UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP FÁBIO GERÔNIMO MOTA DINIZ AS REPRESENTAÇÕES DE MEDEIA NAS METAMORFOSES DE OVÍDIO E NA ARGONÁUTICA DE APOLÔNIO DE RODES. ARARAQUARA – SP 2013 2 FÁBIO GERÔNIMO MOTA DINIZ AS REPRESENTAÇÕES DE MEDEIA NAS METAMORFOSES DE OVÍDIO E NA ARGONÁUTICA DE APOLÔNIO DE RODES. Trabalho de conclusão de curso, apresentado à Faculdade de Ciências e Letras- UNESP/Araraquara como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Letras com habilitação em Latim. Orientador: Prof. Dr. João Batista Toledo Prado. ARARAQUARA – SP 2013 3 RESUMO O trabalho procura investigar a abordagem que o poeta romano antigo Ovídio dá à personagem mítica Medeia no livro VII de seu poema intitulado Metamorfoses, especialmente em relação à presença da mesma personagem no poema épico helenístico grego Argonáutica, de Apolônio de Rodes, tendo em vista que o autor grego é tido pela tradição como uma das influências para o romano. Apesar de a narrativa de Ovídio descrever eventos posteriores à viagem dos argonautas, a relação entre as duas obras permite abordar dois aspectos: 1) o monólogo interior e as angústias de Medeia, que traçam ainda uma linha histórica a partir da influência da tragédia Medeia, de Eurípides, passando por Apolônio e desembocando em Ovídio; 2) a descrição das práticas mágicas e dos poderes de Medeia, utilizados na Argonáutica para proteger Jasão, que são descritos amplamente nas Metamorfoses quando ela rejuvenesce Éson, pai do herói. O trabalho destina-se não apenas a salientar aspectos da personagem relativos a esses temas, mas, sobretudo, abordar os mecanismos que identifiquem a relação de influência direta de Apolônio sobre Ovídio. Palavras-chave: Apolônio de Rodes, Ovídio, Medeia, Argonáutica, Metamorfoses. 4 ABSTRACT This paper focuses on how the ancient roman poet Ovid’s approach on the mythical character Medea in Metamorphoses Book VII relates to the presence of the character in the Hellenistic greek epic poem Argonautica of Apollonius Rhodius, once the Greek author is known to influence the Roman. Although Ovid’s narrative goes further and focuses on events subsequent to the Argonauts travel, the relationship between the two works allows to address two aspects: the inner monologue and the anxieties of Medea which, by their turn, draw a timeline of the historical influence of Euripedes’ tragedy Medea; going through Apollonius and eventually arriving at Ovid; and the description of Medea’s magical practices and powers, used in Argonautica to protect Jason, which are widely described in Metamorphoses when she rejuvenates Aeson, the hero’s father. It is intended not only to point out aspects of character related to these topics, but primarily to address the mechanisms that can identify the direct influence of Apollonius on Ovid. Keywords: Apollonius Rhodius, Ovid, Medea, Argonautica, Metamorphoses. 5 SSuummáárriioo Introdução ....................................................................................................................... 6 1. A arte alusiva: Apolônio vs Ovídio ...................................................................... 10 2. O Conflito das Medeias ......................................................................................... 14 3. A magia (e a poesia) das Medeias ........................................................................ 21 Considerações finais ..................................................................................................... 28 BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 30 6 Introdução Medeia é uma das mais famosas personagens mitológicas gregas, daquelas que despertam interesse por toda história da humanidade. Seja na literatura, na cultura, filosofia, artes, Medeia é passível de ser colocada no mesmo patamar de importância de Orfeu, Aquiles, Édipo, Héracles e tantos outros heróis homens. Tanto que no ciclo mítico de que faz parte acaba por eclipsar a figura do heroico Jasão, que se torna seu antagonista principal no episódio mais conhecido de sua mitologia, retratado pela conhecidíssima tragédia de Eurípides a qual leva o nome da jovem. É alçada por muitos ao papel de heroína, ademais da discussão que se possa fazer acerca dessa asserção. As características mais singulares de Medeia são aquelas ligadas à sua vingança contra Jasão e ao domínio das práticas mágicas. Junto a sua tia Circe, Medeia é provavelmente a mais conhecida feiticeira da Antiguidade Clássica. Ogden (2002, p. 78) observa que feiticeiras mulheres são muito mais proeminentes e numerosas na literatura clássica que feiticeiros, e tanto Medeia quanto Circe se desenvolveram em épicos muito antigos, que não chegaram até nós. Na origem de seu nome, como salienta Nascimento (2007, p .21), encontra-se o atributo da mẽ̄tis, presente na raiz mēd-, derivada do verbo mḗdomai (meditar, preparar, tramar, cuidar). Nascimento pontua que os nomes de outras personagens que possuem a mesma raiz, como Agamede e Polimede, “estão associados a mulheres sábias e conhecedoras da τέχνη τῶν φαρμάκων/téchnē tȭn pharmákōn.” (2007, p. 22). Ela ainda aponta que: A manipulação e o conhecimento dos φάρμακα [phármaka] requerem um tipo de inteligência, aliada à astúcia, que os gregos denominaram μῆτις [mẽ̄tis]. O nome de Medéia (Μήδεια/Mḗdeia) relaciona-se linguisticamente com esse nome que evoca a deusa da sabedoria e da prudência, Métis, e que, segundo Chantraine (1984: 699), aplica-se à inteligência prática, resgatando a dimensão do conceito de procedimento ardiloso, uma vez que incorpora a necessidade de uma ação decorrente de um determinado conhecimento. Portanto, Medeia tem em seu nome a marca de sua personalidade, ou seja, a de uma mulher cujas ações são resultantes de um conhecimento, seja na área dos φάρμακα, seja na potencialidade de seus conselhos. (2007, p. 21). A magia de Medeia, esses fármaka salientados por Nascimento, são fruto de uma técnica, téchnē, capaz de ser ensinada e aprendida, diferente da magia enquanto dom. Quando vence as provas impostas por Eetes para a obtenção do velo de ouro, no 7 canto III do poema épico Argonáutica, de Apolônio de Rodes1, Jasão utiliza-se de uma téchnē a ele ensinada por Medeia, os rituais que lhe dariam a vitória2. A magia nesse caso envolve habilidade, conhecimento e não é pensada como um dom nato, uma vez que foi aprendida por Medeia, sobrinha da famosa feiticeira Circe, e, por sua vez, ensinada por ela a Jasão. Porém, como já foi destacado, outra característica singular da personagem é seu conflito amoroso, sua angústia e vingança contra seu amado Jasão. A relação entre os dois personagens, consequência da viagem do herói ao lado dos argonautas em busca do velocino dourado, é a base da mais famosa aparição de Medeia, a tragédia euripidiana. Traída pelo marido, aviltada em sua honra, Medeia assume uma vingança terrível e, apesar disso, é alçada ao status de heroína. Porém a ação vingativa de Medeia não é fruto, como se poderia imaginar, de um ciúme devastador. Flávio Ribeiro de Oliveira, na introdução de sua tradução da Medeia (2007, p. 13), observa que a origem do sentimento de Medeia é o conceito grego de timḗ, “honra”, mas no sentido de “valor atribuído a alguém por seus iguais”. [...] Medeia, neta do deus Sol e filha do rei da Cólquida, fora honrada e respeitada em sua comunidade. Mas fugiu com Jasão, depois de trair seu pai e sua pátria; na fuga, matou seu irmão e cometeu uma série de crimes horrendos – tudo isso por amor de Jasão, para ajudá-lo e para honrá-lo. Ao trair seu país e sua família, perdera irremediavelmente a timé de que fruía na Cólquida. Para ela, não havia possibilidade de retorno, seus atos tornaram inviáveis a volta para casa e a reassunção daquela timé. Medeia sacrificou definitivamente tudo o que tinha por Jasão; de sua perspectiva, Jasão deveria, em troca, atribuir alto valor, deveria honrá-la e fazê-la honrada em Corinto, cidade em que se refugiaram: é um princípio de reciprocidade. Mas ela é frustrada justamente nessa timé a que teria direito: Jasão, em vez de honrá-la, a troca pela filha de Creonte, rei de Corinto. 