos acessar o mundo desconhecido, como Alice se permitiu. Aqui temos chaminés e prédios no lugar de coelhos brancos, o dito patrimônio ferroviário. A lagarta não é um personagem, mas vários. Verdadeiros fachos que emergiram da escuridão e nos ajudaram a chegar até aqui, os amigos e colegas. O chapeleiro louco foi aquele que trouxemos de uma trajetória engendrada dos anos de estudos em matrizes rígidas, representado por uma mercantilização dos meios acadêmicos e a proliferação da ideia de senso crítico como produto de aquisição e não de exercício da percepção e compreensão do mundo. A área que nos dedicamos a estudar – o antigo leito férreo de Bauru – é carregada de sentidos e complicada de se desvendar, ou, como escolhemos definir, tem muitos “buracos” ou dificuldades. Sob a ordem dos Outros, ou da rainha de copas, esse verdadeiro país das maravilhas, ora membrana a ser rasgada, ora a ser acessada, requer muita coragem de quem se sujeita a atravessá-lo e confrontá-lo. Exige uma reclusão do ritmo frenético; requer um novo método de pesquisa para que possamos reconhecer a sua outra dimensão, escura, estranha e desconhecida, mas tão excitante quanto todo o processo perceptivo ao qual nos dispomos a narrar. Mas como alinhavar esse processo de reconhecimento? Este é um dos questionamentos ao qual este escrito busca responder e que foi suscitado ao longo de sua produção. Ao nos permitirmos ver, ouvir e sentir esse novo mundo, sabíamos que algumas coisas ficariam para trás e, ao acordar, tal como Alice acorda do sonho, já não seríamos mais os mesmos. Daí a evidência de ruptura que esse caminhar provoca. Protagonista, o Gato de Cheshire se mostra misterioso ao percorrermos esse caminho. Seu sorriso permanente nem sempre é evidente. Arquiteta muito bem formas e situações que provocam e inspiram mudanças, às vezes nada confortáveis. Aceitar que existem perspectivas e olhares completamente diferentes dos quais já vivenciamos não é fácil. 17 Colocarmo-nos no lugar do Outro é, agora, a nossa tarefa; despirmo-nos dos antigos pré-conceitos também. Cavamos a cova para nunca mais sair desse buraco de minhoca que engendramos. 18 2 INTRODUÇÃO Este trabalho tem o intuito de ampliar a discussão sobre o caminhar como modalidade de pesquisa no contexto do antigo leito férreo da cidade de Bauru, recorte espacial que abriga os resquícios edificados e não edificados da atividade ferroviária desse município, que, assim como diversas outras cidades do interior paulista, teve sua formação ou desenvolvimento influenciados pela chegada das estradas de ferro. A partir do caminhar como modalidade de pesquisa, buscamos evidenciar as permanências e transformações existentes neste local prenhe de cultura e sentidos. Assim, permitimo-nos errar pelo espaço e reconhecer as pistas e rastros das mudanças urbanas do ponto de vista de um arquiteto detetive, como forma de compreensão das suas forças e da produção de alguns agenciamentos possíveis. Desse modo, a percepção das conformações atuais do leito férreo se dará por meio do caminhar como prática estética1, aqui amparado pelo arquiteto, professor e pesquisador italiano Francesco Careri. A transurbância está presente nesse processo de pesquisa, sendo de grande relevância destacar aqui como uma tarefa além do sentido comum descrito por Careri, pois nesse processo nos detemos ao caminhar não pela metrópole, mas por um espaço fora do fluxo de funcionamento percebido nas grandes cidades. Assim, como descrito nos capítulos seguintes, munimo-nos de artefatos que possibilitem registrar essa experiência sem rumo, sem diretrizes e estruturas. Esses artefatos, como câmera fotográfica, lápis e papel, são instrumentos que possibilitam o registro da manifestação da cidade encoberta, a qual será revelada por meio do método da cartografia, aqui descrito por Eduardo Passos, Virgínia Kastrupp e Silvia Tedesco2. 1 CARERI, F. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: G. Gili, 2013. 2 PASSOS, E.; KASTRUPP, V.; TEDESCO, S. Pistas do método da cartografia: A experiência da pesquisa e o plano comum. Porto Alegre: Sulina, 2016. v. 2. 19 As explorações acerca desse espaço urbano prenhe de cultura e cada vez mais subutilizado, tal qual em muitas cidades do interior paulista, articula-se a outros projetos de pesquisa que originaram o livro “Cidades do Interior Paulista: Patrimônio e Marginalidade ao longo dos antigos leitos férreos”3, do Prof. Dr. Evandro Fiorin, e visa dar ênfase e continuidade a essas leituras, balizando-se pela trajetória singular do já citado professor Francesco Careri, conforme salienta Fiorin e Vasconcelos (2021): É uma trajetória que se traduz, certamente, como uma chave capaz de abrir portas para a percepção ambiental e a ação projetual na contemporaneidade. Isto porque, guarda em suas páginas, as possibilidades para novas descobertas e aventuras, traçando a gênese da prática do caminhar, que veio ocorrendo em algumas zonas abandonadas de Roma, desde o ano de 1995, capitaneada pelo próprio Careri – o manifesto e o grupo ativista de arquitetos e artistas reunidos na ação que recebeu o nome de: “Stalker através dos Territórios Atuais. (FIORIN; VASCONCELOS, 2021, p. 204, grifo do autor). A respeito do sentido de deriva para Francesco Careri, Fiorin e Vasconcelos (2021) são categóricos ao afirmar: A deriva se constrói para o autor como um instrumento que não se contrapõe ao devir, mas que, ao contrário, permite a ele acontecer. Nesse sentido, uma espécie de “devenir” ganha sentido quando Francesco Careri propõe que nos deixemos transformar pelo território que percorremos. Um trânsito ininterrupto que seja capaz de nos distanciar do entorno mais cotidiano e, assim, possa alterar nossa percepção, dissolvendo barreiras, em um vir a ser e estar no espaço. Pelo meio do caminho, um encontro inesperado e, nos tornamos algo que já não éramos antes. Logo, em toda a ação dessa modalidade de pesquisa-intervenção há uma intenção. Saber caminhar, mas, também, saber a hora de parar, especialmente, quando encontramos com o Outro. (FIORIN; VASCONCELOS, 2021, p. 205, grifo do autor) O trabalho se divide em três capítulos. O Capítulo 1, “O caminhar como modalidade de pesquisa”, trata dos caminhos metodológicos delimitados para a realização da pesquisa. Ele revela o fazer empírico e ressalta a subjetividade e singularidade presente no processo do caminhar apresentado por Francesco 3 FIORIN, Evandro. (coord.). Cidades do Noroeste Paulista: patrimônio e marginalidade ao longo dos antigos leitos férreos. Tupã: ANAP, 2018. E-book. Disponível em: < https://www.amigosdanatureza.org.br/biblioteca/livros/item/cod/171> Acesso em: 25 mar. 2021. 20 Careri. De tal forma agenciado por outros autores como Gilles Deleuze, Felix Guattari e Passos e Barros que complementam a discussão, busca-se revelar, nesse capítulo, a construção do processo de legibilidade almejado para essa área urbana. O Capítulo 2, “O antigo leito férreo de Bauru-SP”, trata de uma demarcação da história da cidade, da formação dos patrimônios urbanos encontrados na área, os quais são o pano de fundo para esta discussão, até seu processo de obsolescência, chegando ao cenário como a área é percebida hoje. Esse capítulo se justifica pela necessidade do entendimento e compreensão das diversas fases que configuram esse espaço ermo na contemporaneidade. Nessa parte, temos mapas elaborados com base em levantamentos em acervos históricos, os quais foram trabalhados a partir de uma representação gráfica de linguagem própria desse escrito, sendo eles necessários à compreensão da área de estudo, aspectos geográficos da cidade, localização e dados relevantes. Por último, temos o Capítulo 3, “As aventuras do arquiteto”, composto pela descrição de todos os percursos realizados, das experiências percebidas e sentidas por meio da prática do caminhar. Revela trajetos e zigue-zagues realizados no território do antigo leito férreo e busca trazer à luz os agenciamentos e ligações possíveis acerca da experiência no espaço. Nele encontram-se as cartografias obtidas a partir do processo de imersão na área. É onde encontram-se os registros do caminhar que buscam revelar essa prática como necessária e singular para a percepção dos nossos espaços urbanos do antigo leito férreo de Bauru. 21 22 3 CAPÍTULO 1 – O CAMINHAR COMO MODALIDADE DE PESQUISA O caminhar está presente desde os primeiros momentos deste trabalho e trata da experiência in loco a partir da deambulação pelo leito férreo da cidade. Assim, a experiência está aqui amparada pela prática científica que se baliza pelo fazer empírico. “Uma busca de conhecimento que vai de encontro ao cotidiano da cidade, mas que o coloca dentro das exigências locais e particulares da ciência” (LATOUR, 2011). Uma estratégia, porém, que não se resigna ao encarceramento, mas, ao contrário, está aberta à possibilidade de ativar um saber, mediante um fazer, diante da realidade que se descortina. A experiência de reconhecimento urbano aqui relatada se ampara na deambulação, na essência da desorientação, permitindo e fazendo com que o espaço, enquanto sujeito ativo, seja capaz de revelar afetos e de promover relações. Por sua vez, esse sujeito vagueia pelo espaço, provocando sensações e estimulando o imaginário. Aqui são descritos alguns percursos que se assemelham às experiências dos dadaístas e às experiências da Internacional Situacionista, que fala sobre a deriva, conforme aponta Careri (2013). De tal sorte, o sentido de deriva urbana descrito como transurbância por Careri (2013) busca desmentir toda imagem arquitetônica decantada ou imaginário urbano cristalizado, auxiliando-nos aqui na criação de pontes do conhecimento pela alteridade e desafio, no sentido da construção de uma análise aberta sobre uma cidade menos espetacular e mais inclusiva, criativa e experimental. Por ser instável e imprevisível, o território da experiência individualizada nos permite, assim, uma