UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” (UNESP) PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO V Congresso Nacional de Formação de Professores e XV Congresso Estadual Paulista sobre Formação de Educadores 24 a 26 de novembro de 2021 - Online São Paulo 2021 Volume 1 C749a Congresso Nacional de Formação de Professores (5., 2021 : São Paulo, SP) Anais [do] V Congresso Nacional de Formação de Professores e XV Congresso Estadual Paulista sobre Formação de Educadores [recurso eletrônico], 24 a 26 de novembro de 2021 / coordenação, Célia Maria Giacheti, et al. - São Paulo : Unesp, 2021. 7 v. DOI: 10.5016/vcnfp-xvcepfe2021v1 ISSN  2359-3822 1. Professores - Formação. 2. Pesquisa educacional. 3. Políticas públicas. 4. Educadores. 5. Inovações educacionais. I. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). II. Giacheti, Célia Maria. III. Congresso Estadual Paulista sobre Formação de Educadores. IV. Título. CDD - 370.71 Ficha catalográfica elaborada pela Coordenadoria Geral de Bibliotecas da Unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "Júlio de Mesquita Filho" Prof. Dr. Pasqual Barretti - Reitor Profa. Dra. Maysa Furlan - Vice Reitora Profa. Dra. Celia Maria Giacheti – Pró-reitora de Graduação Corpo Editorial Celia Maria Giacheti - Pró-reitora de Graduação/Unesp e Presidente do Congresso Silvana Aparecida Borsetti Gregório Vidotti - Pró-reitoria de Graduação/Unesp Comissão Organizadora: Profa. Dra. Celia Maria Giacheti - Pró-reitora de Graduação e Presidente do Congresso Prof. Dr. Amadeu Moura Bego - Pró-reitoria de Graduação - Unesp Profa. Dra. Maria Odila Hilário Cioffi - Pró-reitoria de Graduação - Unesp Profa. Dra. Silvana Aparecida B. G. Vidotti - Pró-reitoria de Graduação - Unesp Alexandre Donizete Pazoti – Pró-reitoria de Graduação - Unesp Maira Kikuti Nunes – Pró-reitoria de Graduação - Unesp Maria Lúcia de Camargo - Pró-reitoria de Graduação - Unesp Comissão Científica Adair Mendes Nacarato - Universidade São Francisco Adriana de Lima Terçariol - Uninove Alessandra de Andrade Lopes - Unesp Aline Maria De Medeiros Rodrigues Reali - UFSCar Aline Sommerhalder - Universidade - UFSCar Alisson Antonio Martins - UTFPR Amadeu Moura Bego - Unesp Ana Claudia Fidelis - PUC/Campinas Ana Claudia Vieira Cardoso - Unesp Ana Maria de Andrade Caldeira - Unesp Ana Maria Klein - Unesp Ana Maria Martins da Costa Santos - Unesp Anna Augusta Sampaio de Oliveira - Unesp Beatriz Ceschim - Unesp Bernardete Angelina Gatti - FCC Bernadete Benetti - Unesp Carla Andrea Brande - SEE/SP Carlos Eduardo Albuquerque de Miranda - Unicamp Carlos da Fonseca Brandão - Unesp Carmem Juliani - Unesp Carolina Gonçalves Souza - Secretaria de Educação Municipal - Rio Claro Celia Maria Giacheti - Unesp Cinthia Magda Fernandes Ariosi - Unesp Cintia Salgado Azoni - UFRN Cláudia Regina Mosca Giroto - Unesp Cristiane Nespoli de Oliveira - Unesp Daisi Terezinha Chapani - UESB Denice Bárbara Catani - USP Denise de Cássia Moreira Zornoff - Unesp Edson do Carmo Inforsato - Unesp Elen Aparecida Martines Morales - Unesp Eliana Marques Zanata - Unesp Eliane Aparecida Bacocina - IFSP Elieuza Aparecida de Lima - Unesp Elizabeth Cardoso - PUC/SP Fábio César Braga de Abreu e Lima - Unesp Fátima Aparecida Dias Gomes Marin - Unesp Fernanda da Rocha Brando Fernandez - USP Filipe Rafael Gracioli - IPHAN Filomena Elaine Paiva Assolini - USP Flavia Medeiros Sarti - Unesp Flávio Valadares - IFSP Francisco José Brabo Bezerra - UFABC Fúlvia Eloá Maricato - UEM Giovana Maria Gonçalves da Silva - Unesp Hilda Maria Gonçalves da Silva - Unesp Irineu Aliprando Tuim Viotto Filho - Unesp Isabel Melero Bello - UNIFESP João Eduardo Fernandes Ramos - UFPE Karin Adriane H. Pobbe Ramos - Unesp Laura Noemi Chaluh - Unesp Lilian Aparecida Ferreira - Unesp Luciana Aparecida Nogueira da Cruz - Unesp Luciana Del Rio Pinoti - Unesp Luciana Maria Lunardi Campos - Unesp Lucy Mary Soares Valentim - FATEB Maevi Anabel Nono - Unesp Marcília Elis Barcellos - CEFET/RJ Marcio Vinicius Corallo - IFSP Marco Antonio Rossi - Unesp Margarete Bertolo Boccia - Uninove Mari Clair Moro Nascimento - UEL Maria Amélia Dalvi - UFES Maria Betanea Platzer - Faculdade São Luiz - Jaboticabal Maria Cândida Soares Del Masso - Unesp Maria da Graça Melo Magnoni - Unesp Maria do Carmo Monteiro Kobayashi - Unesp Maria Ednéia Martins - Unesp Maria Letícia Pedroso Nascimento - USP Maria Odila Hilário Cioffi - Unesp Maria Regina Guarnieri - Unesp Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo - Unesp Maria Teresa V. Van Acker - Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo Marina Caprio - IFECT/SP Marina Cyrino - Centro Universitário Hermínio Ometto de Araras Marineide de Oliveira Gomes - UNIFESP Monica Pereira dos Santos - UFRJ Natalina Aparecida Laguna Sicca - CUML Neila Tonin Agranionih - UFPR Nelson Antonio Pirola - Unesp Paloma Rodrigues Siebert - IFP Raquel Gomes de Oliveira - Unesp Raquel Lazzari Leite Barbosa - Unesp Renata Marcílio Cândido - Unifesp Renata Portela Rinaldi - Unesp Renato Eugenio da Silva Diniz - Unesp Ricardo Henrique de Souza - Secretaria de Educação Municipal - Campo Grande Rita Melissa Lepre - Unesp Rosana Louro Ferreira Silva -- USP Rosane Michelli de Castro - Unesp Rosangela Gravioli Prieto - USP Rosemary Traboldi Nicacio - Faculdades Integradas de Ourinhos Rozana Aparecida Lopes Messias - Unesp Sadao Omote - Unesp Samuel de Souza Neto - Unesp Sandra Luzia Weobel Straub - Unemat Sebastião de Souza Lemes - Unesp Selma Machado Simão - Unicamp Sergio Fabiano Annibal - Unesp Silvana Aparecida Borsetti Gregório Vidotti - Unesp Simone Aparecida Capellini - Unesp Soellyn Elene Bataliotti - Unesp Sueli Guadelupe de Lima Mendonca - Unesp Sueli Liberatti Javaroni - Unesp Taitiany Karita Bonzanini - USP Tatiana Schneider Vieira de Moraes - Umesp Thais Cristina Rodrigues Tezani - Unesp Thalita Quatrocchio Liporini - UNB Vera Lúcia Messias Fialho Capellini - Unesp Vivian Batista da Silva - USP Wanderlei Sebastião Gabini - Secretaria de Educação Municipal – Jaú SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.……………………………………………………………………………….11 EIXO 01: POLÍTICAS E PRÁTICAS DE FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA: COMUNICAÇÃO DE PESQUISA A abordagem da localidade no ensino de História: colaboração dos filmes de Eduardo Coutinho para a formação docente……………………………………………………………..13 A caixa de cartas de Korczak como dispositivo para a construção da autonomia moral na escola………………………………………………………………………………………………26 A formação de professores de ciências e biologia e a busca da curiosidade epistemológica em Freire………………………………………………………………………..38 A formação em cursos de licenciatura para ensinar com tecnologias digitais……………..51 A importância das finalidades educativas escolares na formação dos educadores………63 A importância do PIBID Letras na formação de professores………………………………...72 A protelação de uma política institucional de formação de professores no IFSP: uma análise do descumprimento da lei de criação dos Institutos Federais……………..……….83 A unicidade teoria-prática na formação de professores de matemática na modalidade a distância…………………………………………………………………………………………...96 Abordagens em ciência, tecnologia, sociedade e ambiente: uma discussão crítica do filme O menino que descobriu o vento ………………………………………………….………….108 Aprendendo a ser professor na formação inicial……………………………………….……119 As finalidades educativas escolares, as finalidades formativas dos educadores e os desafios da escola da atualidade……………………………………………………….…..…131 As produções acadêmicas sobre o plano nacional de formação de professores da educação básica (PARFOR): análise inicial………………………………………….………141 Às vezes tenho sonhos, planos, mas alguns se perdem pelo caminho”: narrativa e constituição profissional para a docência…………………………………………………….166 Caracterização docente na educação básica: análise dos microdados do censo escolar do estado de Minas Gerais………………………………………………………………………...177 Competência moral de graduandos(as) em pedagogia: o caso de uma universidade pública do Estado de São Paulo……………………………………………………..………..190 Concepções de professor pesquisador e sua importância em situação de estágio supervisionado…………………………………………………………………………………..201 Coordenação pedagógica: análise das produções acadêmicas (1980- 2020).................214 Culpabilização do trabalho docente: análise comparativa da aplicação de sequências didáticas de química………………………………………………………………………….…224 Desenvolvimento do jogo “combate ao coronavírus’’ durante a pandemia da COVID- 19………………………………………………………………………………………...............237 Educação ambiental oferecida nas licenciaturas: uma análise no IFSP………………….249 Ensino médio e superior público de São Paulo: o contraste entre as políticas curriculares meritocráticas e as políticas afirmativas………………………………………………………261 Estudos sobre narrativas de professores de matemática………………………………..…274 Formação inicial de professores(as) de ciências e biologia: contribuições do Programa de Educação Tutorial (PET-BIO)...........................................................................................287 Ideias para adiar o fim do mundo de Krenak: contribuições para a formação de professores no âmbito da questão ambiental………………………………………………..299 Implementação do Programa de Licenciaturas Internacionais (PLI) na licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Federal de Viçosa, Campus Viçosa…………….…310 Jogo, lazer e educação durante a pandemia de COVID 19………………………………..323 Lei n.10.639 e literatura infanto-juvenil: a importância de novas narrativas de ensino.........................................................................................................................….. 336 Movimentos históricos da educação brasileira: o ensino no Oeste Catarinense………............................................................................................................346 Nexos conceituais da medida: contribuições na formação dos licenciandos em pedagogia………………………………………………………………………………………..358 O olhar do professor para os espaços da cidade como locais de brincar, interagir e aprender…………………………………………………………………...……………………..365 O programa residência pedagógica do curso de pedagogia da Unesp/Bauru: proposições, ações, resultados e análises…………………………………………………………………...378 O raciocínio e a ação pedagógica de uma diretora no desenvolvimento profissional de suas professoras pela via dos mapas conceituais…………………………………………..389 Os cursos de graduação pela ótica dos censos do ensino superior dos anos 2009 e 2019……………………………………………………………………………………………....402 Os seriados e a construção de personalidades morais…………………………………..…414 Percepções de licenciandos em ciências biológicas sobre a docência…………………...422 Política de formação de professores sob a égide neoliberal: uma análise do PARFOR a partir do Censo da Educação Superior……………………………………………………….435 Políticas de formação docente para a educação profissional e tecnológica……………..448 Principais ações do programa de residência pedagógica em física da Unesp de Presidente Prudente em tempos de pandemia………………………………………………460 Processo de elaboração de propostas didáticas para o ensino de espanhol/LE na formação inicial………………………………………………………………………………….467 Professoras de creche, saberes profissionais e BNCC: delimitando as fronteiras dessa relação……………………………………………………………………………………………478 Professores iniciantes de Matemática/ou em início de carreira: panorama de pesquisas………………………………………………………………………………………...489 Referenciais teóricos pedagógicos e o estágio supervisionado curricular obrigatório em ciências e biologia: limites e possibilidades para a práxis docente………………………..502 Representações sociais de formadores de professores sobre a docência na educação básica……………………………………………………………………………………………..514 EIXO 01: POLÍTICAS E PRÁTICAS DE FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA: RELATOS DE EXPERIÊNCIA A formação humana integral na EMEF Padre Emílio Miotti - de 2013 a 2017……...