1 Quanto à biografia de Apolônio, pouco se pode afirmar de fonte segura. As principais fontes que temos para a biografia de Apolônio são duas Vitae, transmitidas em manuscritos do poema, além de um léxico biográfico bizantino chamado Suda e um fragmento de papiro que contém uma lista dos bibliotecários de Alexandria. Sánchez (1996, p. 7) e Mooney (1912, p. 1-2) trazem o conteúdo dessas curtas biografias. Tudo que damos como certeza deve-se aos dados coincidentes dessas biografias, e é possível notar diversas contradições entre as fontes. O que há de consenso é que Apolônio foi filho de Sileu e nasceu em Alexandria em meados da primeira metade do século III a.C. Com certeza, em algum momento de sua vida, Apolônio mudou-se para Rodes e, além de poeta, foi bibliotecário em Alexandria. Além da Argonáutica, atribui-se a ele a autoria de poemas acerca de fundações de cidades, cujo foco seria a narração de lendas locais, curiosidades arqueológicas e geográficas, interesses comuns aos eruditos ligados à Biblioteca de Alexandria (NASCIMENTO. 2007, p. 15). 2 Medeia ensina a Jasão um ritual mágico ligado à deusa Hécate, bem como o instrui sobre os procedimentos necessários a fim de suplantar os desafios impostos por Eetes (III, vv. 1026-1062). 8 Essas características da personagem permaneceram em todas as suas aparições posteriores à tragédia de Eurípides e ao poema épico de Apolônio de Rodes. Podemos encontrar reflexos dessas representações em Ovídio, por exemplo, no livro VII das Metamorfoses, que parte de um monólogo interior relatando o conflito e as angústias de Medeia – que aparecem no poema épico de Apolônio e evidenciam ainda uma influência da tragédia Medeia de Eurípides. Além disso, Ovídio já a considerara, antes mesmo das Metamorfoses, como uma heroína. A obra Heroides é formada por 15 poemas epistolares, os quais são pensados como cartas que várias personagens míticas enviam a seus amados heróis. Medeia foi uma das escolhidas por Ovídio para enviar uma carta, a XII, a seu amado que a tinha magoado, no caso Jasão. Ou seja, ao colocar Medeia como eu-lírico, Ovídio reforça sua posição de vítima em relação ao desprezo do amado. Pretende-se, portanto, neste trabalho, verificar como Apolônio e Ovídio apresentam tanto a feitiçaria de Medeia quanto esse conflito emocional em suas obras. Comparar-se-ão o estado de espírito da jovem, nas referidas obras, e a descrição das práticas mágicas e dos poderes de Medeia, utilizados na Argonáutica, para proteger Jasão, e aqueles descritos amplamente nas Metamorfoses quando ela rejuvenesce Éson, pai do herói. Pretende-se, por fim, não apenas salientar aspectos da personagem relativos à magia e religião, mas, sobretudo, abordar os mecanismos que identificam a relação de influência direta de Apolônio sobre Ovídio. Para tanto, como a monografia a ser apresentada é um trabalho de conclusão de uma segunda graduação – para a aquisição do título de bacharel em Latim –, utilizar-se- á parte da bibliografia já pertencente à dissertação de mestrado concluída em 2010, intitulada “A passagem do cetro: aspectos dos personagens Héracles e Jasão na Argonáutica de Apolônio de Rodes” e ao doutorado em andamento, intitulado “A religião, a magia e o canto de Orfeu na Argonáutica de Apolônio de Rodes”, pois ambos versam sobre o poema de Apolônio de Rodes. Todas as traduções3 e análises da Argonáutica foram feitas diretamente do texto grego estabelecido a partir da edição comentada de Mooney (1912), enquanto que as 3 Todas as passagens da Argonáutica foram traduzidas e analisadas a partir da edição estabelecida e comentada por Mooney (1912). (Cf. Bibliografia). Para facilitar o acesso às análises de termos específicos, todas as palavras gregas discutidas no texto estão transliteradas para caracteres latinos, com os sinais diacríticos correspondentes, de acordo com as “Normas para a transliteração de termos em grego antigo”, da Revista Clássica, disponíveis em: http://classica.org.br/cla/v19/Classica%20Brasil%2019.2%20298-299%202006.pdf. Para respeitar as fontes bibliográficas, quando o termo em grego for mencionado a partir de um texto citado no corpo do 9 citações das Metamorfoses serão realizadas a partir do texto traduzido por Farmhouse, de 2007 (cf. bibliografia), com o texto latino retirado da edição de Hugo Magnus, de 1892, disponível na base de dados Perseus4. O acesso a essa edição facilitou o processo de apresentação por já ser um texto digitalizado no formato unicode. trabalho, respeitou-se a transliteração do autor citado ou, se a palavra não estiver transliterada, inseriu-se sua transliteração entre colchetes – [] –, à frente da palavra citada. Versos completos e passagens mais longas não sofreram transliteração. A opção preferencial pela forma transcrita dos termos gregos pretende tornar a análise mais acessível ao leitor que não domina a língua. Em alguns casos, transcreveu-se, portanto, o termo grego referido junto à palavra escrita em caracteres gregos, mas apenas em suas primeiras aparições; nas seguintes, manteve-se apenas a transcrição, exceto quando a identificação da palavra grega citada no texto for importante para o contexto da análise. 4 Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3atext%3a1999.02.0029. 10 1. A arte alusiva: Apolônio vs Ovídio O poeta romano Públio Ovídio Naso reúne, em seu grande poema Metamorfoses, um vasto catálogo de mitos diversos que, no entanto, desenham um conjunto coeso pela repetição da mesma unidade temática, justamente o processo de metamorfose que nomeia a obra. O poema é composto por 250 histórias em 15 livros e, apesar de iniciar seu extenso passeio pela mitologia pelo início dos tempos, não há nessa obra do poeta latino uma preocupação com a ordem especificamente cronológica dos acontecimentos, mas sim com uma distribuição coerente e coesa dos vários mitos de transfiguração que povoam o imaginário literário da Antiguidade Clássica até os dias atuais. Curtius faz observações sobre a importância e a influência das Metamorfoses de Ovídio, especialmente na Idade Média (1957, p. 50-51): No início de As Metamorfoses o século XII encontrou uma cosmogonia e cosmologia acordes com o platonismo contemporâneo [...]. Mas as Metamorfoses eram também o repertório empolgante e romanesco da mitologia. Quem era Faetonte? Licáon? Procne? Aracne? Ovídio era o Who’s Who para milhares de perguntas semelhantes. Era preciso conhecer as Metamorfoses muito bem; do contrário, impossível compreender os poetas latinos. Ademais, todas essas histórias mitológicas possuíam cunho alegórico. Ovídio também era, portanto, um repositório de moral. Dante ornamenta episódios do Inferno com metamorfoses que deviam sobrepujar Ovídio [...]. Para a construção de uma obra de tamanha magnitude, Ovídio empenhou todos os conhecimentos disponíveis da tradição literária anterior a ele, podendo ser recolhidas de seu poema várias fontes gregas e romanas. A metamorfose de seres mitológicos está presente na literatura desde a Ilíada, e a identificação das fontes de Ovídio é algo importante, já que diversos mitos que são amplamente conhecidos pelas artes, literatura, filosofia e etc. chegaram até nós principalmente por intermédio das Metamorfoses. Dentre essas diversas fontes, destacam-se os poetas do chamado Período Helenístico, momento particular da literatura grega no qual houve uma produção artística muito diversificada em relação ao período Clássico, no que tange tanto os temas abordados quanto à preocupação com o trabalho das formas literárias. A preocupação dos eruditos daquele momento, principalmente daqueles que frequentaram a famosa Biblioteca de Alexandria, era com o passado estabelecido da cultura de língua 11 grega, que era por eles reavaliado e, portanto, a postura desses poetas passava a ser também a de críticos literários e, muitas vezes, de criadores de novas teorias estéticas. No contexto dos chamados philólogoi, a postura em relação à produção poética mudou substancialmente, não apenas como reflexo de uma mudança da estrutura social, que deixava de ser a pólis do século V para um grupo de reinos derivados das conquistas de Alexandre Magno, mas a principal produção poética deixou de ser focada na poesia oral, na perfórmance voltada para o público, e passou a ser essencialmente uma literatura privada, voltada para o indivíduo (HOUGHTON, 1987, p. 34). É dessa literatura que bebem os poetas romanos, em um diálogo muito frutífero e constante. Metamorfoses