multiplicidade de traduções. Como arquitetos, produzimos rabiscos, desenhos e imagens e enquadramos olhares, que já são, por si, subjetivações. Entretanto, a questão está em como ressingularizar essa tarefa, tornada um projeto no qual os outros possam efetivamente tomar parte, numa espécie de construção coletiva da paisagem, sob múltiplos olhares e operada pelo arquiteto, como atesta Guattari (1996). Dessa maneira, para construir cartografias dos espaços das realidades ora estudadas, valemo-nos do método de pesquisa-intervenção apresentado por Passos e Barros (2015), esforço metodológico que implica em criar condições 23 sui generis para o estudo do patrimônio urbano e arquitetônico da cidade de Bauru. Pela própria trajetória cambiante da experiência humana, que aproxima o olhar pelas incursões a campo, através de um senso que observa, faz anotações, desenhos, imagens, filmagens, bate-papos etc., busca-se produzir registros e relatos para um reconhecimento urbano dos antigos leitos férreos, que não se pretende catalogar ou configurar grandes mapeamentos de dados ou a sistematização de informações de natureza quantitativa, e sim entrar em um debate qualitativo mais amplo sobre o processo de obsolescência e renovação nos espaços urbanos contemporâneos e a sua difícil descrição. O leito férreo é composto por espaços residuais muito bem delimitados por barreiras físicas, sociais e pelo domínio de grupos, em uma espécie de comum acordo: produzir e comunicar o medo como um artifício para a segregação. Os sinais expressos pelos grafites nos muros que separam os trilhos do restante da cidade revelam um aparente estado de abandono. Ao mesmo tempo, são produto da expressão marginal que dita as regras dessas áreas, demarcando microterritorialidades. Essas espacialidades não estão vazias, ao contrário, incitam uma outra ordem dos espaços. Nelas habitam as subjetividades subalternas e os “outros” – aqueles que não têm lugar na cidade formal. Assim, ir ao encontro com o Outro é realizar uma experiência ímpar na cidade e contribuir de forma singular aos estudos sobre percepção urbana. Esse território, fora da rota turística, distante da rotina urbana e esquecido pela maioria, revela uma cultura e arte que expressam, por meio de grafites, as aflições e embaraços presentes na “terra de ninguém”. A percepção ambiental pode ser uma maneira de revelar os traços do seu passado e os processos ligados à renovação de suas áreas lindeiras. O caminhar como prática estética descrito por Careri (2013) nos ajuda a realizar um caminhar sensível às subjetividades que despontam do ambiente, como ele mesmo coloca, “andare a Zonzo”: Em italiano, andare a Zonzo significa “perder tempo vagando sem objetivo”. É um modo de dizer cuja origem é desconhecida, mas que se inscreve perfeitamente na cidade passeada pelos 24 flâneurs, nas ruas em que vagavam os artistas das vanguardas dos anos vinte e nos lugares a que iam à deriva os jovens letristas do pós-guerra. (CARERI, 2013, p. 162). Esta pesquisa parte do pressuposto da indissociabilidade do pesquisar e intervir, tendo como base que toda pesquisa é intervenção, conforme anunciado por Passos e Barros (2009). Nesse sentido, atribuímos o caminhar como ferramenta estética de interpretação da paisagem, em que, a partir disso, seja possível descrever e modificar espaços que revelam a necessidade de serem compreendidos e atribuídos significados, conforme defende Careri (2013). O caminhar revela-se útil à arquitetura como instrumento cognitivo e projetual, como meio para se reconhecer dentro do caos das periferias uma geografia e como meio através do qual inventar novas modalidades de intervenção nos espaços públicos metropolitanos, para pesquisá-los, para torná-los visíveis. (CARERI, 2013, p. 32). O nomadismo presente desde a época de Abel4, apresentado por Careri (2013), traz a experimentação e o mapeamento do espaço pelo seu percurso em meio às pastagens, característica semelhante à percebida pelo flâneur, descrito por Walter Benjamin “como aquele que ainda dispõe de fragmentos da verdadeira experiência histórica e, por reconhecer a distância que o afasta dessa experiência, ele representa a busca por uma consciência histórica atual” (BIONDILLO, 2014, p. 9). “O flâneur se atenta a cada detalhe das ruas e vê nelas sua fonte de inspiração, sentindo ‘uma expressão misteriosa do gozo pela multiplicação do número’” (BENJAMIN, 2000, p. 187). Careri (2013) nos mostra que, diante de algumas passagens pela história da arte, do percurso dadaísta, a visita, passando pela deambulação surrealista, é que surge o termo “deriva”, cunhado pela Internacional Letrista na década de 1950. Amparada pela psicogeografia, a deriva tem por objetivo a exploração dos efeitos psíquicos produzidos no indivíduo dado o contexto urbano em que se está inserido. 4 Caim e Abel, o primeiro homicídio da humanidade, tratado na obra “Walkscapes: O caminhar como prática estética” (CARERI, 2013). 25 Desse modo, nosso ponto de partida tem como pressuposto essas experiências, mas não tem diretrizes específicas ou fórmulas preconcebidas, pois o método cartográfico não traça planos de trabalho, ele se constitui no momento que se inicia a ideia do pesquisar. Tal direcionamento é composto por pistas, rastros a serem seguidos, frestas entreabertas que aguçam nosso olhar e nossos sentidos e nos levam a uma possibilidade de perceber e interagir com o espaço como uma forma de interpretação singular. Conforme formulado por Deleuze e Guattari (1995), a cartografia não trata da representação dos objetos, mas do acompanhamento de processos, portanto, meio não definitivo. Os procedimentos de pesquisa aqui adotados estão diretamente ligados à ativação de diversos dispositivos sensoriais humanos: a visão, o olfato, o tato e, principalmente, a audição, sendo este o mais sensível, aquele ao qual estamos mais vulneráveis e talvez seja o mais importante ao ziguezaguearmos por entre os trilhos do trem. De tal forma, a modalidade de pesquisa a qual este escrito busca dar visibilidade vai de encontro à necessidade de olhares mais atentos às configurações que se pretende implementar nos nossos espaços urbanos, muitas vezes emergidas por incentivo dos agentes produtores do espaço urbano, como o poder público, o setor privado e os interesses do mercado, que, a partir da especulação imobiliária, arruínam o caráter humano dos espaços ao criarem zonas autônomas e independentes que, indiretamente, acabam por tornar espaços como o leito férreo um grande vazio. Alguns percalços do modelo urbanístico de planejamento moderno, influenciado pelo CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), a partir da Carta de Atenas – onde aqui podemos citar Le Corbusier como um dos principais expoentes da racionalidade e do pensamento setorizado do urbanismo ainda na primeira metade do século XX –, vai na contramão de alguns aspectos presentes no leito férreo de Bauru, como a série de conexões e entrelaçamento de forças que emergem do espaço, revelando uma estrutura rizomática, que não se fecha em si. Deleuze e Guattari (2007) expõem o conceito de rizoma em oposição à estrutura hierárquica, não tendo, desse modo, pontos ou posições, somente linhas – uma percepção pelo meio, por entre os trilhos. Os rastros desses espaços, grafites, pichações, lugares à mercê do tempo e outros tantos 26 aspectos observados evidenciam a existência de múltiplas conexões, que devem ser interpretadas em sua potência e multiplicidade. Nos limites da área de estudo aqui tratada, temos o exemplo da Av. Rodrigues Alves, como tantas outras, trazidas do ideário urbanístico haussmanniano do século XIX. Um grande canal criado para escoar a produção e as cargas trazidas pela ferrovia. Brasília, o exemplo mais lapidado do racionalismo modernista, também elucida o panorama de eixos viários em detrimento dos espaços públicos e da população, sem citar as praças e outros lugares ditos projetados para pessoas. De tal sorte, este escrito perpassa pela crítica ao modelo moderno de urbanismo por estar em sentido oposto às necessidades e anseios percebidos nos espaços públicos das nossas cidades, sobretudo àqueles lugares à margem do antigo leito férreo de Bauru. “Não é fácil perceber as coisas pelo meio, e não de cima para baixo, da esquerda para direita ou inversamente: tentem e verão que tudo muda”. (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 35). O nomadismo é rizomático. Não se apreende o campo nômade com o estabelecimento de começo, meio e fim. A apreensão nômade acontece. Tal sentido é presente no rizoma: Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e... e... e...”. Há nessa conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para onde vai você? