UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS MURILO MOTTA Olhos da Pátria: o emprego de aeronaves remotamente pilotadas pela Força Aérea Brasileira CAMPINAS 2023 MURILO MOTTA OLHOS DA PÁTRIA: O EMPREGO DE AERONAVES REMOTAMENTE PILOTADAS PELA FORÇA AÉREA BRASILEIRA Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais, na área de concentração “Instituições, Processos e Atores”. Orientador: Eduardo Barros Mariutti ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA POR MURILO MOTTA E ORIENTADA PELO PROF. DR. EDUARDO BARROS MARIUTTI. CAMPINAS 2023 Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272 Motta, Murilo, 1998- M858o MotOlhos da Pátria : o emprego de aeronaves remotamente pilotadas pela Força Aérea Brasileira / Murilo Motta. – Campinas, SP : [s.n.], 2023. MotOrientador: Eduardo Barros Mariutti. MotDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Mot1. Aplicação da lei. 2. Armamentos. 3. Forças armadas. 4. Pesquisa qualitativa. 5. Segurança nacional. I. Mariutti, Eduardo Barros, 1974-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título. Informações Complementares Título em outro idioma: Eyes of the Nation : the use of remotely piloted aircrafts by the Brazilian Air Force Palavras-chave em inglês: Law enforcement Weapons Armed forces Qualitative research National security Área de concentração: Instituições, Processos e Atores Titulação: Mestre em Relações Internacionais Banca examinadora: Eduardo Barros Mariutti [Orientador] Carlos Eduardo Valle Rosa Leda Maria Gitahy Data de defesa: 09-02-2023 Programa de Pós-Graduação: Relações Internacionais Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-0604-2020 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/2730422710746692 Powered by TCPDF (www.tcpdf.org) http://www.tcpdf.org UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 09/02/2023, considerou o candidato Murilo Motta aprovado. Prof. Dr. Eduardo Barros Mariutti (Universidade Estadual de Campinas) Profa. Dra. Leda Maria Gitahy (Universidade Estadual de Campinas) Prof. Dr. Carlos Eduardo Valle Rosa (Universidade da Força Aérea) A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Coordenadoria do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. AGRADECIMENTOS Agradeço a meus pais, Angela e Roberto, pelo apoio incondicional aos meus estudos. Agradeço a minha irmã, Camila, por sua eterna paciência. E agradeço a minha parceira, Veruska, pelo incentivo constante. Agradeço a meu orientador, Professor Eduardo, e aos membros das bancas de qualificação e defesa, Professores Carlos e Leda, por suas contribuições fundamentais para o resultado final desta dissertação. Agradeço aos colegas da Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia & Defesa (PAET&D), em especial Claudia, Guilherme, Jonathan, José Augusto, Mariana, Mayara, Patrícia, Samuel e Vitória, por terem inspirado minha jornada no Mestrado. Agradeço aos colegas que comentaram versões prévias desta pesquisa, tanto no painel “Incorporação de Tecnologias para a Defesa” do XII Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ENABED), realizado entre 10 e 12 de agosto de 2022 em Niterói (RJ), quanto no painel “Impactos da Tecnologia na Segurança Internacional” do 6° Seminário de Pós-Graduação da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), realizado entre 5 e 7 de outubro em São Paulo (SP), em especial ao Professor Alcides. O presente trabalho pode ser realizado devido ao financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 – Número do processo 88887.613038/2021-00 – como parte do Programa de Cooperação Acadêmica em Defesa Nacional (PROCAD-DEFESA) – Edital nº 15/2019. RESUMO O emprego de aeronaves remotamente pilotadas (ARP) permite prolongar o tempo de permanência em voo e de coleta de dados sobre potenciais alvos, enquanto preserva a integridade física de seus operadores. No Brasil, as principais justificativas para a importação de ARP foram seus menores custos e sua maior versatilidade em relação a aeronaves tradicionais, de modo que poderiam ser empregadas tanto para fins militares, quanto em operações de segurança pública. O objetivo desta pesquisa é expor, de modo sistemático, abrangente e profundo, a incorporação e o emprego de ARP pela Força Aérea Brasileira (FAB). Para tanto, exploro principalmente os documentos de defesa do Brasil, documentos oficiais da FAB e notícias veiculadas em seu site oficial. Os resultados indicam que essas ARP foram originalmente incorporadas para integrar a Aviação de Reconhecimento e são empregadas como plataformas de coleta de dados para identificar alvos e apoiar a tomada de decisões em exercícios militares, em operações na faixa de fronteira e em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Argumento que o emprego de ARP pela FAB é um exemplo do processo de convergência das funções militares e policiais que tem pautado a reorganização institucional de diversos Estados no século XXI, porque elas são tecnologias militares de vigilância adquiridas para coletar e fornecer dados para o Sistema de Inteligência das Forças Armadas, mas que são crescentemente empregadas em operações de segurança pública, dentro das fronteiras nacionais. Palavras-chave: Aplicação da lei; Armamentos; Forças armadas; Pesquisa qualitativa; Segurança nacional. ABSTRACT The use of remotely piloted aircrafts (RPA) prolongs the periods of flight and of data collection on potential targets while preserving the physical integrity of its operators. In Brazil, the main reasons for the import of RPA were their lower costs and their greater versatility than traditional aircrafts, meaning that they could be used in military as well as in public security operations. This research aims to describe the incorporation and use of RPA by the Brazilian Air Force. To this end, I explore mainly Brazil's defense documents, the Brazilian Air Force’s official documents and press releases published on the Force’s official website. The results indicate that these RPA were originally incorporated to integrate the Reconnaissance Aviation and are used as data collection platforms to identify targets and support decision-making in military exercises, in operations in the border strip and in Law and Order Guarantee operations (GLO). I argue that the use of RPA by the Brazilian Air Force is an example of the process of convergence of the military and police functions that has set the agenda for the institutional reorganization of several states in the 21st century, because although being military technologies acquired to collect and provide data for the Armed Forces Intelligence System, they are increasingly employed in public security operations within national borders. Keywords: Armed forces; Law enforcement; National security; Qualitative research; Weapons. RESUMEN El uso de aeronaves pilotadas a distancia (RPA) permite prolongar el tiempo de permanencia en vuelo y la recopilación de datos sobre objetivos potenciales mientras se preserva la integridad física de sus operadores. En Brasil, las principales razones para la importación de RPA fueron sus menores costos y su mayor versatilidad en relación a las aeronaves tradicionales, por lo que podrían ser utilizadas tanto para operaciones militares como de seguridad pública. El objetivo de esta investigación es describir la incorporación y el uso de RPA por la Fuerza Aérea Brasileña (FAB). Para lograrlo, exploro principalmente los documentos de defensa de Brasil, los documentos oficiales de la FAB y las noticias publicadas en su sitio web oficial. Los resultados indican que estas RPA fueron originalmente incorporadas para integrar la Aviación de Reconocimiento y son utilizadas como plataformas de recolección de datos para identificar objetivos y apoyar la tomada de decisión en ejercicios militares, en operaciones en la franja fronteriza y en operaciones de Garantía de la Ley y el Orden (GLO). Argumento que el uso de RPA por la FAB es un ejemplo del proceso de convergencia de las funciones militares y policiales que ha guiado la reorganización institucional de varios estados en el siglo 21, porque son tecnologías militares de vigilancia adquiridas para recopilar y proporcionar datos para el Sistema de Inteligencia de las Fuerzas Armadas, pero que son usadas cada vez más en operaciones de seguridad pública dentro de las fronteras nacionales. Palabras clave: Aplicación de la ley; Armas; Fuerzas armadas; Investigación cualitativa; Seguridad nacional. LISTAS DE GRÁFICOS, IMAGENS, MAPAS E TABELAS GRÁFICO GRÁFICO 1 – Frequência de Operações de GLO por tipo (1992 – 2021) ............................. 27 IMAGENS IMAGEM 1 - Estação de controle no solo (shelter) ................................................................ 43 IMAGEM 2 - Hermes 450 decolando ..................................................................................... 45 IMAGEM 3 - Hermes 900 estacionado ................................................................................... 46 IMAGEM 4 - Heron I em voo durante a Operação Ágata 7 (2013) ........................................ 47 IMAGEM 5 - Heron I (ao centro e ao fundo) e Hermes 450 (à esquerda e à direita) estacionados ao lado de veículos da Polícia Federal e da Força Nacional durante a Operação Ágata 7 (2013) .................................................................................................................................................. 48 MAPAS MAPA 1 - Bases Aéreas e Unidades da Força Aérea Brasileira .............................................. 41 MAPA 2 - Estados da Federação em que houve divulgação do emprego de ARP pela FAB em operações na faixa de fronteira (AM, MT, MS, PR, RS, SC, SP) ............................................ 57 MAPA 3 - Estados da Federação em que houve divulgação do emprego de ARP pela FAB em operações de Garantia da Lei e da Ordem (AM, BA, CE, DF, MG, MT, PA, PE, PR, RJ, RN, RO, RS, SP) .............................................................................................................................. 60 TABELAS TABELA 1 - Atividades e resultados das Operações Ágata (2011 – 2014) ............................ 33 TABELA 2 - Principais documentos citados na Parte 3 .......................................................... 39 TABELA 3 - Lista de ARP importadas pela Força Aérea Brasileira de Israel (2010 – 2021) 42 TABELA 4 - Categorias da análise de conteúdo, descrição e número de notícias .................. 52 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ARP – Aeronave Remotamente Pilotada BASM – Base Aérea de Santa Maria BVR – Beyond Visual Range C2 – Comando e Controle CAV – Controle e Alarme em Voo COMAER – Comando da Aeronáutica CSAR – Combat Search and Rescue END – Estratégia Nacional de Defesa FAB – Força Aérea Brasileira GAV – Grupo de Aviação GLO – Garantia da Lei e da Ordem IAI – Israel Aerospace Industries INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais Intlg – Inteligência IVR – Inteligência, Vigilância e Reconhecimento LBDN – Livro Branco de Defesa Nacional MINUSTAH – Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti MONUSCO – Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo OEA – Organização dos Estados Americanos ONU – Organização das Nações Unidas PDN – Política de Defesa Nacional PEF – Plano Estratégico de Fronteiras PF – Polícia Federal PND – Política Nacional de Defesa PPIF – Programa de Proteção Integrada de Fronteiras Rec Aepc – Reconhecimento Aeroespacial SARP – Sistema Aéreo Remotamente Pilotado SIPAM – Sistema de Proteção da Amazônia SIVAM – Sistema de Vigilância da Amazônia TCU – Tribunal de Contas da União VANT – Veículo aéreo não tripulado Vig Ae – Vigilância Aérea SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12 1.1. Objeto de estudo .............................................................................................................. 