….................................................................................................................…528 A licenciatura em enfermagem e as interfaces com a formação continuada de professores na educação profissional técnica de nível médio……………………………………………541 A prática como componente curricular e os conteúdos de arte na formação inicial em pedagogia: relato de experiência………………………………………………………….…..550 A relação entre universidade e escola na proposta de uma educação antirracista…….................................................................................................................561 A valorização da cultura afro-brasileira nas escolas……………………………………..…573 Atividades de regência desenvolvidas em um clube virtual de química durante o estágio em ensino de química…………………………………………………………………………..586 Atividades experimentais no ensino de Biologia: uma possibilidade didática para o estudo de proteínas……………………………………………………………………………………...593 Educação ambiental na formação de professores: análise de letras musicais no ensino das principais correntes e vertentes……………………………………………………….….602 Educação básica nos anos iniciais: reflexões sobre a aprendizagem pelo movimento corporal, no estágio obrigatório para a licenciatura de pedagogia………….……………..614 Ensino de biologia: anatomia comparada como estratégia para o ensino de vertebrados e de evolução………………………………………………………………………………………625 Estudo comparativo entre o aluno bolsista do PIBID e o aluno participante do estágio obrigatório/supervisionado……………………………………………………………………..634 Formação inicial de professores de biologia e a pandemia de COVID-19: experiências de estágio supervisionado…………………………………………………………………...…….644 Grupos de trabalho, discussão e formação colaborativa, em torno de processo de flexibilização curricular………………………………………………………………………….652 Narrativas (auto) biográficas de uma coordenadora pedagógica recém-aposentada sobre seus percursos profissionais…………………………………………………………………...660 O diário reflexivo na formação inicial do professor da educação básica: um relato de experiência………………………………………………………………………………………671 O PIBID em contexto de ensino remoto: um relato de experiência………………………..684 O que levamos na bagagem quando viajamos? Bagagens culturais e artísticas de estudantes de pedagogia na [trans]formação docente……………………………………..693 Pensamento crítico na formação inicial dos professores de matemática…………….…..705 PIBID em tempos de pandemia: banca da ciência e a produção audiovisual de experimentos científicos inclusivos…………………………………………………………....712 Reflexões étnico-raciais e de gênero em cursos de licenciatura a partir do jogo privilégio branco adaptado ao ensino remoto………………………………………………………….. 722 Saponificação: ensino de biologia e química a partir de uma prática problematizadora………………………………………………………………………………..728 11 Apresentação A Pró-reitoria de Graduação da Unesp realizou entre os dias 24 a 26 de novembro de 2021 mais uma edição do Congresso Nacional de Formação de Professores e Congresso Estadual Paulista sobre Formação de Educadores. O evento é realizado bianualmente com convidados nacionais e internacionais, reunindo estudantes de graduação, pós- graduação, professores da educação básica, professores universitários e demais profissionais que atuam na educação. O V Congresso Nacional de Formação de Professores e XIV Congresso Estadual Paulista sobre Formação de Educadores, recebeu aproximadamente 450 participantes, que nos três dias de evento participaram das discussões e reflexões sobre a educação nacional, cuja temática foi " Educação para o cuidado do mundo: dimensões científicas, éticas e estéticas da formação docente". Os Anais publicam os trabalhos aprovados que expressam o estado da arte da área com pesquisas e experiências realizadas em quase todos os estados brasileiros, no formato de apresentação oral. Esta publicação foi organizada contemplando os sete eixos temáticos do evento: Políticas e práticas de formação inicial de professores da educação básica; Políticas e práticas de formação continuada de professores da educação básica; Formação de professores alfabetizadores e da educação infantil; Formação de professores da educação superior; Políticas e práticas para a formação de professores na perspectiva da inclusão e da acessibilidade; Inovações metodológicas e o uso de tecnologias educacionais ; Impactos e reflexos da pandemia de Covid-19 no contexto educacional. Com a certeza de contribuir para a melhoria da educação brasileira, desejamos que todos os leitores e pesquisadores da área aproveitem ao máximo desta publicação e que a leitura possibilite importantes reflexões sobre o campo da formação de professores no Brasil. Prof. Dra. Celia Maria Giacheti Pró-reitora de Graduação - Unesp V Congresso Nacional de Formação de Professores e XV Congresso Estadual Paulista sobre Formação de Educadores Volume 1 Eixo 01: Políticas e Práticas de Formação Inicial de Professores da Educação Básica Comunicação de Pesquisa 13 A ABORDAGEM DA LOCALIDADE NO ENSINO DE HISTÓRIA: COLABORAÇÃO DOS FILMES DE EDUARDO COUTINHO PARA A FORMAÇÃO DOCENTE Humberto PERINELLI NETO, Unesp/Ibilce/São José do Rio Preto Políticas e práticas de formação inicial de professores da educação básica Fapesp (Processo 2019/18429-0) humberto.perinelli-neto@unesp.br Introdução O tema localidade é alvo de atenção na BNCC (BRASIL, 2017). Contudo, sua abordagem ocorre, em maior parte, junto do enfrentamento do tema sujeito histórico e sem recorrer às palavras "local" e “localidade". Quando o documento trata do 3o e do 4o anos do Ensino Fundamental dos Anos Iniciais, localidade passa a ser tratada como "lugar em que se vive e as dinâmicas em torno da cidade”. Já no 5o ano, "cuja ênfase está em pensar a diversidade dos povos e culturas e suas formas de organização”, a impressão é a de que o local deve ser entendido com base no reconhecimento das vozes diferentes que o constituem (BRASIL, 2017, p.404). A localidade é sugerida no conjunto de objetos de conhecimento e de habilidades apresentadas na BNCC (BRASIL, 2017) segundo lógica gradativa e que espelha reflexões organizadas numa escala compreendendo do mais perto até o mais distante. No 1o e 2o anos a localidade é associada aos espaços sociais mais privados e pessoais vividos pelos alunos. A contar do 3o ano, a localidade é tratada segundo o enfrentamento da cidade, num esforço de refleti-la segundo perspectiva social mais ampla. Durante o 4o e 5o anos, a localidade é pensada a contar de abertura espaço-temporal ainda maior, porque associada à processos de longa duração. A lógica dos “círculos concêntricos” é muito empregada para o entendimento do local no ensino de História no Ensino Fundamental Anos Iniciais. Contudo, favorece estudo fragmentado, “não possibilitando que os alunos estabeleçam relações entre os vários níveis e dimensões históricas do tema. O bairro, a cidade, o estado são vistos como unidades estanques, dissociados do resto do país ou do mundo” (FONSECA, 2009, p.154). Segundo esta perspectiva, o vivido deve ser conhecido historicamente, mas de maneira fragmentada (um tema, por vez) e isolada (o tema, per si), forma de entendimento que cria hierarquias entre os espaços e, por conta disso, motiva abordagem do local ora como exemplo ou como específico, quando, na verdade, deve ser entendido com base na concepção de tensão que permeava os indivíduos e grupos. 14 Outra abordagem comum do local e do regional no Ensino Fundamental Anos Iniciais envolve os discursos dos memorialistas, ou seja, aos “méritos dos fundadores”, às “ações das grandes famílias”, às “riquezas e potencialidades do município” e a uma homogênea linha temporal constituída pelo linear e o progressivo (BITTENCOURT, 2008). Tais discursos estão presentes nas obras dos memorialistas, propriamente ditos, que arrogam primazia sobre o conhecimento do município, como podem também constituirem as obras de professores de História enredados nas lógicas políticas locais. A alternativa à tal posição exige, segundo estudiosa, mover a História local para outros campos e temas, cujo enfrentamento "crie vínculos com a memória familiar, do trabalho, da migração das festas” (BITTENCOURT, 2008, p.169). Estudos desenvolvidos, especialmente, nas duas últimas décadas rompem com essa perspectivas redutoras do ensino de História e a localidade. É o caso do trabalho promovido por Márcia Gonçalves, que se dedicou ao tema, por acreditar que oportuniza consciência histórica, ou seja, de “saber ordenado e ordenador e que, nessa qualidade, condiciona a própria percepção das experiências de vida partilhadas por determinados sujeitos” (2004, p.176). Dialogando com um conjunto de estudiosos que lhe emprestam interessantes reflexões epistemológicas, a autora ressalta que o ensino de História e localidade exige problematizar a ideia de local, operar com o conceito de escalas de observação e atuar segundo o principio da cartografia social. Maria Schimidt (2004) igualmente colabora neste debate. A autora identifica a preocupação para com a localidade nas instruções educacionais brasileiras existentes desde a década de 1930 até a LDB 1971, ou seja, foi considerada categoria importante pelos escolanovistas (sempre defensores dos estudos do meio, por exemplo), mas abandonada pelos técnicos da Ditadura Civil Militar implantada em 1964, dada a opção pelos Estudos Sociais e a compreensão para ajustamento do entorno pelo aluno. Valendo-se igualmente de rico repertório epistemológico, Schimdt convida a promover experiências que tomem a localidade como oportunidade de se promover transposições didáticas, práticas investigativas no ensino e construção de diferentes análises (do ponto de vista das instâncias da realidade, sujeitos, temporalidades e documentos). Soma-se ainda as contribuições de Helenice Ciampi (2004), importantes porque permitem compreender a possível relação entre ensino de História e localidade, por meio da abordagem critica, construída a partir de investigações que tomam como objetivo a biografia. Com base numa prática educativa desenvolvida por docente da Educação Básica numa escola pública localizada na cidade de São Paulo, a autora apresenta um metodologia capaz de produzir a consciência histórica, à medida que o entendimento de 15 uma História de vida é efetuado, mediante atenção para com os temas aos quais está envolvida, tarefa que exige pesquisa e adoção de perspectiva hermenêutica da História. Disso resulta a produção de conhecimento capaz de desnaturalizar a realidade, posto a sua captação a partir do reconhecimento da densidade temporal que o constitui. Selva Fonseca (2009) participa da discussão, ao avaliar a História local sob o signo da identidade. Inicialmente, a autora nos lembra do reconhecimento da importância do local pelos estudos acadêmicos e pela legislação educacional. Na sequencia, registra que as experiências conhecidas sobre práticas educativas dedicadas à localidade se mostraram limitadas, mas podem avançar, se houver seleção de um tema e se basear em fontes orais. Buscando apoio em estudiosas portuguesas, Fonseca apresenta várias ponderações envolvendo a construção do ensino de História pela localidade, que trazem em comum a necessidade de articular presente e passado, específico e geral, se valer de depoimentos orais e estudos do meio, organizar entendimentos com base na seleção e no enfrentamento de tema, entre outros. O