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. Fazer tábula rasa, partir ou repartir do zero, buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção de viagem e do movimento (metódico, pedagógico, iniciático, simbólico...). (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 37). Como permitir o domínio do espaço sobre nós? Careri (2013, p. 80) é categórico ao afirmar que “o percurso desenvolve-se entre insídias e perigos, provocando em quem caminha um forte estado de apreensão, nos dois significados, de sentir medo e de apreender”. Talvez a resposta esteja no caminhar. O espaço apresenta-se como um sujeito ativo e pulsante, um produtor autônomo de afetos e de relações. É um organismo vivente, com um caráter próprio, um interlocutor que tem 27 repentes de humor e que pode ser frequentado para instaurar um intercâmbio recíproco”. (CARERI, 2013, p. 39). Careri (2013) nos coloca que, antes do neolítico, a única arquitetura simbólica capaz de provocar mudanças no ambiente era o ato do caminhar, “uma ação que, simultaneamente, é ato perceptivo e ato criativo, que ao mesmo tempo é leitura e escrita do território” (CARERI, 2013, p. 51). Nesse sentido, retomamos aqui que a pesquisa não se inicia ao ir a campo e nem possui aparatos técnicos preestabelecidos que irão subsidiar a exploração, pois a exploração em si é o caminho, de tal forma, emerge daí o processo recíproco de interação com o lugar. Não seria possível fazer uso do método cartográfico sem ir a campo, tampouco descrever quaisquer que fossem as impressões, mesmo que rememorando, pois a pesquisa está intrinsicamente ligada à prática do percurso. O ponto de apoio é a experiência entendida como um saber- fazer, isto é, um saber que vem, que emerge do fazer. Tal primado da experiência direciona o trabalho da pesquisa do saber-fazer ao fazer-saber, do saber na experiência à experiência do saber. Eis aí o “caminho” metodológico”. (PASSOS; BARROS, 2015, p. 17). A produção do caminho ocorre logo no início da pesquisa de campo, que já desconfigura uma simples coleta de dados, pois esse processo perpassa todas as etapas da pesquisa, desde a análise, tratamento, até a publicação dos resultados, conforme aponta Kastrupp (2015). Esse percurso foi adiado várias vezes. O medo e a insegurança fizeram com que a aproximação do desconhecido fosse protelada. Como entrar ali? Como passar por aquele trecho perigoso? A resposta sempre esteve no lugar. Ali e, ao mesmo tempo, aqui, dentro de nós. Só precisávamos resgatá-la dentro do âmago, reconhecê-la como dado científico e parte da experiência. Era preciso rasgar a membrana. Ora, mas nós já sabíamos que tínhamos de nos livrar das amarras. Mas não é fácil. Este trabalho trata, sobretudo, do relato de pesquisadores angustiados, ansiados pela ruptura de um estigma que as próprias matrizes curriculares ao longo de anos de estudos deixaram. Aquele espaço tem vida. Tem ação. Tem reação. Tem gente. Tem buraco. É casa. É abrigo. É resistência. 28 Ao invés de projetar um parque – um projeto tão comum nos cursos de arquitetura – e cravar um letreiro “I am Bauru” – mero desejo, também importado, dos arquitetos pós-modernistas ditos contemporâneos que vagueiam pelo interior paulista –, era preciso produzir a Ruptura, mesmo que esta ainda dependa de um estudo de uma parte histórica, que aqui se faz necessária para que pudéssemos entender o contexto com o qual tínhamos que lidar. Assim, para que os dados qualitativos pudessem surgir, ainda dependíamos dos dados quantitativos: as datas, os mapas usuais, as figuras do passado, as consultas aos acervos... Nesse sentido, aqui relatamos traços dessa ruptura, parcialmente reproduzidos por nós. Digo parcialmente, porque nem a escrita, tampouco a gravação ou os desenhos, podem representá-los. Nem devem, e nós também não queremos. Não é o objetivo. O mais difícil aconteceu. Era preciso rasgar essa membrana e nos permitir a queda. Não esperar, nem provocar, mas estar suscetível a. Buraco. A presença física do homem num espaço não mapeado – e o variar das percepções que daí ele recebe ao atravessá-lo – é uma forma de transformação da paisagem, que, embora não deixe sinais tangíveis, modifica culturalmente o significado do espaço, e consequentemente, o espaço em si, transformando- o em lugar. O caminhar produz lugares. (CARERI, 2013, p. 51). Valendo-se das afirmações de Careri (2013) de que o caminhar produz lugares, e como explicitado no início deste escrito que assumimos que intervimos no espaço ao pesquisar, vale ressaltar como se dá o processo de produção do conhecimento e a subjetividade com o método trabalhado, assumindo diferentes posturas no decorrer da pesquisa até atingir o resultado final almejado. Daí a importância da distinção entre método e modalidade de pesquisa. Defender que toda pesquisa é intervenção exige do cartógrafo um mergulho no plano da experiência, lá onde conhecer e fazer se tornam inseparáveis, impedindo qualquer pretensão à neutralidade ou mesmo suposição de um sujeito e de um objeto cognoscentes prévios à relação que os liga. Lançados num plano implicacional, os termos da relação de produção de conhecimento, mais do que articulados, aí se constituem. 29 Conhecer é, portanto, fazer, criar uma realidade de si e do mundo, o que tem consequências políticas. Quando já não nos contentamos com a mera representação do objeto, quando apostamos que todo conhecimento é uma transformação da realidade, o processo de pesquisar ganha uma complexidade que nos obriga a forçar os limites de nossos procedimentos metodológicos. O método, assim, reverte seu sentido, dando primado ao caminho que vai sendo traçado sem determinações ou prescrições de antemão dadas. Restam sempre pistas metodológicas e a direção ético-política que avalia os efeitos da experiência (do conhecer, do pesquisar, do clinicar, etc.) para daí extrair os desvios necessários ao processo de criação. (PASSOS; BARROS, 2015, p. 30, grifo do autor). O rizoma, descrito por Deleuze e Guattari, não só é identificado na estrutura de forças atuantes, nas entradas múltiplas do leito férreo, como também no modo de interpretação e produção do espaço. É também ferramenta para reprodução das subjetividades apreendidas no espaço, meio pelo qual tentamos esboçar a forma estética a qual somos afetados. “A questão é produzir inconsciente e, com ele, novos enunciados, outros desejos: o rizoma é essa produção de inconsciente mesmo” (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 28). “Quando o rizoma é fechado, arborificado, acabou, do desejo nada mais passa; porque é sempre por rizoma que o desejo se move e se produz” (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 23). Daí a necessidade da cartografia como modalidade singular de exploração do espaço, porque se configura como um sentido aberto, uma leitura possível, tendo no caminhar os seus múltiplos sentidos, entradas e saídas. Busca-se, portanto, experimentar um estranhamento. Quase que como etnógrafo, o cartógrafo pode e deve entrar em contato com o Outro, permitir que o Outro faça parte do seu processo de percepção do espaço enquanto agente daquele lugar. É ceder o nosso corpo, nossos sentidos e nossos lugares aos Outros. É se colocar no lugar do itinerante, do andarilho, daquele que carrega em si as experiências do nômade. É permitir que o espaço, tal qual como aquele que recebe as manifestações dos Outros, expresse em nós seus temores, suas angústias, seus ensejos. Isso em muito se distancia de um simples processo de levantamento e análise dos espaços urbanos. 30 31 4 CAPÍTULO 2 – O ANTIGO LEITO FÉRREO DE BAURU-SP A área do antigo leito férreo da cidade de Bauru se encontra como uma situação emblemática a ser estudada, já que é um local de grande valor patrimonial, incrustado no centro da cidade. Visto por parcelas da população como zona perigosa e de total descontrole, o antigo leito férreo agora está à mercê dos Outros. Ao mesmo tempo, o antigo leito férreo de Bauru é, em muitos trechos, um lugar que abriga as subjetividades subalternas e as expressões mais plurais da nossa sociedade. Pode ser lido como uma zona autônoma temporária (TAZ – do inglês Temporary Autonomous Zone) , a qual Bey (2004) não define, mas lança “fachos exploratórios” sobre um lugar, físico ou não, enquanto tática, percepção e prática de liberdade e estratégia política. Essa área é uma possível TAZ pois detém uma dinâmica livre, de possibilidade de uso anarquista, dinâmica esta ainda não alcançada pelo invólucro dos poderes da cidade contemporânea, e que, se aparelhado a serviço do Estado e das organizações, tem a possibilidade de ressurgir em outros lugares, pois não é definição e sim tática, realidade que não é apreendida pela cartografia rígida dos mapas políticos e fechados. A definição da área como objeto de estudo desta pesquisa se deu por duas determinantes, primeiramente pela tessitura de diversos trabalhos acadêmicos, desde a graduação em Arquitetura e Urbanismo na Universidade do Sagrado Coração (USC), que nos enveredaram para realizar uma Iniciação Científica. A Vila Antarctica, importante bairro da cidade alinhado ao leito férreo, já foi alvo desses estudos científicos. Outra determinante é a riqueza de seu patrimônio ferroviário, que já foi considerado o maior entroncamento ferroviário da América Latina, abrigando a Estrada de Ferro Sorocabana (EFS), a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (EFNOB) e a Companhia Paulista de Estradas de Ferro (CP), respectivamente. Esse conglomerado ferroviário é composto por galpões, oficinas, rotunda, estações, conjuntos residenciais e edifícios diversos das companhias EFS (1905), EFNOB (1906) e CP (1910), além der ser o local escolhido para ser 32 o marco 0 da EFNOB, que foi responsável pelo surgimento de uma série de povoados que se estabeleceram a partir das estações, as quais guardam, até hoje, características próprias em relação à sua origem e à implantação dos traçados urbanos, conforme aponta Ghirardello (2002). A Figura 1 nos mostra como as linhas férreas se acomodam na malha urbana da cidade, sendo uma reprodução de mapas da década de 2010. Ao centro, em destaque e em projeção, temos a área do leito férreo tombada pelo CONDEPHAAT, perímetro onde se encontram os edifícios patrimoniais. Figura 1 – Malha urbana e o leito férreo de Bauru Fonte: SEPLAN (2010), modificada pelo autor (2021). Combate a grupos indígenas, industrialização e um rico patrimônio ferroviário são palavras-chave que podem ser associadas à história da cidade. A conquista de terras (1856) originara a constituição de um vilarejo (1889), que logo viria a integrar a expansão cafeeira do século XIX, recebendo migrantes de várias partes do país em busca de terras e oportunidades, como destaca Pelegrina e Zanlochi (1991, p. 5): Acreditando no futuro próspero da região, que em breve receberia as estradas de ferro, alguns cidadãos mineiros e fluminenses, e outros do Vale do Paraíba, para cá se deslocaram 33 e iniciaram a formação de grandes fazendas, das quais se destacaram: a Aureópolis, do Cel Azarias Ferreira Leite e seu tio Baptista