unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP TALITA BUENO SALATI LAHR TERRITÓRIOS VULNERÁVEIS: OS PROBLEMAS DE CONVIVÊNCIA NA ESCOLA E A REDE DE PROTEÇÃO ARARAQUARA – S.P. 2022 TALITA BUENO SALATI LAHR TERRITÓRIOS VULNERÁVEIS: OS PROBLEMAS DE CONVIVÊNCIA NA ESCOLA E A REDE DE PROTEÇÃO Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara, como pré-requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Educação Escolar. Linha de Pesquisa: Formação de Professores, Trabalho Docente e Práticas Pedagógicas. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Luciene Regina Paulino Tognetta Co-Orientador: Prof. Dr. Pablo Castro Carrasco Agência de Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) ARARAQUARA – S.P. 2022 TALITA BUENO SALATI LAHR TERRITÓRIOS VULNERÁVEIS: OS PROBLEMAS DE CONVIVÊNCIA NA ESCOLA E A REDE DE PROTEÇÃO Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara, como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre em Educação Escolar. Linha de Pesquisa: Formação de Professores, Trabalho Docente e Práticas Pedagógicas. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Luciene Regina Paulino Tognetta Co-Orientador: Prof. Dr. Pablo Castro Carrasco Agência de Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Data da defesa: 31/03/2022 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Prof.ª Dr.ª Luciene Regina Paulino Tognetta Universidade Estadual Paulista Co-orientador: Prof. Dr. Pablo Castro Carrasco Universidad de La Serena Membro Titular: Profª. Drª. Maria Suzana de Stéfano Menin Universidade Estadual Paulista Membro Titular: Prof.ª Dr.ª Marilene Proença Rebello de Souza Universidade de São Paulo Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara Às Marias que mantém vivo e intenso meu desejo em estudar, trabalhar e lutar por políticas públicas que possibilitem uma vida mais digna para todas as crianças e adolescentes de nosso país e à Clara e Matias que em breve estarão em nossos braços e já são fonte e destino de amor e proteção. AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, agradeço a Deus que me presenteou com pessoas tão especiais com quem com-vivi por todos esses anos. A Ele que me deu a vida e a oportunidade de atender aqueles que mais precisam por meio de meu trabalho e dedicação e, eu sei, que ainda é muito pouco e o mínimo que devo fazer. Depois, agradeço a meus pais que por meio de muito amor e acolhimento me ensinaram o amor, o respeito, a generosidade e o cuidado por meio de seus atos. Agradeço ao Lucas, meu marido, pela paciência nesses últimos anos de estudo e trabalhos constantes, inclusive aos finais de semana, e pelo maior presente que poderíamos esperar: nossos bebês a caminho. Agradeço aos profissionais e diretores que já trabalharam comigo nas instituições e que me ensinaram tanto com sua experiência, sensibilidade e conhecimento. Alguns talvez não saibam da importância que têm em minha formação: Mônica, Lilian, Mariana, Têre, Orlando, Eris, Clara, Kátia, Felix, Karol, Léa, Cris, Cris Marcondes.... Agradeço aos amigos do meu “canto” com quem troquei tantas angústias e alegrias nos últimos anos e que me ensinaram e orientaram a cada dia de estudo, trabalho e na vida, como irmãos mais velhos: Raul e Darlene. Agradeço a amigas queridas de partilha com quem dividi não só o caminho trilhado até aqui, mas reflexões sobre o porquê de estarmos aqui e os valores que envolveram nossas escolhas: Sandy e Sandra. Agradeço a tantas pessoas de nosso grupo de pesquisa que, mesmo em tempos pandêmicos, estiverem presentes diariamente seja por meio de mensagens de apoio, reuniões online, trabalhos diversos ou dividindo as alegrias e sofrimentos do dia a dia: Fernanda, Natália, Danila, Deise, Fabiano, Lídia, Luciana, Mário, Catarina, Thais, Adriana, Elvira, Flávia, Larissa, Letícia, Soraia, Adriano, Marilúcia, Mariana e Simone. Entre os membros do grupo, uma em especial, esteve comigo em muitos momentos da pesquisa e com sua doçura e dedicação pode me ajudar nas percepções dos resultados de cada etapa: Vitória! Aos participantes da pesquisa que me ensinaram tanto em cada frase transcrita, reescrita e codificada. As crianças e adolescentes com as quais já trabalhei, em especial as que passaram pelo Lar Dona Anita, e com as quais aprendi a reconhecer o afeto em meio às agressões, o medo diante das incertezas e abandonos, a angústia nos gritos de desespero e solidão, a alegria diante da esperança no amor de uma família e o sentido mais puro da felicidade presente nas despedidas. Agradeço especialmente aos professores da banca que foram escolhidos a dedo pelo critério da admiração, admiração ao trabalho, às pesquisas e ao olhar voltado ao cuidado com a convivência, ao ser humano e especialmente a nossas crianças e adolescentes: Telma, Luciana, Marilene, Suzana, Catarina e Fátima. Agradeço ao professor Pablo que com seu olhar da psicologia e da pesquisa qualitativa enriqueceu tanto o nosso trabalho e análise, e que sempre esteve muito disponível e disposto a enfrentar esse desafio de me co-orientar a distância. E por último e de uma importância imensurável, meu agradecimento a Lu, não apenas pela orientação e cuidado com esse trabalho, mas pelo companheirismo, pelo carinho, pelo reconhecimento de sentimentos que por vezes não eram ainda conhecidos nem por mim mesma, pela generosidade e pela proteção que ela oferece a cada um de nós, seus orientandos. A equidade também não dispensa a inteligência, a prudência, a coragem, a fidelidade, a generosidade, a tolerância... É nisso que coincide com a justiça, não mais como virtude particular, tal como a consideramos aqui, mas como virtude geral e completa, aquela que contém ou supõe todas as outras, aquele de que Aristóteles dizia tão belamente que a consideramos “a mais perfeita das virtudes e (que) nem a estrela da noite, nem a estrela da manhã são tão admiráveis” (COMTE-SPONVILLE, 2016, p. 94, grifo do autor). RESUMO Os problemas de convivência no cotidiano das escolas geram angústias e dúvidas entre educadores e gestores sobre formas eficazes de encaminhamentos e soluções. Em contextos de maior vulnerabilidade, problemas de ordem social, tráfico de drogas, violência doméstica, ausência e negligência dos pais dificultam o trabalho da escola com a comunidade e exigem uma atuação conjunta com a rede de proteção. Contudo, a relação entre a instituição escolar e os demais serviços da rede de proteção é frágil e permeada por desconhecimento das funções e responsabilidades de cada ator que a compõe. Esta pesquisa foi realizada com gestores, professores e demais atores da rede de proteção de municípios paulistas escolhidos por conveniência e teve por objetivo investigar a percepção dos diferentes atores da rede de proteção, sejam eles da escola ou de fora dela, acerca dos próprios conhecimentos sobre os encaminhamentos aos problemas de convivência e os papéis dos diferentes serviços que atendem crianças e adolescentes. A investigação foi composta por dois estudos: o primeiro constatou a percepção desses profissionais sobre os encaminhamentos (sanções) realizados pela escola aos conflitos e ciberagressões, comparando o perfil dos participantes e o tipo de gestão da escola (municipal ou estadual), e o segundo avaliou o conhecimento dos mesmos sobre os papéis dos atores da rede de proteção e os possíveis encaminhamentos a esses atores quanto aos problemas de convivência, situações de violência doméstica, negligência e autolesão. Trata-se de uma pesquisa exploratória, de caráter descritivo interpretativo, cuja análise se deu de forma quanti e qualitativa. O instrumento de pesquisa quantitativa utilizado foi um questionário com perguntas fechadas, adaptado do Instrumento de Avaliação das Relações Interpessoais construído pelo GEPEM. Para a análise qualitativa foi organizada uma entrevista em grupo com posterior Análise Fundamentada nos Dados. Os resultados indicaram diferentes percepções entre os atores da rede de proteção sobre os encaminhamentos realizados pela escola aos problemas de convivência com ações mais punitivas por parte dos profissionais da instituição escolar. Além disso, evidenciaram o desconhecimento sobre os diferentes papéis dos serviços e órgãos que compõem a rede de proteção, principalmente para os encaminhamentos realizados ao Conselho Tutelar e para a identificação e escuta às situações de violência doméstica dentro da escola. A pesquisa aponta a importância da formação continuada com as equipes e a necessidade de maior articulação na rede de proteção para atendimento efetivo e garantia de direitos de crianças e adolescentes. Palavras-chave: Rede de proteção. Problemas de convivência. Violência na escola. Clima relacional. RESUMEN Los problemas de convivencia en la vida cotidiana de las escuelas generan ansiedades y dudas entre educadores y directores sobre formas efectivas de derivaciones y soluciones. En contextos de mayor vulnerabilidad, los problemas sociales, el narcotráfico, la violencia doméstica, la ausencia y el abandono de los padres dificultan el trabajo de la escuela con la comunidad y requieren una acción conjunta con la red de protección. Sin embargo, la relación entre la institución escolar y los demás servicios de la red de protección es frágil e impregnada de desconocimiento de las funciones y responsabilidades de cada actor que la compone. Esta investigación fue realizada con gerentes, docentes y otros actores de la red de protección de municipios en São Paulo elegidos por conveniencia y tuvo como objetivo investigar la percepción de los diferentes actores de la red de protección, sean ellos de la escuela o de fuera de ella, sobre sus propios conocimientos sobre las referencias a los problemas de convivencia y los papeles de los diferentes servicios que atienden a niños, niñas y adolescentes. La investigación consistió en dos estudios: el primero encontró la percepción de estos profesionales sobre las referencias (sanciones) realizadas por la escuela a conflictos y ciberagresiones, comparando el perfil de los participantes y el tipo de gestión escolar (municipal o estatal), y el segundo evaluó sus conocimientos sobre los roles de los actores de la red de protección y las posibles referencias a estos actores sobre problemas de convivencia, situaciones de violencia intrafamiliar, negligencia y autolesiones. Se trata de una investigación exploratoria, de carácter descriptivo interpretativo, cuyo análisis se realizó de forma cuantitativa y cualitativa. El instrumento de investigación cuantitativa utilizado fue un cuestionario con preguntas cerradas, adaptado del Instrumento de Evaluación de Relaciones Interpersonales construido por GEPEM. Para el análisis cualitativo, se organizó una entrevista grupal con el posterior Análisis Basado en los Datos. Los resultados indicaron diferentes percepciones entre los actores de la red de protección sobre las derivaciones realizadas por la escuela a problemas de convivencia con acciones más punitivas por parte de los profesionales de la institución escolar. Además, evidenciaron el desconocimiento sobre los diferentes roles de los servicios y organismos que conforman la red de protección, principalmente por las derivaciones realizadas al Consejo de Tutela y para identificar y escuchar situaciones de violencia doméstica dentro de la escuela. La investigación señala la importancia de la educación continua con equipos y la necesidad de una mayor articulación en la red de protección para la atención efectiva y la garantía de los derechos de los niños, niñas y adolescentes. Palabras clave: Red de protección. Problemas de convivencia. Violencia en la escuela. Clima relacional. ABSTRACT The problems of coexistence in the daily life of schools generate anguish and doubts among educators and managers regarding effective ways of forwarding and solving them. In contexts of greater vulnerability, social problems, drug dealing, domestic violence, parental absence and negligence make