reconhecimento da importância da História local motivou grupo de estudiosos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte a promover curso de formação continuada destinado aos professores da rede e voltado para a produção de material didático com base nesta perspectiva (ALVEAL et al, 2017). Transformada em livro, podemos acessar com detalhes a proposta e daí perceber que envolveu o enfrentamento de temas como "Patrimônio e memória urbana”, "Cemitério e outros locais de devoção, bens imateriais laicos e religiosos”, "Fontes arqueológicas”, "Sociabilidades urbanas” e "Memórias indígenas e africanas”. A grande riqueza desta iniciativa repousa na seleção e organização de fontes locais para que sejam empregadas como materiais didáticos. Sonia Nikitiuk (2002) apresentou pesquisa sobre as aulas de História desenvolvidas no Ensino Fundamental I. A estudiosa igualmente ressalta a presença da abordagem da localidade na legislação educacional. Versando autores reconhecidos (Henry Léfébreve, Marc Augê, Jacques Revel e Michel De Certeau, por exemplo), relaciona a abordagem da localidade ao enfrentamento de conceitos como cotidiano, identidade, micro-história e lugar. Também ressalta a necessidade de se reconhecer limites na formação pedagógica dos professores que ministram História no Ensino Fundamental I, inicialmente, para a partir daí alargar essa formação, tendo em vista que a profissionalização docente envolve processo contínuo. Considerando a significância da abordagem da localidade no ensino de História a ser vivenciado no Ensino Fundamental I (Anos Iniciais), inclusive sua indicação na BNCC, trata-se neste texto de apresentar apropriação pedagógica dos pressupostos estéticos e 16 epistemológicos empregados pelo cineasta Eduardo Coutinho (1933-2014) nas obras que dirigiu durante a fase denominada por “filme de conversação” ("Santo forte", "Babilônia 2000", "Edifício Master", "Peões" e "O fim e o princípio”), visando construir abordagem da localidade em processos formativos voltados à professores. Fundamentação teórica A fundamentação teórica da pesquisa envolve contribuições que vão de Jacques Rancière (2005; 2012; 2013), passando por Walter Benjamin (2012; 2020), Michel De Certeau (2014) e Paulo Freire (2011), o que significa pensar que o conhecimento envolve a partilha do sensível, mediante preocupações com o narrador e a narrativa, a atenção para com os anônimos, suas estratégias e táticas, bem como o reconhecimento de que a formação do educador deve ser construída a partir da autonomia. Procedimentos metodológicos A pesquisa apresenta abordagem qualitativa, natureza aplicada e explicação, mediante emprego de análises bibliográfica e documental, observações sistemáticas e perspectiva do tipo ex-post-facto (GIL, 1994; 2007; MINAYO, 2000; TRIVINÕS, 1987; GAMBOA, 1997; ALVES-MAZZOTTI, GEWANDSZNAJDER, 1999). Trata-se de pesquisa aplicada, porque objetiva gerar conhecimentos dirigidos à formação de professores voltados para o ensino de História no Fundamental I (Anos Iniciais), valendo-se para isto de filmografia selecionada do cineasta Eduardo Coutinho. Ao mesmo tempo, a pesquisa é explicativa, porque exige mobilização de dados empíricos (filmes selecionados), a serem refletidos com base em conceitos/conteúdos apreendidos na leitura de bibliografia e de legislação educacional listadas e na observação sistemática dos filmes selecionados, visando estabelecer entendimento dos pressupostos/expedientes empregados por Eduardo Coutinho em seus filmes. Por observação sistemática voltada para a linguagem cinematográfica deve-se entender a adoção de tratamento metodológico específico (BAUER, GASKELL, 2015; AUMONT et al 2005; AUMONT, 2001; AUMONT, 2004; AUMONT, MARIE, 2010; VANOYE, GOLLIOT-LÉTÉ, 1994; CARRIERÉ, 2015). Discussão O paulistano Eduardo Coutinho, nascido em 1933, fez parte da geração do Cinema Novo (LINS, 2004). Dirigiu "Cabra marcado para morrer", filme marco do cinema brasileiro, lançado em 1984. A contar de 1999, iniciou nova fase da carreira, conhecida como "cinema de conversação", e que é composta pelas obras: "Santo forte” 17 (1999), "Babilônia 2000” (2000), "Edifício Master” (2002), "Peões" (2004) e "O fim e o princípio” (2005). Nessa fase, destaca Claudio Bezerra: "A habilidade de Coutinho como entrevistador adquire aqui um apuro excepcional para evidenciar, com um mínimo de intervenção, o caráter universal de histórias particulares e a natureza performática dos atos de fala (2014, p.30 – grifos meus). Eduardo Coutinho é um cineasta que se desloca. Em busca de entrevistados, esse diretor faz do espaço um personagem sempre presente em seus filmes. Dessa forma é que o assistimos subir morros, para se dirigir as favelas, bem como "invadir” (segundo suas próprias palavras) corredores; elevadores e apartamentos, em "Edifício Master", bem como percorrer as ruas, residências e sindicato do ABCD paulista, em "Peões", além de vagar por sítios num bairro rural da Paraíba. Por conta da delimitação que ele próprio define, esses espaços costumam ter limites precisos, o que colabora para que ganhem importância nas obras. Coutinho é um ardoroso defensor da significância da localidade, denominada por ele “prisão”. Circunscrever o grupo a ser filmado com base numa certa espacialidade é expediente essencial no dispositivo que formulou para produção de seus filmes. Tal circunscrição é polissêmica, uma vez que envolve favelas ("Santo forte" e "Babilônia 2000"), bairro rural ("O Fim e o Princípio") e até mesmo uma região metropolitana, como o ABCD paulista ("Peões"). Em várias entrevistas, Coutinho evidencia que o apreço pela localidade guarda consigo a tentativa de contar com a possibilidade de aprofundar o olhar, graças a diminuição da escala a ser analisada. A diminuição do campo de observação, frisa-se, não implica na aposta de encontrar uma comunidade, no sentido stricto. As formas de promover as seleções e as entrevistas dos sujeitos revelam atenção para com a complexidade do real. Em "Santo forte” (2002), por exemplo, observa Inácio Araújo (2013, p.556), temos oportunidade de constatar que a “a sua diversidade é grande o bastante para configurar uma espécie de representação em escala do que seja o Rio de Janeiro na virada para o século XXI”, a ponto de suscitar o reconhecimento de que a "amplitude da amostragem é desnorteante”. Trata-se por esse prisma de recusar o entendimento do lugar como simples demarcação específica existente na organização espacial e valorizar o entendimento das relações cotidianas tramadas pelas pessoas comuns no/em relação ao espaço que habitam. Nesse sentido, o lugar passa a ser visto segundo os olhos de afetos depositados por parte de quem o vive, pois abriga suas experiências, constituindo-se a partir disso num cenário que contém vidas e vidas vividas, portanto, temas de interesse dos filmes de Eduardo Coutinho, como ele próprio menciona: 18 Minha tese é a seguinte: o importante para qualquer pessoa - no Ocidente, pelo menos - é: origem, família, trabalho, amor, sexo, doenças, prazer, dinheiro, morte […] Essas são formas de viver. Você pode ser um gari na rua. Mas esse é o núcleo, começando pela origem. (RAMIA, 2013, p.316). Partindo dessa perspectiva, Coutinho se aproxima de Milton Santos, posto que ambos apresentam o lugar como sendo uma dimensão do espaço marcada essencialmente pela reprodução da vida humana. Tal reprodução, segundo o geógrafo (SANTOS, 1996), reflete as relações estabelecidas entre as instâncias macro e micro sociais da realidade, de modo a reafirmar as particulares de assimilação do primeiro pelo segundo, num movimento marcado pela incorporação e resistência, daí afirmar que o "lugar é o mundo, a sua possibilidade de realização” (1996, p.252). É tal concepção que motiva o geógrafo, em nítido protesto, a ressaltar que: A definição do lugar é, cada vez mais, no período atual, a de um lugar funcional à sociedade como um todo. E, paralelamente, através das metrópoles, todas as localizações tornam-se hoje funcionalmente centrais. Os lugares seriam, mesmo, lugares funcionais de uma metrópole. (SANTOS, 1993, p.90). Sem abandonar as reflexões sobre o estado e o território, Santos também destacou a significância do lugar como expressão espacial que abriga a vida cotidiana das pessoas, segundo a tensão existente entre modos de ser particulares e as forças econômicas e políticas constituintes da Globalização (SANTOS, 1996). É baseado em Milton Santos que pesquisadores dedicados ao ensino de Geografia ressaltam o lugar como conceito fundante para entendimento do espaço, caso de Helena Callai, que responde a pergunta "como ler o mundo”: Sem dúvida, partindo do lugar, considerando a realidade concreta do espaço vivido. É no cotidiano da própria vivência que as coisas vão acontecendo e, assim, configurando o espaço, dando feição ao lugar. Um lugar que “não é apenas um quadro de vida, mas um espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um papel revelador sobre o mundo” (Santos, 2000, p. 114). Ao partir de uma concepção de lugar, deve-se considerar que ele não se restringe aos seus próprios limites, nem do ponto das fronteiras físicas, nem do ponto de vista das ações e suas ligações externas, mas que um lugar comporta em si o mundo. “Os lugares, são, pois, o mundo, que eles reproduzem de modos específicos, individuais, diversos. Eles são singulares, mas também são globais, manifestações da totalidade-mundo, da qual são formas particulares” (idem, ibid. p. 112). (CALLAI, 2005, p.234-235 - grifos meus). Para Coutinho, a apreensão dos espaços deve ser feita com base no entendimento das vivências que abrigam e, ao mesmo tempo, o constituem. Mas existem em seus filmes aspectos materiais e político-econômicos que enfatizam o pertencimento 19 desses espaços aos limites de certos territórios e, portanto, as relações de poder estabelecidas numa escala maior. A ênfase não repousa nestes aspectos, mas naquilo que as pessoas fazem em/de seu microcosmo, a partir da relação de significação que estabelecem. Desta feita, os espaços de exclusão (considerando uma realidade mais ampla) são preenchidos por ficções capazes de garantir uma inteligibilidade simbólica que forma e informa sobre esses sujeitos, posto que oportuniza sentidos. Compreender o lugar sob esse angulo é oportunidade para questionar as imagens que insistem em associar os tempos atuais à globalização e, por conseguinte, à padronização/homogeneização generalizadas dos espaços. Essas mesmas imagens escondem a fragmentação perversa dos espaços gerada pela internacionalização cultural e econômica, bem como a constatação de que o mundo só existe materialmente no lugar e, como tal, deve ser entendido de maneira muito mais diversa e complexa, dada as dinâmicas sociais que caracterizam cada lugar. Explica-se, assim, o motivo de Milton Santos chamar atenção para a necessária distinção entre o que denomina por ordem do local e ordem do global: A ordem global funda as escalas superiores ou externas à escala do cotidiano. Seus parâmetros são a razão técnica e operacional, o cálculo de função, a linguagem matemática. A ordem local funda a escala do cotidiano, e seus parâmetros são a copresença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização com base na contiguidade. (SANTOS, 1996, p.339). O fato de Coutinho tomar como centro de seus filmes a fala, isto é, a língua na sua expressão mais dinâmica e individual (SAUSSURE, 2010; PÊCHEUX, 1997), pode ser considerado explicação para tratar o local próximo de certa definição do lugar. É na fala que encontram-se aspectos mais globais/estruturais da língua, como os valores, crenças, atitudes e símbolos, bem como as apropriações/particularizações