12 1.2. Pergunta de pesquisa e plano da dissertação ................................................................ 14 2. MARCO TEÓRICO ........................................................................................................... 16 2.1. O emprego de aeronaves em contextos militares .......................................................... 16 2.2. A convergência das funções militares e policiais no Brasil .......................................... 19 3. MARCO NORMATIVO DA INCORPORAÇÃO DE AERONAVES REMOTAMENTE PILOTADAS PELA FORÇA AÉREA BRASILEIRA ..................... 24 3.1. Contextualização histórica .............................................................................................. 24 3.2. Os documentos de defesa do Brasil ................................................................................ 28 3.3. Os documentos oficiais da FAB ...................................................................................... 35 4. O EMPREGO DE AERONAVES REMOTAMENTE PILOTADAS PELA FORÇA AÉREA BRASILEIRA .......................................................................................................... 41 4.1. A incorporação de ARP pela FAB ................................................................................. 41 4.2. O emprego de ARP pela FAB ......................................................................................... 49 4.2.1. Os exercícios militares .................................................................................................... 53 4.2.2. As operações na faixa de fronteira ................................................................................. 55 4.2.3. As operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ..................................................... 57 5. CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 61 REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 63 APÊNDICE ............................................................................................................................. 75 12 1. INTRODUÇÃO 1.1. Objeto de estudo O emprego de aeronaves remotamente pilotadas (ARP) transformou profundamente os conflitos contemporâneos.1 Elas são operadas a partir de estações de controle no solo, o que permite a condução de operações militares enquanto a integridade física de seus operadores é preservada. Uma vez que é possível o revezamento dos operadores nas estações de controle, o emprego de ARP também permite prolongar o tempo de permanência em voo e de coleta de dados. Esses dados são usados para diversos fins, como designar alvos para o emprego de armamentos, identificar potenciais ameaças à segurança durante grandes eventos, controlar o desmatamento ou monitorar focos de incêndios florestais, por exemplo (BERNARDON; GUEDES; ROSÁRIO JÚNIOR, 2021, p. 10). No contexto militar, as ARP podem ser empregadas em três tipos de missões: de apoio às estruturas eletrônicas de comunicação, de sensoriamento remoto e de transporte de cargas. Em missões de apoio às estruturas eletrônicas de comunicação, a ARP pode atuar como uma antena de retransmissão de sinal. Por sua vez, as missões de sensoriamento remoto compreendem operações de vigilância, de reconhecimento de elementos no terreno ou de apoio à artilharia, por exemplo. Algumas ARP também possuem a capacidade de carregar cargas, de modo que podem ser empregadas como forma de apoio logístico para transportar material de emprego militar, inclusive armas (FIGUEIRA, 2014). A crescente produção acadêmica sobre ARP se concentra em seu emprego armado, sobretudo pelos Estados Unidos da América (EUA), em operações fora de suas fronteiras, no contexto da “Guerra ao Terror” global declarada após os ataques de 11 de setembro de 2001. Contudo, a maioria das ARP não são armadas, sendo empregadas principalmente na tarefa de Inteligência, Vigilância e Reconhecimento (IVR) (NEOCLEOUS, 2014, p. 156). De fato, no Brasil, as ARP foram originalmente incorporadas pela Força Aérea Brasileira (FAB) para integrar a Aviação de Reconhecimento, que é responsável por coletar e 1 Adoto a nomenclatura preferida pela Força Aérea Brasileira atualmente. Ressalto que ela enfatiza a importância do piloto na operação dessa tecnologia. Também é comum o emprego da nomenclatura “sistema aéreo remotamente pilotado”, ou “SARP”, que, além do piloto, enfatiza a importância dos sensores e das estações de controle na operação das ARP. Há, ainda, a nomenclatura “veículo aéreo não tripulado”, ou “VANT”, que enfatiza as capacidades de emprego autônomo dessa tecnologia (isto é, um emprego que dispense o controle do piloto). Por sua vez, a palavra “drone” (da palavra em inglês para “zangão”) faz referência ao som emitido por esses artefatos (AUSTIN, 2010, p. 3-4). 13 fornecer dados para o Sistema de Inteligência das Forças Armadas (GRAMKOW, 2017, p. 11). De acordo com a Política Nacional de Inteligência, essa atividade objetiva “contribuir com as autoridades constituídas, fornecendo-lhes informações oportunas, abrangentes e confiáveis, necessárias ao exercício do processo decisório” (BRASIL, 2016b). Dessa forma, a FAB emprega suas ARP como plataformas de coleta de dados para a produção de informações oportunas, abrangentes e confiáveis sobre o teatro de operações militares, de modo geral, e sobre alvos de interesse, mais especificamente. Para tanto, elas dependem de sensores, que coletam dados de diferentes frequências do espectro eletromagnético, e de uma infraestrutura de transmissão de dados que seja capaz de envia-los em tempo real para as estações de controle no solo a partir das quais as ARP são operadas (GRAMKOW, 2017, p. 40). Oficiais das três Forças Armadas brasileiras mobilizam o conceito de “névoa de guerra” para explicar a principal função do emprego de ARP nos conflitos contemporâneos (FRANCISCO, 2022, p. 94). Esse conceito foi cunhado pelo general prussiano Carl von Clausewitz, em sua obra Da Guerra.2 A metáfora da “névoa” significa que “a guerra é o reino da incerteza [uma vez que] três quartos dos assuntos que devem ser planejados na guerra ficam mais ou menos envoltos em nuvens densas de incerteza” (CLAUSEWITZ, 1988, p. 59). O descompasso entre a realidade concreta do campo de batalha e as informações disponíveis aos centros de comando militares seria uma das maiores fontes de “fricção” na guerra, isto é, de fatores que constrangem a execução das missões conforme o planejado. Outras fontes de fricção importantes seriam “os riscos que a guerra traz consigo e os esforços físicos que ela exige” (Idem, p. 67-68). Para o autor, somente “a vivência de um exército na guerra” seria capaz de reduzir essa fricção (CLAUSEWITZ, 1988, p. 68). Entretanto, o emprego de tecnologias como as ARP também permite reduzir a “fricção da guerra”: através da coleta de dados para o Sistema de Inteligência das Forças Armadas, elas contribuem para reduzir as incertezas relacionadas ao planejamento para um conflito, e, ao remover seus operadores do campo de batalha, contribuem para reduzir os riscos e esforços físicos associados à sua missão (PERON, 2016, p. 304). Desde 2010, a FAB emprega ARP fabricadas por empresas israelenses. Atualmente, quatro ARP do modelo Hermes 450 (designadas RQ 450 ao serem incorporadas pela FAB) e uma do modelo Hermes 900 (RQ 900), ambos modelos fabricados pela empresa Elbit Systems, são operadas pelo Primeiro Esquadrão do Décimo Segundo Grupo de Aviação (1°/12° GAV), 2 Neste clássico, o autor define a guerra como “um ato de violência que visa a compelir o adversário a se submeter a nossa vontade” (CLAUSEWITZ, 1988, p. 33). 14 o Esquadrão Hórus, situado na Base Aérea de Santa Maria (RS). Além delas, duas ARP do modelo Heron I (RQ 1150), fabricado pela Israel Aerospace Industries (IAI), são operadas desde 2020 pelo Primeiro Esquadrão do Sétimo Grupo de Aviação (1º/7º GAV), o Esquadrão Orungan, situado na Base Aérea de Santa Cruz (RJ). A Elbit Systems é a maior empresa privada de tecnologias militares de Israel, enquanto a IAI é a maior empresa estatal de aeronaves militares e civis (DENES, 2011, p. 172). 1.2. Pergunta de pesquisa e plano da dissertação Esta dissertação investiga como a Força Aérea Brasileira emprega suas aeronaves remotamente pilotadas? Consequentemente, o objetivo desta pesquisa é expor, de modo sistemático, abrangente e profundo, a incorporação e o emprego de ARP pela FAB. Para tanto, realizei um levantamento de dados a partir dos documentos de defesa do Brasil, como as diversas edições da Política Nacional de Defesa, da Estratégia Nacional de Defesa e do Livro Branco de Defesa Nacional; de documentos oficiais da FAB, como as edições de 2005, 2012 e 2020 de sua Doutrina Básica, bem como a edição de 2018 de sua Concepção Estratégica; e de notícias veiculadas no site oficial da Força Aérea Brasileira (fab.mil.br) entre 2010 e junho de 2022. Ademais, em setembro de 2022, enviei um questionário com oito questões sobre o emprego de ARP pela FAB para a Seção de Comunicação Social da Base Aérea de Santa Maria, que foi encaminhado para a Seção de Operações do Esquadrão Hórus (1°/12° GAV) em outubro. Recebi uma resposta em dezembro de 2022.3 Além disso, em outubro de 2022, encaminhei quatro solicitações de acesso à informação para o Comando da Aeronáutica (COMAER), através da plataforma digital Fala.BR, referentes aos contratos de aquisição e ao emprego das ARP importadas de Israel. Entretanto, as respostas do COMAER se limitaram a justificar o sigilo dos contratos de aquisição e a informar que qualquer informação de acesso público sobre o emprego das ARP poderia ser encontrada no site oficial da FAB. Esta dissertação está dividida em cinco partes, começando por esta Introdução. Na segunda parte, inicialmente apresento um breve panorama do emprego de aeronaves em contextos militares, de seus primórdios até o advento das ARP. Em seguida, argumento que há um processo de convergência das funções militares e policiais no Brasil, do qual as ARP são 3 O respondente optou por permanecer anônimo e não autorizou a reprodução integral de suas respostas. Contudo, a reprodução de trechos das respostas foi autorizada e elas estão referenciadas nesta dissertação como Anônimo (2022). Além disso, as perguntas do questionário estão disponíveis no Apêndice desta dissertação. 15 um exemplo, porque são tecnologias desenvolvidas para fins militares, mas que também são empregadas em operações de segurança pública dentro das fronteiras nacionais. Na terceira parte, exploro o marco normativo, isto é, decretos, leis e portarias que aprovaram diretrizes, doutrinas, estratégias, normas e políticas da Presidência da República, do Ministério da Defesa e do Comando da Aeronáutica que tratam do emprego das Forças Armadas, da incorporação de ARP e de seus impactos sobre a FAB. Além disso, destaco como as operações na faixa de fronteira e de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) previstas nesses documentos também exemplificam o processo de convergência das funções militares e policiais no país. Na quarta parte, descrevo as ARP adquiridas pela FAB e seus principais casos de emprego. Por fim, na quinta parte, apresento brevemente minhas conclusões. Os resultados desta pesquisa indicam que as ARP dos modelos Hermes 450 e Hermes 900 são empregadas pelo Esquadrão Hórus (1°/12° GAV) para fins de Inteligência e de apoio à decisão em exercícios militares de simulação de combate, em operações na faixa de fronteira, como as operações Ágata e Ostium, e em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), como as operações de segurança durante graves eventos realizados no país, operações de combate ao desmatamento e operações contra a violência urbana, sobretudo no Rio de Janeiro (RJ). Já as ARP do modelo Heron I são empregadas pelo Esquadrão Orungan (1º/7º GAV) em tarefas de Inteligência, Vigilância e Reconhecimento (IVR) no território marítimo brasileiro. Esta dissertação foi desenvolvida no âmbito do projeto “Incorporação de tecnologia aeroespacial para a Defesa: impactos organizacionais, doutrinários e na autonomia estratégica”, financiado pelo Edital nº 15/2019 da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) como parte do Programa de Cooperação Acadêmica em Defesa Nacional (PROCAD-DEFESA) e conduzido pela Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia e Defesa (PAET&D). A Rede PAET&D é composta por pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP- PUCSP), do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Aeroespaciais da Universidade da Força Aérea (UNIFA). Com esta dissertação, objetivo contribuir para os esforços da Rede PAET&D em compreender o processo de incorporação de tecnologias aeroespaciais estrangeiras pela FAB, focando nas ARP importadas de Israel. Além disso, esta pesquisa se insere em meus esforços pessoais para ampliar o campo e os objetos de estudo das Relações Internacionais, destacando a importância da análise das opções tecnológicas adotadas pelos países do Sul Global. 