it difficult for the school to work with the community and require a joint action with the protection network. However, the relationship between the school institution and the other services of the protection network is fragile and permeated by a lack of knowledge about the roles and responsibilities of each actor that makes it up. This research was carried out with managers, teachers, and other actors in the protection network of São Paulo municipalities chosen for convenience and aimed to investigate the perception of the different actors in the protection network, from school or outside of it, about their own knowledge of the referrals to coexistence problems and the roles of the different services that attend children and adolescents. The investigation was composed of two studies: the first one verified the perception of these professionals about the referrals (sanctions) made by the school to conflicts and cyber- aggressions, comparing the participants' profile and the type of school management (municipal or state), and the second one evaluated their knowledge about the roles of the actors in the protection network and possible referrals to these actors regarding problems of coexistence, situations of domestic violence, neglect and self-harm. This is an exploratory, descriptive and interpretative research, whose analysis was carried out in a quantitative and qualitative way. The quantitative research instrument used was a questionnaire with closed questions, adapted from the Instrument for the Evaluation of Interpersonal Relations built by GEPEM. For the qualitative analysis, a group interview was organized, with subsequent analysis based on the data. The results indicated different perceptions among the actors of the protection network about the referrals made by the school to coexistence problems with more punitive actions by the professionals of the school institution. Furthermore, they showed a lack of knowledge about the different roles of the services and agencies that make up the protection network, especially for referrals to the Guardianship Council and for identifying and listening to situations of domestic violence within the school. The research points out the importance of continued training with the teams and the need for greater coordination in the protection network for effective care and guaranteeing the rights of children and adolescents. Keywords: Protection network. Coexistence problems. Violence at school. Relational climate. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Organização do SGDCA ........................................................................................ 97 Figura 2 – Rede de Atenção à Saúde da família de Maria .................................................... 112 Figura 3 – Organização do Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes (SGDCA) ................................................................................................................................ 154 Figura 4 – Ecomapa do atendimento da família de Maria..................................................... 175 Figura 5 – Organização da busca por referências bibliográficas sobre o tema da pesquisa .. 178 Figura 6 – Investigações conduzidas nos projetos de pesquisas coordenados pela Profa. Dra. Luciene Regina Paulino Tognetta durante o quadriênio 2019-2023 ...................................... 190 Figura 7 – Grupos de ações do projeto de pesquisa em 2021 ............................................... 191 Figura 8 – Passos para a análise qualitativa e construção da teoria fundamentada por meio do Software Nvivo ....................................................................................................................... 262 Figura 9 – Nuvem de palavras gerada a partir da análise qualitativa da entrevista em grupo ................................................................................................................................................ 264 Figura 10 – Resumo dos grandes temas e categorias construídas na pesquisa ..................... 271 Figura 11 – Árvore do tema Articulação em rede construído com o software NVivo ......... 273 Figura 12 – Categorização axial do tema Articulação em rede............................................. 285 Figura 13 – Árvore do grande tema capacitações e formações construído com o software NVivo ..................................................................................................................................... 286 Figura 14 - Categorização axial do grande tema: capacitações e formações........................ 293 Figura 15 – Árvore do grande tema demandas de crianças e adolescentes construída com o software NVivo ...................................................................................................................... 294 Figura 16 – Categorização Axial do grande tema: demandas de crianças e adolescentes ... 299 Figura 17 – Árvore do grande tema escuta especializada construída com o software NVivo ................................................................................................................................................ 300 Figura 18 – Categorização Axial do grande tema: escuta especializada .............................. 306 Figura 19 - Tema: Pandemia da COVID-19 construída com o software NVivo .................. 307 Figura 20 – Árvore do grande tema: O trabalho em rede e suas categorias, construída com o software NVivo ...................................................................................................................... 309 Figura 21 - Árvore do grande tema: O trabalho em rede, suas categorias e subcategorias, construída com o software NVivo .......................................................................................... 310 Figura 22 – Codificação axial do grande tema: o trabalho em rede ..................................... 328 Figura 23 – Nossas Marias .................................................................................................... 340 Figura 24 – Nossas Marias .................................................................................................... 341 Figura 25 – Nossas Marias .................................................................................................... 343 Figura 26 – Nossas Marias .................................................................................................... 348 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Manifestações perturbadoras (ou indisciplinadas) ............................................... 58 Quadro 2 – Manifestações agressivas ..................................................................................... 59 Quadro 3 – Organização dos direitos e serviços da rede de proteção apresentados na pesquisa .................................................................................................................................................. 99 Quadro 4 – Níveis de complexidade do SUS ........................................................................ 103 Quadro 5 – Centros de Atenção Psicossocial (Caps) ............................................................ 116 Quadro 6 – Papel designado pela legislação aos atores da rede de proteção no âmbito do encaminhamento de situações de violência contra crianças e adolescentes ........................... 123 Quadro 7 – Serviços oferecidos na Proteção Social Básica .................................................. 131 Quadro 8 – Serviços oferecidos pela Proteção Social Especial de Média Complexidade .... 136 Quadro 9 – Serviços da Proteção Social Especial de Alta Complexidade ............................ 141 Quadro 10 – Ciclos ofertados pela política de educação ...................................................... 147 Quadro 13 – Participantes da pesquisa quantitativa .............................................................. 193 Quadro 14 - Participantes da entrevista em grupo (pesquisa qualitativa) ............................. 194 Quadro 15– Relação entre os objetivos específicos e as perguntas do questionário............. 204 Quadro 16 – Relação entre os objetivos específicos do estudo 2 e as perguntas do questionário ................................................................................................................................................ 204 Quadro 17 – Participantes da pesquisa quantitativa .............................................................. 209 Quadro 18 - Códigos encontrados a partir da codificação linha a linha ............................... 268 Quadro 19 – Descrição das categorias do tema: Articulação em rede .................................. 273 Quadro 20 – Descrição das categorias do tema: Capacitações e formações ........................ 286 Quadro 21 - Descrição das categorias do tema: Demandas de crianças e adolescentes ...... 294 Quadro 22 – Descrição das categorias do tema: Escuta especializada ................................. 300 Quadro 23 - Descrição do grande tema: Pandemia da COVID-19 ....................................... 307 Quadro 24 – Descrição do grande tema: O trabalho em rede e suas categorias e subcategorias ................................................................................................................................................ 311 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Busca por referências no Banco de Teses da Capes ............................................ 183 Tabela 2 – Busca por referências no portal P@RTHENON ................................................. 187 Tabela 3 - Serviço ou instituição dos participantes da rede de proteção ............................... 209 Tabela 4 – Comparativo do grau de significância entre os participantes sobre o encaminhamento dos problemas de convivência ao Conselho Tutelar .................................. 216 Tabela 5 – Respostas dos participantes sobre a frequência das ações da escola em situações de conflitos e desobediência às regras ......................................................................................... 217 Tabela 6 – Comparativo do grau de significância entre os participantes sobre a ação realizada pela escola de castigar apenas os alunos “conhecidos” por seus comportamentos ................ 217 Tabela 7 – Comparativo do grau de significância entre os participantes sobre a suspensão 220 Tabela 8 – Comparativo do grau de significância entre os participantes sobre a transferência ................................................................................................................................................ 220 Tabela 9 – Respostas dos participantes sobre a realização de boletins de ocorrência em situações de conflitos ou desobediência às regras .................................................................. 221 Tabela 10 – Respostas dos participantes sobre as ações da escola frente aos problemas de convivência na internet ........................................................................................................... 224 Tabela 11 – Comparativo do grau de significância entre os participantes para sanções envolvendo os problemas de convivência na internet ............................................................ 226 Tabela 12 – Comparativo do grau de significância entre os participantes para encaminhamento dos problemas de convivência na internet ao Conselho Tutelar ............................................ 226 Tabela 13 – Comparativo do grau de significância entre os participantes para falta de ações por parte da escola frente a problemas de convivência na internet............................................... 227 Tabela 14 – Respostas dos participantes sobre os encaminhamentos necessários para quando os estudantes se envolvem em uma briga na frente da escola ................................................ 