desses aspectos por parte das pessoas. A fala comporta, ao mesmo tempo, temas que são amplos e maneiras pelas quais esses mesmos temas são interpretados pelas pessoas, se caracterizando, portanto, como expressões pelas quais os homens estabelecem relações dialógicas (portanto, criativas e construídas ao longo do tempo) com o mundo. Os personagens apresentados nos filmes de Coutinho provocam articulação entre o fora de campo e o campo do filme, ou seja, entre os espaços invisível e visível da obra (AUMONT, 1995). Nota-se que as falas desses personagens provoca a partilha de memórias que se desenrolaram/desenrolam nos locais em que viveram/vivem, sem o apoio de nenhuma imagem ilustrativa/de cobertura, daí a possibilidade de serem alvos de captura do imaginário pelos próprios espectadores. É a valorização das falas dos personagens que proporciona à Coutinho um domínio maior sobre suas obras, á medida 20 que "campo e fora de campo pertencem ambos, de direito, a um mesmo espaço imaginário perfeitamente homogêneo, que vamos designar com o nome de espaço fílmico ou cena fílmica." (AUMONT, 1995, p.25). Resultados obtidos Construir o entendimento da localidade associada à concepção de lugar, conforme exposto, parece ser tarefa fundamental na formação de professores dedicados ao ensino de História no Fundamental I (Anos Iniciais). isso porque permite entender que a abordagem deve ser a partir do local e não meramente do local, uma vez que seu estudo deve ser pautado no entendimento de sua particularidade e não em busca de uma suposta singularidade. Para tanto, cumpre promover esse estudo a contar das experiências promovidas pelas pessoas que vivem no local, o que permitirá captar a variedade de situações que comporta, daí a possibilidade, inclusive, de romper com visões monolíticas e/ou estereotipadas desses espaços. "Santo forte" é o filme que permite captar a favela naquilo que ela contém de multiplicidade de vivências religiosas. Depreende-se pelas imagens e pelas falas a presença cotidiana de temas que normalmente são associados às favelas, como a desigualdade social, a violência e o tráfico, mas o foco do filme oportuniza mergulhar num conjunto muito rico de crenças e práticas associadas ao campo do sagrado, por parte de seus moradores. A partilha feita pelos entrevistados à câmera revela um espaço marcado pelo trânsito e a sobreposição de fé por parte dos sujeitos, tendo em vista ocorrências que marcam suas próprias vidas. Com base em Michel De Certeau, estudiosas de "Santo forte" destacaram a relação existente entre ouvir os moradores e ressignificar os espaços da cidade: Pensando também, relacionado aos espaços, (Aterro do Flamengo e Vila Parque da Cidade) a questão da cidade e da realidade social da comunidade, para Michel de Certeau, o espaço urbano é palco de uma “guerra dos relatos” (CERTEAU, 2012, p.201), sendo que os grandes relatos das grandes mídias e dos discursos oficiais acabam por vezes, em esmagar ou silenciar os pequenos relatos de rua ou bairro. Certeau (2012) chama atenção para a urgência de retomar estes últimos, da construção da memória dos mesmos, que inclusive pode (ou deve) ser papel do historiador. E tudo isso, podemos perceber em Santo forte, à medida que Eduardo Coutinho escolhe gravar um documentário em uma área periférica do Rio de Janeiro, para tratar sobre religiosidades a partir das narrativas das próprias pessoas que creem e praticam, em um dia específico no qual as grandes mídias estão reportando e divulgando a Missa Campal das famílias (as que tem acesso) com o Papa. (SERAFIM; VIEIRA, 2020, p.397 - grifos meus). Em "Babilônia 2000”, Coutinho filmou num único dia, graças ao trabalho de cinco equipes, vozes dos morros do Chapéu Mangueira e da Babilônia, na cidade do Rio de 21 Janeiro, tendo como mote a pergunta sobre o que significava a passagem do ano de 1999 à 2000 (essa gravação ocorreu em 31 de dezembro de 1999). As equipe de filmagem percorrem a favela, interpelando de modo espontâneo seus moradores, nas próprias ruas ou em suas casas, de modo a construir imagens que destoam tanto dos cenários de violência quanto de vitimização impostos às favelas, em geral, pela mídia. Angela Torresan apresenta definição sobre o resultado dessa forma de produzir o filme "Babilônia 2000”, considerando a potencial representação que constitui: O vox pop em Babilônia 2000 não dá lugar a essa forma de autoidentificação por contraste ao outro do asfalto. Tal identificação com um arquétipo comunitário acontece com aqueles que moram na favela, claro. Mas é contextual e estrategicamente acionada em situações de reivindicações diversas, e não essencializadora de uma identidade de grupo fixa. Apesar e aparecer intermitentemente em algumas, em Babilônia 2000 é visível que essa questão não dá conta da profusão de história e papéis que vivem moradores e moradoras do morro, da complexidade desse storytelling. Ou seja, o filme vai além da visão que o próprio autor parece carregar, e que astutamente, não impõe nem aos sues interlocutores nem à montagem do filme. (TORRESSAN, GRUMBACH, 2019, p.22 - grifos meus). "Edifício Master" insere o bairro carioca de Copacabana no entendimento da dinâmica social da cidade moderna, apresentando as dificuldades vividas por seus moradores. À despeito da quantidade relevante de discursos produzidos pelo cinema, pela televisão e pela indústria da música sobre tal bairro, em geral, associando-o ao ideal de beleza natural e da possibilidade de vivência de relações amorosas idealizadas, Coutinho opta por ver e ouvir as falas de quem o habita, surgindo daí uma ruptura sobre seu entendimento midiático. De acordo com Michelle Sales, encontramos em "Edifício Master” a possibilidade de construir uma interpretação marcada pelo ato de: […] ler a cidade nas dobras (não diretamente através das imagens clichês) dos relatos, o filme escava as camadas de um palimpsesto (o próprio edifício) para encontrar cidades que se misturam entre: a memória e o desejo, ocultando cidades e construindo outras, imaginárias, difusas pelo pensamento esfumaçado de um idoso aposentado, de um imigrante recém-chegado, de uma prostituta apaixonada. Coutinho quer contar a história da cidade que não está contida na ‘imagem oficial’, quer revelar os limites da cidade, embaralhados pelas lembranças de um qualquer. Ao invés de preocupar-se com as formas geométricas da cidade, Coutinho opta por discorrer à cerca de cidades que foram ocultadas a partir do advento da civilização e modernização da sociedade carioca, cidades submersas, jogadas para ‘fora da cena’ pelos estratagemas do poder panóptico. (SALLES, 2010, p.125 - grifos meus). "Peões" destaca que o espaço do ABCD paulista é/foi destino de deslocamentos populacionais pelo território brasileiro e palco de agruras na vida de seus moradores, 22 para além das lutas políticas. Ao ouvir seus entrevistados, Coutinho ressalta certo contraste entre passado e presente, bem como entre as esferas pública e privada, de modo que o ABCD paulista é apresentado como palco das grandes mobilizações políticas que resultaram nas greves realizadas em fins da década de 1970 e início de 1980, bem como das experiências privadas que os peões ali viveram, por conta de situações como desenlaces amorosos, desemprego e relações com os filhos. Conforme observa grupo de estudiosos que analisou "Peões": O sentimento de melancolia possivelmente nasce da perturbação sentida pelo espectador em face da nostalgia manifesta por certos trabalhadores e dos devires e transformações vividas por eles, no deslocamento temporal de cerca de duas décadas que constitui os seus relatos […] Ao tempo que terminou, outros tempos se seguiram, possivelmente mais solitários e menos arrebatadores, relacionados às transformações sociais e econômicas, à intensificação do uso e tecnologias nas fábricas, mas também ao processo de envelhecimento vivido pelos protagonistas. (LOPES; CIOCCARI; TAPAJÓS, 2017, p.39-40) Em "O fim e o princípio" temos oportunidade de enxergar no sertão nordestino o cenário de uma vida social marcado por forte comunitarismo, sensibilidade e sabedoria popular, vividos pela expressividade da oralidade. Claudia Mesquita e Consuelo Lins (2014) potencializam essa interpretação do filme, ao destacar que nele encontramos uma comunidade de destino, um filósofo no sertão, alguém que reflete sobre a origem da linguagem e um conjunto rico e diverso de adágios populares que refletem o “saber corrido”, isto é, o conhecimento construído na vivência do mundo (e diferente do “saber lido”). Neste contexto, a pobreza da localidade ganha outro sentido: Quase sempre através de planos-sequências, alguns fazeres são apresentados em sua duração: Geraldo, pai de Rosa, tange o gado; um grupo de mulheres e crianças compõe uma pequena procissão que canta em louvor de Nossa Senhora; Mariquinha acende demoradamente o cachimbo com uma lamparina, ao pé do fogão de lenha; Zefinha, em dois planos de detalhe, fia o algodão, imagem que parece cifrar, ganhando a força de uma metáfora visual, o caráter artesanal da experiência sertaneja e da própria atividade de narrar. (MESQUITA, LINS, 2014, p.62 - grifos meus). A abordagem do local/lugar nos filmes de Coutinho se presta a reposicionar o sentido público construído em torno dos espaços. Uma vez que se tratam de obras cuja produção deriva da escuta de falas do Outro, o que surgem desses filmes é um conjunto de vivências que dotam os espaços visitados de complexidade responsável por inviabilizar a manutenção dos estereótipos existentes sobre eles. Nesse sentido, a abordagem é sempre associada à intenso exercício de ressignificação simbólica, operado pela partilha das vivências desses espaços por seus próprios moradores. Ouvindo e 23 assistindo esses personagens, aprendemos sobre suas vidas e, por conta disso, também sobre os espaços em que habitam, suas localidades, seus lugares. Conclusões A abordagem do local/localidade é de suma importância para o ensino de História a ser vivenciado no Ensino Fundamental I (Anos Iniciais), dado que oportuniza a construção de alfabetização histórica baseada no cotidiano. Contudo, estudos sinalizam para a existência de práticas educativas equivocadas quanto ao tratamento do tema, pois calcadas em concepções como a dos "círculos concêntricos" e a do “memorialismo”. Outros estudos, por sua vez, apontam caminhos para superação desses limites, defendendo ações como as práticas investigativas, a problematização das escalas, a cartografia social, o emprego de fontes diversas, a exploração das memórias da cidade e a significância da fundamentação teórica. É no rastro dos estudos que sugerem a superação dos limites da abordagem do local/localidade que se insere a apropriação dos "filmes de conversação" de Eduardo Coutinho na formação docente. Tratam-se de obras capazes de revelar a riqueza dos espaços sociais, graças ao fato de registrarem a partilha pública das experiências de vida de pessoas que habitam em favelas, edifícios, periferias de metrópoles e áreas rurais do sertão nordestino. Segundo essa visada, o local/localidade se aproxima da ideia de lugar, tal como definida pelo geógrafo Milton Santos. A contar dessa perspectiva, o local/localidade deixa de ser visto apenas como um marco espacial, apreendido de modo estereotipado, e passa a ser tratado como um lugar de memórias. Surge daí a oportunidade de perceber e refletir o local/localidade como sendo uma instância construída da acumulação desigual de tempo, considerando-se sua variação de ritmos. Visitadas pelo professor, tais memórias se tornam matéria-prima fundamental para construção de práticas educativas dedicadas ao ensino de História alicerçado ao vivido. Referências Filmes COUTINHO, Eduardo. (2001). Babilônia 2000. Brasil. 