é um dos exemplares dessa influência, pois, como destaca O’Hara (2007, p. 118), o poeta “frequentemente se dedica à extensiva adaptação simultânea de fontes variadas;” na construção do longo poema hexamétrico. Além disso, para O’Hara, “seus empréstimos são caracterizados pela abrangência, o uso de variantes mitológicas, e a mistura e justaposição de material de diferentes gêneros”. A discussão acerca do gênero em que se encaixam as Metamorfoses é extensa e em parte ainda muito complexa, pois mesmo sendo composta sob a forma de um extenso épico, em versos hexamétricos, é um poema cujo principal conteúdo são diversas histórias míticas reunidas sob o tema da metamorfose, sem um protagonista único a ser considerado o seu herói épico e sem um recorte mítico específico. Muitos dos episódios retratados no poema, como o próprio lamento de Medeia, tem uma natureza muito mais lírica que épica, por exemplo. Essa mistura de elementos formais de gêneros diversos é algo que não se restringe ao poema em questão, pois tanto nas Heroides quanto nas Pônticas, Ovídio utiliza-se do dístico, metro tradicional da elegia, mas compõe na forma de epístola. No caso das Metamorfoses, a obra se assemelha mais aos poemas de Hesíodo, Teogonia e Trabalhos e os Dias, especialmente ao primeiro, catálogo de mitos e genealogias que também parte da origem dos tempos. Ainda assim é complexo avaliá- lo, como observa Zélia de Almeida Cardoso (2003, p. 83): Não é uma epopeia, apesar do tom épico, dos versos hexâmetros e do emprego sistemático da narração. Não se caracteriza também como poema didático, pois que, mesmo que quiséssemos considerá-lo como uma tentativa de explicar o universo pela teoria neopitagórica que admite a reencarnação da alma, iríamos esbarrar, sem dúvida, na falta de qualquer fundamentação científica, no superficialismo e no tratamento irônico e brincalhão dado a algumas lendas. 12 A natureza variada do poema de Ovídio é atestada em todos os episódios narrado. Ademais de o elo entre as narrativas estabelecer-se pelo processo de metamorfose, Rosner-Siegel (1982, p.233-34) exemplifica essa variedade tomando como exemplo o tratamento de Medeia pelo poema: A narrativa de Ovídio sobre as aventuras e desventuras de Medeia exemplifica a natureza variada das Metamorfoses. Ao mesmo tempo, ilustra a habilidosa mistura de Ovídio de temas do amor impróprio e proibido, e da metamorfose e deterioração psicológica da personagem principal no episódio como um resultado do amor e de outras fortes emoções. Ao apresentar a transformação de Medeia, Ovídio bebe de seu tradicional retrato como uma feiticeira, e simboliza sua mudança por seu progressivamente maior interesse e busca pelo mágico e o mal. Não obstante, a participação de Medeia no poema de Ovídio não ocorre exclusivamente por um procedimento narrativo: a sua primeira aparição no Livro VII da obra acontece logo após um breve relato sobre a viagem e chegada dos argonautas à Cólquida, terra da jovem, onde se encontrava o Velocino Dourado. Então segue um extenso discurso introspectivo (vv.11-71), em primeira pessoa, totalmente permeado por situações de conflito emocional e calcado em diversas oposições, que configuram de maneira clara as angústias da jovem pelo conflito ocasionado por sua vontade – interferência direta do deus do amor personificado – de ajudar o jovem estrangeiro Jasão com sua magia e trair sua pátria. Esse monólogo interior também se faz presente na Argonáutica de Apolônio de Rodes e o próprio Ovídio já o havia apresentado na referida epístola XII das Heroides. E é difícil não considerar que, dada a já referida influência, haja aqui um procedimento alusivo do poeta romano com a obra do helenístico. Jolivet (2001, p.194) observa como a arte alusiva, especialmente em Ovídio e nos poetas de seu tempo é, justamente, herança dos poetas helenísticos: A poesia latina herdou essas práticas da poesia helenística que repousam sobre uma íntima comunhão entre o autor e seu público. A mesma difusão da obra sobre o quadro de recitationes, em uma perspectiva de imitatio e de aemulatio, vem favorecer essa cumplicidade poética tão necessária ao exercício sutil da arte alusiva. Esses aspectos são fundamentais para a época augustiana. Os romanos chamavam a filiação de seus textos a outro modelo de imitatio, um recurso que não se restringia à retomada de modelos gregos, mas também latinos. Da mesma maneira, o objetivo da maioria desses escritores era a aemulatio, ir além da mera 13 citação, buscando igualar em valor ou ainda superar o original, procedimento, portanto, abarcado pela imitatio (VASCONCELLOS, 2001, p. 18). Já a chamada arte alusiva, arte allusiva, é um termo consagrado por um artigo de 1942 de Giorgio Pasquali, no sentido próximo àquele da moderna intertextualidade. Porém, Vasconcelos (2007, p. 250-51) alerta para a essencial diferenciação dos termos: Um outro ponto que queremos aflorar aqui é a questão da nomenclatura e da restrição do objeto de estudo. Embora estejamos conscientes de que o fenômeno da intertextualidade, se o tomarmos, como tantas vezes se faz, no sentido amplo de interdiscursividade, está presente em todo texto e em todo discurso, achamos conveniente recortar nesse fenômeno o caso da “arte alusiva” dos poetas antigos, uma espécie de arte compositiva da qual fazia parte a citação mais ou menos indireta dos predecessores. Uma proposta de recorte teórico seria distinguir no campo geral da interdiscursividade, o fenômeno da intertextualidade, restringindo o emprego desse termo à incorporação de um ou mais texto por outro. E, no campo da intertextualidade, focalizaríamos a atenção, como estudiosos de literatura latina, no que Pasquali chamava “arte alusiva”, compreendendo-a como uma espécie de técnica compositiva de evocação mais ou menos explícita de outros textos de maneira a criar significados a serem interpretados pelo leitor. Essa arte alusiva é sutil e complexa, e um poeta como Virgílio evoca, em sua epopeia, toda a tradição poética grega e latina para com ela dialogar das mais variadas formas. Aliás, é importante salientar que a chamada arte alusiva é um procedimento justamente helenístico, ao que os romanos como Ovídio também assimilam na sua produção. Todo o trabalho realizado na Biblioteca de Alexandria tinha em vista, como já se observou, a revisão e a reflexão sobre a tradição literária grega. Biblioteca, aliás, que era presidida por um bibliotecário-chefe que, segundo as fontes disponíveis, também assumia a tutoria dos filhos do monarca (RODRIGUES JR., 2005, p.16). Como se sabe, um destes bibliotecários foi o próprio Apolônio de Rodes. 14 2. O Conflito das Medeias Há três aspectos fundamentais da personagem Medeia que convergem na sua representação dentro da literatura grega: o feminino, o estrangeiro e o feiticeiro. Como mulher, encontramos no mito dois momentos: o da jovem insegura, que sofre pelo seu amor proibido pelo jovem e belo estrangeiro Jasão, e o da mulher mais velha que, ao ver-se abandonada e ferida em seu timé, torna-se forte e exige o cumprimento das promessas feitas a ela quando jovem, mediante uma terrível vingança. O dilema surge pelo segundo aspecto, o da estrangeira, que decide abdicar de sua família e país em prol de seu amor, mas que traz a marca de ser uma estrangeira, desonra diante de seu povo. Como feiticeira, ela é sempre representada dentro do universo das artes obscuras, que envolvem aspectos relacionados à deusa Hécate e a sua linhagem como neta de Hélio – daí a sua relação com a feiticeira Circe, sua tia. Podem-se reduzir esses três aspectos a duas representações de Medeia, que serão seu retrato mais comum: a insegura jovem estrangeira feiticeira que vive em um conflito entre seus deveres junto à família e à pátria e a forte mulher estrangeira feiticeira, que se sente preterida pelo marido e desonrada perante os juramentos feitos por ele. Apesar de seu poema épico ser posterior à famosa tragédia de Eurípides, Apolônio narra eventos anteriores aos da Medeia, ou seja, retrata justamente a primeira Medeia. Mas, mesmo quando a jovem (III, vv.985-998) exige de Jasão que mantenha a sua palavra, de que a levaria para o seu reino – palavras essas deixadas de lado quando ele decide abandoná-la para livrar-se da perseguição dos colcos –, e