AURORA ano IV número 6 – AGOSTO DE 2010________________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora 109 NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS CLASSISTAS JAIR PINHEIRO i ste título é propositalmente uma provação, pois há vários trabalhos que, implícita ou explicitamente, abandonam o conceito de classe na análise dos movimentos ou os identifica com a noção de classes populares que, embora operacional para fins descritivos, é insuficiente como definição teórica. Cite-se, para efeito de exemplo e argumento, as contribuições já clássicas de Cardoso (1983), Evers (1984), Doimo (1995) e Kowarick (1987). Dos quatro trabalhos acima citados, o de Kowarick tem a particularidade de se propor a fazer um balanço da literatura, resultado a que chega com êxito; os demais pretendem uma análise dos próprios movimentos na qual o conceito de classe é substituído por outro como principal variável explicativa. Cardoso, por sua vez, faz um balanço dos movimentos no contexto da transição de regime da ditadura à democracia representativa, enfocando a relação dos movimentos com o Estado, e conclui que os primeiros mudam sua posição de contestação ao segundo para a de parceria. A conclusão de Doimo não difere muito nos seus aspectos políticos gerais, mas, até por ser um trabalho de fôlego já que é seu doutoramento, enquanto o de Cardoso é um artigo, Doimo aprofunda a análise sociológica dos movimentos, identificando neles uma certa dinâmica pendular entre a retórica expressivo-disruptiva, “pela qual se manifestam valores morais ou apelos ético-políticos tendentes a deslegitimar a autoridade pública e a estabelecer fronteiras intergrupos”, e a integrativo- corporativa, “pela qual buscam conquistar maiores níveis de integração social pelo acesso a bens e serviços, não sem disputas intergrupos e interpelação direta aos oponentes” (1995: 69). Evers centra sua análise no conceito de identidade, definido como “esforços constantes de auto- reflexão dos próprios movimentos sociais. Talvez uma indicação quanto à essência destes movimentos esteja precisamente em seu empenho marcante – dos novos sindicatos “autênticos” e das comunidades de base da Igreja Católica, por exemplo – em definir a si próprios como novos e diferentes em relação à política tradicional, e em se colocarem como fundadores e guardiães de suas próprias tradições e experiências sociais.” (id.: 12). Daí ele deriva uma aspiração de autonomia dos movimentos e crítica os articuladores sociais filiados à tradição marxista que, a seu ver, mantém uma relação autoritária com os movimentos por se expressar através de uma matriz discursiva (Sader, 1995) que desautoriza a ideia de povo como sujeito na medida em que força uma consciência a partir de fora e desconsidera a dimensão da vida cotidiana, tecido do qual tais movimentos retiram as linhas da construção da sua identidade. Estes estudos, cada um à sua maneira, realizam (ou tentam realizar) uma espécie de balanço dos movimentos sociais a partir de uma dupla perspectiva: 1) a posição deles em face do Estado e 2) a matriz discursiva por eles adotadas. Neste breve artigo limitarei a análise a essa segunda perspectiva, o que implica começar por definir o conjunto dos movimentos aos quais se aplicam a análise. São todos? Em caso positivo, há uma definição aplicável a este conjunto? Creio que a oferecida por Gohn de que são “ações sociais coletivas de caráter sócio-politico e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e expressar suas demandas.” (2003: 13) seja suficientemente geral para abranger a todos. Então passamos a uma segunda questão: há uma matriz discursiva suficientemente abrangente para incluir este conjunto? Esta questão não me parece comportar uma resposta positiva, a não ser num nível tão elevado de abstração que sobre apenas a categoria de pertencimento à sociedade como denominador comum, o que leva a perder de vista importantes traços característicos de movimentos particulares. De outra forma, qual matriz discursiva poderia ser comum a movimentos pela terra e aqueles pela descriminalização do aborto, por exemplo? Gohn oferece uma resposta a partir da sua própria definição, que é um conjunto de valores socialmente gerais e partilhados, consubstanciados no que ela denominou cultura cidadã, o que E AURORA ano IV número 6 – AGOSTO DE 