de Araújo Leite; M Val de Palmas, de José Ferreira Figueiredo; da Faca, de Joaquim de Toledo Piza, e Corumbá do Cel. José Simplício Ribeiro”. A população crescia enquanto novos fazendeiros, almejando a lavoura lucrativa do café, adquiriam terras, à época, baratas, com a esperança de serem valorizadas, à medida que a expectativa da urbe aumentava, visto que a vinda dos trilhos do trem já se articulava. Bauru é emancipada (1896) e o governo estadual expede os decretos 373 e 374, concedendo à CP o prolongamento de Dois Córregos à pequena Bauru e à Companhia Sorocabana e Ituana um prolongamento à Bauru vindo de Lençóis (EFS). Nesse momento, em âmbito nacional, volta-se a discutir sobre o traçado da tão almejada estrada de ferro que ligaria o Estado de São Paulo a Mato Grosso, findando então a sugestão feita em 1852 daquela vila acomodar os primeiros quilômetros da EFNOB, decisão esta que mudaria para sempre a história deste povoado, revelando Bauru a detentora do maior entroncamento ferroviário da América Latina neste momento. Este período, cunhado por Ghirardello (2008) como “período pré- ferroviário” (1896-1904), é marcado por incertezas principalmente na esfera econômica, pois apesar de já garantida a vinda da CP e da EFS, esta dependia ainda de fatores econômicos e políticos. Com o passar do tempo, as edificações vão surgindo, e a mancha urbana de Bauru cresce, mas de forma precária e improvisada, tornando-se permanente somente com a chegada das ferrovias. A cidade adquire, então, aspectos de um grande empório de abastecimento de itens básicos, como alimentação, socialização, religião e sexo. O período de 1905 a 1911 pode ser compreendido como o período de implantação das ferrovias, as quais tinham por objetivo em comum o escoamento da produção cafeeira, além da imensa área virgem do estado em direção a Mato Grosso, considerada de grande potencial de exploração. A criação de uma ferrovia colonizadora, já discutida desde o século passado, firma-se nesse contexto urbano. 34 A Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil será pioneira e criará uma série de povoações que nascem à beira da linha ou a partir de estações como Lins, Penápolis, Birigui, Araçatuba, Andradina etc., que possuem boas terras para o plantio e se desenvolvem com extrema rapidez. (GHIRARDELLO, 2002). Figura 2 – Traçado da ferrovia Noroeste do Brasil em direção a Mato Grosso Fonte: Monbeig (1984), modificada pelo autor (2020). A edição de número 63 do jornal “O Baurú” traz, em 10 de maio de 1908, o contexto próspero advindo principalmente das instalações da EFNOB: “A fertilíssima zona, que a largos passos vai sendo atravessada pela importante via- ferrea Noroeste do Brasil, comportaria grandes núcleos pois que além de se achar inteiramente despovoada – ha terras incontestavelmente devolutas [...]” (Arquivo Público do Estado de São Paulo)5. A EFNOB viera solucionar dois graves entraves: abrir caminho a áreas sem acesso da zona noroeste e somar ao movimento de extermínio dos índios. As práticas que tinham por objetivo dizimar os grupos indígenas já existiam, mas ganharam força e notoriedade a partir da construção da EFNOB. Embora os índios Caingangues, também chamados de Coroados, tenham tentado evitá-los, com a abertura da mata para a construção da ferrovia, os confrontos com o homem 5 Disponível em: http://200.144.6.120/uploads/acervo/periodicos/jornais/BU19080510.pdf. Acesso em: 14 jun. 2020. http://200.144.6.120/uploads/acervo/periodicos/jornais/BU19080510.pdf 35 branco se tornavam inevitáveis. Tais confrontos provocaram a perda de muitos trabalhadores e quase a dizimação das tribos indígenas. À proporção que os trilhos da estrada se aproximavam, os índios eram empurrados para longe e, em represália, atacavam constantemente os acampamentos dos trabalhadores e as obras. (GHIRARDELLO, 2002, p. 69). Figura 3 – Distribuição geográfica dos índios do oeste paulista no século XIX Fonte: Ego Schaden (1984), modificada pelo autor (2020). As bases do crescimento econômico da cidade estavam traçadas e sua fisionomia de vilarejo começa a ser alterada, influenciada pela vinda da EFNOB e dos ramais ferroviários estabelecidos pelas companhias Sorocabana e Paulista (FONTES et al., 2008). Nesse sentido, Toledo (2009, p. 70) destaca que “[...] a mudança econômica, urbanística e demográfica ocorreu exatamente com a chegada das linhas férreas”. Bauru passa então a acomodar um importante entroncamento ferroviário a nível nacional. Esse cruzamento das três ferrovias eleva a cidade ao contato direto com diversas regiões do estado. Importante salientar neste momento as estações ferroviárias, ainda modestas e de arquitetura bastante singela, como seguem na Figura 4. 36 Figura 4 – Fotomontagem das estações primárias: 1. EFS, 2. EFNOB e 3. CP Fonte: Museu Ferroviário Regional de Bauru (2019). Assim, aquela cidade que até então acomodava pequenos comércios e espaços representantes do poder civil, como a Câmara e a cadeia, passa a ser polo regional central do estado, favorecendo diversos setores econômicos, como comércio e prestação de serviços, resultando no seu rápido desenvolvimento e crescimento. Tem-se início, então, a construção do que viria a ser o patrimônio ferroviário, composto por uma série de edifícios como estações, oficinas, rotunda, vilas operárias e edifícios diversos das companhias que adentravam o solo bauruense. Finalizadas em 1921, as oficinas são compostas por um complexo de seis galpões de 16 metros por 100 e uma nave central de 19 metros por 106, totalizando mais de 12 mil metros quadrados, conforme publicado na revista “A Cigarra”6. Tanto a EFS quanto a NOB e a CP possuíam ainda seus conjuntos residenciais, que serviam aos funcionários diretos da ferrovia, bem como acomodava os engenheiros e chefes, sendo claramente perceptível a diferença arquitetônica, tanto de estilos quanto de tamanho. Frente ao progresso e à necessidade de melhores estruturas férreas compatíveis, tem-se a concepção de um projeto para a nova estação central (1922), que vinha reunir a administração das três companhias, além de abrigar o embarque e desembarque dos passageiros. “De estilo eclético, o edifício deveria ser construído em alvenaria de tijolos, pisos ladrilhados, assoalho em madeira, coberturas em vidro e paralelepípedo na calçada”, aponta Pauleto (2006, p. 262). Nesse momento, o país passa por diversas mudanças políticas, 6 Disponível em: https://www.estacoesferroviarias.com.br/b/fotos/bauru9211.pdf. Acesso em: 25 jun. 2020. https://www.estacoesferroviarias.com.br/b/fotos/bauru9211.pdf 37 e Getúlio Vargas assume o poder através da Revolução de 1930 e, com novas propostas para o Brasil, cria a Sociedade de Melhoramentos, com o intuito de racionalizar e melhorar a administração pública no país, que, por sua vez, foi responsável pela modernização e investimentos nas ferrovias paulistas, em especial a EFNOB, conforme aponta Pallotta (2015, p. 28). É então que se dá início à concepção de uma estação que tivesse como identidade a nova fase do país. Assim, é projetada e executada em estilo Art Déco a Estação Ferroviária Central em 1939 (Figura 5), à altura da cidade próspera que crescia sem limites. Figura 5 – Fotomontagem da Estação em construção (1935) e da construção finalizada (1939) Fonte: Centro de Memória Regional UNESP/RFFSA - Bauru (2019). Localizada defronte à Praça Machado de Melo, a imponente estação passou a ser a oficial porta de entrada da cidade, seu cartão postal. Figura 6 – Fotomontagem da implantação da estação defronte à Pça. Machado de Melo e vista geral do complexo ferroviário com as oficinas à esquerda Fonte: Google Imagens, modificada pelo autor (2021). 38 A Figura 7 ilustra a concentração dos edifícios patrimoniais que compõem o complexo ferroviário de Bauru. O perímetro vermelho em destaque é a área do leito férreo tombada pelo CONDEPHAAT, trecho o qual este trabalho se dedica a explorar. Figura 7 – Recorte espacial do leito férreo Fonte: CONDEPHAAT (2021), modificada pelo autor (2021). Ao longo da via férrea, algumas plantas industriais passam a pontuar a paisagem urbana com suas chaminés e grandes edifícios fabris, configurando assim, em seu trajeto, um reduto dos primeiros complexos de indústrias de Bauru. Serão instaladas famosas plantas de beneficiamento de produtos agrícolas, tais como as Indústrias Reunidas Fábricas Matarazzo (IRFM). Não sendo um caso isolado, temos ainda os edifícios da emblemática Companhia Antarctica Paulista, com seus imensos galpões que marcaram a história do que conhecemos hoje por Vila Antarctica e Vila Falcão, além da líder no segmento de papelaria, a Tilibra, que permanece ainda em funcionamento, com a mesma função, até os dias de hoje. Outra fábrica que aproveitou a mesma região de Bauru foi a fábrica norte-americana Anderson Clayton, que produzia o óleo de algodão. Esta região foi incrementada por um efetivo de trabalhadores e suas famílias, além de formar uma nascente e vibrante atividade comercial para abastecer as famílias. (TOLEDO, 2009, p. 116). 