convence-o do assassinato, Apolônio faz uma óbvia alusão a Eurípides, tanto para construir Jasão quanto em sua representação de Medeia. É evidente que, mesmo estando situada em diferentes momentos da representação da personagem, a Medeia de Apolônio possui elementos da Medeia de Eurípides – pois é impossível, após a leitura feita pelo tragediógrafo, ignorar certos traços da personagem. Além disso, a referida cena do canto terceiro reitera que, para Jasão, o objetivo único de sua viagem é sempre o mesmo: retornar com o velo para retirar Pélias do trono. Não há amor por parte de Jasão, apenas o desejo de cumprir seu objetivo, sendo Medeia o útil instrumento para tanto. Uma possível interpretação das ações do herói a partir do amor que ele possuiria pela jovem seria errônea, pois ele não demonstra nutrir qualquer amor verdadeiro por ela. De tal modo, ele apenas estava cumprindo com a palavra dada, de leva-la embora para a sua terra. Não apenas as atitudes de Jasão e 15 Medeia transparecem a leitura de Eurípedes, como toda a obra de Apolônio é permeada por elementos que dialogam com a tragédia5. A Medeia de Ovídio também ecoa a de Eurípides, como observa Pavlock (2009, p. 43): Estudiosos têm há muito reconhecido a dívida com a Medeia de Eurípides no reconhecimento da jovem mulher da dificuldade de encerrar sua paixão pelo estrangeiro. A medida que ela encara seu dilema, ela se sente puxada em direções opostas: “sed trahit invitam nova vis, aliudque cupido,/mens aliud suadet” (“Mas uma força estranha me arrasta contra minha vontade, e o desejo incita uma coisa, a razão outra” [19-20]). Ela então resume seu predicamento: “video meliora proboque,/deteriora sequor!” (“Eu vejo e aprovo o melhor curso, mas eu persigo o pior!” [20-21]). Com essa introspecção moral, Medeia ecoa sua contraparte Euripidiana, que assevera que, apesar de ela entender o caminho maligno no qual ela embarca, sua raiva é mais forte que sua razão (1078-79). O monólogo de Medeia em Ovídio traz, de tal modo, o mesmo efeito alusivo encontrado em Apolônio. Mas todo o conflito emocional de Medeia, que permeia todo canto III da Argonáutica, é evidente influência para a personagem ovidiana. Em III, vv.464-470, Medeia expressa seu conflito interno após ver o jovem: ‘τίπτε με δειλαίην τόδ᾽ ἔχει ἄχος; εἴθ᾽ ὅγε πάντων 465 φθίσεται ἡρώων προφερέστατος, εἴτε χερείων, ἐρρέτω. ἦ μὲν ὄφελλεν ἀκήριος ἐξαλέασθαι. ναὶ δὴ τοῦτό γε, πότνα θεὰ Περσηί, πέλοιτο, οἴκαδε νοστήσειε φυγὼν μόρον: εἰ δέ μιν αἶσα δμηθῆναι ὑπὸ βουσί, τόδε προπάροιθε δαείη, 470 οὕνεκεν οὔ οἱ ἔγωγε κακῇ ἐπαγαίομαι ἄτῃ.’ “Por que me toma, desgraçada, essa dor? 465 Ele perecerá, seja o mais excelente dos heróis ou o pior, que pereça! Em verdade, quem dera livre-se ileso! Sim, que ao menos isso, augusta deusa Perseida, aconteça, que retorne para casa evitando a fatalidade. Se porém seu destino é ser sobrepujado pelos touros, saiba antes isso, 470 que eu não me alegro com sua funesta perdição”. É possível notar o conflito emocional mediante a utilização de figuras como antíteses e litotes, a afirmação pelo contrário (SÁNCHEZ, 1996, p. 225, n. 448), que são base, junto a diversos oxímoros, de todo o monólogo das Metamorfoses. O centro desse 5 Cf. DINIZ, 2012a. 16 monólogo é esse conflito, que transparece em Apolônio não apenas as palavras e pensamentos de Medeia, mas pelo próprio comportamento da jovem, que realiza movimentos permeados de indecisão e angústia, numa repetição que desenha uma angustiada coreografia de idas e vindas, em III, vv.645- 655. A seguir, o sofrimento de Medeia é comparado ao angustiante pesar de uma jovem noiva que perde o futuro marido e então, novamente, lamenta sua condição, em III, vv.674-680. Já em Ovídio, toda a sequência do monólogo é permeada pela angústia do conflito entre amor e dever. Essa sequência, como destaca Pavlock (2009, p. 41), traz não apenas uma tensão emocional, mas uma surpreendente habilidade retórica. Para a autora, em VII, vv.23-24, Medeia “espertamente emprega uma anáfora ao repetir o subjuntivo uiuat, mas mudando sua função gramatical de uma questão indireta para um comando exortatório”: [...] uiuat, an ille/occidat, in dis est; uiuat tamen!/ “Que ele viva ou morra depende dos deuses. Que viva, pois!”. Esse recurso cria um efeito paralelo ao φθίσεται ἡρώων προφερέστατος, εἴτε χερείων,/ἐρρέτω. ἦ μὲν ὄφελλεν ἀκήριος ἐξαλέασθαι./“ Ele perecerá, seja o mais excelente dos heróis/ou o pior, que pereça! Em verdade, quem dera/livre-se ileso!”. No caso do grego, a construção é similar, com dois verbos diferentes mas que, no contexto, significam ambos “perecer”. O primeiro verbo é conjugado no futuro, φθίσεται/phthísetai, indicando a certeza de um futuro funesto, e o segundo no imperativo, ἐρρέτω/errétō, uma exortação idêntica a uiuat tamen! O efeito das frases é similar, mas Ovídio prefere que sua Medeia deseje a vida do herói, não a morte, sob a vontade dos deuses. Fica evidente, pelo paralelo, que Ovídio constrói sua sentença tendo em vista a construção de Apolônio6. Outro ponto crucial da representação de Medeia em Apolônio, no que tange sua influência, é o monólogo da jovem em III, vv.772-801. Scholes & Kellogg (1977, p. 127) destacam as singularidades desse monólogo: [...] Medeia, atingida pela flecha, vê-se dividida entre sua paixão recente e sua lealdade para com seu pai. Ela não tem a quem confiar todos os seus pensamentos. Procura resolver seu dilema num debate consigo mesma. Apolônio trata sua luta interior detalhadamente, combinando a análise narrativa com um longo trecho de monólogo 6 Não obstante, o último verso do poema traz o mesmo verbo, numa exortação do eu poético de Ovídio, que deseja que ele viva pelos seus versos - Siquid habent ueri uatum praesagia, uiuam. Não há como não traçar um paralelo com o encerramento da Argonáutica, na qual Apolônio também exorta a permanência do seu canto, mas nesse caso dos heróis: Ἵλατ᾽ ἀριστήων μακάρων γένος: αἵδε δ᾽ ἀοιδαὶ/εἰς ἔτος ἐξ ἔτεος γλυκερώτεραι εἶεν ἀείδειν/ἀνθρώποις – “Sejam propícios, raça de bem-aventurados heróis:/Que estes cantos ano após ano sejam mais doces de cantar/entre os homens” (Arg. IV, vv. 1773- 1775) 17 interior. Podemos separar as características da passagem numa série de itens a serem comparados com outros usos desta técnica: 1) o monologador é mulher (todos de Homero eram homens), 2) ela está apaixonada, 3) o momento é de crise, 4) ela vê-se dividida entre o que é “certo” e o que é impelida a fazer, neste caso, entre lealdade e paixão, 5) sua situação é tal que não pode confiar em ninguém, 6) ela encara o suicídio como uma possibilidade. Além de servir como referência direta para o monólogo inicial do livro VII das Metamorfoses, como observam Scholes & Kellogg, esse monólogo é recuperado por Ovídio em toda obra (SCHOLES & KELLOGG, 1977, p. 128), como um referencial para o monólogo feminino que, aliás, como os autores salientam, é um procedimento inexistente em Homero. Pavlock destaca essa relação, ainda, quando, no monólogo ovidiano, Medeia se questiona sobre a fidelidade de Jasão (2009, p.46): Et dabit ante fidem, cogamque in foedera testes esse deos. Quid tuta times? accingere et omnem pelle moram: tibi se semper debebit Iason, te face sollemni iunget sibi, perque Pelasgas 50 servatrix urbes matrum celebrabere turba. ‘Dará a palavra antes e invocarei os deuses como testemunhas do nosso pacto. Que temes tu, estando segura? Apronta-te, sem mais demoras. Jasão terá uma dívida eterna para contigo, contigo casará em solene boda, e pelas cidades dos Pelasgos 50 serás aclamada por multidões de mães como sua salvadora.’ Aqui Ovídio estabelece um diálogo com a passagem do canto III na qual Jasão interpela Medeia pedindo seu auxílio. Essa estratégia retórica utiliza-se da proposição de um pagamento à ajuda de Medeia: a glória. Pavlock observa que “o herói, sentindo a agitação da jovem, tranquiliza-a ao afirmar que ele e seus companheiros irão espalhar sua fama na Grécia e que suas mulheres e mães farão o mesmo (vv.990-95): 990 σοὶ δ᾽ ἂν ἐγὼ τίσαιμι χάριν μετόπισθεν ἀρωγῆς, ἣ θέμις, ὡς ἐπέοικε διάνδιχα ναιετάοντας, οὔνομα καὶ καλὸν τεύχων κλέος: ὧς δὲ καὶ ὧλλοι ἥρωες κλῄσουσιν ἐς Ἑλλάδα νοστήσαντες ἡρώων τ᾽ ἄλοχοι καὶ μητέρες, αἵ νύ που ἤδη 995 ἡμέας ἠιόνεσσιν ἐφεζόμεναι γοάουσιν: 990 A ti eu poderia pagar depois o favor da ajuda, como é devido, como cabe aos que habitam terras distantes, produzindo renome e bela glória. Assim os outros 18 heróis louvar-te-ão ao regressar para Hélade e as esposas e mães dos heróis, as quais agora em algum lugar 995 já nos choram sentadas junto às praias. E, para convencer a jovem de suas intenções, Jasão utiliza-se de um exemplo, sugerindo a Medeia o seu destino (vv.990-1007). τάων ἀργαλέας κεν ἀποσκεδάσειας ἀνίας. δή ποτε καὶ Θησῆα κακῶν ὑπελύσατ᾽ ἀέθλων παρθενικὴ Μινωὶς ἐυφρονέουσ᾽ Ἀριάδνη, ἥν ῥά τε Πασιφάη κούρη τέκεν Ἠελίοιο. 