16 2. MARCO TEÓRICO 2.1. O emprego de aeronaves em contextos militares O desenvolvimento de tecnologias aéreas abriu caminho para diversas transformações nas capacidades de projeção da força militar do Estado. Essas tecnologias se caracterizam por seu grande alcance, isto é, a capacidade de superar obstáculos e percorrer grandes distâncias rapidamente, e por explorarem a terceira dimensão do campo de batalha, ou seja, a altura (ROSA, 2014, p. 222-226). As tecnologias aéreas também são versáteis e adaptáveis a diferentes contextos e propósitos de operação (ROSA, 2014, p. 241), além de se destacarem por sua capacidade de integrar equipamentos, processos e sistemas com as demais Forças Armadas (Idem, p. 253). Elas são capazes de se deslocar para diferentes pontos do território (Idem, p. 257), permitem a penetração no interior do território inimigo (Idem, p. 273) e possuem alto grau de precisão (Idem, p. 275). Em contrapartida, elas são dependentes de bases de operação que lhes forneçam logística (ROSA, 2014, p. 227), possuem um limite de carga útil relativamente menor que navios e veículos terrestres (Idem, p. 234) e são equipamentos frágeis e de elevado custo de desenvolvimento, aquisição, operação e manutenção (Idem, p. 239). Além disso, elas podem ter seu desempenho prejudicado pelas condições meteorológicas (Idem, p. 255). Destacadamente, o emprego de balões e, posteriormente, aeronaves em contextos militares potencializou a capacidade de coleta, controle, difusão e processamento de dados sobre os elementos do campo de batalha (ROSA, 2014, p. 372). Desde seus primórdios, no final do século XVIII, o emprego de balões na guerra objetivou a observação do campo de batalha de um ponto de vista privilegiado, que permitisse o reconhecimento do terreno e da posição das forças oponentes (Idem, p. 219). A partir do século XIX, os dados coletados através de tecnologias aéreas e ópticas cada vez mais sofisticadas se tornaram centrais para a produção de mapas para um melhor planejamento da projeção da força militar do Estado (BOUSQUET, 2018, p. 119). Na Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), as aeronaves somaram-se aos balões como plataformas de coleta de dados sobre o campo de batalhas, principalmente para capturar fotografias aéreas para a produção de mapas e para direcionar os tiros da artilharia. Apesar de também terem participado de combates aéreos e bombardeios estratégicos, esses tipos de emprego não foram decisivos para o resultado final do conflito (BUCKLEY, 1999, p. 46-50). 17 No contexto da mobilização total das populações dos países europeus em prol dos esforços dessa Guerra, o general italiano Giulio Douhet afirmava que o moral, isto é, a disposição da população para manter os esforços de guerra, poderia ser abalado por meio de bombardeios aéreos, cujos objetivos principais deveriam ser as instalações industriais e os centros populacionais das nações inimigas (DOUHET, 2019, p. 53). Consequentemente, o emprego de aeronaves permitiria expandir o campo de batalha e levar a guerra às cidades e à população civil inimiga. Segundo o autor, após a incorporação das aeronaves na guerra, não seria possível distinguir combatentes de não combatentes: Já não podem mais existir áreas nas quais a vida possa ser vivida em segurança e tranquilidade, nem o campo de batalha pode mais ser limitado aos verdadeiros combatentes. Pelo contrário, o campo de batalha será limitado apenas pelas fronteiras das nações em guerra, e todos os seus cidadãos se tornarão combatentes, pois todos estarão expostos às ofensivas aéreas do inimigo. Não haverá mais distinção entre soldados e civis (DOUHET, 2019, p. 9, tradução minha) No período entre as duas Guerras Mundiais, as grandes potências da época empregaram suas aeronaves em campanhas de bombardeio estratégico justamente para “abalar o moral” das populações nativas de suas colônias, de modo manter o controle sobre esses territórios a custos relativamente mais baixos do que os necessários para uma ocupação por tropas do Exército. Por exemplo, o Reino Unido adotou uma política de substituição da atuação das forças terrestres do Exército Britânico pela atuação das aeronaves da Força Aérea Real para conter revoltas no Afeganistão, Egito, Iêmen, Iraque, Mesopotâmia, Palestina e Punjab (NEOCLEOUS, 2014, p. 142-143). Embora esses ataques aéreos tenham sido relativamente efetivos na contenção de revoltas anticoloniais em regiões tribais isoladas, como no Afeganistão e Iraque, eles não foram capazes de conter movimentos urbanos politicamente organizados, como aquele na Palestina (BUCKLEY, 1999, p. 104). Na Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), as aeronaves tiveram um papel fundamental em campanhas de bombardeio, não só nos campos de batalha, mas também em áreas civis, como fábricas e grandes centros populacionais. Essas campanhas foram levadas a cabo tanto pelas forças do Eixo, na tática de Blitzkrieg, quanto pelas forças Aliadas, como nas campanhas dos EUA contra o Japão (BUCKLEY, 1999, p. 191). Entretanto, desde o final da Segunda Guerra Mundial, a possibilidade de guerras de atrito de grandes proporções diminuiu drasticamente, devido à possibilidade de recurso a armas nucleares de destruição em massa (BUCKLEY, 1999, p. 200). Como consequência, os conflitos contemporâneos são muito mais focados na eliminação das lideranças como forma de 18 desarticular os sistemas militares inimigos. Para este fim, a tarefa de Inteligência, Vigilância e Reconhecimento (IVR) é fundamental, porque permite o acompanhamento de possíveis alvos por longos períodos de tempo, assegurando um ataque eficaz, que garanta tanto a eliminação do alvo, quanto a minimização dos danos colaterais (GRAMKOW, 2017, p. 16). O emprego de ARP potencializa o desempenho da tarefa de IVR, porque elas permitem o sobrevoo de possíveis alvos por períodos de tempo mais longos do que aeronaves tradicionais, tanto porque possibilitam o revezamento de seus operadores nas estações de controle no solo, quanto porque voam a grandes alturas e produzem pouco ruído. Além disso, elas são capazes de transmitir dados em tempo real para os centros de comando das operações militares (GRAMKOW, 2017, p. 22-27). O primeiro registro do emprego de ARP por Forças Armadas se deu pelos EUA, durante a Guerra do Vietnã (1955-1975), em que aeronaves fabricadas pela empresa estadunidense Ryan Aeronautical Company foram empregadas para o reconhecimento de alvos para bombardeios (WHITTLE, 2014, p. 28-29). Contudo, foram os modelos desenvolvidos em Israel, fabricados pela Israel Aeroespace Industries (IAI), que ganharam maior reconhecimento internacional, conforme foram empregadas com sucesso contra os países de seu entorno regional na Guerra do Yom Kippur (1973), na Primeira Guerra do Líbano (1982-1985) e contra as populações nos Territórios Palestinos Ocupados (DENES, 2011, p. 177). Entre 2010 e 2015, algumas tentativas de desenvolvimento de uma ARP brasileira ou latino-americana foram ensaiadas, como o modelo “Falcão”, que seria desenvolvido pela Avibras, e o “VANT Unasul”, que seria desenvolvido pelo bloco regional (PERES, 2015). Entretanto, ambas as iniciativas foram descontinuadas a partir de 2016, devido aos cortes orçamentários que se seguiram à aprovação da Emenda Constitucional nº 95, em 15 de dezembro de 2016 (BRASIL, 2016d; SILVA, 2019). As ARP importadas pela FAB foram desenvolvidas pelas empresas Elbit Systems e Israel Aerospace Industries (IAI), de Israel. Desde a década de 1980, as exportações de tecnologias militares, notadamente desenvolvidas com base em suas experiências em conflitos regionais e no controle da população nos Territórios Palestinos, têm sido uma importante fonte de receitas para o país. De fato, as exportações do país se concentram em novas tecnologias e sistemas de armas, especialmente formas eletrônicas de comunicação, vigilância e comando, como as ARP. Segundo um relatório de 2014, dos mais de 70 países que possuíam ARP à época, cerca de 50 haviam recebido ARP ou tecnologias relacionadas de Israel (DOBBING; COLE, 2014, p. 3-5). 19 Além de exportações diretas, as empresas israelenses de tecnologias militares frequentemente montam subsidiárias em seus principais mercados de interesse e fomentam a produção conjunta de tecnologias. Essas empresas também foram pioneiras em arranjos pelos quais ARP são licenciadas para Forças Armadas (DOBBING; COLE, 2014, p. 18). Isso aconteceu no Brasil, onde a Elbit Systems estabeleceu a empresa Aeroeletrônica (AEL Sistemas) como sua subsidiária. Criada em 1982, a AEL Sistemas passou a fazer parte do grupo Elbit Systems em 2001. Em seguida, em 2010, elas licenciaram, pelo período de teste de um ano, uma ARP do modelo Hermes 450 para a FAB. 2.2. A convergência das funções militares e policiais no Brasil No Brasil, as principais justificativas para a aquisição de ARP foram seus menores custos e sua maior versatilidade em relação a aeronaves tradicionais. Segundo estimativas de 2010, uma hora de voo de uma ARP custaria apenas um décimo do que custava uma hora de voo de uma aeronave tripulada. À época, representantes das Forças Armadas ressaltaram que as ARP poderiam ser empregadas tanto para fins militares, em missões de reconhecimento, designação de alvos, busca e resgate, vigilância urbana, costeira e de fronteiras, quanto em operações de segurança pública, de combate ao desmatamento e em operações de defesa civil (EM PARCERIA, 2010). Em sintonia com essa proposta, durante a campanha para as eleições presidenciais de 2010, a então-candidata Dilma Rousseff se comprometeu com a importação de dez ARP militares israelenses para serem empregadas tanto na vigilância das fronteiras, quanto no combate ao crime organizado no Estado do Rio de Janeiro (MARTELLO, 2010). Esses discursos exemplificam o processo de convergência das funções militares, destinadas à defesa da soberania nacional contra ataques externos, e policiais, destinadas à preservação da ordem pública doméstica, que tem pautado a reorganização das instituições militares e policiais de diversos Estados após os ataques de 11 de setembro de 2001, nos EUA. De fato, nos países da América Latina, as Forças Armadas são cada vez mais empregadas em funções policiais, para garantir a segurança pública dentro das fronteiras nacionais, principalmente em operações de combate ao tráfico de armas e drogas, mas também para responder a crises ambientais ou desastres naturais (ARAVENA, 2008). Uma parte da literatura internacional argumenta que, após a formação e consolidação dos Estados nacionais modernos na Europa, houve uma diferenciação entre a instituição militar, destinada a defender a