110 min. cor. COUTINHO, Eduardo. (2002). Edifício Master. Brasil. 110 min. cor. COUTINHO, Eduardo. (2006). O fim e o princípio. Brasil. 118 min. cor. COUTINHO, Eduardo. (2004). Peões. Brasil. 85 min. cor. COUTINHO, Eduardo. (1999). 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Embasamo-nos teoricamente na análise de obras de Janusz Korczak (1986, 1997), precursor dos direitos das crianças, com o intuito de averiguar as contribuições deste autor para pensar a criança, entendendo que esta é um sujeito em formação, que merece respeito, liberdade de expressão e amor. Analisamos ainda a concepção de educação e técnicas pedagógicas, para uma abordagem democrática e de autogestão para o desenvolvimento da autonomia moral, segundo Korczak (1997), que foram aplicadas no “Lar das Crianças”, orfanato que ele fundou e dirigiu. Alinhamos a prática emancipadora e amorosa de Janusz Korczak aos estudos direcionados por Jean Piaget (1932/1994) em suas pesquisas sobre o desenvolvimento do juízo moral na criança, apontando um caminho que una resolução de conflitos e o desenvolvimento da autonomia moral, sugerindo hipoteticamente como estratégia a aplicação do dispositivo caixa de cartas desenvolvido por Janusz Korczak. Seguimos neste trabalho buscando verificar as ações que vem acontecendo nas escolas, que buscam através do conflito trabalhar o desenvolvimento moral. Para tanto, utilizamos como metodologia a pesquisa teórica tipo bibliográfica com abordagem qualitativa (GIL, 2002; LAKATOS E MARCONI, 2004; FONSECA, 2002), em um recorte temporal no período de 2007 a 2019, que teve como objetivo identificar e revisar os artigos científicos brasileiros publicados em periódicos indexados nas bases Scielo, Capes e Google Scholar, para verificar como os estudiosos e pesquisadores têm analisado e discutido a resolução de conflitos nas instituições escolares brasileiras no período de 2007 a 2019. Este percurso nos leva a constatação da importância deste mailto:tatiane.nakahodo@unesp.com 27 trabalho na escola, compreendendo as ações ocorridas nesta instituição de Educação, e a necessidade de instrumentalização, auxílio e capacitação profissional dos professores/as que se sentem despreparados para agir diante da resolução de conflitos diários com os quais eles convivem, de forma a contribuir para o desenvolvimento moral de seus alunos/as. 2. Fundamentação teórica Henryk Goldszmit (polonês, pediatra, pedagogo e escritor), conhecido por seu pseudônimo Janusz Korczak, nasceu em Varsóvia em 22 de julho de 1878-1879, quando a Polônia se encontrava sobre domínio russo, em uma família da elite judaica integrada à sociedade polonesa; participou de 3 guerras, e lutou até seu último dia de vida pelos direitos das crianças. Faleceu em 10 de agosto de 1942, juntamente as crianças judias de seu orfanato “Lar das Crianças”, localizado no Gueto de Varsóvia, após marchar a frente delas e com elas em direção ao campo de extermínio de Treblinka. Janusz Korczak viu com seus próprios olhos e sentiu na sua pele o desamor e o temor existentes na guerra, o terror da orfandade de milhares de crianças nas ruas e o quanto seus direitos de infância lhe eram negados diante de tanta morte e miséria. Ao vivenciar essa realidade, Korczak sentiu que queria ir para além da área pediátrica, ele adorava estar com as crianças, gostava muito de ouvi-las, o que o impulsionou a dedicar- se aos estudos sobre a Educação, e tornar-se um pedagogo que acreditava na criança, em suas potencialidades, e lutava pela garantia de seus direitos tão negados. Diante deste idealismo educacional, ele fundou o orfanato para crianças judias de 7 a 14 anos e o dirigiu pautado nos princípios de auto-gestão democrática. No orfanato, o dispositivo Caixa de cartas era um dos instrumentos que abriam caminho e garantiam espaço para que as crianças do orfanato pudessem ouvir, dizer, expressar aquilo que sentiam mediadas pelo educador e pelo espaço de escuta. Na leitura dos escritos de Korczak nota-se que este dispositivo tinha um lugar de relevância, como um favorecedor do desenvolvimento da cidadania e da democracia no Lar para o aprendizado do diálogo, tendo por objetivo maior o desenvolvimento da autonomia moral dessas crianças e o direito delas de se expressarem em relação aos seus sentimentos (MARANGON, 2007). Na caixa de cartas as crianças depositavam suas cartas sobre conflitos, inquietações, questionamentos, pedidos de explicação, queixas, revelações e relatos de acontecimentos, coisas sobre as quais queriam falar, mas não encontravam naquele espaço movimentado tempo para falar ou tinham vergonha em dizer. 28 As crianças depositavam suas cartas na caixa buscando a mediação do educador na situação vivida, deixando uma margem de tempo para a reflexão de ambos, e após essa reflexão acontecia o diálogo com os envolvidos em grupo ou individualmente, no qual o adulto tinha o papel de mediador que auxiliava as crianças na construção do diálogo afetivo e reflexivo sobre o caminho para o entendimento daquilo, buscando a resolução daquele conflito interno ou externo da criança que precisava dizer. (KORCZAK,1997). Assim, esse tempo também servia para o educador, que num ambiente agitado e no convívio com muitas crianças precisava refletir, observar, ler com atenção o sentimento expresso por aquela criança que se dedicou a escrever, dando importância significativa ao que ela precisava dizer. A escrita da carta não impedia a comunicação oral, ao contrário, a tornava mais fácil, pois possibilitava ao educador mais tempo para dedicar parte do planejamento do seu dia às crianças que necessitavam de uma conversa longa e confidencial (KORCZAK, 1997). Na escola, pensamos que o trabalho com o dispositivo caixa de cartas, proporcionaria gradativamente o desenvolvimento da autonomia moral das crianças frente aos conflitos encontrados em seu cotidiano coletivo, desenvolvendo a resolução a partir da participação nas decisões sobre si com o outro, abrindo espaços para a escuta e diálogo, oportunizando a emancipação do pensamento moral, externalizando- os de forma autônoma e consciente, buscando assim reduzir os episódios de descontrole emocional causados pelo imediatismo impensado de soluções violentas, ocasionada pela falta de repertório em estratégias para soluções. Desse modo, exclui-se da parte do adulto as estratégias de submissão, coação e autoritarismo, que não valorizam o desenvolvimento moral da criança e colaboram para que se mantenha um comportamento heterônomo do indivíduo em seus espaços e convívios dentro da sociedade, possibilitando um ambiente que através de ações cooperativas e consequentemente democráticas, proporcione o trabalho com a educação em valores juntamente aos estudantes. Após conhecermos a relevância do dispositivo caixa de cartas proposto por Janusz Korczak no Lar das Crianças, como estratégia democrática e autônoma na resolução de conflitos, e vendo nela a possibilidade de um caminho potencializador para o trabalho no desenvolvimento da autonomia moral do aluno(a) na sala de aula, passemos então a aprofundar nosso olhar sobre essa possibilidade que vemos para superarmos as práticas predominantemente coercitivas e autoritárias frente aos envolvidos nos conflitos escolares, que não contribuem para o trabalho com a moralidade autônoma, mas reforçam a permanência na moralidade heterônoma que muitas vezes prevalece na fase adulta. 29 Porém, antes faz-se de suma importância que conheçamos mais profundamente como este trabalho sobre o desenvolvimento integral da criança, converge-se ao trabalho minucioso de Jean Piaget, que por meio da observação caracterizou o desenvolvimento da criança em diversas vertentes que estão interligadas, e aqui especificamente falaremos da contribuição do olhar de Piaget (1932, 1994) para o desenvolvimento do juízo moral, sendo relevante que entendamos como esse processo se realiza no sujeito. Janusz Korczak (1997) se posicionou em um enfrentamento ao desrespeito e desinteresse do adulto sobre todas as possibilidades que a criança pode ter, se for conhecida em seu desenvolvimento e compreendida em suas limitações, na inteiração social com seus pares. Como a criança poderia desenvolver e construir seus próprios conceitos morais, se ela não tinha espaço para ser? Como poderia ela entender o que o outro sente, se este não tinha espaço para dizer? Como desenvolver sua autonomia moral se ela está sempre sendo silenciada, ignorada em seus sentimentos, sem caminhos que contribuam para que ela aprenda a resolver suas situações de conflito, sem a prática instintiva da reação violenta imediata? (KORCZAK, 1997). Neste sentido, percebemos como Korczak (1997) realizava seu trabalho por meio de uma minuciosa e complexa observação, objetivando o desenvolvimento da moralidade no sujeito e o seu alcance integral com base em uma autogestão na resolução de conflitos. Podemos então buscar o alinhamento com a teoria construtivista que valoriza o interesse, a participação dos alunos nas decisões, a cooperação, a construção das regras em conjunto, dentre outros fatores. Jean Piaget (1896 – 1980), fundador da teoria construtivista, com o seu rigor de pensamento, honestidade científica e visão inovadora sobre a evolução intelectual da criança, era um admirador do trabalho desenvolvido por Janusz Korczak, e assim como ele, estudava o desenvolvimento em seus aspectos cognitivo, social, moral e afetivo. Jean Piaget (1932/1994) dedicou-se a realizar pesquisas e escreveu uma obra específica sobe o tema, intitulada “O Juízo Moral na Criança” no qual descreveu o desenvolvimento moral na criança pelo caminho psicogenético, pautando-se no princípio do autogoverno e destacando, segundo Vivaldi e Vinha (2014, p.265): “[...] a necessidade da ação, vivência e experimentação por parte dos sujeitos, necessitando também de um esforço de caráter, bem como de um conjunto de condutas morais que regem sua convivência [...]”