2010________________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora 110 significa, entre outras coisas, ser propositivo, operativo e policlassista. Entretanto, há muitos movimentos que não se expressam através dessa matriz discursiva justamente porque são combativos, contestadores e classistas, ou seja, em tudo oposto ao que a autora denominou cultura cidadã; o que nos remete à necessidade de fazer um corte para definir um conjunto particular, tarefa que mais uma vez nos faz defrontar com a exigência de um critério geral de análise, questão a que voltarei mais à frente. Souza (2008) oferece uma definição menos abrangente e, por isso mesmo, mais precisa, pois este autor considera que movimento é um subconjunto de ativismo e, este, por sua vez, subconjunto de ação coletiva. De acordo com essa classificação, Souza considera que o conceito movimento deve ser reservado a ações coletivas organizadas mais ou menos duradouras que possua elevado senso crítico em relação ao status quo, incluindo-se na crítica tanto a perspectiva progressista como a conservadora e/ou regressiva. Esta definição tem a vantagem de limpar o meio de campo na medida em que evita abrigar sob um mesmo rótulo formas de ação coletiva tão distintas como ONGs, Lobbies, patronagem, clientelismo, etc.; além de outras que a criatividade ou necessidade dos atores políticos os levem a inventar. Pode-se complementar esta definição com quatro características gerais encontráveis em qualquer movimento, embora elas apresentem particularidades próprias a cada um deles: demandas/objetivos, forma de ação, orientação ideológica, formas de organização. Entre estas, a característica mais evidente dos movimentos é a forma de ação, devido à aparência performática que a ação coletiva adquire (nem sempre um efeito visado), ao fato de que o público em geral costuma tomar conhecimento da existência dos movimentos através da sua ação e, por ser esta, a maneira pela qual tais movimentos buscam pressionar o Estado a abrir negociação em torno das suas demandas, ou mediar as negociações quando o atendimento dessas demandas depende de empresas ou de agentes particulares política e economicamente poderosos ou, ainda, buscam influenciar a opinião de círculos mais amplos que sua base social. Os movimentos podem ter uma demanda e um objetivo, mas podem também ter apenas uma ou outro, já que uma demanda, por definição uma reivindicação de algo percebido como uma carência, não implica um fim visado, nem este àquela. Todavia, como objetivo para os movimentos significa, em primeira instância, influenciar a opinião da sua potencial base social sobre determinada matéria, ou de um público mais amplo que essa base, este objetivo aparece intimamente ligado à demanda em todo movimento. Por isso, este objetivo de primeira instância é observado em qualquer movimento e apenas constitui um meio para a conquista da demanda ou de algum objetivo mais amplo ligado a algum projeto de mudança social conforme a orientação ideológica adotada; é este objetivo em sentido forte que caracteriza alguns movimentos e que tomarei em consideração para a análise. Para o que estou chamando aqui de novos movimentos sociais classistas, este objetivo em primeira instância e a demanda se tornam um instrumento da orientação ideológica e do objetivo em sentido forte. Quanto à orientação ideológica, a primeira observação a fazer é que a polissemia da palavra ideologia dificulta seu uso, o que, no entanto, parece inescapável na medida em que os estudiosos, inclusive os que não a adotam como conceito, continuam a utilizá-la para designar fenômenos para os quais não encontram outra palavra. Tratei desta questão em minha tese, por ora, limitar-me-ei a observar que a literatura tem reservado a palavra ideologia para movimentos que se opõem à democracia liberal e/ou ao capitalismo, e o conceito de quadro interpretativo de Snow (1986) para os demais, o que confere à palavra ideologia o sentido lato de utopia e aos movimentos ditos ideológicos uma aura de irrealismo, portanto, ambiguamente próximo e distante do uso que Mannheim (1972) faz do termo utopia. Irracionalismo que, cedo ou tarde, seria corrigido pela racionalidade do sistema; ideia nem sempre explicitada, mas corrente nas análises sobre o tema. Voltarei a esta questão mais adiante. As formas de organização