soberania do Estado contra ameaças externas, e a instituição policial, 20 responsável por empregar a força contra a população doméstica de forma menos letal, de modo a manter a ordem pública e combater o crime. Esses autores se referem à “des-diferenciação entre a segurança interna e externa” em sentido análogo ao que eu chamo de convergência das funções militares e policiais (BIGO, 2006). Outros autores destacam que essas funções nunca foram de fato separadas nas antigas áreas coloniais e nos países do Sul Global. Eles caracterizam o que eu chamo de convergência como a imitação, ou “efeito bumerangue”, de modelos coloniais de pacificação, militarização e controle da ordem pública por países do Norte Global (GRAHAM, 2016, p. 28-29). Há também autores que consideram que qualquer distinção entre poder de guerra e poder de polícia é irrelevante, porque eles sempre trabalham em conjunto sob a forma de poder do Estado, associados a discursos sobre administração, segurança e ordem (NEOCLEOUS, 2014, p. 13). Não obstante, a “segurança interna” ou “segurança pública” se diferencia da “defesa nacional” porque essas atividades são orientadas por diferentes doutrinas, utilizam equipamentos específicos e requerem preparação e treinamento altamente especializado. Dessa diferenciação resulta uma distinção institucional entre as forças policiais, que empregam a força domesticamente para manter a ordem pública, proteger os cidadãos e a propriedade, e as forças militares, responsáveis por defender a soberania do Estado e da sociedade contra países estrangeiros (SAINT-PIERRE, 2015). Ainda assim, no Brasil, as fronteiras entre as forças militares e policiais são porosas (RODRIGUES, 2016, p. 76). Por exemplo, as Forças Armadas são empregadas em cooperação com órgãos de segurança pública dentro das fronteiras nacionais desde 1992, em Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). As GLO compreendem operações para garantir a segurança durante grandes eventos internacionais realizados no país, para restaurar a ordem pública quando há greve da Polícia Militar, para controlar a violência urbana, para garantir a votação e apuração durante as eleições e, mesmo, para combater o desmatamento (BRASIL, 2022).4 Contudo, o emprego das Forças Armadas em operações de segurança pública, devido à inadequação ou insuficiência das forças policiais, pode resultar no uso de equipamentos inadequados, levar à ineficácia de resultados e perpetuar as deficiências das instituições policiais no Brasil. Uma estratégia alternativa depende de um orçamento específico e adequado 4 Aguilar e Mendonça (2021) caracterizam o recorrente emprego das Forças Armadas em Operações de GLO e em atividades subsidiárias dentro das fronteiras nacionais como uma “disfunção” de seus objetivos de emprego principais. 21 para assegurar a recuperação da capacidade de atuação das forças policiais brasileiras (SAINT- PIERRE, 2011). Esse processo de convergência das funções militares e policiais – que também tem sido descrito como a “militarização da polícia” e a “policialização das Forças Armadas” – pode ser observado quando há o uso de equipamentos desenvolvidos para fins militares em operações de segurança pública, quando há a ampliação da prerrogativa de atuação das Forças Armadas em ações de policiamento ostensivo, revista e prisão, quando há participação de militares em cargos públicos de gerenciamento da segurança pública, ou quando há a importação de estruturas institucionais e de gestão militares pelas instituições policiais, por exemplo (PEREIRA; VILLELA, 2019). O emprego de tecnologias de vigilância desenvolvidas para fins militares em operações de segurança pública foi impulsionado após os ataques de 11 de setembro, sob a justificativa de ser uma medida necessária para prevenir os riscos representados pelo terrorismo e garantir os livres fluxos internacionais de bens, capitais, informações, pessoas e serviços desejáveis. A associação do terrorismo ao crime organizado transnacional justificou respostas coercitivas por parte dos Estados, que envolveram a cooperação entre as instituições militares, policiais e as agências de Inteligência nacionais (BIGO, 2006). No Brasil, o tráfico de armas e drogas pelo crime organizado transnacional foi identificado por diversos governos como a principal ameaça à segurança dos livres fluxos transfronteiriços. Em seu discurso na Abertura do Debate Geral da 56ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 10 de novembro de 2001, o então-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (1995 – 2002) associou consumo e tráfico de drogas ao financiamento do terrorismo transnacional: Em todo o mundo, problemas de segurança pública, consumo e tráfico de drogas, contrabando de armas, lavagem de dinheiro são males afins ao terrorismo, que devemos extirpar. Quero sugerir, desta tribuna, a realização de uma campanha mundial de opinião pública que conscientize os usuários de drogas em todos os países para o fato de que estão, ainda que involuntariamente, contribuindo para financiar o terrorismo. Se pretendemos estrangular o fluxo de recursos de que as redes ou facções terroristas se valem para espalhar a destruição e a morte, é imprescindível reduzir drasticamente o consumo de drogas em nossas sociedades (CARDOSO, 2010, p. 67) Ameaças eminentemente transfronteiriças ou transnacionais como o tráfico confundem as distinções entre medidas de defesa nacional e de segurança pública, de modo que são geralmente respondidas com medidas híbridas, que contribuem para a convergência das funções militares e policiais (BIGO, 2006). 22 Em 2003, a Declaração sobre Segurança nas Américas da Organização dos Estados Americanos (OEA) contribuiu para consolidar a possibilidade de recurso a essas medidas híbridas. A Declaração caracteriza os desafios à segurança hemisférica como diversos e multidimensionais e propõe a ampliação do conceito e das abordagens tradicionais de segurança na região: As ameaças, preocupações e outros desafios à segurança hemisférica são de natureza diversa e alcance multidimensional e o conceito e as abordagens tradicionais devem ampliar-se para englobar ameaças novas e não-tradicionais que abrangem aspectos políticos, econômicos, sociais, de saúde e ambientais (ORGANIZAÇÃO, 2003) Como resultado dessa ampliação semântica do conceito de segurança, diversos países americanos passaram a empregar suas Forças Armadas rotineiramente no combate ao crime organizado transnacional e ao tráfico de armas, drogas e pessoas, bem como em operações de defesa civil após desastres naturais, crises ambientais ou de saúde pública (SAINT-PIERRE, 2015). Em especial no contexto do combate ao tráfico de drogas na América Latina, de modo geral, e no Brasil, mais especificamente, é possível observar a sobreposição de equipamentos, funções, objetivos e táticas militares e policiais, em parte devido à internacionalização da noção de “guerra às drogas” produzida nos EUA, o que contribuiu para o processo de convergência das funções militares e policiais nessa atividade (RODRIGUES, 2016, p. 76; VILLELA, 2020). Também é sintomático desse processo de convergência que operações das Forças Armadas para combater o tráfico de drogas aconteçam tanto na faixa de fronteira, quanto em áreas urbanas, sobretudo nas favelas cariocas – neste ponto, cabe ressaltar o papel do racismo na legitimação do uso da força contra as populações de favelas (VIANNA; NEVES, 2011). Além disso, os megaeventos realizados na década de 2010 no Brasil – a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (2012), a Copa das Confederações (2013), a Jornada Mundial da Juventude (2013), a Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas e Paraolimpíadas (2016) – deixaram como legado um modelo militarizado de atuação das forças de segurança nacionais (CARDOSO, 2016, p. 6-7). Essa lógica de atuação militarizada dentro das fronteiras também contribui para a multiplicação de situações em que tecnologias desenvolvidas para fins militares são empregadas em operações de segurança pública, em áreas urbanas e terras indígenas, por exemplo (Idem, 12). Ao longo desta dissertação, argumentarei que o emprego de ARP pela FAB é um exemplo do processo de convergência das funções militares e policiais porque elas são 23 tecnologias desenvolvidas para fins militares, mas que também são empregadas em operações de segurança pública dentro das fronteiras nacionais, em operações na faixa de fronteira e em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). As próximas partes desta dissertação descrevem o processo de incorporação e o emprego de ARP pela FAB. Na Parte 3, exploro os marcos normativos que tratam do emprego das Forças Armadas, da incorporação de ARP e de seus impactos sobre a FAB. Na Parte 4, descrevo as ARP adquiridas pela Força e seus principais casos de emprego. 24 3. MARCO NORMATIVO DA INCORPORAÇÃO DE AERONAVES REMOTAMENTE PILOTADAS PELA FORÇA AÉREA BRASILEIRA 3.1. Contextualização histórica De acordo com a Doutrina Básica da Força Aérea Brasileira (DCA 1-1), a história da guerra aérea tem início com o balão do “padre brasileiro” Bartolomeu de Gusmão, o primeiro objeto voador movido a ar quente, em 1709. Seu primeiro emprego militar teria sido na década de 1790, no contexto das Guerras Revolucionárias Francesas. Desde então, o uso de balões para observação, seleção de alvos e regulação dos tiros de artilharia de campanha somente cresceu. A partir de 1849, tropas austríacas inauguraram uma nova funcionalidade para esses aeróstatos: carregar e lançar granadas (BRASIL, 2020b, p. 18). Em 1867, o governo brasileiro adquiriu dois balões dos EUA, onde eles já haviam sido empregados durante a Guerra Civil Americana (1861 – 1865). Eles foram empregados pelas forças brasileiras na Guerra do Paraguai (1864 – 1870), em missões de reconhecimento do terreno nas proximidades de Humaitá. Entretanto, os balões da época se moviam de acordo com os ventos, de modo que deviam ser segurados por cordas e era possível controlar somente sua altura em relação ao solo (DORATIOTO, 2002, p. 295). Ainda segundo a Doutrina da FAB, foi “novamente um brasileiro”, Alberto Santos Dumont, o pioneiro no desenvolvimento das tecnologias de “dirigibilidade” que permitiram transformar o balão em dirigível, em 1901, bem como foi ele o primeiro, em 1906, a alçar voo “de forma controlada e autônoma em uma aeronave mais pesada que o ar” (BRASIL, 2020b, p. 18). Essas aeronaves foram empregadas em conflitos militares a partir da Guerra Ítalo-turca, na Líbia, em 1911, e na Guerra dos Bálcãs, de 1912 a 1913, e conquistaram maior importância nas operações militares durante a Primeira Guerra Mundial (Idem, p. 19-20). O espaço aéreo foi definitivamente agregado ao teatro de operações militares ao longo da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, o Ministério da Aeronáutica foi criado em 1941, a partir da união dos meios aéreos e recursos humanos do Exército, da Marinha e do Departamento de Aviação Civil. Conforme a Doutrina, a FAB foi criada para assegurar a participação do Brasil no conflito, que envolveu a Aviação de Caça, de Ligação e Observação e de Patrulha Marítima: A participação do Brasil na guerra aérea desse conflito iniciou-se com a criação da FAB, em 1941 [...] Em 1942, o Brasil decidiu se juntar ao esforço de guerra ao lado dos Aliados [...] O batismo de fogo da FAB ocorreu em três contextos bem diferentes: na participação do 1º Grupo de Aviação de Caça, o Senta a Púa; na atuação da 1ª Esquadrilha de Ligação e Observação, Olho Neles; e na caça aos submarinos italianos 25 e alemães ao longo do litoral brasileiro conduzida pelas aeronaves de patrulha marítima (BRASIL, 2020b, p. 20) Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o Brasil se alinhou aos EUA, enquanto a Argentina adotou uma política de não alinhamento, o que