39 Tão grande é o peso das atividades industriais nessa zona que a Vila Antarctica recebe esse nome por conta da instalação da fábrica da Cervejaria Antarctica que, em 1924, passa a produzir cerveja, guaraná e gelo. Em suas adjacências, também se instalaram outras indústrias, tais como: a algodoeira Sanbra, no Jd. Guadalajara, e as Indústrias Anderson Clayton. Figura 8 – Fotomontagem dos galpões da IRFM, galpões da Anderson Clayton e galpões da Sanbra, em períodos distintos Fonte: NUPHIS, modificada pelo autor (2019). Todavia, essas paisagens industriais de Bauru vieram passando por um processo de deterioração desde as políticas nacionais da década de 1950, que incentivaram o transporte rodoviário e culminaram no sucateamento da ferrovia. Em meados de 1960, os centros urbanos passaram a ter problemas oriundos do crescimento demográfico, aumento no tráfego de veículos e as consecutivas preocupações ambientais. Sendo assim, as áreas que outrora foram palco do auge ferroviário e estopim do processo de industrialização, tornaram-se impróprias para os novos modelos de planejamento. A priorização do transporte rodoviário facilitou que, em 1961, fosse instituído o primeiro distrito industrial de Bauru, região especialmente locada para receber empresas que objetivassem sair do eixo central da cidade e, assim, também passar a receber novos investimentos, conforme aponta Bastos (2002). É interessante notar que o Distrito Industrial I, apesar de ladear o leito férreo, foi locado em função da Av. Rodrigues Alves, importante via criada, ainda no auge da ferrovia, para servir ao escoamento da produção da época, mas que passou a ter cada vez mais uma importância rodoviária em detrimento da ferrovia. A Figura 9 apresenta uma planta cadastral de Bauru de 1924, em que foi acrescida por meios digitais a projeção do Distrito Industrial I (1961). 40 Figura 9 – Localização do novo distrito industrial Fonte: NUPHIS, modificada pelo autor (2020). Com os novos incentivos federais ao transporte rodoviário e a redução dos investimentos na rede ferroviária, Bauru não suportou a manutenção dos seus trilhos. Castro (2016) é categórica ao afirmar que houve claras decisões políticas que influenciaram nesse processo de desativação e abandono da rede ferroviária como um todo, conforme aponta: Quando a situação atingiu o limite, por motivos variados, é importante ressaltar que as consequências foram resultado de um contexto, uma escolha essencialmente política de abertura para substituição gradativa dos serviços ferroviários, com clara prioridade que consolidou a indústria automobilística no país. (CASTRO, 2016, p. 114). Nas décadas seguintes, o transporte de passageiros sobre trilhos já não era significativo, quando, em 1995, definitivamente foi encerrado pela Cia Noroeste – nesse período já agrupada à Rede Ferroviária Federal S/A RFFSA e, em 1996, sob a concessão da linha à Novoeste – atualmente chamada de América Latina Logísticas – ALL, fruto de sua fusão em 2006. Mesmo assim, o último trem de passageiros data de 2001, operado pela Companhia Paulista. Hoje em dia, o célebre edifício da Estação Ferroviária Central de Bauru segue sendo mantido pelo município, que abriga alguns projetos culturais e de incentivo à preservação da memória ferroviária. Diante desse contexto, os primeiros espaços industriais da cidade de Bauru se tornam obsoletos, o que fez com que fossem esvaziados e entrassem num 41 acelerado processo de degradação. Paulatinamente, foram se tornando ruínas à mercê do mercado e da especulação imobiliária. O descaso do poder público em relação ao patrimônio industrial pode ser revelado pelo caso singular do processo de destombamento do importante complexo fabril das IRF Matarazzo. Figura 10 – Fotomontagem da situação do prédio IRF Matarazzo antes de ser demolido, área pós-demolição e vazio gerado na malha urbana Fonte: Museu Ferroviário (2019). As atividades da Matarazzo cessaram ainda nos anos 1960, quando a soja passou a substituir o óleo vegetal vindo do algodão e a fábrica passou a enfrentar problemas em sua adequação para uma nova demanda nacional e mundial. Desde então, seu complexo permaneceu ocioso, quando, em 1996, foi tombado pelo CODEPAC – Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Bauru-SP (BAURU, 1996). Mesmo assim, não resistiu à espera de um projeto que lhe fizesse jus ao passado e à publicização do seu uso. Assim, foi demolido em 2004. A respeito da reutilização que poderia ser adotada nesses edifícios, destaca-se aqui a Carta de Nizhny Tagil, criteriosa quando da reutilização de bens industriais: “a continuidade que essa reutilização implica poder proporcionar um equilíbrio psicológico às comunidades que se viram confrontadas com a perda súbita de uma fonte de trabalho de muitos anos” (TICCIH, 2003). Outros edifícios tiveram o mesmo fim, tais como: os antigos edifícios da Sanbra, da empresa norte-americana Anderson Clayton e também da Companhia Antarctica Paulista, da qual apenas sobrou a chaminé, patrimônio histórico do município. Vale aqui salientar a colocação de Choay (2001, p. 11) sobre o patrimônio histórico: A expressão que designa um bem destinado ao usufruto de uma comunidade que se ampliou a dimensões planetárias, 42 constituído pela acumulação contínua de uma diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum: obras e obras-primas das belas artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os saberes dos seres humanos. (CHOAY, 2001, p. 11) Muitos leitos férreos do interior paulista, de acordo com Fiorin (2018), sofrem atualmente com o processo de deterioração. O importante patrimônio industrial das cidades desenvolvidas com a chegada dos trilhos do trem comumentemente tem sido negligenciado e relegado apenas ao abandono e à demolição. No caso de Bauru, a chaminé, como reminiscência de tijolos vertical que sobreviveu ao debacle industrial, pode nos dar uma pista. Não está de pé porque foi tombada pelo órgão municipal, mas, talvez, por fazer parte de uma roupagem fantasiosa que ilude o espectador, agora requerida pelos novos empreendimentos comerciais ali construídos. Essa nova face do consumo, que remete aos antigos galpões industriais, divide espaço com um cenário de degradação do leito férreo desativado. Um lugar de obsolescência e deterioração que pode se revelar como uma forma de resistência ao modelo de planejamento instituído no passado, quando do privilégio rodoviário, bem como diante do projeto de futuro, que visa agora lotear suas adjacências para uma renovação voltada apenas para os interesses do mercado. De todo o trecho do leito férreo da cidade, a Vila Antarctica se destaca por ser palco de significativas transformações ao longo do tempo, as quais foram responsáveis pela alteração do uso, ocupação e forma como a coletividade ali se desenvolve. Através da comparação das diversas paisagens da Vila Antarctica – a primeira onda de industrialização (gênese), segunda onda de industrialização, tombamento do patrimônio industrial, até o impacto das novas construções na sua ambiência –, ficou evidente que a forma com que os edifícios hoje estão estabelecidos não possui relação harmoniosa com o patrimônio industrial ali remanescente. Este passa a ser apenas uma reminiscência da história. As novas paisagens estabelecidas pela economia do consumo distanciaram-se das primeiras paisagens e da gênese da área, desconfigurando assim seu valor histórico e sua memória industrial, o que nos leva ao dever de repensarmos a lógica de produção dos espaços na cidade contemporânea de forma a atender aos anseios e desejos da cidade viva que cresce e vibra num ritmo constante, mas sem deixar de lado a história e a 43 gênese das nossas paisagens urbanas. (SOUZA et al., 2020, p. 14). Desse modo, será possível evitar a destruição de paisagens históricas e proporcionar às futuras gerações a possibilidade de conhecer as diversas camadas históricas que, ao se sobreporem, formaram a cidade como vemos e vivemos hoje. A Figura 11 nos traz o cenário das conformidades atuais da Vila Antarctica e como o patrimônio da Cia. Antarctica, a chaminé de tijolos, relaciona-se com as novas edificações. Figura 11 – Configuração atual da Vila Antarctica Fonte: Google Maps, modificada pelo autor (2020). Figura 12 – Contexto do patrimônio versus novas edificações Fonte: Elaborada pelo autor (2020). 44 Assim, a história incrustada nesses espaços, uma vez responsável pelo aceleramento do desenvolvimento urbano de Bauru, decorrente da pujança econômica das plantas fabris, acaba por se esvair na memória coletiva. A Vila Antarctica torna-se, dia após dia, uma área cada vez mais restrita ao sentido público do espaço, dinamizada sob o viés do consumo conspícuo. É verdade que essas ações trazem um importante impulso comercial para a cidade, mas ao preço da destruição do patrimônio industrial da Vila Antarctica. Antigos galpões abandonados, que poderiam servir a um projeto de preservação da história, agora dão espaço a um processo de gentrificação. Resta saber se os arredores e o leito férreo do município não acabarão, também, seguindo o mesmo caminho, diante dos traços da subutilização, descarte e marginalidade aqui detectados nas circunvizinhanças do shopping center. O edifício do shopping, por se tratar de uma edificação estritamente voltada ao consumo, que visa induzir o sujeito ali internalizado a consumir e a gozar dos bens e serviços o maior tempo possível, não permite qualquer relação visual com o exterior, isolando assim não só a chaminé como o restante da cidade e produzindo um cenário de individualismo, uma vez que dentro desses espaços não há área de lazer comunitária ou de grupos, salvo raros playgrounds, destinados apenas às crianças, ou praças de alimentação, que não se comunicam com o exterior do prédio. 