. Dessa forma, Piaget (1932/1994) buscou observar como a criança estabelece ou desenvolve regras sem a intervenção do adulto, porém pautados sobre os primeiros ensinamentos que o adulto lhe ensinou. Dedicou-se a pesquisar sobre a evolução da prática e da consciência da regra ao longo das fases do desenvolvimento cognitivo na criança, afirmando que as relações sociais são essenciais para a construção da 30 autonomia, passando por momentos do desenvolvimento moral, que são classificados como anomia, heteronomia e autonomia. Neste processo caracterizam-se dois tipos de respeito existentes: o respeito unilateral que provém da regra coercitiva, e o respeito mútuo que provém da regra racional. Ambos com origem em duas categorias interiores, integrantes e essenciais para o desenvolvimento destes: coação e cooperação. Segundo Piaget (1932, 1994) é preciso entender que os valores morais são construídos de dentro para fora, na interação com o meio social, e tal desenvolvimento decorre da qualidade de relações que o sujeito vivencia em seu meio, se estas são ou não contribuintes para a superação e avanço de cada momento desse desenvolvimento moral. Rego (2003), destaca que Piaget não aceitava a ideia do bem moral como algo externo ao sujeito, afirmando que tanto o bem externo como o dever derivam do sentimento do “sagrado”, que é definitivo e necessário ao mesmo tempo, sendo a sociedade um reflexo disso. Neste sentido, a coação fornece um modelo a ser seguido, com origem no sentimento de obrigatoriedade e de dever, enquanto a cooperação tem como sentimento o bem, e sua característica marcante é outra: reciprocidade, onde o ponto de vista dos sujeitos, que são diferentes se coordenam. Concluímos neste subcapitulo, que tanto Janusz Korczak (1997) quanto Piaget (1932/1994) buscaram a partir da observação e de seus estudos aprofundados pelo olhar, romper com a tradição de considerar o desenvolvimento do juízo moral como uma simples internalização de valores através da aprendizagem. Ambos destacam que esse percurso é muito influenciado pelo ambiente socioafetivo, e que a qualidade da interação social pela qual a criança vivencia suas experiências e trocas com seus pares, favorece seu desenvolvimento. Nota-se que a forma que essas relações acontecem, seja de respeito unilateral e coação, ou respeito mútuo e cooperação, contribuem significativamente para a construção da autonomia moral, ou manutenção do sujeito heterônomo que chega muitas vezes à idade adulta sem alcançar o desenvolvimento pleno da moralidade em seu interior, como temos visto em nossa sociedade contemporânea. Desse modo, Araújo (2001) insere a escola nessa discussão como um local privilegiado, pois é nesse lugar que a criança realiza trocas com seus pares, participa e convive com sujeitos da mesma faixa etária em seus primeiros grupos sociais, com quem mantém relações onde não estão presentes a influência e/ou autoridade, fator essencial para o desenvolvimento da cooperação, visto que a escola também é um lugar da interação social entre crianças e adultos, porém em uma relação que na maioria das vezes, prevalece a autoridade e preponderância. Para que essa relação seja construtiva, precisa-se ter a possibilidade considerável de que esses elementos sejam reduzidos nas 31 relações adulto/criança a partir do respeito mútuo, proporcionando o sentimento de protagonismo na participação efetiva de regras e decisões na sala de aula, em um ambiente escolar cooperativo, no qual em atividades grupais que favorecem a reciprocidade, as crianças têm oportunidade constante de fazer escolhas e podem expressar-se livremente. 3. Procedimentos metodológicos Este trabalho se caracteriza por uma pesquisa qualitativa de natureza básica, que busca gerar novos conhecimentos para o avanço da ciência sem aplicação necessária ainda que desejável, e com procedimentos através da pesquisa bibliográfica exclusivamente teórica (FONSECA, 2002; LAKATOS; MARCONI, 2004). Reunindo estudos e pesquisas publicados em artigos científicos brasileiros em periódicos indexados nas bases Scielo, e estudos completos nas bases Capes e Google Scholar, buscamos verificar como os estudiosos e pesquisadores têm analisado e discutido a resolução de conflitos nas instituições escolares brasileiras em um recorte temporal de 2007 a 2019, a partir da palavra chave “resolução de conflitos” no ambiente escolar. Na continuação de nossa pesquisa, selecionamos nas mesmas bases de referência a palavra-chave “caixa de cartas” neste mesmo recorte temporal, e não encontramos nenhum trabalho que fizesse relação com esse conceito, mostrando-nos o quanto se faz importante a divulgação desse dispositivo nos meios educacionais, auxiliando a prática docente democrática e emancipatória no contexto escolar. Também foi realizada uma pesquisa de revisão bibliográfica sobre o autor da caixa de cartas Janusz Korczak, que buscou por meio do respeito à criança formar um sistema de educação democrático que a envolvesse com compreensão e responsabilidade na participação de tudo que se referisse a ela própria. Realizamos para além da revisão dos artigos, uma pesquisa bibliográfica para fundamentação teórica em autores de referência quanto ao desenvolvimento da autonomia moral em Piaget (1932/1994). Neste trabalho, dentre os vários tipos de pesquisa qualitativa que se preocupam com aspectos da realidade que não podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais, iremos nos apoiar na pesquisa bibliográfica, que é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos em pesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de fontes bibliográficas, em um estudo exploratório a partir de artigos científicos, publicações periódicas e livros de referências (GIL, 2002; LAKATOS; MARCONI, 2004; FONSECA, 2002). A pesquisa bibliográfica de fontes secundárias, abrange toda bibliografia já tornada pública em relação ao tema de estudo, a bibliografia pertinente oferece meios para definir, resolver não somente problemas já conhecidos, 32 como também explorar novas áreas onde os problemas não se cristalizaram suficientemente, e têm por objetivo permitir ao pesquisador o reforço paralelo na análise de suas pesquisas ou manipulação de suas informações. Desta forma, a pesquisa bibliográfica não é mera repetição do que já foi dito ou escrito sobre certo assunto, mas propicia o exame de um tema sob novo enfoque ou abordagem, chegando a conclusões inovadoras (GIL, 2002; LAKATOS E MARCONI, 2004; MANZO, 1971). Discussão Em nossa pesquisa nas bases de dados Scielo, Capes e Google Scholar no período de 2007 a 2019 com a palavra-chave “resolução de conflitos”, foram encontrados 11 artigos, sendo que 4 foram produzidos no Estado de São Paulo, 1 em parceria com Minas Gerais, 1 em Minas Gerais, 2 no Rio Grande do Sul, 1 no Paraná, 1 no Ceará e um 1 no Rio de Janeiro durante esse período. Apenas 6 artigos no período analisado, sendo 3 no Estado de São Paulo, relataram práticas escolares consideradas como favoráveis à construção da autonomia, enfocando principalmente o trabalho com o diálogo para o autoconhecimento, o conhecimento do outro e a participação ativa na organização do processo da resolução de conflitos. No quadro 1 abaixo, podemos visualizar todos os artigos encontrados na base de dados: Quadro 1 – artigos selecionados na pesquisa bibliográfica para o presente trabalho. AUTOR (A) TÍTULO ANO PALAVRA- CHAVE LOCALIZAÇÃO BASE DE DADOS Cristiane Vilhena de Souza; Kátia Paulino dos Santos Desafios na Resolução de Conflitos no ambiente escolar: práticas restaurativas na educação 2019 Conflitos; violência; práticas restaurativas; políticas educacionais; Ceará Google Scholar Marisa Cosenza Rodrigues; Jaqueline Pereira Dias; Márcia de Fátima Rabello Lovisi de Freitas Resolução de problemas interpessoais: promovendo o desenvolvimento sócio-cognitivo na escola 2010 Resolução de problemas interpessoais; desenvolvimento sociocognitivo; promoção de saúde. Minas Gerais Scielo Cristina Satiê de Oliveira Pátaro Escola e comunidade: resolução de 2013 Escola; Comunidade; Resolução de conflitos; Educação Paraná Google Scholar 33 conflitos e contribuições para a formação moral moral; Álvaro Chrispino Gestão do conflito escolar, da classificação dos conflitos aos modelos de mediação. 2007 Violência escolar; Conflito escolar; Mediação do conflito escolar; Rio de Janeiro Scielo Diana Leonhardt dos Santos; Andressa Carvalho Prestes; Lia Beatriz de Lucca Freitas Estratégias de professoras de educação infantil para resolução de conflitos entre crianças 2014 Desenvolvimento moral; conflito; educação Infantil; Rio Grande do Sul Scielo Ivonte Afonso Jodar; Lúcio Jorge Hammes Formação docente e a mediação de conflitos na escola 2018 Docência; Violência na escola; Conflitos; Rio Grande do Sul Google Scholar Maria Isabel da Silva Leme; Alysson Massote Carvalho Opinião dos professores e resolução de conflitos por pré- adolescentes 2012 Conflito; estratégias; percepção; professores; escola; São Paulo Minas Gerais Capes Ulisses F. Araújo Resolução de conflitos e assembleias escolares 2008 Democracia escolar; assembleias escolares; resolução de conflitos. São Paulo Google Scholar Sônia Maria Pereira Vidigal; Aluani Tordin de Oliveira Resolução de Conflitos na escola: Um desafio para o Educador 2013 Conflitos interpessoais; Autonomia; Educação. São Paulo Capes Júlia Neves Ferreira; Stephanie Lee Basile Barboza Caseiro; Luciana Aparecida Nogueira da Cruz. Resolução de Conflitos: concepções e práticas de professores dos anos iniciais do ensino fundamental 2017 Resolução de conflitos; Desenvolvimento moral; Ensino Fundamental; Anos Iniciais; Moralidade; São Paulo Google Scholar Angela Maria Martins; Cristiane Machado; Ecleide Cunico Furlanetto. Mediação de conflitos em escolas: entre normas e percepções docentes 2016 Política Educacional; Mediação de Conflitos Escolares; Trabalho Docente; São Paulo Scielo Fonte: autora 34 Cabe aqui ressaltar a variação do conceito resolução de conflitos que encontramos nas pesquisas realizadas. Podemos observar que em alguns momentos a resolução de conflitos é nomeada como: mediação de conflitos, gestão de conflitos e resolução de problemas interpessoais. É importante salientar que sobre o dispositivo caixa de cartas nada foi encontrado durante as pesquisas nas bases de dados Capes, Scielo e Google Scholar. Apesar de ser um número reduzido, a análise desses artigos permite observar o modo como esse conceito vem sendo discutido no campo relativo às pesquisas e ações sobre resolução de conflitos na escola, evidenciando os/as principais autores/as utilizados, temas abordados e perspectivas adotadas. Nesta análise dos artigos podemos observar três linhas de pesquisa distintas que têm como foco a resolução de conflitos escolares: 1) resolução de conflitos: concepções e relação com a formação e a práxis docente; 2) conceitualização do conflito, estratégias e possibilidades de intervenções na escola; 3) resolução de conflitos como caminho para o desenvolvimento da autonomia moral dos estudantes, partindo de estudos de Jean Piaget. No que se refere ao grupo 1 “resolução de conflitos: concepções e relação com a formação e a práxis docente”, constatou-se o despreparo e a insegurança verificados nas pesquisas, e citado várias vezes pelos professores quando estes precisam atuar frente à resolução de conflitos escolares, de forma a desenvolver a autonomia moral dos estudantes em todas as fases em que ele se encontra inserido na instituição escolar. Demonstrando o quanto esses profissionais carecem de momentos de formação para que haja um espaço de reflexão e capacitação sobre a prática construtiva na resolução de conflitos. No que se refere ao grupo 2 dos artigos pesquisados, que intitulamos: “conceitualização do conflito, estratégias e possibilidades de intervenções na escola”, encontramos em Chrispino (2007) uma ampla conceitualização sobre o que é o conflito dentro de diversas categorias pesquisadas e elencadas por ele, e mais detalhadamente o que é conflito na escola. No que se refere ao grupo 3, que denominamos “resolução de conflitos como caminho para o desenvolvimento da autonomia moral dos estudantes, partindo dos estudos de Jean Piaget sobre o juízo moral”, identificamos uma única abordagem objetiva sobre esse direcionamento, e chegamos ao ponto que motivou nossa pesquisa bibliográfica: saber como este olhar se apresenta nas escolas atualmente. Constatamos então a escassez de publicações que abordam um olhar explicitamente voltado para o trabalho da resolução de conflitos, consolidado com a evolução da moralidade e pautado na teoria do juízo moral de Piaget (1932, 1994). 