estimulou a rivalidade entre as Forças Armadas desses países. Como consequência, a preparação para um possível conflito com a Argentina pautou grande parte da organização das Forças Armadas brasileiras ao longo da Guerra Fria (1947 – 1991). No âmbito específico das Forças Aéreas desses países, a rivalidade impulsionou a aquisição de aeronaves de ponta de potências estrangeiras (OLIVEIRA, 2005, p. 75-79). Outra consequência dessa rivalidade foi a criação da Base Aérea de Santa Maria (BASM), no Rio Grande do Sul (RS), em 1971, para servir de apoio aéreo em caso de conflito com a Argentina (Idem, p. 83). Ao longo da ditadura militar brasileira (1964 – 1985), o combate ao “inimigo interno” também pautou a organização das Forças Armadas. A Doutrina de Segurança Nacional, formulada na Escola Superior de Guerra, enfatizou a importância da guerra dentro das fronteiras contra inimigos infiltrados entre os nacionais, popularmente representados pelas figuras do “terrorista” e do “subversivo”. Consequentemente, “as Forças Armadas passa[ram] a ter a responsabilidade pela segurança interna, além da já típica atribuição de defesa externa” (FERNANDES; CABRAL, 2020). O Decreto-Lei nº 314, de 1967, conhecido como “Lei de Segurança Nacional”, evidenciou a vinculação entre a segurança nacional e a segurança interna. Segundo seu texto, “a segurança interna, integrada na segurança nacional, diz respeito às ameaças ou pressões antagônicas, de qualquer origem, forma ou natureza, que se manifestem ou produzam efeito no âmbito interno do país” (BRASIL, 1967). Em 1979, João Batista Figueiredo, o último presidente da ditadura militar brasileira, iniciou processos de aproximação com a Argentina, também presidida por um ditador, o general Jorge Rafael Videla (1976 – 1981). Em outubro deste ano, após a assinatura do acordo Tripartite entre Brasil, Argentina e Paraguai para o aproveitamento dos recursos hídricos referentes à usina hidrelétrica de Itaipu, a rivalidade pode ser abandonada (OLIVEIRA, 2005, p. 90, 102). Em 1987, durante o governo de José Sarney (1985 – 1990), foi realizada a primeira reunião conjunta entre o Estado Maior das Forças Armadas do Brasil e da Argentina. Em 1988, foi firmado o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento Brasil-Argentina, que já previa o estabelecimento de um mercado comum entre os países (Idem, p. 112-113). A partir de então, a preparação para um possível conflito com o país vizinho deu lugar para preocupações acerca do controle da Amazônia contra incursões estrangeiras. Nesse 26 sentido, a FAB passou a concentrar seus esforços no desenvolvimento dos Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM) e Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM), tanto para impedir a incursão de voos irregulares no espaço aéreo nacional, quanto para proteger as reservas de recursos naturais de potências estrangeiras (OLIVEIRA, 2005, p. 120-122). Após a redemocratização do país, foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Ela trata das Forças Armadas e da Segurança Pública em seus artigos 142 e 144, respectivamente. Segundo seu texto, as Forças Armadas são constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, e “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (BRASIL, 1988). Por sua vez, a segurança pública “é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, através da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis, Polícias Militares, Corpos de Bombeiros Militares e Polícias Penais (Ibidem). O art. 144 da Constituição Federal de 1988 especifica que cabe à Polícia Federal “prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência” (BRASIL, 1988). O mesmo artigo também define que as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares são forças auxiliares e reserva do Exército (Idem). Coube à Lei Complementar n° 69, de 23 de julho de 1991, dispor sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas. Ela especificou que é de competência da Presidência da República a decisão de empregar as Forças Armadas, seja para a defesa da Pátria, seja para garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem (BRASIL, 1991). Essa Lei Complementar também regulamentou que a atuação das Forças Armadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) deve acontecer “de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (Idem). Nas operações de GLO, as Forças Armadas são empregadas dentro das fronteiras nacionais para garantir a manutenção da ordem e segurança públicas. Portanto, as operações de GLO são um exemplo do processo de convergência das funções militares e policiais no Brasil. Uma GLO foi decretada pela primeira vez em 1992, durante o governo de Fernando Collor de Mello (1990 – 1992), para contribuir para a segurança pública ao longo da Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO-92, realizada no Rio de Janeiro (RJ). Em 1994, durante o governo de Itamar Franco (1992 – 1994), o Exército Brasileiro foi empregado no combate ao crime organizado na cidade do Rio de 27 Janeiro (RJ) pela primeira vez, durante a Operação RIO, em cooperação com os órgãos de segurança pública do Estado (BRASIL, 2022). De acordo com o Ministério da Defesa, as operações de GLO podem ser listadas em cinco tipos: Garantia da Votação e Apuração, Grandes Eventos, Greve da Polícia Militar, Violência Urbana e “Outras: operações como ações referentes a questões indígenas, segurança de instalações de interesse nacional etc” (BRASIL, 2022). Entre 1992 e 2021, foram registradas 145 operações de GLO, sendo a maioria listada como do tipo Grandes Eventos (39). No mesmo período, foram registradas 26 operações do tipo Greve da Polícia Militar, 24 de Garantia da Votação e Apuração, 23 de Violência Urbana e 33 do tipo “outras”. O Gráfico 1 ilustra a frequência de cada tipo de operação de GLO, conforme dados oficiais do Ministério da Defesa (Idem): GRÁFICO 1 – Frequência de Operações de GLO por tipo (1992 – 2021) Fonte: elaboração própria a partir de dados do Ministério da Defesa (BRASIL, 2022) Ainda assim, somente em 2013 foi publicado o primeiro Manual de Garantia da Lei e da Ordem (MD33-M-10) pelo Ministério da Defesa. A versão atualmente em vigor é sua 2ª edição, de 2014. A publicação define as GLO como “operações de ‘não guerra’, pois, embora empregando o Poder Militar, no âmbito interno, não envolvem o combate propriamente dito, 28 mas podem, em circunstâncias especiais, envolver o uso de força de forma limitada” (BRASIL, 2014, p. 17). Especificamente quanto ao emprego da FAB nessas operações, a publicação afirma que será “em cooperação com a Marinha do Brasil e o Exército Brasileiro, ou com os órgãos da administração pública”, com a finalidade de realizar operações aéreas de comunicações, inteligência, logística e vigilância em proveito das ações desses órgãos e de intensificar as operações de policiamento do espaço aéreo nas áreas determinadas pela autoridade competente (BRASIL, 2014, p. 33). No restante desta parte da dissertação, apresento os principais documentos de defesa do Brasil, bem como a Doutrina Básica e Concepção Estratégica da FAB, enfatizando como esses documentos tratam do emprego das Forças Armadas, da incorporação de ARP e de seus impactos sobre a FAB. 3.2. Os documentos de defesa do Brasil Em 1996, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995 – 2002), foi publicado o primeiro documento político orientador da organização e do emprego das Forças Armadas do país, a Política de Defesa Nacional (PDN). A PDN de 1996 explicitou o abandono das possibilidades de conflito com a Argentina e destacou a importância da defesa da Amazônia contra a possível incursão de uma grande potência (BATTAGLINO, 2013). Para tanto, foram desenvolvidos o Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM) e o Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM) para o controle do espaço aéreo, solo e subsolo da Amazônia brasileira por meio de radares fixos, satélites e aviões-radares (RODRIGUES, 2016, p. 71). A PDN de 1996 trouxe entre suas diretrizes, por exemplo, “proteger a Amazônia brasileira, com o apoio de toda a sociedade e com a valorização da presença militar” e “priorizar ações para desenvolver e vivificar a faixa de fronteira, em especial nas regiões norte e centro oeste” (BRASIL, 1996, p. 10), apontando para a necessidade de ocupação militar da Amazônia e da faixa de fronteira. Enquanto a Amazônia brasileira abrange os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, oeste do Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, e Tocantins, a definição da faixa de fronteira segue o disposto na Lei 6.634, de 2 de maio de 1979, que considera área indispensável à Segurança Nacional a faixa interna de cento e cinquenta quilômetros de largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional (BRASIL, 1979). Ela compreende 588 municípios em 11 estados da Federação (FURTADO, 2015). 29 Além disso, a primeira PDN também enfatizou a necessidade de “aperfeiçoar a capacidade de comando, controle e inteligência de todos os órgãos envolvidos na defesa nacional, proporcionando-lhes condições que facilitem o processo decisório, na paz e em situações de conflito”, bem como de “aprimorar o sistema de vigilância, controle e defesa das fronteiras, das águas jurisdicionais, da plataforma continental e do espaço aéreo brasileiros, bem como dos tráfegos marítimo e aéreo” (BRASIL, 1996, p. 10). No ano de 1999, os quatro ministérios militares (Marinha, Exército, Aeronáutica e Estado-Maior das Forças Armadas) foram substituídos pelo Ministério da Defesa, através da Lei Complementar n° 97 (BRASIL, 1999). Essa reorganização institucional buscou contribuir para o fortalecimento da autoridade e controle civil sobre os militares, com vistas à consolidação da democracia (FUCCILLE, 2003). A Lei Complementar nº 97 foi alterada pela Lei Complementar nº 117, de 2 de setembro de 2004, que, notadamente, acrescentou às atribuições subsidiárias particulares do Exército Brasileiro “atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo” através de ações de patrulhamento, revista e prisões em flagrante delito, típicas da função policial (BRASIL, 2004c). A Lei Complementar nº 117 também foi alterada. A Lei Complementar nº 136, de 25 de agosto de 2010, estendeu essas atribuições subsidiárias para a Marinha do Brasil, quando em operações nas águas jurisdicionais brasileiras, e para a FAB, quando em operações no espaço aéreo nacional (BRASIL, 2010). De acordo com o texto revisado: Cabe às Forças Armadas, além de outras ações pertinentes, também como atribuições subsidiárias, preservadas as competências exclusivas das polícias judiciárias, atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, no mar e nas águas interiores, independentemente da posse, da propriedade, da finalidade ou de qualquer gravame que sobre ela recaia, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, executando, dentre outras, as ações de: I - patrulhamento; II - revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves; e III - prisões em flagrante delito. Parágrafo único. As Forças Armadas, ao zelar pela segurança pessoal das autoridades nacionais e estrangeiras em missões oficiais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, poderão exercer as ações previstas nos incisos II e III deste artigo (BRASIL, 2010) Essa revisão também exemplifica o processo de convergência das funções militares e policiais, uma vez que estende às Forças Armadas como atribuição subsidiária a capacidade de executar, na faixa de fronteira, ações preventivas e repressivas contra delitos transfronteiriços 30 e ambientais que incluem ações típicas da função policial, como patrulhamento, revista de pessoas, veículos terrestres, embarcações e aeronaves, além de prisões em flagrante delito. Desde sua criação em 1999, o Ministério da Defesa