228 Tabela 15 – Respostas dos participantes sobre os encaminhamentos necessários para quando os estudantes se automutilam ................................................................................................. 230 Tabela 16 – Comparativo do grau de significância entre os participantes sobre a realização de procedimentos internos ........................................................................................................... 232 Tabela 17 – Comparativo do grau de significância entre os participantes sobre a busca por outros serviços da rede de proteção ........................................................................................ 233 Tabela 18 – Respostas dos participantes sobre os encaminhamentos necessários para quando o estudante apresenta sinais de estar sofrendo violência sexual e/ou violência doméstica ....... 234 Tabela 19 – Comparativo do grau de significância entre os participantes sobre a busca por outros serviços da rede de proteção ........................................................................................ 236 Tabela 20 – Respostas dos participantes sobre os encaminhamentos necessários para quando um estudante comparece à escola sob efeito de álcool ou drogas .......................................... 237 Tabela 21 – Comparativo do grau de significância entre os participantes sobre a busca por outros serviços da rede de proteção ........................................................................................ 238 Tabela 22 – Respostas dos participantes sobre os encaminhamentos necessários para quando um estudante trafica drogas dentro da instituição .................................................................. 239 Tabela 23 – Respostas dos participantes sobre os encaminhamentos necessários para quando um estudante apresenta sintomas de ansiedade, depressão ou outros sofrimentos de caráter emocional ............................................................................................................................... 241 Tabela 24 – Comparativo do grau de significância entre os participantes sobre a realização de procedimentos internos ........................................................................................................... 244 Tabela 25 – Comparativo do grau de significância entre os participantes sobre a realização de procedimentos internos ........................................................................................................... 245 Tabela 26 – Respostas dos participantes sobre os encaminhamentos necessários para quando a escola percebe que um aluno está sendo negligenciado por sua família ................................ 246 Tabela 27 – Comparativo do grau de significância entre os participantes sobre a busca por outros serviços da rede de proteção ........................................................................................ 248 Tabela 28 – Respostas dos participantes sobre os encaminhamentos necessários para quando um estudante apresenta faltas constantes da instituição escolar ............................................. 248 Tabela 29 – Respostas dos participantes sobre a participação da escola na rede de proteção ................................................................................................................................................ 252 Tabela 30 – Respostas dos participantes sobre as relações entre os atores da rede de proteção ................................................................................................................................................ 253 Tabela 31 – Respostas dos participantes sobre o conhecimento dos papéis dos atores da rede de proteção .............................................................................................................................. 253 Tabela 32 – Comparativo do grau de significância entre os participantes sobre a percepção de atendimento do Conselho Tutelar às demandas da escola pelos gestores .............................. 257 Tabela 33 – Comparativo do grau de significância entre os participantes sobre a percepção de atendimento do Conselho Tutelar às demandas da escola pelos professores ......................... 259 Tabela 34 – Comparativo do grau de significância entre os participantes sobre a percepção de atendimento do Conselho Tutelar às demandas da escola pelos demais atores da rede ......... 259 Tabela 35 – Frequência de palavras identificadas na entrevista em grupo ........................... 264 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 – Razão de prevalência das respostas dos gestores das escolas da rede estadual e municipal ................................................................................................................................ 211 Gráfico 2 – Razão de prevalência das respostas dos professores das escolas da rede estadual e municipal ................................................................................................................................ 212 Gráfico 3 – Razão de prevalência das respostas dos demais atores da rede no estado e no município ................................................................................................................................ 213 Gráfico 4 – Respostas dos participantes sobre ouvir os alunos envolvidos nos conflitos e convidá-los a reparar seus erros.............................................................................................. 214 Gráfico 5 – Respostas dos participantes sobre o encaminhamento dos problemas de convivência ao Conselho Tutelar ........................................................................................... 215 Gráfico 6 – Razão de prevalência das respostas dos gestores das escolas da rede estadual e municipal sobre os problemas de convivência na internet ..................................................... 222 Gráfico 7 – Razão de prevalência das respostas dos professores das escolas da rede estadual e municipal sobre os problemas de convivência na internet ..................................................... 223 Gráfico 8 – Razão de prevalência das respostas dos demais atores da rede de proteção da amostra da rede estadual e municipal sobre os problemas de convivência na internet .......... 224 Gráfico 9 – Respostas dos participantes sobre a realização de procedimentos internos na escola ................................................................................................................................................ 229 Gráfico 10 – Respostas dos participantes sobre a realização de procedimentos internos na escola ...................................................................................................................................... 231 Gráfico 11 – Respostas dos participantes sobre informar o Conselho Tutelar ...................... 233 Gráfico 12 - Respostas dos participantes sobre a realização de procedimentos internos na escola ................................................................................................................................................ 235 Gráfico 13 - Respostas dos participantes sobre informar o Conselho Tutelar ...................... 242 Gráfico 14 – Respostas dos participantes sobre a realização de procedimentos internos na escola ...................................................................................................................................... 244 Gráfico 15 – Respostas dos participantes sobre a busca por outros serviços da rede de proteção ................................................................................................................................................ 247 Gráfico 16 – Respostas dos participantes sobre a realização de procedimentos internos na escola ...................................................................................................................................... 249 Gráfico 17 – Respostas dos participantes sobre convocar a família do estudante ................ 250 Gráfico 18 – Respostas dos participantes sobre a identificação das situações de violência na escola ...................................................................................................................................... 255 Gráfico 19 – Respostas dos participantes sobre a realização da escuta especializada na escola ................................................................................................................................................ 256 Gráfico 20 – Respostas dos participantes sobre os encaminhamentos realizados ao Conselho Tutelar em relação às faltas dos alunos .................................................................................. 258 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ACS - Agente Comunitário de Saúde APEOESP - Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo BNCC - Base Nacional Comum Curricular BO – Boletim de ocorrência BPC – Benefício de prestação continuada CAPS – Centro de Atenção Psicossocial CAPS ad – Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas CAPS i – Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil CDHU - Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano CIB - Comissão Intergestores Bipartite CIT - Comissão Intergestores Tripartite CMDCA - Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente CNAS - Conselho Nacional da Assistência Social CONANDA - Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente CPF – Cadastro de pessoa física CRAS - Centro de Referência de Assistência Social CREAS - Centro de Referência Especializado de Assistência Social DRE – Diretoria Regional de Ensino ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente ESF - Estratégia Saúde da Família IDEB - Índice de Desenvolvimento da Educação Básica LA – Liberdade Assistida LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LGBTQIA+ - Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais e mais LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social MSE - Medida Socioeducativa em Meio Aberto NAPS - Núcleo de Atenção Psicossocial NASF - Núcleo Ampliado de Saúde da Família NAT – Núcleo de Apoio Técnico do Ministério Público NOB-SUAS – Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social OAB - Ordem dos Advogados do Brasil OCDE - Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico OIT - Organização Internacional do Trabalho OSC – Organização da Sociedade Civil PAEFI - Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos PAF – Plano de Acompanhamento Familiar PAIF - Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família PDU - Plano de Desenvolvimento do Usuário PETI - Programa de Erradicação do Trabalho Infantil PIA – Plano Individual de Atendimento PISA - Programme for International Student Assessment PMEC - Professor Mediador Escolar e Comunitário PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAS – Política Nacional de Assistência Social PNE – Plano Nacional de Educação PNH - Política Nacional da Habitação POC – Professor Orientador de Convivência PPCAAM - Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte PPP - Projeto Político Pedagógico PSB - Proteção Social Básica PSC – Prestação de Serviço à Comunidade PSE – Proteção Social Especial PTS - Projeto Terapêutico Singular RAPS - Rede de Atenção Psicossocial RAS - Redes de Atenção à Saúde RENAME - Relação Nacional de Medicamentos Essenciais SAEB - Sistema de Avaliação da Educação Básica SAICA – Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes SAMU - Serviço de Atendimento Móvel de Urgência SCFV - Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos Familiares e Comunitários SEAS – Serviço Especializado de Abordagem Social SES - Secretaria Estadual de Saúde SGDCA - Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes SINASE - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo SMS - Secretaria Municipal de Saúde SUAS – Sistema Único da Assistência Social SUS – Sistema Único de Saúde UBS – Unidade Básica de Saúde USF – Unidade Saúde da Família UPA - Unidade de Pronto Atendimento VIJ - Vara da Infância e da Juventude SUMÁRIO MEMORIAL ............................................................................................................................ 