45 Figura 13 – Segregação do patrimônio Fonte: Acervo pessoal do autor (2019). Observa-se neste momento a falta de diretrizes e o respeito da ressocialização do antigo com o novo no planejamento urbano da cidade, ou seja, adaptar elementos e/ou edifícios históricos e patrimoniais aos usos compatíveis da cidade contemporânea e não permitir que se trate do entorno de forma isolada. Notamos que todo o leito férreo é murado ou delimitado por gradil encoberto por vegetação, impossibilitando a comunicação visual ao nível do pedestre entre os elementos, o shopping, a chaminé e os trilhos do trem. Outro fator que ganha força para o desmantelamento da história e da memória, não só para o caso de Bauru, é o processo de gentrificação, visto como peça-chave da expansão urbana e elemento iminente quando dos processos de requalificações ou renovações urbanas. Nesse sentido, Zachariasen (2006, p. 11) afirma que: “O desenvolvimento imobiliário urbano – a gentrificação em sentido amplo, tornou-se agora um motor central da expansão econômica da cidade, um setor central da economia urbana”. Ou seja, é como se esse processo fosse indissociável das reformas urbanas. Áreas que necessitam de investimentos ou melhorias quase sempre a recebem por meio da iniciativa privada, que não tem por objetivo considerar questões se não a do lucro e da valorização imobiliária, deixando de lado quaisquer valores que não sejam rentáveis. Assim como os centros, áreas 46 antigas e históricas das cidades, como a Vila Antarctica, sofrem com a falta de investimentos por parte do poder público, e, até meados de 2012, quando da instalação do shopping, era possível notar esse reflexo devido à existência de um grande vazio urbano em meio às ruínas do galpão da Cia. Antarctica Paulista. A gentrificação que ocorre nessas áreas acaba por produzir um espaço urbano que revela uma democracia frágil, que dificilmente pode ser consumida por todas as camadas sociais, conforme Smith (2006) nos coloca sobre o processo de gentrificação em Nova Iorque, característica esta que pode ser observada quando um equipamento de grande porte, como o shopping na Vila Antarctica, não pode atender a todas as camadas sociais, mas sim uma parcela dela. Daí a necessidade de se repensar espaços públicos e que possam ser utilizados por todos os tipos de grupos da sociedade. Nesse sentido, podemos destacar o modo de produção capitalista dos nossos espaços urbanos como reflexo da forma com que somos reféns do nosso próprio sistema econômico, na medida em que temos cada vez menos espaços públicos de qualidade, cada vez menos investimentos, e consequentemente cada vez menos qualidade de vida nas nossas cidades. A economia liberal arruína os elementos poéticos da vida social; ela dispõe, em todo o planeta, as mesmas paisagens urbanas frias, monótonas e sem alma, estabelece por toda parte as mesmas franquias comerciais, homogeneizando os modelos dos shoppings centers, dos loteamentos, cadeias de hotéis, redes rodoviárias, bairros residenciais, balneários, aeroportos: de leste a oeste, de norte a sul, tem-se a sensação de que aqui é como em qualquer outro lugar. (LIPOVETSKY; SERROY, 2013, p. 12). As edificações lindeiras ao leito férreo possuem uma característica em comum: a arquitetura defensiva. Muros, grades, concertinas e sistemas de segurança reforçam a segregação socioespacial e isola ainda mais as cicatrizes urbanas, os leitos férreos, repelindo-os. O deambular por entre muros e tantos aparelhamentos de segurança nos dá a sensação de estarmos num lugar extremamente perigoso, esta é a primeira impressão que temos do leito férreo. Uma sensação produzida pela defesa autônoma das edificações do entorno. 47 Figura 14 – Isolamento do leito férreo Fonte: Acervo pessoal do autor (2019). Algumas considerações sobre as novas edificações da Vila Antarctica se balizam na falta de relações harmoniosas com o patrimônio industrial ali remanescente. Este passa a ser apenas uma reminiscência da história. As novas paisagens estabelecidas pela economia do consumo distanciaram-se das primeiras paisagens e da gênese da área, desconfigurando, assim, seu valor histórico e sua memória industrial. Os rastros do passado contrastam com a contemporaneidade e as novas formas de ocupação e ordenação do espaço urbano, o que evidencia a necessidade de olhares mais atentos, de forma a fazer com que seja passível de ser compreendida uma espacialidade decantada, que tende a ser reduzida à insignificância de um vazio urbano, quando, na verdade, abriga usos diversificados e uma imponente coexistência – de valores, arte, expressão e transformação –, sendo ainda palco para produção de grandes reflexos de problemas crônicos da nossa sociedade e da maneira como nossos espaços urbanos vêm sendo produzidos. 48 Figura 15 – Passado x Presente (O carro não é colagem) Fonte: Acervo pessoal do autor (2021). Não é preciso ir muito longe para entendermos os contrastes e cenários de conflito. A Figura 15 trata-se de uma foto registrada em um dos percursos, a qual passou por uma edição de cores somente. O carro da esquerda sobre a gare estava ali, pertencia ao guarda que vigiava o local naquele dia, um domingo ensolarado. Só havia ele. Ele e toda a história encrustada nos arcos da gare. Sons de uma rádio local ecoavam pelo espaço, vibrando sobre as locomotivas paralisadas – no tempo e no espaço. 49 Figura 16 – Detalhe da gare Fonte: Acervo pessoal do autor (2021). 50 O estado atual dos painéis de vidro da gare, importante detalhe construtivo que representa a imponência da estação, vandalizados e sem conservação, seguido do nome da cidade praticamente já apagado pelas manchas de umidade agressiva no concreto. Na gare, temos presente e passado em perspectiva, no mesmo plano. Do lado esquerdo, um carro atual, e do lado direito, uma locomotiva do início do século XIX. As passagens subterrâneas que transpõem os trilhos encontram-se alagadas e emboloradas. Figura 17 – Passagem sob os trilhos alagada Fonte: Acervo pessoal do autor (2021). 51 52 5 CAPÍTULO 3 – AS AVENTURAS DO ARQUITETO “Nesta direção”, disse o Gato, girando a pata direita, “mora um Chapeleiro”. “E nesta direção”, apontando com a pata esquerda, “mora uma Lebre de Março. Visita quem você quiser, ambos são loucos”. “Mas eu não ando com loucos”, observou Alice. “Oh, você não tem como evitar”, disse o Gato, “somos todos loucos por aqui”. “Eu sou louca. Você é louca”. “Como é que sabe que eu sou louca?” disse Alice. “Você deve ser”, disse o Gato, “se não, não teria vindo pra cá”. (Trecho do diálogo entre a personagem Alice e o Gato de Cheshire, na obra “Alice no País das Maravilhas”). (CARROLL, 2016, p. 21). Foram realizados diversos percursos desde o início desta pesquisa. O percurso descrito na Figura 18 se refere às primeiras idas a campo, ainda no início da imersão na bibliografia acerca do método da cartografia, momentos anteriores à formulação da modalidade de pesquisa aqui delimitada. Sem permitir a queda, ou o acesso ao submundo, é evidente a estrutura rígida com que o percurso se inicia na zona leste da cidade, pela Vila Antarctica, influenciado por um conhecer previamente a área. Tratou-se, então, de uma revisitação à paisagem, dado o histórico de pesquisas realizadas nesse espaço inicialmente fabril da cidade. Essa zona do leito férreo permitiu um ziguezaguear sem impedimentos, pois tratava-se de uma área ampla e sem poluição visual, o que trazia a sensação de grandeza e liberdade. No entanto, à medida que nos aproximávamos de elementos que tornavam o acesso visual mais dificultoso, parávamos. Ao longo desse trajeto, capturamos alguns olhares, pontos de vista e situações emblemáticas. A composição do leito férreo se mostra curiosa à medida que caminhamos. Painéis de grafite expressam a arte e cultura que ali se desenvolve ou que o espaço permite desenvolver. Como o objetivo deste trabalho não é levantar dados, e sim produzi-los, mapear os inúmeros percursos e enquadrá-los em mapas rígidos não é prioridade, daí a representação de forma ilustrada, revelando os principais caminhos percorridos. 53 Figura 18 – Primeiros percursos realizados no leito férreo Fonte: Google Maps (2021), modificada pelo autor (2021). 54 Conforme nos aproximávamos do perímetro da área tombada pelo CONDEPHAAT (zona em que se encontra grande parte dos edifícios patrimoniais), deparamo-nos com alguns trechos de difícil acesso em virtude das barreiras visuais e de marcação do território.7 Ao nos propormos acompanhar esse processo, amparamo-nos em alguns artefatos que pudessem nos permitir a experiência, ou seja, explicitá-la e demonstrá-la após o fenômeno do percurso, sem definir essa etapa como coleta de dados findada, mas sim uma produção de dados, inacabada. A possibilidade de retorno à experiência tem por objetivo suscitar as reflexões e atingir o objetivo proposto, contribuir às pesquisas qualitativas em torno de metodologias pouco exploradas, no caso de Bauru, possibilitando novas conexões e o traçado de novas perspectivas para esse espaço. Munimo-nos de um telefone celular de modelo popular com uma câmera suficientemente boa para os registros (importante salientar que não havia conexão de dados no dispositivo, ou seja, não estávamos conectados à internet, para que não houvesse qualquer interferência externa à experiência). Além do telefone celular, levamos ainda um caderno, nosso diário de campo, já usado para outros fins, com o intuito de registrar pensamentos, ações ou qualquer outro tipo de ação ou reação emergidas do espaço. Acompanhado do caderno, uma caneta nanquim. [...] o pesquisador está, portanto, incluído no processo da pesquisa e se restitui, ele também, na operação de análise das implicações. O registro do trabalho de investigação ganha, dessa forma, função de dispositivo, não propriamente para concluir o trabalho ou apresentar seus resultados finais, mas como disparador de desdobramentos da pesquisa. (BARROS; PASSOS, 2015, p. 173). Importante destacar que a discussão dos dados produzidos deste trabalho não se faz por meio de suas representações ou escritas, mas encontra-se no próprio percurso realizado por entre os trilhos da ferrovia, na estação central e nas oficinas. A ideia do uso dos termos “membrana, ruptura 7 “Moço, não segue pro pontilhão [da Rua Treze de Maio], não. Lá é muito perigoso. Ali já viram muita coisa acontecer. Aí [atrás] tem uma saída que dá pra cidade”. Aviso de funcionárias do Poupatempo que avistaram nosso percurso em direção ao viaduto pantanoso. 