1000 ἀλλ᾽ ἡ μὲν καὶ νηός, ἐπεὶ χόλον εὔνασε Μίνως, σὺν τῷ ἐφεζομένη πάτρην λίπε: τὴν δὲ καὶ αὐτοὶ ἀθάνατοι φίλαντο, μέσῳ δέ οἱ αἰθέρι τέκμαρ ἀστερόεις στέφανος, τόν τε κλείους᾽ Ἀριάδνης, πάννυχος οὐρανίοισιν ἑλίσσεται εἰδώλοισιν. 1005 ὧς καὶ σοὶ θεόθεν χάρις ἔσσεται, εἴ κε σαώσῃς τόσσον ἀριστήων ἀνδρῶν στόλον. ἦ γὰρ ἔοικας ἐκ μορφῆς ἀγανῇσιν ἐπητείῃσι κεκάσθαι." As dolorosas tristezas dessas tu poderias dispersar. Uma vez também a Teseu libertou de maléficas provas a jovem filha de Minos, bondosa Ariadne, a qual dera a luz Pasífae, filha de Hélio. 1000 Mas a bordo de uma nau, após acalmada a ira de Minos, Com aquele a pátria abandonou; a ela também os próprios imortais amaram, e no meio do céu, como sinal uma coroa estrelada, chamada Ariadne, toda noite gira entre as constelações celestiais. 1005 Assim tu graças dos deuses terás, se salvares tal expedição de homens valorosos. Em verdade pois pareces pela beleza distinguir-se em gentil bondade. O discurso de Jasão coloca Medeia como aquela a quem os próprios deuses louvarão como salvadora (σαώσῃς/saṓsēis) da expedição, assim como a Medeia de Ovídio, que afirma que será aclamada pelas mães por ser a salvadora (seruatrix)7. Mas, de forma irônica, a retórica de Jasão que serve ao seu propósito, recuperar o velocino, também o levará inconscientemente ao pacto de amor e honra que culminará em toda a tragédia conhecida. Ao citar a morte como única capaz de separá-los, Jasão apenas está ratificando a principal diferença entre Ariadne e Medeia: a última se vingará do futuro abandono de seu amado. 7 Referência que também recupera a relação entre Medeia e Ártemis, que no verso 50 do canto I da Argonáutica é chamada de “salva-naus”, νηοσσόον/nēossóon. 19 Ao comparar a jovem com Ariadne, Apolônio faz ainda seu herói lembrar-se não apenas do mito citado, mas do futuro daquele casal, como observa Goldhill (1991, p. 303): Isso leva a um segundo ponto. Por mais que Apolônio nos leve de volta a um tempo anterior às narrativas de Homero, sua Medeia é, claramente, uma jovem representação de uma das mais famosas figuras do cenário trágico do século quinto. Muitos críticos têm esboçado maneiras nas quais a imagem da Medeia de Apolônio é interpretada frente à grande e violenta bruxa da peça de Eurípides. O futuro de Medeia é um importante pano de fundo aqui. O “renome e bela glória” que ela terá na Grécia será por meio de um infanticídio e o ódio violento do marido enganador, que tenta a trocar por uma noiva nova. O humor dessa passagem pode jazer na sedução retórica de Jasão de uma inocente Medeia. Mas Jasão é também o ludibriado, enquanto sua linguagem involuntariamente o revela como a futura vítima de uma tentativa de tratar Medeia como Ariadne. Jasão está atraindo para si o caminho rumo à tragédia. Ao insistir que Medeia será venerada na Hélade, Jasão faz uma promessa de fidelidade que tem um desenrolar claramente irônico, haja vista a clara referência à “inevitável morte” como a única capaz de separá-los (III, 1120-1130): 1120 "Δαιμονίη, κενεὰς μὲν ἔα πλάζεσθαι ἀέλλας, ὧς δὲ καὶ ἄγγελον ὄρνιν, ἐπεὶ μεταμώνια βάζεις. εἰ δέ κεν ἤθεα κεῖνα καὶ Ἑλλάδα γαῖαν ἵκηαι, τιμήεσσα γυναιξὶ καὶ ἀνδράσιν αἰδοίη τε ἔσσεαι: οἱ δέ σε πάγχυ θεὸν ὣς πορσανέουσιν, 1125 οὕνεκα τῶν μὲν παῖδες ὑπότροποι οἴκαδ᾽ ἵκοντο σῇ βουλῇ, τῶν δ᾽ αὖτε κασίγνητοί τε ἔται τε καὶ θαλεροὶ κακότητος ἄδην ἐσάωθεν ἀκοῖται. ἡμέτερον δὲ λέχος θαλάμοις ἔνι κουριδίοισιν πορσυνέεις: οὐδ᾽ ἄμμε διακρινέει φιλότητος 1130 ἄλλο, πάρος θάνατόν γε μεμορμένον ἀμφικαλύψαι." 1120 Desgraçada, deixe as vãs tempestades vagarem, assim como um pássaro mensageiro, pois falas em vão. Se àqueles lugares e à terra da Hélade chegas Por mulheres e homens reverenciada e estimada serás; eles a ti completamente como uma deusa honrarão, 1125 porque os filhos de uns retornaram para casa por teu desígnio, e de outros, ainda, irmãos e parentes e também os robustos maridos da total ruína se salvaram. Nosso leito prepararás em legítimo tálamo; nada nos separará de nosso amor 1130 até que a inevitável morte nos envolva. 20 Goldhill atenta para a ironia da situação que segue: quando Medeia explica a Jasão seus rituais, pede para que ele não se esqueça do nome dela (III, 1069-70) e pergunta sobre as origens de Jasão e sobre Ariadne, que não conhece – embora ela seja sua parenta, já que Pasífae, mãe de Ariadne, é irmã de Eetes (III, 1071-76). Jasão descreve a sua genealogia e a localização de Iolco, mas interrompe o discurso e indaga do porquê de Medeia querer saber tais informações sobre ele e Ariadne. Goldhill destaca, ainda, que Jasão recusa-se a falar mais sobre a jovem, apenas repetindo seu nome e glória, e isso pode servir ironicamente para justamente fazer Medeia marcar a diferença entre ela e Ariadne – οὐδ᾽ Ἀριάδνῃ ἰσοῦμαι, III, 1107 –, ao mesmo tempo que relembra, mais uma vez, que essa história culminará na tragédia de Eurípides. Ovídio, de tal modo, recupera o tema do esquecimento no verso 50, ut timeam fraudem meritique oblivia nostri/ “não receio traição ou esquecimento dos meus serviços”, e a seguir constrói um paralelo ainda mais evidente com a cena da Argonáutica: ao afirmar no verso 60 que “quo coniuge felix/ et dis cara ferar et vertice sidera tangam/ “E, tendo-o como esposo, serei chamada/ venturosa e cara aos deuses, e com a cabeça tocarei os astros”, Medeia recupera imagem da coroa de Ariadne, também este um presente dos deuses para a jovem (III, vv.1001-04). Todos esses exemplos evidenciam não apenas a influência do texto de Apolônio – e de Eurípides – sobre o de Ovídio, mas demonstram como ele busca evidenciar a alusão a suas fontes a partir de suas escolhas narrativas e poéticas. Mesmo que possamos recuperar todas as características do conflito emocional da jovem no poema helenístico, a habilidade do poeta romano em reconstruir as nuances de suas influências constitui uma perspectiva singular sobre a personagem Medeia, que, como se espera de uma arte allusiva, bebe da tradição sem perder a sua originalidade poética. 21 3. A magia (e a poesia) das Medeias A evidente alusão de Ovído à Argonáutica na reconstrução da personagem Medeia no livro VII das Metamorfoses não se restringe, porém, ao terrível dilema que toma conta da jovem. A faceta mágica de Medeia é explorada significativamente por Ovídio e, não obstante, ele mantém os pés firmes no poema épico alexandrino. Nas Metamorfoses, a narrativa de como Medeia auxilia Jasão no cumprimento das provas impostas por seu pai, o rei da Cólquida, Eetes, para a obtenção do velocino dourado, segue paralela à narrativa da Argonáutica. Como no caso dos eventos relatados no início do livro VII, Ovídio não descreve os ensinamentos sobre a utilização dos preparados mágicos de Medeia, saltando para o combate com os touros de bronze. Rosner-Siegel (1982, p. 236-37) enfatiza que, em contraste com a descrição das práticas mágicas relatadas no canto III da Argonáutica, no início de sua participação no Livro VII das Metamorfoses, Medeia não é retratada como uma feiticeira em si, apenas como uma jovem apaixonada, pois “mesmo que a magia seja usada, ela não é enfatizada”, o que causa esse efeito gradativo de transformação de uma jovem ingênua e em conflito para uma terrível feiticeira. Rosner-Siegel ainda afirma que, amedrontada pelos perigos enfrentados por Jasão, Medeia teme pela ineficácia de sua magia, e entoa um “feitiço auxiliar, recorrendo às artes secretas da magia” (VII, v.138), auxílio que não encontra paralelo na Argonáutica e uma dúvida que não aparece em qualquer outro momento de sua representação. Da mesma forma, a cena da vitória sobre o dragão que protegia o velocino dourado é bem mais curta em Ovídio que a retratada no canto IV do poema