variam bastante, mas apresentam traços comuns que permitem definir alguns padrões. Embora a experiência prática dos movimentos comece pela organização dos mesmos, portanto, por uma determinada forma de organização, esta sintetiza as características anteriores, pois a tarefa de organizar um movimento supõe dar resposta prática a, pelo menos, duas questões previamente colocadas e em alguma medida respondida: para quê (demandas/objetivos)? e como (formas de ação)? Estas, por sua vez, supõem uma visão social de mundo (ideologia, no sentido mais amplo) como o quadro de referência inclusivo mais abrangente no qual os movimentos se inserem. QUÊ HÁ DE CLASSISTA NOS MOVIMENTOS? AURORA ano IV número 6 – AGOSTO DE 2010________________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora 111 Feitas estas considerações, parece uma opção metodológica plausível adotar a orientação ideológica como critério de análise dos movimentos, pois a ideologia deixa de ser uma simples bandeira propagandística ou uma aspiração utópica irrealista; passa a ser uma representação, uma imagem do mundo, enraizada nas práticas sociais e a elas articuladas dialeticamente num processo dinâmico de condicionamento mútuo. Desse modo, a primeira resposta para a pergunta do subtítulo é que há movimentos sociais classistas porque assim eles se apresentam e, mais importante do ponto de vista metodológico, ao fazerem a crítica da sociedade capitalista a partir do lugar que sua base social ocupa nas relações sociais de produção, esses movimentos fornecem à pesquisa empírica o material necessário à observação da determinação recíproca entre práticas sociais e concepção social. A segunda resposta, estreitamente relacionada à primeira, é que a demanda desses movimentos é por eles utilizada como veículo da sua orientação ideológica. Registre-se que isto torna a conquista da demanda um momento particularmente delicado e ambíguo para tais movimentos classistas, pois, como a literatura registra, há uma tendência à desmobilização após a conquista da reivindicação, mas o objetivo a que se propõem os obriga a um esforço para manter a base mobilizada, assim como, dar à demanda conquistada um tratamento diferente do habitual, compatível com o objetivo visado, o que encontra toda sorte de dificuldade na medida em que atuam sob as condições que querem transformar. Estas respostas impõem também uma distinção. O adjetivo classista é atribuído àqueles movimentos que adotam a perspectiva de classe do lugar que sua base social ocupa nas estruturas sociais, ou seja, não se aplica a outros movimentos que não adotam essa perspectiva, embora apresentem elevado senso crítico (incluindo retórica classista, mas não perspectiva) em relação ao status quo e suas demandas e/ou objetivos possam ser identificados como de classe. Esta distinção é teoricamente importante devido à defasagem entre as práticas econômica, política e ideológica (Poulantzas, 1977), o que explica a presença combativa na cena política de setores das classes dominadas sob bandeira tomada do ideário das classes dominantes, inclusive o papel que essas lutas têm desempenhado no desenvolvimento desse ideário como, por exemplo, a inclusão de novos direitos no sistema jurídico; contudo, sem ultrapassar os limites da formação social. Até aqui, utilizei a palavra ideologia mais ou menos no sentido corrente, impõe-se agora defini-la com a precisão possível já que seu caráter polissêmico impede uma definição unívoca. Eagleton (1997) enumera dezesseis significados da palavra encontrados na literatura e, o que dificulta ainda mais o uso conceitual do termo, nenhum desses significados exclui necessariamente os demais. Assim, para adotar a palavra como um conceito operacional para a análise da produção discursiva dos movimentos, utilizo-a em duas acepções estreitamente vinculadas: 1) visão social de mundo (Löwy, 1998 e 1999) e processo social de interpelação discursiva (Althusser, 1996; Therborn, 1980 e Pinheiro, 1997). Os vários conceitos que tratam da representação do mundo foram concebidos, quase sempre, como alternativas; todavia, por ser a representação um fenômeno simultaneamente geral e individual, universal e particular, cada um desses vários conceitos encerra em si conteúdos dos conceitos que pretendiam superar. A meu ver, isto decorre de três características