também esteve preocupado com a recuperação da capacidade operativa da Força Aérea Brasileira (FUCCILLE, 2003). Por exemplo, em 2004, o Ministério da Defesa publicou a Portaria Normativa n° 606, que estabeleceu diretrizes para a obtenção de um veículo aéreo não tripulado (VANT) de forma coordenada pelas três Forças Armadas. A Portaria define VANT como “uma plataforma aérea de baixo custo operacional que pode ser operada por controle remoto ou executar perfis de voo de forma autônoma” e que pode desempenhar funções de transporte de cargas, servir como alvo aéreo ou empregar armamentos (BRASIL, 2004a). No mesmo ano, a aprovação do Decreto n° 5.144 de 2004, conhecido como “Lei do Abate”, estabeleceu os procedimentos a serem seguidos com relação a aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins, caracterizando-as como possíveis ameaças à segurança pública: esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil e poderá ser destruída por ordem da Presidência da República (BRASIL, 2004b). No ano de 2005, durante o governo de Lula da Silva (2003 – 2010), o Decreto nº 5.484, de 30 de junho de 2005, aprovou uma nova PDN. O documento é mais complexo que seu predecessor e “prioriza a Amazônia e o Atlântico Sul pela riqueza de recursos e vulnerabilidade de acesso pelas fronteiras terrestre e marítima” (BRASIL, 2005b). Ela também incorporou a expressão “Amazônia Azul” para se referir à zona marítima sob jurisdição brasileira (Idem). A revisão da PDN em 2005 concedeu maior importância ao tema de combate aos ilícitos transnacionais, com destaque para o tráfico de drogas e o terrorismo. A região Amazônica foi caracterizada pelo documento como uma área de vulnerabilidade, devido a sua baixa densidade demográfica e da grande distância de centros urbanos, o que favoreceria a atuação de redes criminosas transnacionais. O documento propõe como alternativa a ocupação da região com efetivos das Forças Armadas, sobretudo na faixa de fronteira (BRASIL, 2005b). Diferentemente da versão de 1996, a PDN de 2005 menciona o emprego das Forças Armadas contra ameaças internas, com base na Constituição Federal e em prol da Defesa Nacional, visando à preservação do exercício da soberania do Estado e à indissolubilidade da unidade federativa (BRASIL, 2005b). Enquanto a Política fixa os objetivos da Defesa Nacional, a Estratégia Nacional de Defesa (END) estabelece os meios para se fazer o que foi estabelecido. A primeira END foi aprovada em 2008 e trata da reorganização das Forças Armadas, da reestruturação da indústria 31 brasileira de material de defesa e da redefinição da política de composição dos efetivos das Forças Armadas (BRASIL, 2008). Este era o documento em vigor durante as primeiras aquisições de ARP israelenses pela FAB, em 2010. A END de 2008 afirma que uma estratégia nacional de defesa é inseparável da estratégia nacional de desenvolvimento, porque “não é independente quem não tem o domínio das tecnologias sensíveis, tanto para a defesa como para o desenvolvimento” (BRASIL, 2008). Ela destaca a importância de uma base industrial de defesa autônoma, tanto para assegurar o controle de tecnologias militares de ponta, quanto para garantir o transbordamento tecnológico para a indústria civil (BATTAGLINO, 2013). Assim como a PDN de 2005, a END de 2008 também preconizou o aumento da presença das Forças Armadas na faixa de fronteira, com prioridade para a Amazônia brasileira. Além disso, ela determinou o intercâmbio de informações entre o Sistema Nacional de Segurança Pública e o Sistema de Defesa Nacional, principalmente de dados relacionados às atividades ligadas aos crimes transnacionais na faixa de fronteira (BRASIL, 2008). Uma das diretrizes do documento é “dissuadir a concentração de forças hostis nas fronteiras terrestres, nos limites das águas jurisdicionais brasileiras, e impedir-lhes o uso do espaço aéreo nacional” e traz a especificação de que “para dissuadir, é preciso estar preparado para combater. A tecnologia, por mais avançada que seja, jamais será alternativa ao combate. Será sempre instrumento do combate” (BRASIL, 2008). O documento estabelece, ainda, que as Forças Armadas devem ser organizadas “sob a égide do trinômio monitoramento/controle, mobilidade e presença” (Idem). A END estabelece quatro objetivos estratégicos que devem orientar especificamente a FAB: a vigilância aérea, a superioridade aérea local, a capacidade para levar o combate a pontos específicos do território nacional e o domínio de um potencial estratégico que conte “com todos os meios relevantes: plataformas, sistemas de armas, subsídios cartográficos e recursos de inteligência” (BRASIL, 2008). O documento também define três diretrizes estratégicas para a FAB. A primeira diretriz é a incorporação de tecnologias da informação que permitam operações em rede, tanto entre os diversos componentes da FAB, quanto com o Exército e a Marinha (BRASIL, 2008). A segunda diretriz diz respeito à incorporação de ARP “primeiro de vigilância e depois de combate”: o documento destaca sua “precisão no monitoramento/controle do território nacional” e que elas deverão se tornar meios centrais do combate aéreo no futuro (Idem). A terceira diretriz é a integração das atividades espaciais nas operações da Força Aérea, de modo a garantir uma “vigilância múltipla e cumulativa” (Idem): 32 A primeira diretriz é o desenvolvimento do repertório de tecnologias e de capacitações que permitam à Força Aérea operar em rede, não só entre seus próprios componentes, mas, também, com o Exército e a Marinha. A segunda diretriz é o avanço nos programas de veículos aéreos não tripulados, primeiro de vigilância e depois de combate. Os veículos não tripulados poderão vir a ser meios centrais, não meramente acessórios, do combate aéreo, além de facultar patamar mais exigente de precisão no monitoramento/controle do território nacional. A Força Aérea absorverá as implicações desse meio de vigilância e de combate para sua orientação tática e estratégica. Formulará doutrina sobre a interação entre os veículos tripulados e não tripulados que aproveite o novo meio para radicalizar o poder de surpreender, sem expor as vidas dos pilotos. A terceira diretriz é a integração das atividades espaciais nas operações da Força Aérea. O monitoramento espacial será parte integral e condição indispensável do cumprimento das tarefas estratégicas que orientarão a Força Aérea: vigilância múltipla e cumulativa, superioridade aérea local e fogo focado no contexto de operações conjuntas. O desenvolvimento da tecnologia de veículos lançadores servirá como instrumento amplo, não só para apoiar os programas espaciais, mas também para desenvolver tecnologia nacional de projeto e de fabricação de mísseis (BRASIL, 2008, ênfases minhas) O documento afirma, ainda, que mesmo durante a paz serão desenvolvidas atividades permanentes de Inteligência, “para acompanhamento da situação e dos atores que possam vir a representar potenciais ameaças ao Estado e para proporcionar o alerta antecipado ante a possibilidade de concretização de tais ameaças” (BRASIL, 2008). Em sintonia com a END, o Decreto nº 7.496, de 8 de junho de 2011, estabeleceu o Plano Estratégico de Fronteiras (PEF), com o objetivo de fortalecer a prevenção, o controle, a fiscalização e a repressão dos delitos transfronteiriços e dos delitos praticados na faixa de fronteira. Segundo seu artigo segundo, o Decreto fixou como diretrizes a atuação integrada dos órgãos de segurança pública, da Secretaria da Receita Federal do Brasil e das Forças Armadas e a integração com países vizinhos (BRASIL, 2011). Em novembro de 2016, o Decreto nº 8.903 substituiu o PEF pelo Programa de Proteção Integrada de Fronteiras (PPIF). Este Programa expandiu o PEF, incorporou procedimentos para as fronteiras marítimas e fluviais, incluiu o Ministério das Relações Exteriores, a Agência Brasileira de Inteligência e a Comissão Permanente para o Desenvolvimento e a Integração da Faixa de Fronteira (BRASIL, 2016c). A execução destes planos acontece por intermédio da Operação Sentinela e da Operação Ágata. A Operação Sentinela é coordenada pela Polícia Federal, tem caráter permanente e objetiva investigar crimes transnacionais. Já a Operação Ágata é coordenada pelo Ministério da Defesa, tem caráter episódico e possui como objetivos a neutralização do crime organizado, a redução dos índices de criminalidade, a coordenação do planejamento e execução de operações militares e policiais, a cooperação com os países fronteiriços, a intensificação da presença das Forças Armadas e o apoio à população (MENDES, 2016). 33 É no contexto da Operação Ágata que as Forças Armadas executam as ações, típicas da função policial, que lhes foram atribuídas pela Lei Complementar nº 136, de 2010, como o patrulhamento, a revista de pessoas, veículos terrestres, embarcações e aeronaves, além de prisões em flagrante delito (BRASIL, 2010). De acordo com dados do Ministério da Defesa coletados por Hübner (2015, p. 86), as operações Ágata realizada entre 2011 e 2014 tiveram como principais resultados a inspeção de veículos, aeronaves e embarcações, a revista de pessoas e a apreensão de armas, drogas, explosivos e munições, conforme sintetizado na Tabela 1: TABELA 1 - Atividades e resultados das Operações Ágata (2011 – 2014) Atividade 2011 2012 2013 2014 Total Aeronaves inspecionadas 150 72 0 31 253 Armas apreendidas 58 48 93 30 229 Contrabando ou descaminho R$ 236.600,00 R$ 6.295,00 R$ 125.318,00 R$ 1.932.651,00 R$ 2.300.864,00 Drogas apreendidas 2358 kg 9443 kg 19573 kg 36727 kg 68101 kg Embarcações apreendidas 49 449 274 207 979 Embarcações vistoriadas/notificadas 3.589 2.092 19.760 8.238 33.679 Explosivo apreendido 8.150 kg 11.742 kg 1.855 kg 200 kg 21.947 kg Munição apreendida Sem dados Sem dados 2.617 1.261 3.878 Pessoas detidas 32 43 53 40 168 Pessoas revistadas 11.499 5.420 17.165 22.242 56.326 Veículos inspecionados 119.436 200.199 278.596 133.061 731.292 Fonte: adaptado de Hübner (2015, p. 86) A Lei Complementar nº 136, de 2010, tornou obrigatório ao Poder Executivo encaminhar para a apreciação do Congresso Nacional suas propostas de Política de Defesa Nacional (PDN), de Estratégia Nacional de Defesa (END) e do Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN) a cada quatro anos (BRASIL, 2010). Em 2012, o governo de Dilma Rousseff (2011 – 2016) publicou a primeira versão do Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN) do Brasil. O LBDN de 2012 trata das ARP no contexto do Plano de Articulação e Equipamento de Defesa. Segundo o documento, que se 34 refere às ARP como “VANT”, o processo de aquisição dessas tecnologias envolveu a “obrigatoriedade de transferência de tecnologia” para o “desenvolvimento de modelo nacional”: Duas unidades foram adquiridas para consolidação doutrinária de emprego. Foi criado o 1° Esquadrão do 12° Grupo de Aviação (1°/12°) para operação dos VANT. A indústria nacional iniciou processo de desenvolvimento de modelo nacional em parceria com empresa internacional, com obrigatoriedade de transferência de tecnologia (BRASIL, 2013a). As atualizações da END e da PDN (que passou a ser chamada Política Nacional de Defesa – PND), aprovadas em 2012, em grande parte refletiram as prioridades dos documentos anteriores, concedendo relativamente maior destaque para a importância do investimento do Estado em setores de tecnologia avançada (BRASIL, 2013a). Contudo, em 2016, durante o governo interino de Michel Temer (2016 – 2018), uma série de cortes orçamentários transformaram profundamente as expectativas de investimento estatal. A aprovação da Emenda Constitucional nº 95, em 15 de dezembro de 2016, instituiu um Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União a vigorar por vinte exercícios financeiros, isto é, implementou um teto para os gastos e investimentos públicos federais por vinte anos (BRASIL, 2016d). Como consequência, a END de 2016 apresenta mudanças significativas em comparação às duas edições anteriores. Não há menção às diretrizes estratégicas da FAB, que incluíam o avanço nos programas de ARP. O LBDN de 2016 trata das ARP no contexto do programa de Capacitação Operacional da FAB, que tem por objetivos otimizar os processos, sistemas e atividades operacionais, bem como realizar o aparelhamento da FAB – contudo, o documento apenas registra que “foram adquiridas cinco unidades [de Aeronaves Remotamente Pilotadas] para consolidação doutrinária de emprego na FAB” (BRASIL, 2018b). Os documentos de Defesa encaminhados pelo governo de Jair Bolsonaro (2019 – 2022) para apreciação do Congresso Nacional em 2020 apresentam algumas mudanças dignas de nota em relação à edição de 2016. A “Concepção Política da Defesa” é uma seção que aparece nas PND de 2016 e 2020, seguida pelos “Objetivos Nacionais de Defesa”. Embora os Objetivos sejam parecidos em ambas as edições, a Concepção Política mudou consideravelmente, excluindo os posicionamentos de privilégio à solução pacífica de controvérsias e recurso ao multilateralismo nas relações internacionais, por exemplo. Por sua vez, o LBDN de 2020 apenas menciona as ARP como um subprojeto de capacitação operacional da FAB (BRASIL, 2020a). 