alexandrino. E, como acima, o poeta romano não descreve o retorno dos heróis tampouco as bodas de Jasão e Medeia, que preenchem todo o canto IV da obra de Apolônio. Considerando que o encerramento da Argonáutica ocorre na chegada dos heróis a Iolco, pode-se conceber que o poema de Ovídio, a partir desse ponto, preenche justamente a lacuna que existe na narrativa do mito entre o épico helenístico e a tragédia de Eurípides. Quando comenta sobre as Heroides, Delbey (2005, p.98) faz uma colocação interessante sobre a relação de Ovídio com a tradição: [...] mesmo quando as Heroides desenvolvem, no contexto épico- trágico, o discurso amoroso, este não é a palavra final; Ovídio pode reescrever do ponto de vista feminino vários mitos e lendas, ele não escolhe refazê-los. Seu imitatio não produz uma inuentio. A ficção elegíaca preseva a verdade da mitologia épico-trágica que, ao tempo 22 de uma carta, foi relativizada. Este exercício de escrita possui o mérito estético de nos lembrar a plasciticidade de um material – o mítico – que não pode ser objeto exclusivo de críticas/comentários rígidos e racionalizantes; o motivo dos retornos elegíacos, nesse sentido, é totalmente poético, criando os significados cuja finalidade não é evidentemente corrigir Homero ou as Tragédias/Trágicas, mas de expor-lhes a relação, muitas vezes obrigatória, entre escolha de um grande gênero literário e aceitação da história o menos variado possível. O percurso mágico de Medeia nas Metamorfoses traz dois eventos singulares, mas complementares: o rejuvenescimento do pai de Jasão, Éson, e a morte de Pélias. Ao descrever os procedimentos, Ovídio retoma a imagem daquela jovem conhecedora da téchnē tȭn pharmákōn, presente em Apolônio, capaz de interferir na natureza. Os poderes de Medeia são apresentados, num primeiro momento, no canto III da Argonáutica, por seu sobrinho Argo, as práticas realizadas por Medeia envolvem a invocação de forças estranhas, como o poder da deusa ctônica Hécate. Além do epíteto polyphármakon (III, v.27; IV, v.1677) “a de muitos fármacos”, é dito que ela é capaz de controlar o poder do fogo, parar o curso dos rios e encadear as estrelas e os sagrados cursos da lua (III, vv.528-33), poderes que Sánchez (1996, p. 227, n. 454) diz serem comumente atribuídos a magos. A mesma miríade de poderes aparece quando Medeia invoca as divindades obscuras para rejuvenescer Éson nas Metamorfoses (VII, vv.192- 209): “Nox” ait “arcanis fidissima, quaeque diurnis aurea cum luna succeditis ignibus astra, tuque triceps Hecate, quae coeptis conscia nostris 195 adiutrixque venis cantusque artisque magorum, quaeque magos, Tellus, pollentibus instruis herbis, auraeque et venti montesque amnesque lacusque dique omnes nemorum, dique omnes noctis adeste. Quorum ope, cum volui, ripis mirantibus amnes 200 in fontes rediere suos, concussaque sisto, stantia concutio cantu freta, nubila pello nubilaque induco, ventos abigoque vocoque, vipereas rumpo verbis et carmine fauces, vivaque saxa sua convulsaque robora terra 205 et silvas moveo, iubeoque tremescere montes et mugire solum manesque exire sepulcris. Te quoque, Luna, traho, quamvis Temesaea labores aera tuos minuant; currus quoque carmine nostro pallet avi, pallet nostris Aurora venenis. (...)” Ó Noite fidelíssima para os nossos mistérios, e vós, estrelas douradas, que com a lua sucedeis aos fogos do dia, 23 e tu, Hécate, das três cabeças, que conheces meus intentos, 195 e vens ajudar as fórmulas mágicas e as artes dos feiticeiros, e tu, ó Terra, que forneces aos feiticeiros poderosas ervas e vós, brisas e ventos, e montanhas e rios e lagoas, e todos vós, deuses dos bosques e deuses da noite, vinde! Com a vossa ajuda, sempre que quis, fiz retornar à nascente 200 o curso dos rios para pasmo das margens; imobilizo o mar agitado com encantamentos e agito-o quando está imóvel; disperso as nuvens e as nuvens reúno, escorraço os ventos e convoco-os, rebento os queixos das víboras com cantares; pedras e carvalhos e bosques, arranco-os do chão onde estão 205 e mudo-os de sítio, e ordeno eu as montanhas estremeçam e o solo retumbe, e que os fantasmas saiam dos sepulturas. A ti também, Lua, puxo lá de cima, embora o bronze de Témese reduza a tua provação; também o carro de meu avô empalidece com o meu cantar, empalidece a Aurora com as minhas poções. Não há na Argonáutica uma fala similar de Medeia, sequer uma oração como a apresentada aqui: a jovem só não utiliza seus phármaka quando derrota o gigante Talos com seu olhar (IV, vv.1636-93), no resto do poema, ela se vale apenas de suas habilidades com ervas, das quais ela se utilizará, nas Metamorfoses, para rejuvenescer Éson, mas ela não o faz sem uma invocação, que possui uma ligação com outras referências diversas de Apolônio, como observa Ogden (2002, p. 90): Ovídio fornece o mais elaborado relato sobrevivente dos rejuvenescimentos mágicos de Medeia. Parece que o método do caldeirão (que é deliberadamente pervertido no caso de Pélias) foi o tradicionalmente utilizado por Medeia. O método que Ovídio a faz utilizar aqui para rejuvenescer Éson é contundentemente similar ao que subsequentemente encontramos a Ericto de Lucano utilizando para reanimar um corpo por necromancia. Já que o rejuvenescimento de Éson em Ovídio compreende muito material típico de uma evocação necromântica, é provável que tanto ele quanto Lucano estão drenando a inspiração de uma já perdida sequência ou tradição de reanimação. Contudo, Ovído não abandona totalmente o poema de Apolônio neste momento. O procedimento da alusão não é apenas um recurso que tem em vista deixar traços evidentes das fontes literárias utilizadas pelo poeta romano, mas também uma demonstração da autoconsciência poética de Ovídio, especialmente no que tange a relação íntima entre amor e poesia. Albis (1996, p.71) aponta essa relação em Apolônio de Rodes a partir da associação entre o poder de sedução do amor e da poesia, especialmente na relação entre a divindade que infunde diretamente o amor na jovem Medeia, Eros, e a divindade que preside o canto III, Erato (III, 1-2), musa da poesia 24 erótica. Jasão é identificado logo no verso seguinte, com destaque para o fato de ele ter trazido o velocino pelo amor de Medeia, ἔρως/érōs, o que explicita a relação etimológica entre o nome da musa e o do deus do amor (SÁNCHEZ, 1996, p. 205, nota 381). Albis (1996, p.71) observa, ainda, que se espera da audiência que ela não apenas reconheça, por meio desse procedimento, essa relação entre amor e poesia, mas que ela experimente o momento, pois, por o poeta ser a voz das Musas, “a experiência da audiência, assim como a do poeta, é assimilada à experiência de Medeia”. O recurso empregado por Apolônio é utilizado, de forma similar, por Ovídio, no livro VII, como atesta mais uma vez Albis (1996, p. 73): Ovídio, no livro VII das Metamorfoses, também imita a técnica de Apolônio. Aqui, Ovídio trata da história de Jasão e Medeia, então a Argonautica é um modelo óbvio. Durante uma permuta entre Jasão e Medeia, Ovídio jocosamente encoraja sua audiência a simpatizar com os personagens do poema. Jasão pede a Medeia para restaurar a juventude de Éson, e ele completa seu pedido com essas palavras: “si tamen hoc possunt – quid enin non carmina possunt? – deme meis annis, et demptos adde parenti.8 (VII, vv.167-168)”. O carmina que Jasão menciona refere-se obviamente às magias de Medeia, mas claramente Ovídio está também autoconscientemente chamando a atenção para sua própria poesia. O leitor imediatamente pensa no carmen que ele está vivenciando no momento, as Metamorfoses em si, e o poder que elas têm de cativar sua audiência. A magia como carmina é uma proposição interessante, tendo em vista a possível analogia entre, no caso da Medeia da Argonáutica, a téchnē mágica e a poética. A habilidade mágica de Medeia, como mencionado anteriormente, é da ordem da téchnē, e, segundo Nascimento (2007, p.100), nada mais é que o conhecimento ou habilidade passível de ser ensinada a outrem, ou mesmo a habilidade exigida para uma profissão: Podemos afirmar, portanto, que a magia, tal qual apresenta Apolônio de Rodes, é uma τέχνη [téchnē] que envolve o conhecimento, a habilidade e a presteza de Medeia. Tal afirmação tem como base o conceito utilizado por Aristóteles, na