da representação do mundo: 1) apresentar-se como uma totalidade (concepção social de mundo); 2) cuja existência dependente de um processo social de interpelação discursiva e 3) ser detectada nas ações de sujeitos sociais concretos, portanto, com graus variados de manipulação com relação a fins. Isto posto, os conceitos de concepção (visão) social de mundo, ideologia1 e quadro interpretativo se articulam segundo uma hierarquia implícita na ordem de exposição dessas três características, ou seja, o mais geral é a concepção (visão) social de mundo porque se apresenta tanto a atores individuais como coletivos como a ideologia mais inclusiva porque dela deriva ou com ela mantém algum grau de coerência e/ou de compatibilidade funcional a representação de qualquer esfera particular da vida social; a ideologia, por sua vez, um conceito operacional relativo às práticas sociais de interpelação discursiva que tem um duplo efeito: sustentar a concepção (visão) social de mundo, por um lado, e, por outro, permite a composição de um quadro interpretativo conforme o fim visado. Tanto para sustentar uma visão social de mundo como para compor um quadro interpretativo, no processo social de interpelação discursiva os atores sociais (não apenas os movimentos) utilizam uma combinação complexa dos recursos materiais à sua disposição com os modos de operação da ideologia e as estratégias 1 Advirta-se que o termo ideologia como imagem de mundo recobre os três conceitos, mas para obter clareza terminológica, restrinjo seu uso apenas ao processo social de interpelação. AURORA ano IV número 6 – AGOSTO DE 2010________________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora 112 típicas de construção simbólica (Thompson, 1995). Não me deterei no exame dessa combinação, mas é importante mencioná-la para assinalar que à assimetria de poder político e econômico na sociedade corresponde a de construção simbólica, o que coloca os movimentos sociais em posição desvantajosa na busca de compor um quadro interpretativo favorável às suas demandas. A rigor, essa assimetria não é uma novidade e nada tem de contingente, pois a posição de poder implica justamente a concentração de recursos materiais sob uma forma institucional correspondente que especifica as instituições da produção simbólica e os valores gerais que a orientam. No plano imediato, a assimetria de poder no processo de construção simbólica consiste em diferenças de recursos materiais à disposição dos atores sociais e de posições ocupadas ou não nas instituições típicas de produção simbólica, o que Bourdieu (2008) já havia detectado. Todavia, apesar do caráter crítico e da fecundidade da abordagem deste autor, ele se limita às diferenças de distribuição de poder baseada na causa imediata. Este limite é devido ao conceito de classe deste autor, definido pela referência a uma pluralidade de critérios derivados da multiplicidade de lugares funcionais numa sociedade moderna, o que, como observa Poulantzas, “constitui um erro na medida em que a relação global com o ideológico, nas suas diversas manifestações concretas, é estritamente definida como relação com as estruturas da ideologia.” (1977: 68), ou seja, com a visão social de mundo burguesa, reflexo do lugar de dominação que esta classe ocupa no conjunto das estruturas sociais. Por outras palavras, se no plano imediato os movimentos são manifestações concretas que emergem na cena pública como efeito do descontentamento resultante das condições próprias desses lugares funcionais e, a partir deles, elaboram quadros interpretativos com vistas a legitimar suas demandas, o trabalho de elaboração desses quadros, como estratégia de interpelação social (ou, o que é o mesmo, de construção simbólica), necessariamente remete às estruturas sociais em seu conjunto e por elas é condicionado. Ora, tais estruturas é o lugar na totalidade social onde se produz as ideologias (visões sociais de mundo), aquela imagem de mundo que especifica os lugares dos agentes no conjunto das relações sociais e os legitima ou não, conforme a estratégia de construção simbólica. A hierarquia entre os lugares funcionais detectada e conceituada por Bourdieu como diferenças de recursos materiais e de capital simbólico, na perspectiva aqui adotada, é efeito da divisão social do trabalho e da especialização da produção