55 e buraco” é uma alusão às dificuldades superadas relacionadas ao processo de imersão na modalidade de pesquisa e, consequentemente, ao percurso a ser realizado. Áreas reconhecidas como perigosas deveriam ser acessadas, membranas deveriam ser rasgadas. Conceitos e preconceitos deveriam ser ressignificados, ruptura. E buracos deveriam ser superados ou serviriam de porta de entrada a um mundo desconhecido. Ao longo do percurso, o sentido de buraco se alterna entre as características do solo e os portais em que haveríamos de acessar, tal como Alice, que mergulha na toca do coelho e passa a se comunicar com os animais, seres próprios daquele país. Antes de começar o percurso, alguns medos deveriam ser superados. O encontro com o desconhecido acaba por revelar ânimos adormecidos em nós, uma busca por respostas rápidas e pupilas dilatadas constantemente. Careri é categórico ao falar sobre o caminhar na América do Sul: [...] significa enfrentar muitos medos: medo da cidade, medo do espaço público, medo de infringir as regras, medo de apropriar-se do espaço, medo de ultrapassar barreiras muitas vezes inexistentes e medo dos outros cidadãos, quase sempre percebidos como inimigos potenciais (CARERI, 2013, p. 170, grifo do autor). 56 Figura 19 – Outros percursos Fonte: Google Maps (2021), modificada pelo autor (2021). 57 Perspectivas e reações foram registradas no diário de campo, além dos registros fotográficos, quando aguçado o sentido da visão. Posteriormente, houve a combinação dos fachos de luz emergidos do espaço com alguns registros fotográficos, em que, a partir da imagem visualizada, emergiram associações e conexões que deram visibilidade a uma série de inter-relações, fruto daquilo que foi apreendido durante o percurso errante pela área e suas adjacências. 58 Figura 20 – Rizoma observado Fonte: Elaborada pelo autor (2021). 59 Figura 21 – Página 1 do diário de campo Fonte: Elaborada pelo autor (2021). 60 Figura 22 – Página 2 do diário de campo Fonte: Elaborada pelo autor (2021). 61 Figura 23 – Página 3 do diário de campo Fonte: Elaborada pelo autor (2021). 62 Figura 24 – Página 4 do diário de campo Fonte: Elaborada pelo autor (2021). 63 Figura 25 – Página 5 do diário de campo Fonte: Elaborada pelo autor (2021). 64 Figura 26 – Página 6 do diário de campo Fonte: Elaborada pelo autor (2021). 65 Figura 27 – Página 7 do diário de campo Fonte: Elaborada pelo autor (2021). 66 Figura 28 – Página 8 do diário de campo Fonte: Elaborada pelo autor (2021). 67 Figura 29 – Página 9 do diário de campo Fonte: Elaborada pelo autor (2021). 68 Muitas coisas acontecem debaixo do sol. No leito férreo de Bauru não é diferente. Esse espaço à margem da sociedade abriga muitos usos, uma verdadeira confluência de outros espaços interagindo entre si, gerando novos espaços, novas conexões. A sobreposição de camadas é clara ao vermos o caminho informal, de mato pisado, sobrepondo-se aos trilhos. Acima dos dois, marcas de pneu. As roupas queimadas evidenciam a fogueira que ali aconteceu. Foucault (2009) descreve essa sobreposição de espaços dentro de outros espaços e a forma como eles se relacionam como heterotopia. “A heterotopia consegue sobrepor, num só espaço real, vários espaços, vários sítios que por si só seriam incompatíveis” (FOUCAULT, 2009, p. 416). A Figura 30 trata-se de uma fotomontagem elaborada a partir da percepção de confluência e sobreposição de diversas atividades e espaços dentro do leito férreo. Figura 30 – Ilustração da heterotopia Fonte: Elaborada pelo autor (2021). De tal forma, o sentido de heterotopia, descrito por Foucault (2009) se faz presente. A dinâmica do movimento espiral que a concertina apresenta está para além da representação anunciada. Ela se conecta ao campo reflexivo que nós, cartógrafos em ação, adentramos, influenciados pelas dinâmicas espaciais do ambiente, tal como ele nos afeta. As lâminas pontiagudas e cortantes penetram aquele que tenta ultrapassar os limites. Segurança 69 patrimonial ou segregação? Patrimônio de quem? Para quem? O que tem de um lado que não pode ser conectado ao outro? As lâminas, antes de rasgarem, lançam um alerta: proibida a entrada. A gare e todo o prédio da estação central são cercados por alambrado, enquanto nos muros, arame farpado... No coração da concertina temos o cubo, que se trata da estação ferroviária. A fiação do sistema elétrico lança, aos pés do cubo, repetitivo... perspectivas. Por entre o cruzamento com o espiral da concertina cria uma verdadeira malha xadrez, que se alterna acomodando ora a luz do dia, ora o grafite: elementos presentes que se intercalam. A luz sempre está presente. Ao menos nisso não há segregação: o sol abrasa os espaços ermos do leito férreo assim como abrasa os Altos da Cidade. A indústria cultural americana está presente no imenso painel que são os muros abaixo da concertina, representada num sublime grafite da protagonista da série “Stranger Things”. No primeiro momento em que nossos olhos captam o grafite, somos levados a olhar em direção ao olhar atento da Eleven e nos deparamos a metros de mais grafites, expressões políticas. A conexão que os olhares dos grafites criam é divina, falam por si. Convida-nos a ficarmos atentos. Cuidado! Esse é o recado. Amedrontados, ambos os olhares passam mensagens. Mais adiante uma banca de camelô, sim, camelô. É como as pessoas costumam chamar aqui. “Vendedor ambulante é só quando tem ocorrência com a polícia. Quando sai no jornal”8. Mais uma importação cultural: consumimos também as produções mexicanas. “El Chavo del Ocho” (1971), como é reconhecido no México, país de origem, também está lá no centro de Bauru, ali, encostadinho ao leito férreo. Empanturrados de fibra siliconada, a Chiquinha, o Jaiminho carteiro e o Chapolin Colorado estão ensacados. É lindo de se ver como a nossa cultura perpetua um clássico de Roberto Gomes Bolaños desde 1984, data em que chegou ao Brasil. Difícil quem não seja afetado por esses grafites, porque o Chaves está ligado à memória afetiva de muitas gerações. E não para por aí9. Tudo isso está preso no movimento ora centrípeto, ora centrífugo da concertina. Se analisarmos pausadamente as formas, vemos que a concertina gira tanto em sentido horário como anti-horário, aí depende de quem vê. De qualquer 8 Informação obtida através de uma conversa informal com o dono de um camelô. 9 Existe ao menos mais um painel do Chaves em Bauru, no Jd. Panorama. Mais do que grafites, essas artes anônimas representam a nossa cidade, o nosso estado, nosso país, nossa cultura. 70 forma, ela envolve tudo ali presente, da porta azul da estação ferroviária, à esquerda, ao patrimônio hoteleiro, à direita, passando pelas nuvens, claro, indissociáveis, rasgando os personagens do Bolaños, a Eleven, a luz do sol, a estação, os carros, os ônibus e tudo que ali estiver. É tudo uma coisa só, afinal, o espiral da concertina liga tudo. Aqui nos aproximamos do sentido de espaço vazio atribuído por Careri (2013), como aqueles espaços nômades da cidade, que abrigam realidades distantes do racionalismo moderno de planejamento das cidades e que ainda se conectam aos seus valores, e por isso há associações entre eles. Nesse sentido, o leito férreo de Bauru pode ser considerado uma heterotopia de crise, conforme formulado por Foucault (2009), por ser um lugar destinado às sobras da sociedade, ou seja, destinado a uma parcela da população que se encontra, em relação à sociedade, em situação de crise: sem tetos, usuários de drogas, andarilhos. Mas também é percebido o conceito de heterotopia do desvio: os vagões abandonados são moradia. Tanto dentro como abaixo, o espaço entre os trilhos e o vagão. Os viadutos e pontes que se sobrepõem ao leito férreo cobrem áreas imensas que acomodam os que não têm casa. A Figura 31 trata-se de outra ilustração sobre a heterotopia presente no espaço do leito férreo. Figura 31 – Fotomontagem da sobreposição de temporalidades e conexões Fonte: Elaborada pelo autor (2021). 71 Ao fundo, temos a estação ferroviária central, em estilo Art Déco, década de 1940, rememorando o passado de triunfo econômico da cidade. Em seguida, no segundo plano, temos parte do edifício do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), década de 1970, representando a arquitetura moderna que se alastrava tardiamente na cidade. Abaixo, no pontilhão da R. Azarias Leite, inscrições e mensagens de uma ordem própria. No primeiro plano, uma unidade da Caixa Econômica Federal, década de 2000, recai sobre os trilhos como uma caixa jogada, referência ao modo como a arquitetura contemporânea se relaciona com o antigo leito férreo. “As cidades têm que ter ícones. Bibliotecas, hospitais, museus. Dentro de 100 anos as pessoas verão e dirão: O que é isso? E pensarão: É arte”. A frase do arquiteto Frank Gehry demonstra uma preocupação excessiva com os ícones arquitetônicos das cidades na contemporaneidade e sua plasticidade. Aspecto familiar do star system10. O alambrado, presente em todo o percurso, reforçando a segregação, diz onde é permitido acessar e onde não é. Esboços de uma estrutura rizomática perpassa todos os planos, da atualidade até a arquitetura Art Déco. A Figura 32 traz a cartografia originada do percurso realizado para este trabalho e de outros realizados anteriormente, sendo parte de uma pesquisa mais ampla ainda inconclusa. O mapeamento cognitivo se revela como expressão singular dentro da modalidade de pesquisa aqui delimitada. 10 Grupo de arquitetos contemporâneos que reproduzem uma linguagem arquitetônica visando o espetáculo e desconsidera os usuários, assim como o entorno. A popularmente conhecida “arquitetura de grife”. 72 Figura 32 – Cartografia do leito férreo Fonte: Elaborada pelo autor (2021). 