Ética a Nicômaco VI, 4, 2-6, que propõe ser a τέχνη [téchnē] a aplicação do saber a um fazer, ou a produção envolta de saber, e, ainda, evidencia que este mesmo termo é utilizado para expressar a habilidade em uma profissão e, de modo geral, a maneira de fazer, o meio, o conjunto de regras, todos 8 “[...] se também for possível (o que não é possível para a magia?), retira anos à minha vida e transfere- os para a de meu pai.” 25 resultantes de um aprendizado. Esse modo de definir a τέχνη [téchnē] pode facilmente ser associada ao termo μαγεία [mageía]. A magia, nesse caso, como já salientado ao início deste trabalho, envolve habilidade, conhecimento aprendido e passível de ser ensinado. Essa possibilidade de transmissão do conhecimento mágico é previsto, por exemplo, nas possibilidades aventadas por Mauss e Lévi-Strauss nas sociedades que analisam e, de fato, é característica inerente ao conceito de que a magia é um elemento social que só funciona legitimada por uma coletividade9. Pavlock (2009, p. 48-9) constata que a Medeia de Ovídio assume uma postura que a alinha com a do narrador e com o próprio poeta, pois há, em um eco de Horácio, especificamente Odes, 1.1, “na qual expressa um desejo por um alto status na lírica”10. E essa transformação da personalidade de Medeia parece ser a efetiva metamorfose do livro VII, de uma jovem bruxa em conflito para uma mulher determinada e consciente de suas ações. Para Rosner-Siegel (1982, p. 239-240), a transformação de Medeia no livro VII segue de acordo com os quatro estágios do ritual que ela prepara para o rejuvenescimento de Éson, a preparação e purificação de Medeia (vv.179-191), que apresenta a sua caracterização visual de modo muito mais próximo de uma feiticeira; a invocação das divindades, apresentada acima (vv.192-219), que traz a primeira descrição não apenas da sua gama de poderes, mas da origem desses poderes e da relação íntima entre a feiticeira e as divindades da noite; a jornada em busca dos ingredientes (vv.219-237), na qual ela voa na carruagem de seu avô, Hélio, o sol, assumindo sua origem divina em uma cena permeada pelo maravilhoso; e, por fim, o ritual de rejuvenescimento (vv.238-293), que traz o total abandono, segundo Rosner- Siegel, da sua natureza humana (1982, p. 239-240): A quarta e última seção descreve o próprio ritual realizado para alcançar o rejuvenescimento de Éson. É nessa seção que ela abandona sua 9 Refere-se aqui aos escritos Esboço de uma teoria geral da magia de Marcel Mauss, que foi primeiramente publicado no Année Sociologique em 1902-03 em parceria com Henri Hubert, e Eficácia Simbólica de Claude Lévi-Strauss, publicado em 1949. Não é pretensão debruçar-se, no presente trabalho, sobre o tema da natureza da magia de Medeia tendo em vista os textos dos estudiosos mencionados já que, ambos os textos, assim como outros textos diversos sobre o tema, são referenciais para a tese de doutorado em desenvolvimento que discute especificamente o tema da magia e da religião na Argonáutica, na qual se desenvolverá uma análise mais aprofundada dessas questões específicas, opondo as práticas mágicas de Medeia às de Orfeu, este último objeto central da análise. 10 Cf. Pavlock, 1996, p. 41-42. 26 natureza humana e se transforma em feiticeira, embora ainda alguém preocupada com um ato benéfico. Essa mudança completa é simbolizada de duas formas. Primeiro há uma reiteração de seus interesses mágicos. Dessa vez, no entanto, os aspectos infernais e selvagens da magia predominam, e há um encantamento para os poderes infernais (249-250). Medeia é novamente descrita, mas dessa vez é comparada a uma Bacante (257-258). Ela se empenha em ritos macabros e cria uma particularmente nociva poção composta tanto de ervas quanto de partes de várias criaturas fantásticas (259-274). Finalmente, agora uma bárbara com mais que um poder mortal (his et mille aliis postquam sine nomine rebus/propositum instruxit mortali barbara maius, 275-276), ela testa sua infusão (275-281). Sua natureza mais selvagem se manifesta ainda mais no próprio rejuvenescimento de Éson enquanto ela corta sua garganta, verte seu sangue e o substitui por suas drogas poderosas (285-293). Em adição à espetacular natureza de sua conquista, Baco testemunha o ato e pede para Medeia realizar o mesmo para suas amas (294-296). A agora bárbara medeia alcançou algo não apenas mais que mortal (mortali... maius, 276), mas muito mais, também, do que um deus pode fazer. A transformação da personagem e a natureza hiperbólica dos poderes de Medeia, que são maiores que os do próprio deus Baco, demonstram que, a partir daquele ponto, Medeia passou pela sua metamorfose que, essencialmente, é uma mudança de caráter. Isso trará como consequência principal a ação seguinte, na qual ela cruelmente engana as filhas de Pélias para que elas matem o pai, acreditando realizar o mesmo procedimento de rejuvenescimento de Éson. Não obstante, é importante recuperar o conceito de timḗ, aquele valor similar à honra, mas que seria melhor traduzido por “valor atribuído a alguém por seus iguais”. Ao metamorfosear-se, medeia deixou para trás o conflito, pois, com atos como o auxílio a Éson e o assassinato de Pélias, ela abandona também sua timḗ. Como ressalta mais uma vez Rosner-Siegel (1982, p. 241), ao deixar de ser a jovem que com sua téchnē auxilia o herói a cumprir seus objetivos e tornar-se uma fria assassina enganadora, a “magia benéfica se tornou destrutiva” e “Medeia se transformou de mulher em bruxa, assim como o amor se transformou em crueldade e ódio, piedade em impiedade, devoção filial a patricídio”. A diferença crucial de tratamento entre as duas Medeias, a das Metamorfoses e a da Argonáutica, é que Apolônio não investe numa mudança tão grande que possa ser considerada uma completa metamorfose, objetivo da presença da narrativa em Ovídio. A personagem que o poeta alexandrino apresenta é, em suma, uma jovem dotada de grandes poderes, mas ainda uma adolescente apaixonada que fugiu de casa com um estrangeiro. Hunter (1987, p. 130) comenta esse perfil da personagem da Argonáutica: 27 Assim, a imagem que possuímos dela não muda; ao invés disso, diferentes aspectos são enfatizados, enquanto a narrativa se move através de uma ampla gama de ação e emoção. Nós podemos comparar com a Medeia de Eurípedes. Ela também é muito esperta e perigosa, mesmo se é dada a seus poderes mágicos, ao final da peça, menos proeminência que em Apolônio, mas ela é também uma mulher que expressa preocupações que Eurípides representa como comum a todas as mulheres e cuja situação, de ser descartada em favor de outra, não é peculiar para mulheres espertas e perigosas. Há, portanto, um evidente contraste entre essa Medeia metamorfoseada e a personagem que é apresentada na Argonáutica. Apesar de ambas possuírem essencialmente a mesma natureza, de utilizarem a téchnē e os phármaka e de manterem íntima relação com as mesmas forças obscuras – especialmente Hécate –, a Medeia de Apolônio mantém em muitos momentos o ar de jovem inocente em conflito. No quarto canto, mesmo já tendo auxiliado Jasão e demonstrado algumas vezes ser uma feiticeira poderosa, Medeia e suas companheiras fogem da serpente que mata Mopso (IV, 1521- 22), algo incoerente se se considerar que ela é capaz de derrotar o dragão que protegia o velocino. Ela age como uma jovem inocente e assustada, ignorante de seus próprios poderes. Algo ainda mais estranho tendo em vista ainda que ela, a seguir, subjugará com seu olhar o gigante Talos, sozinha (IV, vv.1651-88). 