cultural e, estas, por sua vez, mantêm com as relações sociais de produção2 uma relação dialética de condicionamento mútuo ou, para usar as figuras da dialética, de pressuposição mútua. Isto significa que as relações (sociais) de produção capitalistas (a estrutura econômica) pressupõem formas simbólicas compatíveis (principalmente a identidade entre propriedade e liberdade e igualdade); relações nas quais a liberdade de uma das partes (o trabalhador) de utilizar sua propriedade (a força de trabalho) conforme sua necessidade depende da liberdade e interesse da outra parte (o capitalista) de utilizar a sua; portanto, relações de dominação/subordinação contraditoriamente representadas por formas simbólicas de liberdade e igualdade. Esta é, simultaneamente, a causa estrutural da assimetria de poder de construção simbólica e da ocultação dela, o que não pode ser detectado quando a pesquisa empírica não ultrapassa os lugares identificáveis na morfologia social, como o faz Bourdieu. De exposto se deduz que a distribuição desigual de recursos materiais e simbólico é efeito da distribuição dos indivíduos em lugares de dominação e subordinação nas relações sociais de produção. Daí resulta que, por efeito das lutas de classes, essa distribuição desigual pode sofrer variação quantitativa e receber valorações diversas, mas jamais revogadas sem mudar as relações sociais de produção ou, por outras palavras, sem a ruptura com o capitalismo. A NOVIDADE DOS MOVIMENTOS Estabelecidas as bases para definir o que há de classista nos movimentos, resta, como tarefa, demonstrar sua novidade. O critério de análise dessa opção abrange um conjunto particular reunido sob a mesma orientação ideológica, qual seja, a perspectiva classista acima definida. Todavia, essa perspectiva não é nova, uma vez que movimentos classistas remontam pelos menos ao século XIX. Uma lista representativa, mas nada exaustiva, desse tipo de movimento inclui: MTST (nacional), MSTC, FOMMAESP, Terra Livre, Força Ativa, Movimento de Ocupação de Fábrica (internacional), todos em São Paulo; MUST, em São José dos Campos, MSTB, em Salvador; Quilombos Urbanos, em São Luís, Círculos 2 Bourdieu também utiliza a expressão relações sociais de produção, mas na acepção de lugares desiguais em status mas funcionais no processo produtivo; diferente portanto do conceito marxista que designa uma relação que dispõe proprietários dos meios de produção e produtores diretos em lugares de dominação/subordinação, respectivamente, sem prejuízo do fato de que essas classes podem ser fracionadas por critérios funcionais. AURORA ano IV número 6 – AGOSTO DE 2010________________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora 113 Palmarinos, em Belém, Movimento dos Conselhos Populares, em Fortaleza, Fórum do Meio Ambiente e Baía de Sepetiba, Consulta Popular (nacional), Coletivo de Hip-Hop Lutarmada e Frente de Luta Popular, no Rio de Janeiro, MTD (nacional), em Porto Alegre, entre muitos outros que poderiam ser acrescentados. Refiro-me a eles como novos movimentos sociais classistas por uma série de motivos que inclui a incorporação: 1) da territorialidade como expressão de identidade e/ou como recurso estratégico, 2) temas da esfera sócio-cultural (gênero, sexualidade, etnia, realização pessoal etc.) tanto na construção da identidade coletiva como na preocupação de repensar a relação entre coletividade e individualidade, 3) busca da superação do isolamento através da constituição de redes e fóruns, o que é reforçado pelo 4) uso da internet como um instrumento de comunicação e, por fim, 5) da condição de marginalidade urbana para a reconstrução da identidade de classe. Assinale-se que esses temas não estão presentes da mesma forma e com a mesma importância e clareza nos movimentos que integram essa lista. Esses movimentos nasceram a partir de diferentes experiências políticas ou as incorporaram de diferentes maneiras na sua trajetória. Assim, a crítica da sociedade capitalista é mais elaborada naqueles que nasceram de outros movimentos que já tinham um acúmulo de elaboração teórica ou que aprofundou esta elaboração pela interlocução com a cultura marxista; a compreensão da questão cultural é mais avançada naqueles movimentos que se organizaram em torno de temas como arte, etnia, gênero etc.; a questão territorial é mais importante