26 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 35 2 A ESCOLA QUE PROTEGE E OS PROBLEMAS DE CONVIVÊNCIA .......................... 40 3 A REDE DE PROTEÇÃO .................................................................................................... 65 3.1 A proteção social ............................................................................................................ 67 3.2 As políticas sociais ......................................................................................................... 71 3.3 A vulnerabilidade ........................................................................................................... 73 3.4 A família brasileira ......................................................................................................... 80 3.5 A rede de proteção a crianças e adolescentes ................................................................. 80 3.6 Em tempos pandêmicos... ............................................................................................... 87 4 O PAPEL DOS ATORES DA REDE DE PROTEÇÃO ....................................................... 93 4.1 O eixo da promoção dos direitos humanos de crianças e adolescentes .......................... 98 4.1.1 Serviços e programas que atendem diretamente aos direitos de crianças e adolescentes ...................................................................................................................... 99 4.1.1.1 Direito à vida e à saúde .............................................................................................. 100 4.1.1.2 Direito à liberdade, ao respeito e à dignidade ............................................................ 118 4.1.1.3 Direito à convivência familiar e comunitária ............................................................. 128 4.1.1.4 Direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer .................................................... 145 4.1.1.5 Direito à profissionalização e à proteção no trabalho ................................................ 150 4.1.2 Serviços e programas de execução de medidas específicas de proteção de direitos humanos com caráter de atendimento inicial, integrado e emergencial ......................... 154 4.1.3 Serviços e programas de execução de medidas socioeducativas e outras similares ........................................................................................................................................ 157 5 OS PAPÉIS DOS ATORES DA REDE DE PROTEÇÃO: OS EIXOS DE DEFESA E DE CONTROLE ........................................................................................................................... 161 5.1 O eixo de defesa do SGDCA ........................................................................................ 162 5.1.1 Vara da Infância e Juventude (VIJ) ....................................................................... 162 5.1.2 Ministério Público ................................................................................................. 163 5.1.3 Defensoria pública ................................................................................................. 165 5.1.4 Conselho Tutelar ................................................................................................... 165 5.2 O eixo de controle dos direitos humanos de crianças e adolescentes ........................... 168 6 METODOLOGIA ................................................................................................................ 177 6.1 Revisão bibliográfica .................................................................................................... 177 6.1.1 Banco de teses da Capes ................................................................................................ 179 6.1.2 Portal P@RTHENON .................................................................................................... 183 6.2 A pesquisa .................................................................................................................... 188 6.2.1 ESTUDO 1: Percepções sobre os encaminhamentos realizados pela escola aos conflitos e ciberagressões: percepção de gestores, professores (escola) e demais atores da rede de proteção ................................................................................................................................................ 189 6.2.1.1 Objetivos específicos .................................................................................................. 189 6.2.2 ESTUDO 2: O conhecimento dos participantes sobre os papéis dos atores da rede de proteção e os possíveis encaminhamentos a esses atores quanto aos problemas de convivência, situações de violência doméstica, negligência e autolesão..................................................... 189 6.2.3 Abordagem metodológica...................................................................................... 192 6.2.4 A amostra da pesquisa ........................................................................................... 193 6.2.5 A pesquisa quantitativa .......................................................................................... 194 6.2.5.1 Primeira seção: Encaminhamentos dados pelos adultos da escola aos problemas de convivência na escola ............................................................................................................. 195 6.2.5.2 Segunda seção: Encaminhamentos dados pelos adultos da escola às situações de violência e/ou aos problemas de convivência identificados na escola ................................... 199 6.2.5.3 Terceira seção: A participação da escola na rede de proteção ................................... 202 6.2.5.4 A análise dos dados .................................................................................................... 205 6.2.6 A pesquisa qualitativa .................................................................................................... 206 6.2.6.1 A análise dos dados .................................................................................................... 207 7 RESULTADOS QUANTITATIVOS E DISCUSSÃO ....................................................... 209 7.1 Análise dos resultados do estudo 1 ................................................................................... 210 7.2 Análise dos resultados do estudo 2 ................................................................................... 251 8 RESULTADOS QUALITATIVOS E DISCUSSÃO .......................................................... 261 8.1 Processo de análise no software NVivo ........................................................................... 263 8.1.1 Organização dos dados no software NVivo .................................................................. 263 8.1.2 Análise da nuvem de palavras gerada pelo software NVivo ......................................... 263 8.1.3 Codificação automática pelo software NVivo ............................................................... 266 8.1.4 Codificação “linha a linha” e codificação focalizada a partir da fala dos participantes 266 8.1.5 Sistematização das categorias a partir da literatura ....................................................... 269 8.1.6 Construção dos desenhos e relatórios por meio do software NVivo ............................. 270 8.2 Apresentação e discussão dos dados qualitativos ............................................................. 272 8.2.1 Articulação em rede ....................................................................................................... 272 8.2.2 Capacitações e formações .............................................................................................. 286 8.2.3 Demandas de crianças e adolescentes ........................................................................... 293 8.2.4 Escuta especializada ...................................................................................................... 299 8.2.5 Pandemia ....................................................................................................................... 306 8.2.6 O trabalho em rede ........................................................................................................ 308 8 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ................................................................................... 330 10 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 339 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 350 APÊNDICES .......................................................................................................................... 382 APÊNDICE A – TCLE .......................................................................................................... 382 APÊNDICE B – Questionário para gestores escolares .......................................................... 384 APÊNDICE C – Questionário para professores ..................................................................... 391 APÊNDICE D – Questionário para demais atores da rede de proteção ................................. 398 APÊNDICE E – Resultados do Estudo 1 ............................................................................... 405 APÊNDICE F – Resultados do Estudo 2 ............................................................................... 427 APÊNDICE G – Revisão das categorias ................................................................................ 436 APÊNDICE H - Codebook das categorias geradas pelo NVivo ............................................ 439 APÊNDICE I - Resumo da codificação com relatório dos códigos e excertos gerados pelo NVivo. ................................................................................................................................................ 445 APÊNDICE J - Transcrição da entrevista em grupo .............................................................. 500 26 MEMORIAL Como é difícil falar de si... buscar nas memórias a nossa história é reviver experiências e ressignificar nossas escolhas. Um percurso importante não apenas para a pesquisa, mas também para reforçar o porquê de eu estar aqui, neste grupo, fazendo esta pesquisa. Sempre gostei de estudar – esse sempre foi um valor importante em minha família. Meus pais sempre se esforçaram e trabalharam muito para que eu e meu irmão pudéssemos estudar em boas escolas, na expectativa de um futuro diferente, com mais oportunidades. Meus pais, que sempre trabalharam com tecidos, confecção e loja de roupas, tinham, no fundo, a expectativa de que eu seguisse a mesma carreira. E comecei a trilhar esse caminho. No Ensino Médio, fiz um curso técnico em Moda e cheguei a prestar vestibular para o curso superior em 2004. Acontece que, em julho de 2004, meses antes do vestibular, participei de uma Semana Missionária com o grupo da Pastoral Escolar de um colégio salesiano, onde cursei toda a Educação Básica. Aquela semana mudou minha vida... Foram dez dias de intensa reflexão sobre a presença de Deus em nosso caminho, sobre nossos projetos de vida, de visitas às famílias de uma pequena comunidade em Bragança Paulista, de oratório e atividades com as crianças no período da tarde e encontros com adolescentes e jovens à noite. Adolescentes na época, nós éramos acompanhados por um padre, dois seminaristas e alguns jovens da paróquia que generosamente norteavam nossas ações naquele grupo. Quando voltei para Americana, algo havia mudado em mim. Eu não queria mais trabalhar com moda, queria fazer algo que pudesse ajudar a vida de alguém. Fiz cursinho pré- vestibular e ainda me via perdida em relação à escolha profissional. Comecei a dar aulas de espanhol voluntariamente em um projeto de educação para jovens e adultos