35 3.3. Os documentos oficiais da FAB A primeira edição da Doutrina Básica da Força Aérea Brasileira (DCA 1-1) foi publicada em 10 de dezembro de 1958. Neste documento, “o termo poder aéreo já abrangia alguns elementos essenciais da formulação atual, tais como a força aérea, a aviação civil, a infraestrutura aeroportuária, a indústria aeronáutica e os institutos de pesquisa” (BRASIL, 2020b, p. 15). A segunda edição foi lançada em 1975 e adotou o termo “poder aeroespacial”, acrescentando a importância das “instalações e engenhos espaciais”. Uma terceira edição, mais sintética, foi publicada em 13 de dezembro de 1989. Em 17 de julho 1997, a quarta edição da Doutrina foi publicada e acrescentou a atuação no espaço exterior ao conceito de poder aeroespacial (Idem, p. 15-16). A quinta edição, publicada em 28 de abril de 2005, foi a primeira a explicitar a missão- síntese da FAB: “manter a soberania no espaço aéreo nacional com vistas à defesa da Pátria” (BRASIL, 2005a, p. 11). Ela incorporou considerações sobre Comando e Controle, Guerra Eletrônica, Guerra de Informação, Guerra Cibernética e Atividades de Apoio, como relações com a mídia, proteção da força e vigilância do tráfego aéreo. Além disso, também foi a primeira a tratar das ARP. O documento define que as missões de Observação Aérea são destinadas “a exercer vigilância aproximada sobre a superfície, a fim de orientar fogos amigos e observar a movimentação de Forças inimigas” e avalia que, devido aos altos riscos para a integridade física dos aviadores, “a tendência futura será a substituição das aeronaves empregadas neste tipo de missão por engenhos não-tripulados” (BRASIL, 2005a, p. 44-45). Uma sexta edição da Doutrina foi publicada em 2012, sob a justificativa “da pertinência de atualizar os princípios e os conceitos basilares para o emprego da FAB, pois, ao longo dos últimos anos, foram incorporadas novas tecnologias e vivenciadas experiências inovadoras” (BRASIL, 2012, p. 14). Contudo, as ARP são citadas uma única vez, como um dentre outros exemplos de como o “desenvolvimento científico-tecnológico proporcionou melhor desempenho e maior letalidade aos meios aéreos” (Idem, p. 27). Em outubro de 2018, a “Concepção Estratégica – Força Aérea 100” (DCA 11-45) foi publicada para “orientar o avanço institucional, permitindo coesão e unidade de esforço” da Força Aérea até 2041, quando a instituição completa 100 anos de criação. Três aspectos são destacados na formulação de uma “visão de futuro” para a FAB: a operacionalidade, isto é, “capacidade de pronta-resposta a qualquer ameaça à soberania, ao patrimônio nacional e à integridade territorial”; a modernidade, que exige “recursos orçamentários para investir-se em tecnologia de ponta, técnicas, táticas de vanguarda nos ambientes aéreo, espacial e cibernético”; 36 e a integração, visando tanto “contribuir para uma sociedade mais evoluída, que seja alcançada pelas ações do Estado e pelas políticas públicas e sociais”, quanto “estreitar a cooperação com a Marinha do Brasil, com o Exército Brasileiro, com as agências governamentais brasileiras e com as Forças Armadas de Nações Amigas” (BRASIL, 2018a, p. 20). A Concepção Estratégica também apresenta dez casos de possibilidades de atuação da FAB: para a “garantia da soberania, integridade territorial e defesa patrimonial”; para oferecer “ajuda humanitária / mitigação de efeitos de desastres”; para “contribuir com as autoridades civis na repressão aos delitos transnacionais”; em Operações de GLO; visando contribuir “para a ordem e a paz mundiais e compromissos internacionais”; visando a “salvaguarda de bens e cidadãos brasileiros no exterior”; no caso de um conflito regional; no caso de um conflito externo ao Brasil na América do Sul; no uso do espaço exterior “em proveito do desenvolvimento e defesa do Estado Brasileiro”; e no ambiente cibernético (BRASIL, 2018a, p. 27-28). O documento destaca a importância das ARP para aumentar a capacidade de produção de conhecimento, no contexto da atividade de Inteligência (BRASIL, 2018a, p. 26): a atual capacidade e conhecimento em comando e controle e inteligência será incrementada com a inserção dos produtos espaciais e das plataformas aéreas não tripuladas de grande autonomia, que aumentarão a produção de conhecimento oportuno e decisivo para as diversas operações conjuntas, incluindo outros órgãos governamentais. Estes dois Meios de Força Aérea retratam fortemente as características do Poder Aeroespacial, mitigando inclusive alguns óbices hoje existentes (BRASIL, 2018a, p. 26) Também se destaca a importância de capacidades de fusão de dados “provenientes de plataformas espaciais, aéreas, tripuladas ou não, e, ainda, utilizando base de dados próprias e/ou das demais [Forças Armadas]” que possibilitem “um processo de produção do conhecimento mais robusto e de resposta mais rápida às necessidades operacionais da FAB” (BRASIL, 2018a, p. 30). Em novembro de 2020, a sétima versão da Doutrina Básica da Força Aérea Brasileira foi reeditada, em dois volumes, substituindo a versão em vigor desde 2012. Enquanto o Volume 1 enfoca os aspectos históricos e conceituais da Doutrina Aeroespacial, o Volume 2 trata dos aspectos operacionais da Força Aérea, como suas tarefas e ações (BRASIL, 2020b; 2020c). A justificativa apresentada no documento para a atualização da Doutrina de 2012 diz respeito às implicações para a “forma de entender e de aplicar o Poder Aeroespacial” da incorporação de novas aeronaves e tecnologias (BRASIL, 2020b, p. 7). Algumas inovações destacadas são o uso de táticas de combate aéreo além do alcance visual, a ampliação da 37 utilização pela FAB do espaço exterior e a incorporação das ARP no espaço aéreo brasileiro (Idem, p. 16-17). Além disso, o documento destaca que “o emprego do Poder Aeroespacial em missões da ONU, grandes eventos esportivos e em exercícios internacionais contribuiu para a atualização da Doutrina” (BRASIL, 2020b, p. 28). Essa é uma referência às inovações doutrinárias advindas do emprego das Forças Armadas, tanto em contextos típicos das funções militares, como os exercícios de simulação de combates, quanto em contextos que extrapolam as funções militares tradicionais, como a Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (MINUSTAH), que aconteceu entre 2004 e 20175, a Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO), em especial a partir de 2013,6 e as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) decretadas durante a Copa das Confederações (2013), a Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas e Paraolimpíadas (2016), por exemplo. De acordo com a Doutrina, as ARP são destinadas a executar a tarefa de Inteligência, Vigilância e Reconhecimento (IVR), que “tem por objetivo prover consciência situacional para as forças amigas sobre o ambiente, fatores e condições em áreas de interesse, possibilitando avaliações oportunas, relevantes, abrangentes e precisas”, ao mesmo tempo em que procura “negar conhecimento ao oponente por meio da degradação dos seus sistemas de coleta de informações e de apoio à decisão, bem como pela salvaguarda dos dados e conhecimentos das forças amigas” (BRASIL, 2020c, p. 18-19). A consciência situacional foi a primeira capacidade potencializada pelo emprego de tecnologias aéreas em contextos militares, desde os primeiros empregos de balões para o reconhecimento da posição das forças oponentes, e se expressa pela capacidade de monitorar constantemente a situação amiga e inimiga em uma determinada área de operações (ROSA, 2014, p. 374). 5 Em 2004, as Forças Armadas brasileiras assumiram o comando militar da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (MINUSTAH). A MINUSTAH foi uma operação de manutenção da paz da ONU e durou até 2017. Embora essas operações sejam tradicionalmente estabelecidas em resposta a situações de guerra, a MINUSTAH foi justificada pela instabilidade política duradoura do Haiti, devido principalmente à presença de gangues e crimes relacionados ao tráfico de armas e drogas. Dessa forma, as Forças Armadas brasileiras puderam empregar uma série de conhecimentos e táticas que já vinham sendo desenvolvidos no país desde a década de 1990, uma vez que o Exército Brasileiro tem atuado no combate ao crime organizado em áreas urbanas no Rio de Janeiro desde 1994, quando foi decretada a Operação RIO (SCHUBERTH, 2019). Além disso, a participação brasileira na MINUSTAH esteve alinhada com as reivindicações do Brasil por um assento permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (MÜLLER; STEINKE, 2018). 6 Entre 2013 e 2015, a MONUSCO teve como comandante militar o General brasileiro Carlos Alberto dos Santos Cruz, que fora comandante militar da MINUSTAH entre 2007 e 2009. Paralelamente, o primeiro emprego de um protótipo de ARP para coleta de dados por tropas da ONU ocorreu em 2007, no contexto da MINUSTAH. Em 2013, no contexto da MONUSCO, as ARP foram definitivamente agregadas ao arsenal das tropas de operações de manutenção da paz da ONU para desempenhar a tarefa de Inteligência, Vigilância e Reconhecimento (IVR) (KUELE, 2017). 38 A Doutrina ressalta que a execução de tarefas de IVR pela FAB também pode acontecer em apoio aos requisitos de outras agências governamentais (BRASIL, 2020c, p. 18). Como consequência, os sistemas tecnológicos empregados em tarefas de IVR devem ser interoperáveis: A FAB faz parte do esforço de várias agências para aprimorar a consciência situacional e subsequente superioridade no apoio à decisão à Estratégia Nacional de Defesa. Portanto, a FAB realiza IVR não apenas em apoio a seus próprios requisitos, mas também aos de todo o governo. Por outro lado, a FAB usa as suas informações e aquelas fornecidas por outros órgãos e agências governamentais para aprimorar suas próprias operações. Como consequência dessa interação, os sistemas IVR devem ser interoperáveis (BRASIL, 2020c, p. 18) Além disso, a Doutrina enfatiza a importância da tarefa de IVR mesmo em tempos de paz, uma vez que a coleta de dados deve permitir a construção de “bancos de dados de inteligência” e o fornecimento de “indicações e alertas” (BRASIL, 2020c, p. 18): A operação de armas cada vez mais precisas e os rígidos critérios de engajamento requerem informações detalhadas e altamente precisas, suportadas por um sistema de Inteligência robusto. Embora essencial em tempos de conflito, a IVR também é importante para as operações em tempo de paz. A IVR provê a consciência situacional para operações de Soberania, construindo bancos de dados de inteligência, orientando táticas, auxiliando no desenvolvimento de capacidades e fornecendo indicações e alertas (BRASIL, 2020c, p. 18) Enquanto as tarefas definem os objetivos mais abrangentes de uma campanha ou operação militar, as ações descrevem atos específicos a serem executados no nível tático para a consecução dos efeitos desejados e passam a ser denominadas “missões” tão logo sejam atribuídas a um comandante (BRASIL, 2020c, p. 14, 26). Por exemplo, a tarefa de IVR pode ser operacionalizada por ações de Controle e Alarme em Voo (CAV), que objetivam “detectar, identificar e proporcionar alarme antecipado de incursões aéreas oponentes” (BRASIL, 2020c, p. 29); por ações de Inteligência (Intlg), que consistem em “coletar, processar, analisar, produzir e difundir conhecimento sobre o oponente e para salvaguardar o conhecimento sensível das forças amigas” (Idem, p. 33); por ações de Reconhecimento Aeroespacial (Rec Aepc), que consistem em “detectar, identificar, coletar e difundir dados específicos sobre forças oponentes e áreas de interesse” (Idem, p. 36); e pelas ações de Vigilância Aérea (Vig Ae), que consistem em “detectar, identificar, acompanhar, coletar e difundir informações de área de interesse, por meio da coleta de sinais e imagens de um alvo específico ou não, em tempo real” (Idem, p. 37). 