para aqueles de alguma forma ligados à questão terra (tanto no meio rural como no urbano), a marginalidade urbana é articulada à territorialidade e à identidade jovem e de classe através de formas simbólicas, como o hip hop, por alguns movimentos. Além das diferenças de tratamento de cada tema pelos diferentes movimentos, um olhar atento para essa lista de temas pode pôr em dúvida a novidade de alguns deles, sobretudo da esfera sócio- cultural, não sem razão. A literatura apresenta pelo menos duas ordens de fatores para este questionamento: para Laclau (1991) a categoria classe era tomada como óbvia e transparente, o que acabava por orientar o debate sobre questões cotidianas e identitárias de modo subordinado e 2) para Telles “o reconhecimento da existência de sujeitos sociais que não se encaixavam na figuração tradicional e paradigmática da classe operária” (1987, p. 66) desloca o centro do debate teórico e político das relações sociais de produção para uma pluralidade de espaços sociais que dão origem a novas configurações. Ambas as análise detectam importantes mudanças apresentadas pelos movimentos sociais detectadas pelas pesquisas empíricas. Entretanto, o deslocamento do eixo de análise proposto pelos autores, tendo a crítica ao determinismo econômico como pano de fundo, cai num tipo de determinismo simbólico na medida em que a valorização teórica da luta por reconhecimento identitário leva ao obscurecimento de que tal luta já é parte da luta de classes, uma vez que esse reconhecimento pode adquirir diferentes formas segundo a correlação de forças atuantes nos movimentos, ou seja, o quadro interpretativo que procuram compor e a partir de que visão social de mundo. Como afirmei em outro lugar, a experiência dos atores é a primeira, no sentido de mais imediata, determinação da ação política, por isso, para explicar as mobilizações populares é necessário recorrer às formas, bandeiras e reivindicações desses movimentos e como expressam a experiência da sua base social no momento da mobilização, cuja demonstração exige que voltemos a atenção para as tradições, o vasto repertório da cultura urbana e as mobilizações políticas anteriores, porque é a partir deste conjunto amplo, fluído e complexo que os movimentos engendram formas organizativas, criam lemas e bandeiras de luta com os quais se apresentam no debate público e formulam suas reivindicações (Pinheiro, 2009). Os novos movimentos sociais classistas engendram formas organizativas e bandeiras através de um quadro interpretativo que articula a crítica do lugar que sua base social ocupa nas relações sociais de produção, como mencionado no início, com a crítica da experiência imediata e dos diferentes lugares de subordinação ocupado em outras esferas da vida social, de modo que o reconhecimento da pluralidade identitária não adquire a forma de competição por recursos ou de luta redistributiva; ao contrário, é a unidade na diversidade, pois o denominador comum é a exploração e a interpelação ideológica que constrói uma imagem de inferioridade dos produtores diretos a partir das suas diversas experiências. REFERÊNCIAS ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos ideológicos do Estado. In: ŽIŽEC, Slavoj (org.). Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. AURORA ano IV número 6 – AGOSTO DE 2010________________________________________________ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.br/aurora 114 CARDOSO, Ruth (1983). Movimentos sociais: balanço crítico. In: SORJ, Bernardo e ALMEIDA, Maria Hermínia T. (orgs.). Sociedade e Política no Brasil Pós-64. São Paulo: Brasiliense. DOIMO, Ana M. (1995). A Vez e a Voz do Popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/ANPOCS. EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Boitempo, 1997. EVERS, Tilman. Identidade: a face oculta dos novos movimentos sociais. In: Novos Estudos Cebrap, v. , nº 4, 1984 GOHN, Maria da G. Movimentos Sociais no Início do Século XXI. São Paulo: Vozes, 2003. KOWARICK, Lúcio. Movimentos urbanos no Brasil contemporâneo: uma análise da literatura. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.º 3, 1987. LACLAU, Ernesto. A política e os limites da modernidade. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pós-modernismo e política. 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