35 Sabemos que podem haver mais artigos nas bases de referências que tenham realizado esse estudo, porém encontramos no período através da nossa palavra-chave “resolução de conflito” somente o artigo de Vidigal e Oliveira (2013), que abordaram a ausência de repertório nas escolas para agir diante dos conflitos de forma a contribuir para o desenvolvimento moral do estudante, partindo do conhecimento do desenvolvimento humano e utilizando elementos da teoria construtivista em uma prática pedagógica mais crítica e coerente, que compreenda as possibilidades da atuação do professor. Nessa discussão sobre os dados observados nos estudos apresentados, concluímos que devido a uma lacuna existente nos cursos de formação, os professores desconhecem o potencial de suas ações e o percurso do desenvolvimento moral de seu aluno(a), e que desconhecendo estratégias desse caminho, sente-se inseguros frente à ausência de repertório, não compreendendo a grande relevância do seu papel em uma prática democrática reflexiva e crítica frente a resolução de conflitos, apesar dessa ser uma fala recorrente sobre o trabalho do profissional de educação (VINHA; TOGNETTA, 2009, 2014). Nota-se que muitas vezes o professor age intuitivamente, e sobrecarregados com a demanda de conteúdos obrigatórios e cobranças externas, sentem que precisam priorizar suas frentes de trabalho, delegando a terceiros seu papel emancipador na educação moral, atentando-nos para a percepção de políticas públicas que, funcionando ou não, caminham para uma judicialização dos conflitos escolares, terceirizando a resolução de conflitos inerentes ao convívio social à pessoas e sistemas que desconhecem as particularidades do ser histórico e social do aluno(a) (CHRISPINO, 2007). As várias estratégias encontradas nos artigos somente funcionarão nas instituições escolares se mudarmos o olhar sobre o conflito, se deixarmos de ver o conflito como algo perigoso, amedrontador, afrontador. O conflito provém de divergentes opiniões e interpretações, e se a escola está repleta da diversidade presente em nossa sociedade reunindo estudantes diferentes, certamente o conflito se instalará (CHRISPINO, 2007). Sendo o conflito inevitável, e se a escola tem por objetivo a formação de sujeitos éticos, autônomos e críticos, vemos nos estudos sobre a resolução de conflitos uma importante perspectiva de trabalho para o desenvolvimento da autonomia moral (PÁTARO, 2013). Desta forma, tendo em vista o estudo dos artigos da formação docente frente as presentes formas de resolução de conflitos, este trabalho buscou em Janusz Korczak (1986, 1997), a referência de uma educação humanizadora em contextos nada 36 favoráveis, mas que olha para o que a criança é, que garante seus direitos e a respeita, possibilitando um espaço coletivo e democrático a fim de que ela simplesmente seja repletas de seus mundos, e que humanas que são, vivem, sentem, pensam e agem de diferentes formas, sendo respeitadas em seu direito de dizer, contestar, discordar. Cabe então ao profissional da educação, adulto que é, vendo-se como alguém que ao ensinar também aprende, crie possiblidades e espaços para que esse educando(a) possa se desenvolver plenamente, e que partindo daquilo que seu aluno(a) é, na convivência com seus pares, pode vir a ser (FREIRE, 1996). Todavia, a construção de uma convivência respeitosa e de uma gestão cooperativa de conflitos requer a imprescindível preparação do corpo docente, com a formação dos profissionais da escola através de estudos e análises que possibilitem e sustentem as ações no dia a dia da escola (VINHA; TOGNETTA, 2014). Piaget (1932, 1994), defende que o professor seja um colaborador nesse processo, acreditando que quanto mais as crianças forem capazes de negociar suas regras, melhor compreendem as regras da sociedade, e mais preparadas estarão para o exercício da cidadania. Sendo assim, as relações que se estabelecem deve levar o sujeito a refletir sobre as regras, produzindo consenso sobre elas e levando-o progressivamente a um comportamento autônomo, que consiste segundo Piaget (1994, p.265): “[...] compreender o porquê das leis que a sociedade nos impõe, e que não somos livres em recusar [...]”. Conclusões Constatou-se que apesar de muitas escolas trabalharem com práticas morais, e apesar de haver pesquisas sendo realizadas tanto na área da psicologia quanto na educação que podem ser identificadas em publicações, teses e dissertações, ainda sim apresentam poucos estudos brasileiros que são publicados em periódicos descritos e identificados com a temática resolução de conflitos. Sobre as pesquisas bibliográficas realizadas nas bases com a palavra-chave “caixa de cartas” não houve resposta nas pesquisas, entendendo-se que esse dispositivo, que pode ser relevante na sala de aula instrumentalizando o professor e atuando como facilitador do espaço para o diálogo na resolução de conflitos, em uma prática democrática que colaboraria para o desenvolvimento da autonomia moral dos alunos, precisa ser aplicado e investigado quanto a sua contribuição prática na escola. Pode-se notar na análise dos artigos que na maioria das vezes os professores não se sentem preparados teoricamente e nem instrumentalizados na prática para agir diante dos conflitos que acontecem em sala de aula e na escola, o que provoca um sentimento de insegurança que limitam suas ações quanto ao trabalho acerca do 37 desenvolvimento da autonomia moral, não sabendo como usar os momentos de conflitos como oportunidades para atuar democraticamente, pautados no respeito mútuo, na empatia, no diálogo com compreensão e participação da voz de todos que queiram exercer seu direito de dizer e de escutar . Considerando tudo o que vimos em pesquisa teórica de literatura até aqui e tudo que foi verificado em nossa pesquisa bibliográfica nas bases Capes, Scielo e Google Scholar, sugerimos o trabalho com a formação dos professores para que se sintam capacitados para atuar de forma significativa, e indicamos como pesquisa hipotética a continuação deste estudo com o dispositivo Caixa de Cartas, agora como pesquisa de campo para coletas de dados sobre sua efetiva colaboração para o desenvolvimento da autonomia moral como dispositivo democrático de mediação na resolução de conflitos. PRINCIPAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS KORCZAK, Janusz. Como amar uma criança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. DALLARI, de A. Dalmo; KORCZAK, Janusz. O direito da criança ao respeito. GrupoEditorial Summus, 1986. PIAGET, Jean. O juízo moral na criança. Grupo Editorial Summus, 1994. REGO, Teresa Cristina. Memórias de escola: Cultura escolar e constituição desingularidades. Editora Vozes, 2003. ARAÚJO, Ulisses F. O ambiente escolar cooperativo e a construção do juízo moral infantil: sete anos de estudo longitudinal. ETD-Educação Temática Digital, v. 2, n. 2,p. 1-12, 2001. Disponível em:< https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/1067>. Acesso em: 29 dez. 2020. CHRISPINO, Álvaro. Gestão do conflito escolar: da classificação dos conflitos aos modelos de mediação. Ensaio: avaliação e políticas públicas em educação, v. 15, n. 54, p. 11-28, 2007. Disponível em: <40362007000100002&script=sci_arttext> Acesso em: 08/09/2020. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática pedagógica.São Paulo: Paz e Terra. 1996. MARANGON, Ana Carolina Rodrigues. Janusz Korczak, precursor dos direitos da criança: Uma vida entre obras. São Paulo: Unesp, 2007. PÁTARO, Cristina Satiê de Oliveira. Escola e comunidade: resolução de conflitos e contribuições para a formação moral. Revista Educação e Cultura Contemporânea, v. 10, n. 20, 2013. Disponível em: http://periodicos.estacio.br/index.php/reeduc/article/view/271> Acesso em:08/09/2020 VINHA, Telma P.; TOGNETTA, Luciene RP. Os conflitos interpessoais no Brasil e asviolências escondidas. International Journal of Developmental and Educational Psychology, v. 7, n. 1, p. 323-331, 2014. Disponível em: < https://www.redalyc.org/pdf/3498/349851791033.pdf> Acesso em 28/12/2020 VINHA, Telma Pileggi; TOGNETTA, Luciene Regina Paulino. Construindo a autonomia moral na escola: os conflitos interpessoais e a aprendizagem dos valores. Revista Diálogo Educacional, v. 9, n. 28, p. 525-540, 2009. Disponível em: < https://periodicos.pucpr.br/index.php/dialogoeducacional/article/view/3316> Acesso 29/12/2020. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/1067%3e https://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0104-40362007000100002&script=sci_arttext http://periodicos.estacio.br/index.php/reeduc/article/view/271 https://www.redalyc.org/pdf/3498/349851791033.pdf https://periodicos.pucpr.br/index.php/dialogoeducacional/article/view/3316%3e 38 A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS E BIOLOGIA E A BUSCA DA CURIOSIDADE EPISTEMOLÓGICA EM FREIRE Maria Gorete TEIXEIRA, E.M.E.F. Luiz Tácito Virgínio dos Santos Paulo César GOMES, Universidade Estadual Paulista – Unesp Renan Nascimento CARDOSO, Universidade Estadual Paulista – Unesp Agência financiadora: Capes/CNPq Eixo temático 1: Políticas e práticas de formação inicial de professores da Educação Básica pc.gomes@unesp.br Resumo Apresentamos reflexões preliminares acerca do processo formativo de estudantes de um curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da Unesp vinculados ao Programa Residência Pedagógica durante o período de isolamento social desencadeado pela pandemia do Sars-CoV-2 em 2020 e 2021. Buscamos, à luz da Pedagogia Libertária proposta por Freire (2021a; 2021b; 2021c) e de autores como Laval (2019), Saviani (2020) e Santos (2020), elaborar um texto no qual a leitura da Educação e do próprio processo educativo, enquanto compromisso ético-político-social, perpassa o próprio papel e responsabilidade na e da formação de formadores. A partir da leitura de diferentes livros da obra de Freire, em nossa proposta formativa dialogamos com professores que já atuam no ensino de ciências e biologia e com licenciandos que estão na segunda metade do curso de Ciências Biológicas. Trata-se de uma pesquisa qualitativa em educação na qual consideramos na coleta de dados o texto extraído da participação oral nos encontros e as conversas via chat, que foram analisados a partir da proposta de Análise Textual e Discursiva. Os resultados sugerem que o despertar do educador em formação inicial ou continuada para a função social da escola e do próprio papel político e social do educador frente a mudanças históricas e contemporâneas exige dialeticamente: distanciamento teórico e reflexão sobre a realidade concreta da escola. As atividades mediadas pelas tecnologias da comunicação e informação, apesar das limitações, contribuíram significativamente para o avanço das discussões acerca da própria formação bem como da proposta de Educação Libertária em Freire. Palavras-chave: Formação de professores de Biologia e Ciências, Perspectiva Crítica, Educação Libertária. 