na minha paróquia, e ali havia professores. Professores que alfabetizavam idosos. Quando tínhamos reuniões para conversar sobre o trabalho que desenvolvíamos, eu ficava fissurada ouvindo-os descrever as reações simples e tão significativas dos idosos quando conseguiam ler uma placa na rua ou o indicador no ônibus e a carinha que faziam quando aprendiam uma nova palavra. Comecei a pensar então na Pedagogia, mas minhas pesquisas e, acredito eu, meu instinto me levaram à Psicologia. Fui para a UFSCar, em São Carlos, e logo de início busquei o trabalho com idosos, pois sempre tive um quê de cuidado por eles. A primeira seleção de estágio, porém, me levou ao campo da saúde pública e ao ambulatório de IST/Aids. Conheci a Prof. Dra. Luciana Nogueira Fioroni, com quem aprendi muito sobre a psicologia social e o cuidado ético nos atendimentos 27 de crianças e adolescentes. Logo iniciamos um grupo para revelação diagnóstica para crianças e adolescentes que viviam com HIV, e ali começou meu encanto em atender crianças. Permaneci com a Prof. Luciana até o final da graduação por meio de Projetos de Extensão e estágio no próprio ambulatório. Além do grupo de revelação diagnóstica desenvolvemos alguns projetos visando o levantamento documental dos usuários do serviço e de um trabalho com a equipe multidisciplinar local. Apresentamos alguns trabalhos em Congressos de Iniciação Científica e de Psicologia Social com os seguintes temas: Aids pediátrica para crianças, cuidadores e profissionais de saúde; Levantamento de prontuários de um ambulatório municipal de DST/Aids e caracterização inicial dos usuários; Trabalho e HIV/Aids: processos de perdas e estratégias de superação; e Reflexões sobre um grupo de trabalho: acolhimento a profissionais e usuários do ambulatório de DST/Aids de São Carlos. No mesmo período auxiliei em pesquisas de mestrado e doutorado no papel de juiz na avaliação de comportamentos de crianças em sala de aula pelo Laboratório de Relações Interpessoais e Habilidade Sociais (RIHS) da UFSCar, sob responsabilidade dos pesquisadores doutores Almir e Ilza Del Prette e apresentamos o trabalho referente ao “Treinamento de juízes em observação: procedimentos e fidedignidade”. Ainda enquanto estudante da graduação, realizei uma pesquisa de monografia para conclusão do curso intitulada “Percepções de idosos vivendo em instituições de longa permanência” em que tive a orientação da Prof. Dra. Elisabeth J. Barhan e, por meio de uma análise qualitativa, analisamos as vivências dos idosos que moravam em abrigos particulares e públicos na cidade de São Carlos. Além dos trabalhos na área de pesquisa, participei de projetos de extensão voltados a estudos e atendimentos de pacientes na linha psicanalítica na USE (Unidade Saúde Escola) da UFSCar e realizei estágios na área organizacional e educacional. Enquanto cursava a faculdade e morava em São Carlos, continuava fazendo parte do Grupo de Ação Missionária em Americana. No fim de 2009, na missão de Barueri, um padre, conhecido como “Toninho” fez uma brincadeira e me disse: “Você não quer ser missionária em Angola quando terminar a faculdade?”. Aquela pergunta ficou ecoando na minha cabeça por semanas e o meu desejo em realizar aquele trabalho foi aumentando a cada dia. Em 2010, então, comecei um período de preparação para o voluntariado missionário em Angola, ano em que também terminei a faculdade, e fui. Até hoje não tenho muita certeza se meus pais estavam orgulhosos ou se queriam me matar por escolher viver em um lugar com tanta pobreza e longe 28 da proteção deles por um ano inteiro. Eu e mais dois missionários brasileiros embarcamos no começo de 2011 para um ano que, com certeza, mudaria nossas vidas. O mais incrível de reviver tudo isso ao escrever este memorial é compreender os pequenos e grandes empurrões que Deus nos dá para a construção de nosso caminho. Olhando para o meu trabalho hoje e para os lugares pelos quais passei, tudo faz sentido. O ano de 2011 foi repleto de experiências intensas, desde viver com pouco acesso a alimentos e em condições diferentes das que estávamos acostumados no Brasil, como comer queijo ou carne vermelha ou ter energia elétrica para trabalhar, até a experiência de fé e cuidado para com o outro e que aprendemos tanto quando vivemos em comunidade com pessoas que, até então, eram desconhecidas para nós. Nesse ano, trabalhei coordenando um posto de saúde pela manhã (o posto ficava aberto apenas nesse período, pois era o horário em que o gerador de energia elétrica permanecia ligado. À tarde, sem energia, o posto era fechado). À tarde trabalhava na Escola Dom Bosco de Lwena, especialmente com um grupo de adolescentes, a fim de organizar a pastoral da escola e contribuir para a construção de valores morais e o protagonismo dos jovens. À noite, eu e Larissa, minha irmã de missão, dávamos aula para os adultos na alfabetização e ajudávamos os seminaristas com aulas de português e matemática. Aos fins de semana, éramos responsáveis por alguns grupos de jovens (eram muitos grupos e muitos jovens) e pelo oratório nas aldeias mais distantes – por vezes, demorávamos 2 horas de estrada para chegar à comunidade. Descanso? Desconheço essa palavra... Eventualmente tínhamos o sábado de manhã livre, mas também precisávamos limpar nossa casa, lavar a roupa, fazer a feira na “praça” para as refeições da semana. Lá não havia regalias como máquina de lavar e comida pronta. Meu primeiro contato, de fato, com a escola foi em Angola. Na faculdade fiz um estágio em psicologia escolar, mas ainda muito distante do chão da escola. Em Angola eu vivi a escola, a formação de professores, os conflitos e as potencialidades de meninos e meninas que tinham muito a oferecer ao outro e ao mundo. Os professores ainda tinham o hábito de bater na palma da mão dos alunos com a régua; as crianças se levantavam quando entrávamos na sala e diziam: “Bom dia, professora”; as cópias no quadro negro era o que mais era feito todos os dias... Uma realidade muito ultrapassada para o que acreditamos como educação, porém com extrema necessidade de atuação. Iniciamos um trabalho de formação com os professores, mas lidávamos diariamente com críticas como: “Só no Brasil funciona assim...”, especialmente quando se tratava da forma de falar e tratar os alunos. Do que mais nos orgulhamos do trabalho (e aqui posso falar pela Larissa também) era do nosso grupo de adolescentes. Iniciamos o trabalho com aqueles que quisessem participar do grupo, começando com um trabalho voltado ao projeto de 29 vida. Colocamos possibilidades de ações nas mãos deles e pedimos que nos ajudassem a mudar um pouquinho a realidade daquela escola. Fizemos propostas de um trabalho com os pequenos que tinham muita dificuldade em aprender a ler e a escrever e sugerimos organizar uma festa para Dom Bosco. Eles organizaram TUDO. Um grupo se prontificou a ajudar os alunos mais novos no reforço escolar e passamos a ter várias turmas que preparavam e realizavam diferentes atividades. Outro grupo começou a divulgação da festa e fez até uma seleção dos alunos que se apresentariam no grande dia, com dança, muita música, poemas etc. O processo seletivo organizado por eles durou dias, teve regulamento e uma escolha minuciosa. Neste ano de 2021, dez anos depois do trabalho em Angola, um jovem chamado Joiade Yacomba me mandou uma foto no Facebook do projeto de vida que ele construiu naquela época e disse: “Ainda o tenho como um guia”; contou estar cursando Medicina e que desejava vir ao Brasil visitar a mim e a Larissa. Este foi nosso maior tesouro: ajudar adolescentes em uma realidade de grande pobreza a olhar para aquilo que tinham de melhor dentro de si, a capacidade de ajudar o outro, e, a partir disso, trilhar sua história. Voltando de Angola em 2012, os salesianos me convidaram para coordenar uma obra social, localizada em um bairro periférico de Americana. Mal sabia eu que estava entrando para um Serviço da Política de Assistência Social, o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV). Eu só sabia que era a Casa de Dom Bosco... Chegando lá me deparei com uma realidade diferente da de Angola, claro, mas parecida também. Incrível como a pobreza de nosso país localizada em lugares afastados do centro da cidade e dos bairros onde vivemos pode parecer invisível aos nossos olhos. Apesar de o bairro ter energia elétrica e água encanada, a maioria das casas só os acessa por meio de “gatos”. Famílias de dez pessoas dividem dois cômodos; mães trabalham em vários empregos para manter a casa sozinhas, pois os pais das crianças nem sequer as assumiram na certidão de nascimento. A violência acontece ali, no meio da rua; os adolescentes nas esquinas repassam a droga dos gerentes das biqueiras e avisam quando a polícia aponta lá no começo do bairro, próximo a uma grande avenida da cidade. Nós? Enxugamos gelo. Aos poucos fui aprendendo qual era o papel daquela instituição e a importância de conseguirmos, por meio das atividades propostas, fortalecer as relações entre os pares e entre crianças, adolescentes e suas famílias. Sim, esse é o objetivo do Serviço de Convivência. Não é oferecer reforço escolar nem apenas dar almoço todos os dias, mas cuidar das relações. Em meio ao retorno para o Brasil e o novo trabalho, reencontrei o Lucas, meu atual marido e amor da minha vida. Ele sempre foi companheiro em meus trabalhos e envolvido com 30 as crianças e adolescentes com os quais eu trabalhava, foi até DJ nas festinhas na Casa de Dom Bosco. As crianças amavam... E foi por meio da Casa de Dom Bosco que conheci o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem). O colégio mantenedor da obra social ofereceu algumas vagas para uma formação que seria realizada com as Profas. Dras. Luciene Tognetta e Telma Vinha, assessoradas pela minha madrinha de missão, a Sandy. Naquele curso reencontrei a Luciene, que foi minha professora na escola, se não me engano na 3ª série do Ensino Fundamental I, e fui me apaixonando pelos estudos voltados ao desenvolvimento moral. Nesse período também realizei uma pós-graduação intitulada Psicanálise, Grupalidade e Intervenção nas Instituições pelo Centro de Formação e Assistência à Saúde (CEFAS) em Campinas-SP. Naqueles anos também começaram meus conflitos com a instituição religiosa, que, apesar de seguir os ensinamentos de Dom Bosco, um grande homem, extremamente generoso e fiel aos seus jovens, caiu em tentação ao priorizar as instituições que atendem crianças e adolescentes da alta classe social brasileira. Isso se repete em todas as cidades do Brasil, mas não nos salesianos do mundo. Na maioria dos outros países, as escolas são públicas, e os serviços oferecidos atendem aqueles de que mais precisam deles, norte da doutrina construída por Dom Bosco. Mas aqui, não... e isso com certeza tem até hoje um peso muito grande na minha relação com a Igreja, mas não com Deus. As brigas eram constantes para que meus meninos e meninas da obra social tivessem acesso aos mesmos direitos e atividades oferecidas aos meninos e meninas do colégio particular. Até que não aguentei... ou pedia para sair ou tudo o que havia construído com essa instituição que foi tão importante para minha formação humana seria destruído. Então, em 2015, fui chamada para trabalhar em um Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes vítimas de violência que estava sendo implantado naquele ano pela Coasseje, um braço social do Centro Espírita Seareiros de Jesus. E fui... Acolhimento? Abrigo? Um serviço difícil, doloroso, mas de uma intensidade similar à que vivi em Angola. Comecei como psicóloga e depois fui chamada para assumir a coordenação técnica. Tínhamos uma equipe maravilhosa, da qual sinto saudades e com a qual me relaciono até hoje. Os diretores? Voluntários. Pois é... E de uma presença e carisma que ouso dizer são salesianos em sua essência. Mas a religião interfere no trabalho? Não. Nem no SCFV nem no Acolhimento, mas as pessoas que ali atuam e dirigem a instituição seguem determinada doutrina. Aprendi tanto nesse período que convivi com eles, assim como aprendi a admirar a doutrina espírita. Não precisamos mudar de religião para admirar a doutrina do outro, todos buscamos os mesmos fins: o respeito, o amor ao próximo, a ajuda, a justiça, a generosidade... 