39 No tocante às Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), a Doutrina Básica da FAB as define como parte da tarefa de Apoio às Ações de Estado, que abrangem “as contribuições da Aeronáutica para o desenvolvimento nacional e para as atividades de cunho governamental em assuntos de natureza militar ou civil”, assim como as Operações de Ajuda Humanitária e Mitigação de Efeitos de Desastres, Operações de Recuperação de Nacionais e o cumprimento de suas atribuições subsidiárias previstas em lei (BRASIL, 2020c, p. 24-26) TABELA 2 - Principais documentos citados na Parte 3 Ano de publicação Título 1991 Lei complementar n° 69, de 23 de julho de 1991. Dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas 1996 Política de Defesa Nacional 1999 Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999. Dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas 2004 Portaria Normativa nº 606/MD, de 11 de junho de 2004. Dispõe sobre a Diretriz de Obtenção de Veículos Aéreos Não Tripulados e dá outras providências 2004 Decreto nº 5.144, de 16 de julho de 2004. Regulamenta os §§ 1o, 2o e 3o do art. 303 da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986, que dispõe sobre o Código Brasileiro de Aeronáutica, no que concerne às aeronaves hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins 2004 Lei Complementar nº 117, de 2 de setembro de 2004. Altera a Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999, que dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas, para estabelecer novas atribuições subsidiárias 2005 Portaria n°476/GC3, de 28 de abril de 2005. Aprova a edição da Doutrina Básica da Força Aérea Brasileira 2005 Decreto nº 5.484, de 30 de junho de 2005. Aprova a Política de Defesa Nacional, e dá outras providências 2008 Decreto nº 6.703, de 18 de dezembro de 2008. Aprova a Estratégia Nacional de Defesa, e dá outras providências 2010 Lei Complementar nº 136, de 25 de agosto de 2010. Altera a Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999, que “dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas”, para criar o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas e disciplinar as atribuições do Ministro de Estado da Defesa 2011 Decreto nº 7.496, de 8 de junho de 2011. Institui o Plano Estratégico de Fronteiras 2012 Portaria nº 278/GC3, de 21 de junho de 2012. Aprova a reedição da Doutrina Básica da Força Aérea Brasileira. 2013 Decreto legislativo nº 373, de 2013. Aprova a Política Nacional de Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco de Defesa Nacional, encaminhados ao Congresso Nacional pela Mensagem nº 83, de 2012 (Mensagem nº 323, de 17 de julho de 2012, na origem) 2016 Decreto nº 8.903, de 16 de novembro de 2016. Institui o Programa de Proteção Integrada de Fronteiras e organiza a atuação de unidades da administração pública federal para sua execução 2018 Portaria nº 1.597/GC3, de 10 de outubro de 2018. Aprova a reedição da DCA 11-45 “Concepção Estratégica – Força Aérea 100” 2018 Decreto legislativo nº 179, de 2018. Aprova a Política Nacional de Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco de Defesa Nacional, encaminhados ao Congresso 40 Nacional pela Mensagem (CN) nº 2 de 2017 (Mensagem nº 616, de 18 de novembro de 2016, na origem) 2020 Mensagem ao Congresso Nacional n° 9, de 2020. Encaminha, para apreciação, os textos da proposta da Política Nacional de Defesa, da Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco de Defesa Nacional 2020 Portaria nº 1.224/GC3, de 10 de novembro de 2020. Aprova a reedição da DCA 1-1 “Doutrina Básica da Força Aérea Brasileira – Volume 1” 2020 Portaria nº 1.225/GC3, de 10 de novembro de 2020. Aprova a edição da DCA 1-1 “Doutrina Básica da Força Aérea Brasileira – Volume 2” 2021 Decreto nº 10.730, de 28 de junho de 2021. Autoriza o emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem nas terras indígenas, em unidades federais de conservação ambiental, em áreas de propriedade ou sob posse da União e, por requerimento do respectivo Governador, em outras áreas dos Estados abrangidos Fonte: elaboração própria Os documentos de Defesa do Brasil analisados destacam a importância do domínio de tecnologias avançadas para a autonomia do país. Os documentos de 2008 e 2012 dão relativamente maior destaque para as relações entre a estratégia nacional de defesa e uma estratégia nacional de desenvolvimento, com uma seção própria para o tema. Outra seção estabelece três diretrizes estratégicas para a FAB, dentre as quais está o avanço nos programas de aquisição e desenvolvimento de ARP e a formulação de doutrina sobre sua operação. As atualizações de 2016 e 2020 suprimiram ambas as seções da END. Por sua vez, os documentos oficiais da FAB destacam a importância das tecnologias de ponta para a execução de tarefas fundamentais para os conflitos contemporâneos, como aquelas de IVR, e a necessidade de que os sistemas tecnológicos empregados nessa tarefa sejam interoperáveis, de modo a garantir a circulação dos dados coletados e informações produzidas entre as diferentes Forças Armadas, instituições policiais e outras agências governamentais. Além disso, esses documentos preveem o emprego das Forças Armadas em operações de segurança pública dentro das fronteiras nacionais, na faixa de fronteira e em operações de GLO, de modo que contribuem para a consolidação da convergência das funções militares e policiais no Brasil. 41 4. O EMPREGO DE AERONAVES REMOTAMENTE PILOTADAS PELA FORÇA AÉREA BRASILEIRA7 4.1. A incorporação de ARP pela FAB A FAB está subdividida em sete Comandos Regionais, conta com 20 bases aéreas e 35 esquadrões espalhados pelo território nacional, conforme ilustrado no Mapa 1. MAPA 1 - Bases Aéreas e Unidades da Força Aérea Brasileira Fonte: reproduzido do site oficial da FAB. Disponível em Último acesso em 15 dez. 2022 As ARP da FAB são operadas pelo Esquadrão Hórus (1°/12° GAV), situado na Base Aérea de Santa Maria (RS), e pelo Esquadrão Orungan (1º/7º GAV), situado na Base Aérea de Santa Cruz (RJ). Originalmente, o Esquadrão Hórus era parte da divisão de Aviação de Reconhecimento da FAB, enquanto o Esquadrão Orungan era parte da divisão de Aviação de Patrulha. 7 Uma versão prévia desta parte foi publicada como MOTTA, Murilo. “Olhos no Céu”: a incorporação de veículos aéreos não tripulados israelenses pela Força Aérea Brasileira. Revista Hoplos, v. 6, n. 11, p. 27-50, 2022. Disponível em Último acesso em 15 jan. 2023 https://www.fab.mil.br/organizacoes https://periodicos.uff.br/hoplos/article/view/54696 42 A Aviação de Reconhecimento era tradicionalmente responsável por fornecer dados para o Sistema de Inteligência das Forças Armadas. Cabia a ela garantir o monitoramento constante do território nacional, de modo a permitir a pronta-resposta a eventuais inimigos. Conforme destaca em seus primeiros versos o Hino da Aviação de Reconhecimento: “Aviação de reconhecimento / Da Pátria, os olhos, na guerra e na paz / És a primeira, como trincheira, / Contra o furor do inimigo sagaz” (LOUREIRO, [sem data]). Por sua vez, a Aviação de Patrulha era responsável por vigiar especificamente o litoral e território marítimo brasileiros. Contudo, desde 2016 a FAB aglutinou ambas essas Aviações em um conceito único de emprego, sob a designação de Aviação de Inteligência, Vigilância e Reconhecimento (IVR). Conforme será descrito ao longo desta parte da dissertação, a FAB começou a empregar ARP em 2010, quando uma aeronave do modelo Hermes 450 (RQ 450) foi licenciada para a Força pelo período de teste de um ano. No mesmo ano, a FAB importou duas unidades desse modelo, que foram entregues em 2011. Outras duas unidades foram adquiridas e montadas no Brasil em 2013. Em 2014, a FAB adquiriu uma aeronave do modelo Hermes 900 (RQ 900) para ser empregada nas operações de segurança durante a Copa do Mundo. Outras duas unidades do modelo Hermes 900 foram adquiridas em 2021 e têm previsão de entrega para 2023. A Tabela 3 sintetiza essas informações: TABELA 3 - Lista de ARP importadas pela Força Aérea Brasileira de Israel (2010 – 2021) N° de unidades Designação Ano do pedido Ano da entrega N° entregue Comentários 2 Hermes-450 2010 2011 2 Designação brasileira RQ-450 2 Hermes-450 2012 2013 2 Acordo de R$ 48 milhões (US$ 25 milhões); Montadas no Brasil 1 Hermes-900 2014 2014 1 - 2 Hermes-900 2021 - - Designação brasileira RQ-900; Entrega prevista para 2023 Fonte: elaboração própria a partir de dados do SIPRI (2022) Além de preservar a integridade física de seus operadores, o emprego de ARP permite sua manutenção em voo, coletando dados, durante longos períodos de tempo. Conforme descrito em uma notícia veiculada no site oficial da FAB: As principais vantagens do uso de uma Aeronave Remotamente Pilotada (ARP) é permitir [sic] que uma missão dure várias horas, com revezamento de tripulações na 43 estação em solo. Além do cansaço, os militares também ficam longe de qualquer ameaça que possa existir, como fogo hostil. A ARP também se destaca por ser silenciosa e difícil de ser localizada (AERONAVE, 2011) A operação dessas ARP envolve pelo menos duas pessoas, um piloto e um coordenador tático, mas esse número pode ser muito maior, a depender da complexidade dos sensores que a ARP carrega. Como é possível ver na Imagem 1, os operadores das ARP ficam em uma estação de controle no solo (ou shelter, da palavra em inglês para “abrigo”), a partir da qual controlam as aeronaves e seus sensores (que compõem o payload da aeronave, da palavra em inglês para “carga útil”) (EVOLUÇÃO, 2016). IMAGEM 1 - Estação de controle no solo (shelter) Fonte: reproduzido do FLICKR Oficial da Força Aérea Brasileira. Disponível em Último acesso em 15 dez. 2022 O Esquadrão Hórus (1°/12° GAV) foi criado em 2011 para desenvolver a doutrina de emprego de ARP no Brasil. Uma de suas contribuições doutrinárias foi a definição de que somente aviadores podem ter o controle dessas aeronaves – ao contrário dos EUA, onde civis podem ser operadores de ARP (FAB, 2012). Contudo, a estrutura organizacional da FAB ainda está se adaptando às novas demandas operacionais advindas do emprego de ARP. Por exemplo, ainda não há formação específica em aviação remotamente pilotada, de modo que o Esquadrão https://flickr.com/photos/portalfab/28748610335/ 44 Hórus (1°/12° GAV) absorve pilotos de outras asas, como a Aviação de Asas Rotativas, de Caça, de Patrulha e de Transporte (ANÔNIMO, 2022). A primeira ARP utilizada pela FAB foi do modelo Hermes 450 (RQ 450), cedida por um período de um ano, sem custo para a instituição