1. Introdução Neste artigo apresentamos reflexões acerca do processo formativo de estudantes de um curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da Unesp, todas, todos e todes vinculados ao Programa Residência Pedagógica durante o período de isolamento social desencadeado pela pandemia do Sars-CoV-2 em 2020 e 2021. A formação docente para o trabalho educativo em ciências e biologia não deve estar desassociada da reflexão mailto:pc.gomes@unesp.br 39 sobre a prática pedagógica que esteja a favor da emancipação do ser dos jovens professores em formação, aliás, “formar é muito mais que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas” (FREIRE, 2021a, p.13). Freire (2021a) destaca que, por algum tempo, ele próprio, foi um “observador ‘acinzentadamente’ imparcial” (p.14), seguro, objetivo, de acontecimentos e de fatos – o que em geral, prossegue, faz com que induza o observador a erro, erro por absolutizar um dado ponto de vista, nem sempre amparado pela razão ética. A formação do educador necessariamente passa pela rigorosidade ética, a qual não serve aos interesses fluidos do mercado e nem ao cinismo do pensamento neoliberal que condena – com naturalidade – os pobres à pobreza crônica e à miséria intelectual, numa lógica que condena o professor a fazer com que o educando se adapte à realidade, sobreviva a ela, num mero treino técnico que possibilite minimamente a essa adaptação. A formação de professor trata de processo que considera a pessoa do educando como inacabada, “mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma presença no mundo, com o mundo e com os outros” (FREIRE, 2021a, p.17). O compromisso ético-político da formação do professor de ciências e biologia passa pelo exercício e esforço teórico dos formadores de formadores de compreensão da realidade histórico-político-social na qual estamos todas e todos inseridos e de seu próprio papel e responsabilidade na formação de pessoas. O ato de ensinar, além de ser prazeroso, exige compromisso daquele que ensina (e ao mesmo tempo aprende), daquele que forma pessoas à medida que se forma, exige amorosidade, competência científica e criatividade (FREIRE, 2021b). O ensino de biologia e ciências é marcadamente contextualizado pelo escolanovismo, tecnicismo e mesmo pelo modelo de ensino tradicional que priorizam a formação de competências e habilidades em detrimento dos conteúdos teóricos, priorizam o saber fazer e escamoteiam o ser. Para Freire (2021b) trata-se de uma falsa promessa da qual testemunham a formação de cidadãos livres, críticos e criativos. Segundo o autor, o tempo da Educação é maior do que um mandato político, assim, prédios escolares não são tão atrativos enquanto grandes obras políticas – como gatilho de campanha eleitoral – quanto praças, viadutos e túneis . O papel da escola e do1 educador demanda a emancipação do aprendiz, do despertar de sua consciência crítica e responsabilidade social na fiscalização do Estado e no cumprimento de deveres constitucionais. Em geral, há formadores de formadores que mantém a crença de uma 1 Certa vez, na Região Nordeste, questionei um morador sobre a ausência do saneamento básico e a resposta foi a seguinte: “Os políticos daqui acham que isso não vai dar voto, pois fica tudo debaixo da terra e não dá vista”. 40 educação neutra, anistórica e até apolítica. Vejamos como o filósofo Paulo Ghiraldelli sintetiza esse aspecto. A educação é uma prática. A pedagogia é a sua teoria normativa. A filosofia da educação é a sua teoria mais ampla, menos normativa. Eis a tríade: educação, pedagogia e filosofia da educação. Elas se colocam conjuntamente no Ocidente. Não há educação sem alguma pedagogia e não há pedagogia sem alguma filosofia da educação. A tríade é irmanada. Portanto, falar em neutralidade sempre é alguma coisa que falamos de todos os elementos da tríade. Dizer que não há educação neutra é dizer que não há pedagogia ou filosofia da educação que são neutras. Elas são sempre engajadas, são políticas, são derivadas de interesses, e esse interesses são classistas (GHIRALDELLI, 2021, n.p.). A crítica neoliberal ao pensamento progressista o denomina de ideológico – o discurso ideológico está presente em quaisquer formas e expressão do pensamento humano, assim como no pensamento neoliberal e em sua lógica de racionamento e escassez de recursos investidos na Educação. De outro modo, um prevê-se um mínimo de investimento com um máximo de qualidade, eficiência e produtividade – ao menos no discurso, igualmente ideológico, que traz consigo um modelo de expressão do pensamento que atende exclusivamente aos interesses da classe dominante e de quem está no poder. O movimento Escola sem Partidos expressa outro viés desse pensamento neoliberal num demagógico discurso em prol de uma neutralidade (OLIVEIRA, MARIZ, 2019), no qual existiria – numa fala mítica – o argumento de que a Educação deveria ser neutra. Nenhuma Educação não é neutra (FREIRE, 2021a). Na formação de professores à luz da Pedagogia Libertária investida por Freire em seu legado e livros publicados, percebe-se a necessidade de despertar a consciência de classe do professor e da professora em formação para realidade concreta das escolas públicas, do meio onde elas estão inseridas, das políticas e gestão impostas, das condições sociais que implicam, em muitas vezes, uma condição indigna para a maioria desses estudantes e suas famílias. Parafraseando Freire (2021a), a quem interessa esse descaso com a Educação nacional? Qual ética de classe e quais interesses estão envolvidos com a má gestão do dinheiro público nesse descaso histórico com a Educação brasileira? A respeito desse posicionamento, Freire (2021a) é enfático: Minha presença de professor, que não pode passar despercebida dos alunos na classe e na escola, é uma presença em si política. Enquanto presença não posso ser uma omissão, mas um sujeito de opções. Devo revelar aos alunos a minha capacidade de analisar, de comparar, de avaliar, de decidir, de optar, de romper. Minha capacidade de fazer justiça, de não falhar à verdade. Ético, por isso mesmo, tem que ser o meu testemunho (FREIRE, 2021a, p.96, grifos nossos). 41 A história recente política do Brasil vem sendo marcada por essa incapacidade ética, da marca das injustiças sociais, da incapacidade ética de gestão da coisa pública, das Fake News e da desinformação. De forma coerente, a (não) gestão do governo Bolsonaro advoga de forma consistente com o projeto neoliberal para a Educação nacional, na qual a Educação seja privilégio de poucos, daqueles que efetivamente possam pagar por ela. Acerca desse projeto neoliberal de desmonte da Educação nacional, fica evidente a proposta do governo Bolsonaro para a Educação, que teve como meta já no primeiro ano a privatização do acesso com o projeto “Future-se” (PL 3076/2020, Projeto de Lei) do então ex-ministro Weintraub, bem como das falas equivocadas do atual ministro Milton Ribeiro . Saviani (2020) salienta que talvez o pastor2 presbiteriano Milton Ribeiro dê cabo desse projeto de desmonte. Assim, o que parece mais provável é que, detendo alguma competência técnica diferentemente de seus dois antecessores, poderá ter mais êxito na política de desmonte da educação já que, tanto Velez Rodriguez como Weintraub, em razão das sucessivas trapalhadas, diante da resistência enfrentada, não conseguiram avançar muito no processo de desmonte, que é a meta do governo Bolsonaro (SAVIANI, 2020, p.16). Dessa forma, lembramos que a lógica presente na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), no Currículo Paulista (SÃO PAULO, 2020), nas Diretrizes Curriculares para os cursos de Ciências Biológicas (Resolução CNE/CES 7, de 11/03/2002) (BRASIL, 2002) e no Novo Ensino Médio (BRASIL, 2018) é una, monolítica para a formação de professores, isto é, a principal função da escola é o treinamento, adestramento, o desenvolvimento de competências e habilidades, o pragmatismo do saber fazer em detrimento do ser, no qual o poder da escolha (do cliente) é levado ao seu extremo visando um dado “protagonismo na construção de seu projeto de vida” (BRASIL, 2018). Esse projeto de escola esvaziada de seus conteúdos, de saberes que necessariamente deveriam estar articulados a prática social (e ao mundo de verdade com suas contradições históricas e lutas de classes), de escola de adestramento de pessoas e da formação de competências mensuráveis atende a interesses obscuros. As principais justificativas para as reformas estão pautadas na estagnação de índices da Educação, 2 Milton Ribeiro em entrevista divulgada em 23/ago/2021: “A universidade, na verdade, ela deveria ser para poucos, nesse sentido de ser útil a sociedade” e “Acho justo, considerando que os pais desses meninos aí, tidos como ‘filhinhos de papai’ são aqueles que pagam os impostos no Brasil e que sustentam, bem ou mal, sustentam a universidade pública”. “Milton Ribeiro diz que diploma universitário não adianta porque não há emprego”. Jornalismo TV Cultura Em web: https://www.youtube.com/watch?v=offt3egkG6M Acesso em 10 nov.2021. https://www.youtube.com/watch?v=offt3egkG6M 42 em taxas de abandono/evasão e reprovação, na baixa qualidade do ensino ofertado e até mesmo no excesso de disciplinas ofertadas. É a lei dos mercados que opera nas escolas, sejam elas, públicas ou particulares. Em geral, os interesses dos mercados giram em torno do lucro, da acumulação do capital, e, por assim dizer, são fluidos, dinâmicos, voláteis. A lógica dos documentos acima expressos é a mesma dessa relação com os interesses dos mercados. Assim, sob o argumento de que a escola deveria preparar o estudante para “enfrentar” (e não compreender, questionar e historicizar) os problemas deste mundo contemporâneo, de que a escola deveria ofertar “serviços” mais próximos às “necessidades” dos estudantes ou até de que a boa escola – especialmente para os mais pobres – deveria ser aquela que prepara para o imediato ingresso no mercado de trabalho, para treinar o jovem estudantes a se adaptar a mudanças, a resolver problemas e a lidar com essa fluidez de interesses. Enfim, uma escola que se organiza “ao gosto do freguês” e do seu poder de escolha (LAVAL, 2019). Compreendendo que essas condições e mazelas sociais são frutos de um longo processo histórico, Freire (2021a) advoga que o professor progressista deveria estar advertido sobre as múltiplas formas de como a ideologia da classe dominante se insinua em prol da neutralidade na Educação. Um mito que se estende a denominada neutralidade científica (OLIVEIRA, MARIZ, 2019). Cada vez mais se faz necessário a politização dos jovens na escola, da mobilização, do despertar de uma consciência de classe e de luta, da qual o Lutar pelo direito que tenho de ser respeitado e pelo dever que tenho de reagir a que me destratem. Lutar pelo direito que você, que me lê, professora ou aluna, tem de ser você mesma e nunca, jamais, lutar por essa coisa impossível, acinzentada e insossa que é a neutralidade. Que é mesmo a minha neutralidade senão a maneira cômoda, talvez, mas hipócrita, de esconder minha opção ou meu medo de acusar a injustiça? ‘Lavar as mãos’ em face da opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele. Como posso ser neutro diante da situação, não importa qual seja ela, em que o corpo das mulheres e dos homens vira puro objeto de espoliação e descaso? O que se coloca à educadora ou educador democrático, consciente da impossibilidade da neutralidade da educação, é forjar em si um saber especial, que jamais deve abandonar, saber que motiva e sustenta sua luta: se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode (FREIRE, 2017, p.70, grifos nossos). Dessa compreensão inicial desse compromisso social de que o educador é alguém que deve se posicionar politicamente, bem como da compreensão de que a(o) estudante do curso de licenciatura em ciências biológicas é alguém que também toma 43 consciência da própria curiosidade ingênua ou espontânea à medida que se forma em busca da denominada curiosidade epistemológica (FREIRE, 2017). O autor reconhece que compreender, ou tomar consciência, de que não sabemos ou conhecemos tudo já se trata de um passo importante e parte de um avanço individual para a superação da curiosidade ingênua (FREIRE, 2021c). Todo bom professor e boa professora deve compreender que a formação de professores exige a compreensão de que o processo emancipatório exige uma relação ética com o educando e vice-versa, relação dialógica, respeitosa e busque o desvelamento dos discursos de autoridade, aliás, O bom clima pedagógico-democrático e que o educando vai aprendendo, a custa de sua prática mesma, que sua curiosidade, como sua liberdade, deve estar sujeita a limites, mas em permanente exercício. Limites eticamente assumidos por ele. Minha curiosidade não tem o direito de invadir a privacidade do outro ou expô-la aos demais. Como professor devo saber que sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na busca, não aprendo nem ensino (FREIRE, 2021a, p.81). Freire (2021a) destaca ainda que a “curiosidade domesticada” está pautada na “memorização