31 Ali vivenciei todos esses valores em meio ao caos que envolve o trabalho com crianças e adolescentes em situação de acolhimento. A violência pela qual esses pequenos passaram no decorrer de uma vida ainda tão curta não pode acarretar comportamentos diferentes daqueles, mas, com afeto, um ambiente suficientemente bom, cuidado e propostas de uma convivência democrática, é possível mudar a forma de se relacionar, de pedir por cuidado e de construir uma nova história. No período em que trabalhei na Assistência Social, procurei fortalecer a minha prática por meio de formações e cursos voltados ao dia a dia do meu trabalho, especialmente àqueles relacionados a convivência familiar e comunitária e às intervenções em situações de violência doméstica. Um dia, fui tomar café com a Sandy e ela me disse que queria me fazer um convite. “A Luciene perguntou se você quer entrar para o grupo de estudos.” Eu fiquei como? Que convite mais lindo e que honra fazer parte desse grupo! Foi assim que, em 2017, passei a frequentar as reuniões do Gepem. Confesso que, no começo, não entendia muita coisa, mas permanecia de corpo presente, e fui aos poucos compreendendo e admirando todas aquelas pessoas e trabalhos. Assim, o trabalho com o protagonismo voltou à minha vida por meio das Equipes de Ajuda e dos estudos voltados à construção da personalidade ética. Os colegas do grupo, sempre tão generosos e cuidadosos, iam me mandando materiais e tentando me situar a cada reunião. Concomitantemente aos estudos no grupo, passamos por momentos difíceis no Serviço de Acolhimento: grupos de irmãos que vivenciaram inúmeras violências e que nos desafiavam a buscar conhecimento para lidar com demandas tão complexas geravam ainda mais violência dentro e fora da instituição. Os problemas no abrigo são muitos, mas uma das maiores dificuldades é acionar a corresponsabilidade da rede de proteção em cada um desses casos atendidos. As crianças e adolescentes não chegam ao acolhimento simplesmente porque sofreram violência na família; eles sofreram violência da família, do Estado e são diariamente negligenciados em seus direitos fundamentais. É por isso que chegam às instituições, porque se encontram em uma situação que passa a ser desumana e inadmissível. O Acolhimento é uma medida extrema e excepcional, e assim deve ser! Separar uma criança de sua família biológica, por mais violenta que esta seja, também é uma violência. É tirar dela o único vínculo que possui e, por mais dificuldades que essa família tenha, é a família dessa criança. Evitar o acolhimento? Sim, é nossa tarefa enquanto rede. Como? Fortalecendo as famílias, cuidando das relações, oferecendo políticas públicas que deem conta das necessidades e da proteção da população. O acolhimento não pode reproduzir a roda dos expostos do século XVIII. Tirar uma criança de sua mãe não pode ser a solução para todos os problemas que envolvem relações humanas e a 32 própria violência como uma expressão dessas relações. Essas crianças e adolescentes são de responsabilidade de uma sociedade, e não apenas de uma instituição. Acontece que, em meio aos problemas que estávamos vivendo, não nos restou outra coisa senão estudar o que os demais órgãos da rede deveriam fazer para dar conta dessa demanda em parceria ao Serviço de Acolhimento. Passamos a acionar constantemente as reuniões de rede, de forma que todos assinassem as decisões e se sentissem corresponsáveis pelo drama daqueles irmãos que estavam sendo revitimizados havia mais de uma década, indo e voltando de diversos abrigos em reacolhimentos constantes e sem um trabalho efetivo com a família de origem, e que passaram, ainda, por diversas violências institucionais pela falta da garantia do direito a conviver em família, seja na família biológica, seja em uma família substituta. Essa busca pelos demais serviços, por seus papéis, pelos conselhos e comissões que poderiam auxiliar no acompanhamento ideal de nossas crianças sempre foi algo de que gostei muito. A articulação, a construção coletiva dos fluxos, as discussões de casos... O que podemos aprender com o conhecimento do outro por meio de discussões é algo imensurável. Porém, algo sempre me intrigou nessas relações: a escola nunca estava presente nas discussões de caso e nas reuniões de rede. Essa ausência talvez tenha relação com a quantidade de demandas da instituição, ou, uma hipótese mais provável, com o sentimento de não pertencimento da escola à rede de proteção e, no caso do abrigo, com o medo e evitamento do atendimento de crianças e adolescentes em situação de acolhimento. Fato era que, não raramente, tínhamos de acionar o Judiciário para conseguir matricular nossas crianças e adolescentes na escola, pois, assim que nos identificávamos ao telefone como um abrigo, as instituições alegavam não ter mais vagas para nossas crianças. Também eram constantes as ligações ao longo do dia para buscar as crianças que apresentavam qualquer alteração de comportamento na instituição – meninos e meninas reclamavam e choravam pela forma como eram tratados na escola pelos colegas, que o tempo todo diziam: “Você não tem mãe”, “Você mora no lar”, e por professores, que chegavam a impedir que comessem a merenda, porque não tinham “perfil comportamental” para estar no ensino integral, então deveriam ir embora antes do almoço, mesmo que todos os colegas fizessem a refeição e que nosso menino pedisse para comer “pelo menos um pedaço da almôndega”. Crueldade? Desconhecimento? Sobrecarga de trabalho? Essas dúvidas permaneciam em meus pensamentos, e a indignação com os comportamentos dos profissionais das escolas com nossas crianças e adolescentes fazia com que nos afastássemos ainda mais da instituição escolar. 33 Uma situação corriqueira: as reuniões intersetoriais sobre os casos atendidos no acolhimento acontecerão na semana seguinte, então a pedagoga da instituição pergunta: “Vamos chamar a escola para a reunião do fulano?”. Pensamos juntas e chegamos à conclusão: “Ah, telefone para a coordenadora e faça o convite de forma pessoal, quem sabe assim participam, mas já sabemos que não irão”. E assim foram praticamente cinco anos... Em meio ao trabalho no Serviço de Acolhimento e os estudos no Gepem, participei da elaboração de materiais de apoio a professores e gestores, apresentação de trabalho em Congresso Internacional, participação em projetos de extensão e de pesquisa, escrita de um artigo e capítulos de livros. Em relação aos materiais de apoio, escrevemos atividades para professores e alunos que acompanharam os livros de literatura infanto-juvenil da Prof. Luciene pela Editora Adonis; apresentei, juntamente com a colega Sandra Trambaiolli De Nadai, um trabalho sobre a percepção de familiares sobre a atuação de seus filhos nas Equipes de Ajuda na 44th Annual AME Conference. Tenho participado em projetos de extensão e pesquisa em redes municipais de ensino e colégios particulares para implementação de Programas de Convivência e formação de professores; escrevi, com a Prof. Luciene, o artigo “Proteção e bem- estar na escola: um emaranhado de nós para desatar em contextos pós-pandêmicos”1 (TOGNETTA; LAHR, 2021). E escrevi também três capítulos de livros, sendo dois já publicados: “Bullying e outros problemas escondidos” e “O que vem depois: o acompanhamento das Equipes de Ajuda”, ambos presentes na Coleção Retratos da Convivência, organizada pela Prof. Dra. Luciene Regina Paulino Tognetta. E outro, ainda no prelo, intitulado “A competência moral nas instituições de acolhimento para crianças e adolescentes” para a obra coletiva “Estudos sobre competência moral – propostas de dilemas para discussão”, organizado pela Prof. Dra. Patrícia Unger Raphael Bataglia2. Nesse meio-tempo, nos trabalhos com o Gepem, começamos um projeto com a Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo e, nas reuniões com as equipes do referido órgão, me chamava a atenção a forma como se referiam a determinada “rede de apoio da escola”. Eu me perguntava: “Quem será essa rede de apoio”. Até que um dia perguntei: “De quem vocês estão falando?”. Ao que responderam: “Do Conselho Tutelar, da Assistência Social etc.”. Pensei comigo: esses são membros da rede de proteção à criança e ao adolescente, da qual a escola também faz parte, e não estão aí para APOIAR a escola, mas para trabalhar de forma 1 Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/topicoseducacionais/article/view/250506. Acesso em: 10 jan. 2022. 2 Publicado em data posterior a defesa dessa dissertação e disponível em: https://ebooks.marilia.unesp.br/index.php/lab_editorial/catalog/book/316. https://periodicos.ufpe.br/revistas/topicoseducacionais/article/view/250506 https://ebooks.marilia.unesp.br/index.php/lab_editorial/catalog/book/316 34 conjunta, articulada. A escola não precisa de uma instituição para apoiá-la, mas se reconhecer como parte dessa rede intersetorial. Eis que a angústia presente no trabalho na Política de Assistência Social encontra a angústia no trabalho com o Gepem e as escolas paulistas, e é aí que meu percurso profissional e de vida se encontra com o tema desta pesquisa, na expectativa de que, fortalecendo a relação da escola com os demais órgãos da rede de proteção, um número maior de crianças e adolescentes esteja protegido das violências do mundo e das negligências do Estado... 35 1 INTRODUÇÃO Toda criança do mundo Deve ser bem protegida Contra os rigores do tempo, Contra os rigores da vida. Criança tem que ter nome, Criança tem que ter lar, Ter saúde e não ter fome, Ter segurança e estudar. Não é questão de querer, Nem questão de concordar. Os direitos das crianças Todos têm de respeitar! [...] Os direitos das crianças, segundo Ruth Rocha Era uma vez... uma garota chamada Maria. Maria era uma menina qualquer, brasileirinha, adolescente, sonhadora, estudante. Sua história é compartilhada por muitas outras Marias – femininas ou masculinas –, destituídas de sua dignidade quando o que vivem são situações de violência e negligência, ainda que seus direitos de cuidado, de respeito e de oportunidades de bem-estar sejam garantidos por lei. Marias são, constantemente, vitimadas pelos problemas sociais enfrentados no Brasil, que não são recentes e, como se refletem diretamente na atuação e na organização das instituições escolares, foram agravados pelas lacunas decorrentes da pandemia de Covid-19 vivida nos anos de 2020 e 2021. Dados recentes sobre as condições de crianças e adolescentes e estimativas acerca dos problemas a serem enfrentados no retorno ao ensino presencial, indicam demandas de sofrimento emocional, violência doméstica e dificuldades de aprendizagem que reforçam a importância do acolhimento e do papel protetivo do ambiente escolar (BARROS et al., 2020; FUNDAÇÃO ABRINQ, 2020; LEVANDOWSKI et al., 2021; PLATT; GUEDERT; COELHO, 2021; TOGNETTA; LAHR, 2021). Tais previsões foram confirmadas por professores, gestores e diversos pesquisadores em notícias de jornais e relatos de experiências nas escolas posteriormente ao isolamento social. Entretanto, pesquisas também indicam a dificuldade dessa instituição tão antiga e tão importante para a formação de crianças e adolescentes em lidar com os problemas de convivência (ABRAMOVAY, 2002, 2015; CAMPOS, 2008; CARVALHO, 2019; LEME, 36 2006; PISA, 2018; BRASIL, 2017; TOGNETTA et al., 2010; VINHA et al., 2017). Assim, o que já era difícil tornou-se ainda mais complicado com o agravamento do contexto atual, deixando a atuação de professores, gestores e funcionários da escola mais custosa e complexa. Tal fato nos leva a pensar que o trabalho, que já deveria ser realizado em rede, como ditam as leis em nosso país, revelou-se ainda