28 Considerações finais Observa-se que a presença da Medeia euripidiana em Ovídio e em Apolônio é crucial para a compreensão da dimensão representativa das duas narrativas. Apesar de seu caráter episódico, os livros das Metamorfoses possuem uma unidade entre si pelo tema da metamorfose e uma unidade – ou coerência – interna por conta de um tema comum do episódio circunscrito ao livro. No caso do livro VII, a unidade demanda, também, compreender a metamorfose de Medeia como a mudança de seu caráter ao longo de seu ciclo mítico, especialmente depois de chegar a Iolco. O monólogo inicial estabelece a jovem em conflito, e a partir de suas decisões ela muda gradativamente para a feiticeira forte que não se coloca obstáculos em busca de seus objetivos, até assumir-se como bruxa selvagem e impiedosa. Não se faria necessário, com isso, que Ovídio recontasse o recorte do mito relativo à tragédia de Eurípides, por exemplo, pois a Medeia que encontramos ao final de seu relato é exatamente a Medeia construída a partir dessa alusão, com os reflexos da personagem de Apolônio e, de tal modo, fruto da progressão literária da qual as Metamorfoses são resultado. A partir desse momento, quando ela foge pelos céus após matar Pélias em direção a Corinto, cenário da tragédia euripidiana, Medeia assume-se criminosa. Pavlock compara o voo à experiência criativa do poeta, como uma “forma de libertação das restrições humanas normais” que Wise considera uma analogia com a poesia pela percepção maior que obtém pela visão a partir dos céus, além da natureza artística específica dos meios de voo, como o carro do Sol (WISE apud PAVLOCK, 2009, p. 154, n. 25). Tanto a narrativa da viagem junto aos argonautas quanto a narrativa de sua vingança contra Jasão tem uma extensão reduzida em relação a seu monólogo e aos outros episódios, o que pode denotar justamente o reconhecimento por parte de Ovídio de que tudo que se fazia necessário dizer sobre os episódios já fora dito pela tradição11. Ovídio complementa a tradição, utilizando o recurso da arte allusiva para não apenas construir uma narrativa coesa para sua personagem, mas com aquele intuito derivado do trabalho dos eruditos alexandrinos em que se inspira: transparecer pelo texto, de maneira autoconsciente, seus procedimentos de alusão. 11 Uma espécie de recusatio. Apolônio realiza o mesmo procedimento em I, v.18. 29 Mais que intertextualidade, o procedimento da arte alusiva realizado pelos romanos em relação aos textos anteriores e contemporâneos a ele é parte crucial do procedimento estético ao qual aderem, movimentando a sua tradição a partir desse procedimento e, da mesma forma, se inserindo nessa tradição. Apolônio, por sua vez, é referencial não apenas como objeto, mas como realizador do mesmo movimento em relação a seus antecessores, pois opta por escrever uma história que já era antiga mesmo para Homero, como também destaca Goldhill (1991, p. 285): O conteúdo de seu grande poema, a Argonáutica, é a busca de Jasão pelo Velocino Dourado, e não apenas isso acontece na geração imediatamente anterior à da Ilíada de Homero – nós observamos o pequeno Aquiles vendo a partida de seu pai – mas, também, a história da Argo é expressamente mencionada em Homero como sendo uma canção bem conhecida (Od. XII, vv.69-70). Apolônio volta a um tempo antes do de Homero para escrever – como se fosse para redescobrir – a história já antiga para Homero. E a consciência de Apolônio de seu status epigônico, sua manipulação dos artefatos culturais e linguísticos do passado, são cruciais para esse texto: seus jogos com a linguagem literária, sua confusão de expectativas genéricas, suas representações paródicas de figuras do passado, sua autoconsciência, têm de fato se tornado tópicos padrão na crítica recente da Argonáutica. Porém, mesmo sendo fonte crucial para o texto de Ovídio, o romano não se restringe nem a Apolônio tampouco a Eurípides. A transformação de Medeia traz uma série de possibilidades de leitura que vão muito além da alusão e que evidenciam um poeta preocupado em não apenas reconhecer a tradição, mas dar o passo adiante, com originalidade. A representação da Medeia em Ovídio vai muito além de suas fontes, apresentando uma perspectiva complementar às anteriores sem perdê-las de vista, e inovando no tratamento do mito e da própria tradição – não por acaso, bem ao gosto alexandrino. 30 BIBLIOGRAFIA Edições dos textos antigos: APOLLONIUS RHODIUS. The Argonautica. Edição em grego. Editado com introdução e comentários em inglês por George W. Mooney. London: Longmans, Green and Co., 1912. APOLONIO DE RODAS. Argonáuticas. Trad. de Mariano Valverde Sánchez. Madrid: Editorial Gredos, 1996. APOLONIO DE RODAS. Las Argonáuticas. Trad. de Máximo Brioso Sánchez. Madrid: Ediciones Cátedra, 2003. EURIPIDES. Eurípides in four volumes. Tradução de A. S. Way. Cambridge: Harvard University Press, 1939. OVID. Metamorphoses. Hugo Magnus. Gotha: Friedr. Andr. Perthes, 1892. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3atext%3a1999.02.0029. Último Acesso 19 de outubro de 2013. OVIDE. Héroïdes. 5ème édition. Paris: Les Belles Lettres, 2005. OVÍDIO. Metamorfoses. Trad. de Paulo Farmhouse. Alberto: Cotovia, 2007. Referências bibliográficas e material de apoio: ALBIS, R. V. Poet and audience in the Argonautica of Apollonius. Lanhan: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 1996. CARDOSO, Z. de A. A literatura Latina. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CHANTRAINE, P. Dictionnaire étymologique de la langue grecque: histoire des mots. Paris : Klincksieck, 1999. CLARE, R. J. The Path of Argo: Language, imagery and narrative in the Argonautica of Apollonius Rhodius. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. CURTIUS, E. R. Literatura Europeia e Idade Média Latina. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957. DELBEY, Evrard. Héroïdes d’Ovide. Neuilly: Atlande, 2005. DINIZ, F. G. M. A passagem do cetro: aspectos dos personagens Héracles e Jasão na Argonáutica de Apolônio de Rodes. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista - UNESP. Araraquara, 2010. 31 ______. “Do dramático ao épico: A presença da tragédia na Argonáutica de Apolônio de Rodes.” In: Itinerários, Araraquara, n. 34, p.71-80, jan./jun. 2012a. ______. “Medeia na Argonáutica: um plano trágico de Argo.” CODEX – Revista de Estudos Clássicos, Brasil, 3, jul. 2012b. Disponível em: http://www.letras.ufrj.br/proaera/revistas/index.php?journal=codex&page=article&op=v iew&path%5B%5D=109. Último acesso em: 16 Ago de 2012. ______. Medéia. Tradução de Flávio Ribeiro de Oliveira. São Paulo: Odysseus, 2007. GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jaobouille. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993. GOLDHILL, S. The poet’s voice: Essays on poetic and greek Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. HOUGHTON, V. L. Apollonius Rhodius’ Argonautica: the feminine principle. Michigan: UMI, 1987. HUNTER, R. L. “Medea's Flight: The Fourth Book of the Argonautica”. In: The Classical Quarterly, New Series, Vol. 37, No. 1 (1987), pp. 129-139. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/pdfplus/639351.pdf. Acesso em: 22 de abril de 2013. JOLIVET, Jean-Christophe. Allusion et Fiction Épistolaire dans les Héroïdes : recherches sur l’intertextualité ovidienne. Rome : École Française de Rome, 2001. NASCIMENTO, D. V. A téchne mágica de Medeia no canto terceiro de Os Argonautas de Apolônio de Rodes. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras/Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas, 2007. OGDEN, D. Magic, witchcraft and ghosts in the Greek and Roman worlds. New York: Oxford University Press, 2009. O’HARA, J. J. Inconsistency in Roman Epic: Studies in Catullus, Lucretius, Vergil, Ovid and Lucan. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. PAPANGHELIS, T. D.; RENGAKOS, A. (eds.) A Companion to Apollonius Rhodius. Leiden; Boston; Köln: Brill, 2001. PAVLOCK, Barbara. The image of the poet in Ovid's Metamorphoses. Madison : University of Wisconsin Press, 2009. RODRIGUES JR. F. Canto III da Argonáutica de Apolônio de Rodes. Dissertação de Mestrado. São Paulo: programa de pós-graduação em Letras Clássicas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2005. ROSNER-SIEGEL, J. “Amor, Metamorphosis and Magic: Ovid's Medea (Met. 7.1- 424).” In: Classical Journal, Vol. 77, No. 3. The Classical Association of the Middle 32 West and South, 1982, pp. 231-243. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/3296973. Último acesso: 30 de julho de 2013. VASCONCELLOS, P. S. de. Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio. São Paulo: Humanitas, 2001. ______. “Reflexões sobre a noção de “arte alusiva” e de intertextualidade no estudo da poesia latina.” In: Classica (Brasil) 20.2. São Paulo: Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos/Annablume, 2007. pp.2 39-260. Disponível em: http://classica.org.br/revista/pdf/20/2/ClassicaBrasil_20.2_239-260.pdf. Último Acesso: 16 de outubro de 2013.