73 Assim, a partir do caminhar, nosso imaginário é revolvido, e o imaginário coletivo atua sobre nós, suscitando memórias, pensamentos, desejos, impressões e aspectos que, ao serem representados, geram a cartografia. “O objetivo da cartografia é desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado” (BARROS; KASTRUP, 2015, p. 57). No coração da cartografia temos o entroncamento da Estrada de Ferro Sorocabana, Estrada de Ferro Noroeste do Brasil e Cia. Paulista de Estradas de Ferro. A base da cartografia trata-se de um mapa feito à mão. O cinza representa o limite urbano, e os tons de vermelho se tornam mais vivos de acordo com a hierarquia, sob o ponto de vista do leito férreo: principais acessos e transposições, rodovias e ferrovia. A Figura 33 trata-se de uma fotomontagem que elucida alguns aspectos encontrados no percurso, como já citado – a membrana e o buraco. Entre os trilhos da CP, buraco. Figura 33 – Fotomontagem do percurso: buraco Fonte: Elaborada pelo autor (2021). Em perspectiva, os trilhos avançam. Por entre o mato alto, percalços e paralelos. Do lado esquerdo, o edifício, já ilustrado, da unidade da Caixa Econômica Federal. Do lado direito, galpões de serviço e armazenagem da CP. No segundo plano, avista-se o viaduto da rua Treze de Maio, que liga os dois 74 pontos: arquitetura contemporânea e arquitetura ferroviária. De um lado, a temporalidade dos anos 2000 e, do outro, uma temporalidade dos anos 1900. Cem anos separam as tipologias edificadas. Ao fundo, num terceiro plano, atrás do viaduto, a representação da membrana. Uma esfera acinzentada, como se estivesse envolta em um líquido amniótico que guarda um novo espaço, dentro de outro espaço. Seguimos o percurso... mais adiante, surge a estação central. Intitulada de “Estação das Artes” pela Secretaria da Cultura do município, sem qualquer adequação e manutenção, o espaço foi cedido às atividades culturais como dança, canto, cursos de pintura e congêneres. De acesso público controlado, a estação sempre está permeada por jovens aprendizes, e o som de violinos traz àquele cenário de descaso e abandono algum aspecto de vida, como se o timbre do instrumento clamasse por socorro. O cheiro de urina também está presente, tanto na gare como no interior do edifício – onde fica mais evidente pela falta de circulação de ar. O cenário encontrado é o oposto ao de um ambiente artificial de qualquer estúdio de cinema de Hollywood, onde tudo é controlado: som, iluminação, climatização. A pequena grande diferença é que ali nada se controla. Tudo está à mercê do tempo, das circunstâncias e dos Outros. O saguão de acesso da estação pode ser ponto de comércio de drogas de manhã, espaço de convívio à tarde, point de encontro à noite, abrigo de madrugada. Ou tudo isso ao contrário. Basta inverter os usos e os períodos. Não há regras. A sensação de segurança e vigília que os guardas terceirizados pelo município trazem aos limites da gare é somente ilusória mesmo. Pode-se acessar qualquer ambiente do edifício a qualquer hora do dia, e se quiser ali permanecer, não há impedimento algum. Salvo algumas salas que se encontram trancafiadas, a maioria está aberta e disponível ao uso dos Outros. Muitos gatos encontram-se dormindo e avistando o que ali se passa. 75 Figura 34 – Fotomontagem da estação central Fonte: Elaborada pelo autor (2021). 76 Figura 35 – Transeunte transpondo a Av. Nações Unidas entre os trilhos Fonte: Acervo pessoal do autor (2021). 77 Nesse momento encontramos a primeira barreira no percurso. Somos, então, tomados de assalto justamente pelo medo, fazendo com que procuremos uma saída para a “cidade”, já que ali é visto como “terra de ninguém”, espaço dissociado da malha urbana, fato que fizera interromper a deambulação. As marcas do consumo são evidentes. Nota-se ao longo do percurso pela antiga linha férrea resquícios de embalagens de diversos produtos, mais comumente sacos plásticos e copos descartáveis das redes vizinhas de fast- food. É comum, ainda, o descarte de embalagens de tamanho pequeno, como de salgadinhos e bolachas, além de anéis de lacre de bebidas. Há, também, a ideia coletiva de que o leito dos trilhos do trem é como um grande depósito de entulho para destinação dos restos de podas de árvores e das limpezas de terrenos circunvizinhos. Eu já cansei de falar que aqui não é lugar pra jogar entulho. Eles (os vizinhos) jogam de tudo aqui. Durante a noite que ninguém fica nas ruas eles jogam lixo, toda a sujeira do quintal que eles tiram eles jogam aqui, e a Prefeitura não faz nada. Quando eu vejo eu falo que aqui não é depósito de lixo não. Já estou cansada disso. (Informação verbal).11 “Patrimônio dos noias e foragidos de Bauru”12. Essa é uma visão comum sobre esse espaço urbano, como revelado por comentários em blog de cunho memorialista. Nesse sentido, podemos entender que “Patrimônio dos noias e foragidos de Bauru” pode significar, também, abrigo. Dos três conjuntos residenciais das companhias ferroviárias, nota-se a precariedade e falta de diretrizes para salvaguarda das construções, em especial as casas de turmas da EFS, apropriadas e que tiveram em seu entorno novas intervenções que descaracterizam a obra original. A colônia da CP se mantém com poucas alterações. No entanto, percebe-se um uso comum e a falta de cuidados específicos para com sua conservação. 11 Informação verbal obtida através de uma conversa informal iniciada com moradora residente defronte ao cemitério de vagões. De acordo com sua fala, há 25 anos que acompanha o processo de decadência do transporte ferroviário na cidade. 12 Comentário extraído da matéria “Bauru-SP: Patrimônio da ferrovia a caminho do ‘ferro-velho’, do memorialista denominado Morales. Disponível em: http://trensdavida.blogspot.com/2010/01/e-com-pesar-que-publico-materia-abaixo.html. Acesso em: 26 jun. 2020. http://trensdavida.blogspot.com/2010/01/e-com-pesar-que-publico-materia-abaixo.html 78 Figura 36 – Conjunto de abrigos. Ou de vagões? Fonte: Acervo pessoal do autor, modificada (2021). 79 Figura 37 – Colônia de casas da CP e Estação desativada da CP Fonte: Elaborado pelo autor (2021) 80 Figura 38 – Estação da EFS e visão lateral da gare e da Estação Fonte: Elaborado pelo autor (2021) 81 A Estação da EFNOB construída em madeira fora demolida. Sobre as oficinas, podemos associar um sentimento de tristeza e perda, em comparação com o tempo de atividades incessantes da ferrovia. O medo também está presente, em meio a um cenário de ruínas. O sentido de ruína é indissociavelmente parte da atual conjuntura do patrimônio ferroviário da cidade de Bauru, sobretudo do complexo das oficinas, as quais guardam a imagem desse conceito. O geógrafo Álvaro Domingues nos traz a ideia de ruinofilia13 quando fala das “contemplações românticas de passados: a ruína é coisa estimada que sobreviveu à destruição total. Na versão heroica, é o memorial de ideais passados-presentes”. Produz a sensação de “estranheza” enquanto fenômeno percebido do crescimento dramático das cidades resultante do desenvolvimento industrial. A ideia de ruína como resistência14 é abordado por Saldanha e Almeida (2014), que são categóricos ao colocar que “o lugar do estranho e da ruína é hoje este, o acidente do fluxo do capital e da velocidade, o espaço à margem que ‘vive’”. Aqui salientamos a debacle, ou fracasso, das megaestruturas ferroviárias, como a de Bauru, a partir dos grandes incentivos ao transporte rodoviário percebido na segunda metade do século XX, que originaram e aceleraram o processo de obsolescência desse sistema e, no caso bauruense, como visto em muitos do interior paulista, característico abandono. Para além dos percursos na área de tombamento, houve ainda outro percurso realizado no entorno de um galpão da Cia. Antarctica Paulista na Vila Industrial, zona oeste da cidade. O percurso foi guiado pelas sensações que estar no local propiciaram. O cheiro da queima de objetos diversos no interior do galpão, bem como a espacialidade do medo propiciada pelas cores escuras e inscrições nas paredes, não permitiram a permanência no local para maiores averiguações quanto ao uso. O fato de ter tantos objetos de uso pessoal descartados e sem reles resquícios de uma fogueira fizera com que houvesse a indagação “Onde estão as pessoas deste lugar?”, já que seu uso era evidente. 13 Disponível em: https://www.revarqa.com/content/1/1396/ruinofilia/. Acesso em: 15 maio 2020. 14 Disponível em: https://www.revarqa.com/content/1/1394/ruina-como-resistencia/. Acesso em: 15 maio 2020. https://www.revarqa.com/content/1/1396/ruinofilia/ https://www.revarqa.com/content/1/1394/ruina-como-resistencia/ 82 Figura 39 – Grafites no entonto do leito férreo Fonte: Elaborado pelo autor (2021) 83 Figura 40 – Expressão no viaduto Fonte: Elaborado pelo autor (2021) 84 6 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Este trabalho não termina aqui. Esperamos que contribua ao debate sobre a cartografia como método de pesquisa e o aumento da visibilidade de outras modalidades de pesquisa sobre percepção urbana e, para além disso, que seja ponte para outros trabalhos a serem desenvolvidos no contexto urbano dos nossos espaços públicos, sobretudo de Bauru. Ao adotar o caminhar como técnica estética de interpretação da paisagem, este escrito pretende ampliar as possibilidades das pesquisas qualitativas, comprometendo-se a cumprir com seu papel científico sem que haja qualquer prejuízo metodológico, uma vez que se desenvolve longínquo da metodologia tradicional do arcabouço prático da ciência moderna. Ainda de maneira crítica, cabe salientar a importância da modalidade aqui empregada para com o processo de descortinamento de realidades e subjetividades pouco exploradas, ao menos nas grades curriculares dos cursos de Arquitetura e Urbanismo da cidade de Bauru. As lentes pelas quais este trabalho pode lançar o olhar para o meio urbano contribuem para um saber fazer do profissional arquiteto mais democrático, atingindo novos resultados quando da análise dos nossos espaços urbanos, sobretudo valorizando e redemocratizando as possibilidades de reutilização de espaços emblemáticos e de permanência coletiva, detentores muitas vezes de parcelas históricas das nossas cidades, como o leito férreo de Bauru. Espera-se que este escrito contribua para o arcabouço metodológico, para que este, por sua vez, seja mais amplamente discutido e disseminado, como forma de inclusão e redemocratização dos métodos de análise e levantamento dos nossos espaços urbanos, muitas vezes usurpados e transfigurados, guardando singularida