mais necessário e essencial para a garantia de um atendimento digno e respeitoso a essa população. Isso porque brasileirinhos e brasileirinhas como Maria têm o Sistema de Garantia de Direitos a Crianças e Adolescentes (SGDCA) para confirmar esse atendimento. Contudo, o que democraticamente é disposto em lei em nosso país parece ainda distante do conhecimento, sobretudo da escola: há serviços e órgãos que compõem a rede de proteção e que, articulados, podem asseverar a proteção de que precisam. Essa é a justificativa para a pesquisa que se introduz. Ela foi iniciada antes da pandemia de Covid-19 em 2020 e tem como objetivo geral investigar a percepção dos diferentes atores da rede de proteção, sejam eles da escola ou de fora dela, acerca dos próprios conhecimentos sobre os encaminhamentos aos problemas de convivência e os papéis dos diferentes serviços que atendem crianças e adolescentes. Ocorre que o contexto pandêmico reforçou a importância da interação entre esses diferentes atores e a necessidade de que a escola esteja cada vez mais próxima e atuante nessa rede, percebendo-se, de fato, como parte dela. Assim, a fim de subsidiar teoricamente nosso problema de pesquisa e apresentar os dados quanto à importância do conhecimento dos papéis de cada um dos atores dessa rede de proteção para que os problemas de convivência e as violações de direitos de crianças e adolescentes sejam adequadamente encaminhados e acompanhados pela rede de proteção, organizamos esta dissertação em dez seções. A história de Maria é contada progressivamente nessas seções. Maria é uma adolescente que frequenta os anos finais do Ensino Fundamental, faz parte de uma família em situação de pobreza, tem vários irmãos e, como muitas crianças e adolescentes em nosso país, é cuidada pela avó, que assina como sua responsável na escola e nas demais instituições que Maria participa. A seção 2 introduz o tema dos problemas de convivência e a situação atual da educação brasileira com dados em torno da formação de professores, do sentimento de pertença dos alunos, da violência e dos problemas de indisciplina. A história de Maria e de tantas crianças e adolescentes brasileiros exige a retomada da história da infância no Brasil com um olhar especial para o controle exercido sobre essa população nos mais de 500 anos desde a colonização portuguesa. A visão de professores e 37 gestores escolares sobre o comportamento e a chamada “disciplina” não é em vão, mas remete à crença de que os pequenos devem se comportar e pensar como adultos, o que contraria o termo presente em nossa legislação de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos em condição peculiar de desenvolvimento, exigindo um cuidado e um olhar especial para seu desenvolvimento. Crianças e adolescentes precisam de adultos que os protejam e promovam a construção de sua autonomia. Para tal, retomamos a construção do juízo moral em Piaget (1994) e a importância das relações para a constituição do respeito mútuo, da cooperação e do ideal de autonomia moral. A seção 3 introduz o termo “proteção social” e a importância de estabelecer políticas públicas que atendam a noção de proteção adotada na Constituição Federal de 1988 e em outros documentos legais que norteiam o atendimento à população. É esse conceito, somado aos problemas sociais – pobreza, discriminação e diferenças de classe e acesso a oportunidades –, que vai dar subsídios para a construção da rede de proteção a crianças e adolescentes. É nessa seção que trazemos o agravamento gerado pela pandemia de Covid-19 aos problemas enfrentados em nosso país. Isso posto, iniciamos a descrição dos serviços e órgãos pertencentes à rede de proteção que serão responsáveis pela garantia de direitos às Marias, pequenas ou pequenos ou grandes, todos crianças e adolescentes em desenvolvimento. As seções 4 e 5 apresentam os papéis de cada um desses serviços descritos com base na organização do SGDCA e nos capítulos que compõem o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990a). Na seção 4 introduzimos a organização pensada por nós para descrever os papéis que colocam em prática a função protetiva desse grande sistema e detalhamos cada uma das políticas sociais que atendem crianças, adolescentes e suas famílias: saúde, educação, assistência social, cultura, lazer, habitação etc. São esses serviços que integram o eixo da promoção dos direitos humanos. Na seção 5 diferenciamos os órgãos responsáveis pelo controle e pela defesa de direitos, passando pelos papéis de órgãos como o Conselho Tutelar, a Vara da Infância e Juventude, o Ministério Público e os conselhos de direitos e setoriais. A seção 6 descreve o método utilizado em nossa pesquisa, composta por dois estudos que visam responder à pergunta: Qual é a percepção dos atores pertencentes à rede de proteção, sejam eles da escola ou de fora dela, sobre os encaminhamentos dos problemas de convivência de crianças e adolescentes nas escolas? O primeiro estudo é voltado à compreensão da percepção dos profissionais que atuam na escola sobre encaminhamentos realizados por eles aos conflitos e ciberagressões, e a percepção dos atores da rede de proteção de fora da escola sobre essas estratégias, baseando-se 38 também nos dados de perfil dos participantes, ou seja, se esses compõem a rede municipal ou estadual de ensino, e respondeu a três objetivos específicos: 1. Verificar e comparar as formas de resolução de problemas mais utilizados pelos adultos da escola na percepção dos atores da rede de proteção de dentro e de fora da escola (professores, gestores e profissionais de demais serviços) nos tipos de gestão estadual e municipal; 2. Verificar e comparar as ações realizadas pelos adultos da escola em relação aos problemas de convivência no espaço virtual (ciberagressões) nos tipos de gestão estadual e municipal; 3. Verificar se existe diferença entre os encaminhamentos que os serviços da rede de proteção definem ser necessários na escola diante dos conflitos e ciberagressões e o que professores e gestores apontam fazer nos tipos de gestão estadual e municipal. O segundo estudo avaliou o conhecimento dos participantes sobre os papéis dos atores da rede de proteção e os possíveis encaminhamentos a esses atores quanto aos problemas de convivência, situações de violência doméstica, negligência e autolesão, contou com uma análise quali e quantitativa e respondeu a dois novos objetivos específicos: 1- Averiguar e comparar o que os representantes da escola e a rede de proteção percebem sobre: a participação da instituição escolar na rede, as relações entre os atores, o conhecimento dos papéis de cada um e os encaminhamentos sobre as situações de violência doméstica identificadas na escola; 2- Constatar se na percepção dos atores da rede há relação entre o trabalho do Conselho Tutelar em parceria com a escola com o encaminhamento desta aos problemas de violência doméstica, negligência e faltas dos estudantes ao referido órgão. A seção 7 apresenta as análises quantitativas da pesquisa com a descrição dos dados coletados por meio de questionário aplicado nas redes de ensino estadual e municipal. A seção 8 apresenta os dados qualitativos coletados por meio de uma entrevista em grupo. Na seção 9 realizamos a discussão desses resultados relacionando os dados quanti e qualitativos. E a seção 10 é composta pelas considerações finais. Damos, então, início a este estudo, cuja grande esperança é promover um olhar mais sensível às mazelas sociais vivenciadas por crianças, adolescentes e suas famílias e que só 39 poderão ser enfrentadas por meio de um trabalho articulado e fortalecido por diferentes saberes científicos e especificidades técnicas. Muitas Marias “esperam” por nós! 40 2 A ESCOLA QUE PROTEGE E OS PROBLEMAS DE CONVIVÊNCIA Uma Maria entre tantas... Maria, uma adolescente estudante do Ensino Fundamental II, apresenta um comportamento considerado difícil, que desafia professores e gestores da escola: vai para a escola sem uniforme, usa o celular durante a aula, faz arruaça e dá gargalhadas enquanto o professor tenta explicar a matéria. Nas relações com os pares, Maria se coloca de forma agressiva e intimida os colegas. Ninguém a enfrenta por medo de represálias. Ela e seus colegas são vistos como perigosos na escola e há boatos de que ela tenha familiares que são membros de uma facção criminosa. A menina cumpre medida socioeducativa em razão de episódios de agressão a outros adolescentes na rua e por ter vendido drogas na escola em que estudava anteriormente. Maria é “diferente”. Quase todos os dias, o professor a coloca para fora da sala de aula por atrapalhar os colegas. Maria, então, fica “zanzando” pelo pátio sem ter o que fazer e causando tumulto, inclusive nas outras salas. Após algumas reuniões na escola e discussões acerca da situação da adolescente, o diretor da instituição educativa parece não mais saber o que fazer com Maria. Ele descreve, com preocupação, todas as ações tomadas pela escola até então para resolver a situação da garota: chamou a família há poucos dias, mas não teve nenhuma resposta de seus familiares. Encaminhou, então, o caso ao Conselho Tutelar. A resposta do Conselho foi, no mínimo, curiosa: o conselheiro respondeu que não seria seu trabalho cuidar de “alunos indisciplinados”. Informou também que a adolescente deveria cumprir medida socioeducativa e ser acompanhada pela rede socioassistencial. Ao procurar pela rede, a constatação: a aluna não estava comparecendo ao serviço. Assim, o diretor procurou pela Diretoria Regional de Ensino (DRE) e teve como resposta uma cartilha sobre o tema bullying. Ou seja, o diretor está se sentindo totalmente sozinho e sem orientação adequada para lidar com o problema. Somado aos desencontros sucessivos, alguns professores discutiam a possibilidade de pedir a transferência compulsória da adolescente para outra escola. Foi quando uma professora auxiliar que costuma estar no pátio com os alunos nos intervalos se dispôs a tentar se vincular a Maria e, por meio de uma relação mais próxima, pensar em estratégias para ajudá-la. No decorrer de um mês, a professora se aproximou de Maria e tentou estabelecer uma relação de confiança. Aos poucos, a adolescente passou a confiar na educadora e relatar 41 aspectos de sua vida familiar. Maria é a quarta filha de um total de oito irmãos; os dois irmãos mais velhos têm envolvimento com o tráfico de drogas; todos moram com a avó materna e uma tia, que passam por dificuldades financeiras para pagar as contas da casa e alimentar os que ali vivem. Maria tem algumas características físicas diferentes de seus irmãos e se sente excluída por eles pelo fato de ter outro pai. A mãe encontra-se reclusa e, segundo sua avó, tem o mesmo “gênio de Maria: é brava e quer mandar em todo mundo”. A educadora, entretanto, ao ouvir a história da adolescente, se dá conta da fragilidade da menina e observa seus olhos lacrimejarem enquanto fala do sentimento de solidão dentro de sua própria casa. Maria começa a sair da sala só para conversar com a educadora, o que passa a gerar conflitos com os outros professores, que tendem a achar que a educadora está “passando a mão em sua cabeça3”. Pois bem, a professora não pode continuar com esse papel, uma vez que tem prejudicado a organização da escola, mas não se sente bem em deixar a adolescente, pois naquele tempo que se dispusera a estar com ela percebeu pequenas mudanças em seu comportamento com os colegas: estava mais calma e parecia se sentir ouvida e cuidada por alguém. Ao conversar com o gestor, a educadora entende que Maria e sua família precisam de ajuda e que a adolescente precisa se sentir valor pelas coisas boas que pode fazer. O diretor relata que em uma reunião, certa vez, ouviu falar de um serviço na comunidade que atende as famílias mais “pobres” do território. A educadora, então, procura saber sobre esse serviço, descobre se tratar do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e decide entrar em contato. Ao conversar com a psicóloga do local, é informada que a família de Maria é referenciada no serviço e que outros atores da rede de proteção têm tentado atuar com a adolescente, mas apresentaram dificuldades em decorrência das faltas da garota aos atendimentos. Durante a conversa, a profissional do CRAS sugere uma conversa com os demais serviços, em parceria com a escola, para pensar conjuntamente em ações para proteger e favorecer o desenvolvimento de Maria. Os serviços agendam, então, uma reunião intersetorial na qual os profissionais debatem as informações que têm sobre o caso e identificam potencialidades em Maria e na relação que ela estabelece com a avó materna. Apesar das dificuldades, a avó tem um bom relacionamento com a neta, e esta procura ajudá-la como pode, nos cuidados com a saúde e no dia a dia da casa. A professora relata suas observações em relação à menina e conta que Maria tem habilidades com música, gosta de compor rap e sempre envolve os colegas com seu som. A 3 Termo utilizado para expressar “proteção” de maneira pejorativa. 42 psicóloga do CRAS observa, então, a existência de uma instituição no próprio bairro que trabalha com música e, concomitantemente, realiza atividades de convivência para crianças e adolescentes4. Assim, os profissionais começam a elaborar um pequeno plano de ação para auxiliar o desenvolvimento da adolescente: os serviços de assistência social trabalharão o fortalecimento da relação de Maria com sua figura de cuidado, a avó materna; a escola proporá ações em que a adolescente se sinta valorizada pelas músicas que compõe e pela interação que pode vir a ter com os colegas; o Serviço de Convivência envolverá a adolescente nas aulas de música e sugerirá ações com os irmãos, a fim de trabalhar a relação entre eles. *** É por meio desse enredo que passamos a discutir a temática desta seção: muitas Marias passam diariamente pelas mesmas situações em escolas públicas brasileiras, e poucas delas, apesar da longa trajetória descrita, têm a possibilidade de se sentirem seguras e com seus direitos garantidos pelas leis brasileiras. Certamente, a escola é, ou deveria ser, um espaço de bem-estar para crianças e adolescentes. É grande sua responsabilidade não só na promoção do aprendizado, mas também na garantia de direitos e na proteção da infância em situações de risco, discriminação e violência. A impossibilidade de acesso à escola durante a pandemia de Covid-19 em 2020 e 2021 reiterou a importância dessa instituição como, muitas vezes, a única possibilidade de um espaço protegido para que crianças e adolescentes identifiquem situações de violência e enfrentem suas mazelas sociais. Contudo, se nos voltarmos aos problemas enfrentados diariamente nas escolas brasileiras, encontraremos muitas explicações para a falha na proteção aos direitos de crianças e adolescentes. Infraestruturas precárias, formação deficitária de professores, baixos salários aos profissionais que atuam na educação, fracasso escolar, alto índice de evasão e reprovação e problemas relacionados às questões de convivência têm marcado o cotidiano das instituições públicas de ensino no Brasil e tornado cada vez maior o distanciamento da qualidade pretendida e reiterada como direito garantido de nossas crianças e adolescentes. Os dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2017 indicam que, na opinião dos diretores de escolas, entre os fatores que dificultam o funcionamento da instituição, 4 Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos Familiares e Comunitários (SCFV), da política de assistência social. Falaremos desses serviços na seção 4 desta dissertação. 43 estão a insuficiência de recursos financeiros (67,2%), a indisciplina por parte dos alunos (61,5%), a falta de recursos pedagógicos (59,6%), a carência de pessoal administrativo (50%), a carência de pessoal de apoio pedagógico (47,8%), o alto índice de falta por parte dos alunos (46,2%), a inexistência de professores para algumas disciplinas ou séries (43,7%), o alto índice de falta por parte dos professores (37,8%), a alta rotatividade do corpo docente (34%) e, finalmente, a interrupção das atividades escolares (23,7%). Na pesquisa realizada por Abramovay (2002) com 33.655 alunos em 14 capitais brasileiras, os alunos relataram o que menos gostam no ambiente escolar. O item mais selecionado por eles foi o espaço físico (44%), referindo-se às salas de aula, espaço externo e corredores. Os estudantes descreveram que as escolas costumam ter um aspecto “feio, velho e apresentam muitos problemas de limpeza” (ABRAMOVAY, 2002, p. 79). Os discentes também relataram não gostar da secretaria e direção da escola (34%); dos próprios alunos (33%), em decorrência do desinteresse e da indisciplina dos colegas; das aulas (25%) e da maioria dos professores (24%). Os dados indicam a insatisfação dos estudantes com as questões estruturais, mas também com a didática utilizada na escola e com as relações estabelecidas nesse espaço (ABRAMOVAY, 2002). Em relação aos professores, a pesquisa realizada por Campos (2008), com 8.773 docentes de 19 estados brasileiros, sugere que os educadores não se sentem valorizados em relação ao seu trabalho: 75,6% dos respondentes discordam que a administração valorize seu trabalho e 80,6% dizem o mesmo a respeito da sociedade em geral. Apesar desse resultado, 67,3% dos professores alegam que não trocariam de profissão, dado que se apresenta de modo contrastante quando observado por ciclos, pois apenas 40,8% dos professores dos anos finais do Ensino Fundamental responderam da mesma forma. Os dados dessa pesquisa também mostram que esses são os professores que apresentam opiniões mais críticas e pessimistas em relação à educação e aos problemas enfrentados nas escolas (CAMPOS, 2008). Da mesma forma, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2019 aponta fatores que podem indicar a insatisfação de alunos e professores nas escolas públicas: 21% dos alunos são reprovados ou abandonam a escola no primeiro ano do Ensino Médio; 24,7% dos professores da rede estadual têm formação em licenciatura ou bacharelado, porém não atuam na mesma área para a qual lecionam e 61,71% dos docentes apresentam permanência de apenas dois anos na mesma escola, o que indica alta rotatividade de profissionais e pouco tempo para que se construam vínculos com a comunidade escolar, especialmente com os alunos. Na pesquisa realizada por Carvalho (2019), com dados da Prova Brasil 2015 e dos Censos Escolares de 2015 e 2016 em escolas municipais e estaduais, as condições de trabalho 44 e as características dos alunos, dos docentes e das escolas foram indicadores importantes na decisão dos professores de trocar ou deixar a escola em que atuavam. Dados relevantes apontam que o baixo rendimento acadêmico dos alunos, as piores condições socioeconômicas, a pouca infraestrutura na escola, a média de alunos por sala superior a 33 e o ambiente escolar desfavorável, ou seja, maiores níveis de violência, são fatores que favorecem a rotatividade dos profissionais. Na comparação dos dados entre escolas municipais e estaduais, observou-se maior rotatividade nas escolas urbanas e estaduais. A pesquisa também mostrou que aproximadamente 40% dos docentes das escolas públicas mudam ou deixam a escola todo ano no Brasil e que a mudança de diretores influi na rotatividade dos professores, especialmente quando estes são eleitos pela comunidade escolar (CARVALHO, 2019). Para Abramovay (2015), a rotatividade dos professores tem alto impacto na qualidade do ensino, além de influenciar diretamente as relações dos alunos com a comunidade escolar, aumentando os sentimentos de frustração e provocando insatisfação e isolamento. Outro dado que chama a atenção é o fato de que 50% dos alunos alegaram ter faltado um dia da escola nas duas semanas anteriores à aplicação do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Programme for International Student Assessment – Pisa), contra a média de 21% da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Esse número alarmante pode indicar a falta de motivação dos alunos para participarem das atividades escolares, o que gera, posteriormente, o alto índice de evasão identificado nas pesquisas do Ideb (PISA, 2018). Ademais, constatações como essas dão ênfase à importância da participação do professor e do aluno no ambiente escolar e nos remetem à necessidade de discutir os problemas que envolvem a convivência na escola, posto que esse pode ser um dos motivos que geram a rotatividade dos professores, o que, por sua vez, impede o fortalecimento das relações entre docentes e alunos, formando-se um ciclo que dificulta o desenvolvimento do sentimento de pertencimento à comunidade escolar. Isso porque, de acordo com Furman (1998), o termo “comunidade” só é coerente quando seus membros experienciam sentimentos de pertencimento, confiança entre si e segurança. Maria é diferente... Osterman (2000) enfatiza que o senso de comunidade e o sentimento de pertencimento são importantes para a compreensão da motivação e dos comportamentos dos adolescentes nas escolas: ao se sentir parte da comunidade, o adolescente também se sente valorizado, bem como 45 sente que suas necessidades são respeitadas. Entretanto, a pesquisa do autor mostrou que os alunos, em geral, não se sentem importantes no ambiente escolar e raramente têm suas necessidades reconhecidas pelos pares ou pelos adultos, o que influencia diretamente a qualidade das relações ali instituídas. A pesquisa sugere a necessidade de uma mudança nos valores culturais, normas, políticas e práticas da instituição, ou seja, na cultura das relações na escola. A pesquisa realizada por Speranza (2021) revela a escassez de estudos a respeito do tema do pertencimento na realidade brasileira, porém ressalta a importância desse sentimento na prevenção de problemas relacionados à saúde mental dos adolescentes, colocando a escola como um importante espaço promotor da participação social, o que favorece a construção de redes de apoio entre os próprios estudantes e a formação da identidade dos alunos. Os resultados do Pisa de 2018 corroboram os dados apresentados até o momento e indicam que, na maioria dos países, os alunos reportaram sentimentos mais positivos quando havia maior senso de pertencimento à escola e cooperação entre os colegas, e mais sentimento de tristeza quanto maior a intimidação entre os pares. Sobre as situações de bullying, 29% dos alunos brasileiros relatam ter sofrido algum tipo de intimidação no último mês, enquanto a média da OCDE é de 23%. Em relação ao isolamento e ao sentimento de tristeza, observa-se que 23% dos alunos brasileiros se sentem sozinhos nas escolas (média OCDE: 16%) e 13% responderam que estão sempre se sentindo tristes, número significativamente acima da média dos países da OCDE, que foi de 6%. Esses resultados evidenciam a importância do cuidado com as relações e com a afetividade no ambiente escolar. Quase todos os dias, o professor a coloca para fora da sala de aula por atrapalhar os colegas. Maria, então, fica “zanzando” pelo pátio sem ter o que fazer e causando tumulto, inclusive nas outras salas Em relação aos problemas em sala de aula e à dificuldade do docente para iniciar as atividades, para 41% dos alunos brasileiros os professores precisam esperar longos períodos para que a classe fique em silêncio, enquanto a média dos outros países da OCDE é de 26% (PISA, 2018). A dificuldade para começar as aulas é reclamação constante nas formações de professores e nas discussões a respeito dos problemas de indisciplina na escola. Tal queixa se soma ao distanciamento entre escola e família e entre os próprios alunos e seus familiares, fatores identificados pelos professores e gestores como motivos para situações como o 46 desinteresse dos alunos pelos conteúdos, o desrespeito em sala de aula e a dificuldade em lidar com as frustrações e o cumprimento de regras (VINHA et al., 2017). A busca pe