Juliane Cristina Bessa, Fernando Silva Teixeira Filho, Kwame Yonatan P. Santos, Juliana Costantin Resende, Juliana Lopes Lima & Thyfani Domingues da Silva Revista de Psicologia da UNESP 10(2), 2011. 7 A “moldura” em análise Juliane Cristina Bessa* Fernando Silva Teixeira Filho† Kwame Yonatan P. Santos* Juliana Rezende Costantin* Juliana Lopes Lima* Thyfani Domingues da Silva* UNESP – Assis Resumo: Considerando que nossa prática tem o intuito de desconstruir estigmas e estereótipos socialmente produzidos e institucionalizados a partir das normatividades de gênero e sexualidade, este trabalho propõe uma reflexão em torno de duas questões que nos tem causado inquietações: o sigilo e a ética relativamente ao atendimento dos pacientes que nos procuram. Isto porque, a maioria dentre estes são LGBTs (lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual e transgênero), e que por estarem em situação de “guetificação” criada pela homofobia e redimensionada pelo contexto de cidade do interior, estão sujeitos a conviver e a se relacionar, o que facilita serem atendidos pelo mesmo projeto de estágio ou terem amigos/as ou namorados/as neste. E é nessa configuração, que o grupo encontra-se interpelado por dilemas éticos que se impõe à relação terapêutica, forçando-o a se reposicionar a respeito da estética, isto é, da “moldura” – setting; da política do tratamento, ou seja, da transferência; e da ética e do sigilo, forçando estes conceitos ao limite. Palavras-chave: Ética, sigilo, clínica psicológica, LGBT, diversidade sexual * Estudantes de psicologia, estagiários do projeto Clinic@rte † Professor Assistente Doutor junto ao Depto. Psicologia Clínica da UNESP, Campus de Assis. Supervisor do projeto Clinic@rte A “moldura” em análise Revista de Psicologia da UNESP 10(2), 2011. 8 Este artigo trata da apresentação e problematização de questões éticas implicadas na realização do projeto de estágio e extensão denominado Clinic@rte. Tal projeto é financiado pela Pró-Reitoria de Extensão, e é desenvolvido junto ao Departamento de Psicologia Clínica da UNESP e a ênfase Políticas Públicas e Clínica Crítica, do campus da UNESP de Assis. Neste projeto realizamos atendimentos clínicos individuais de pessoas cujo sofrimento esteja ligado à vitimização homofóbica e às dificuldades no campo da sexualidade. Estes atendimentos são realizados na clínica escola do curso (Centro de Psicologia e Pesquisa “Drª Betti Katizenstein” – CPPA). O projeto propõe-se a refletir sobre questões relacionadas à produção das subjetivações articuladas à discriminação frente às orientações sexuais, assim como a construção das identidades de gênero dissidentes do padrão heterossexual em interface com os marcadores sociais de diferença (raça/etnia, classes social, geração, escolaridade dentre outros). Assim, nossa prática compreende a subjetividade como construção em processo e enfatiza a desconstrução das identidades em sua relação com a heteronormatividade compulsória. Para tanto, temos dialogado com teóricos/as pós-estruturalistas dos Estudos Queer, Culturais e Filosofia, articulados a um enquadre clínico psicanalítico. A partir dessas leituras, partimos do princípio de que o heterocentrismo refere-se a um modo de pensar, agir e sentir que coloca a heterossexualidade como referência primeira dos desejos, ideais, princípios e valores, o qual produz, por sua vez, um sentimento de superioridade em relação a todas as outras expressões da orientação sexual e do desejo. Isso se processa desse modo, pois vivemos em uma socieade heterocentrada que se organiza a partir de uma heteronormatividade compulsória (RICH, 1986, p.41-86). Ou seja, que tem a heterossexualidade como padrão normativo e de normalidade. Tanto é assim que ninguém é concebido, ensinado, estimulado a ser homossexual ou bissexual, mas sim a ser heterossexual. Ninguém diz a um menino de cinco anos que, por qualquer razão, dá um beijo em seu amiguinho, que “os dois vão se casar” quando crescerem. A não ser que o diga com ironia, em tom de chiste ou como forma de ofensa. Esse fato vem marcar que a manifestação pública de afetos como o beijo, o abraço, o carinho entre pessoas de mesmo sexo biológico (e veja que falamos de crianças), não sejam estimulados. É muito comum ouvirmos, por exemplo, professores, às vezes de Educação Física, às vezes não, recusarem-se a ser beijados por meninos. Sempre se escuta: “Homem não dá beijo em homem! Dê-me aqui um aperto de mão”, e emenda (na melhor das hipóteses): “Só na Rússia isso é permitido”. Isso revela que cada cultura interpreta, normatiza e legisla sobre as trocas de afetos entre as pessoas de sexo biológico semelhante e/ou diferente de modos distintos. Ou seja, por conta da heteronormatividade compulsória que estimula o heterocentrismo, desenvolvemos a noção de que o amor entre iguais deve ser reprimido, escondido, abafado e, em alguns casos extremos, exterminado. Isso mostra que, de fato, a heterossexualidade se constrói como negativo da homossexualidade e também explica, em parte o porquê ser mais fácil em algumas sociedades “aceitar” as pessoas homossexuais (masculinas e/ou femininas) que “não são assumidas” ou que “são assumidas discretamente”. Ao olharmos para eles/as, não precisamos “rever conceitos”, “não nos sentimos como que ‘forçados’ a repensar o que aprendemos, o que ensinamos e o que supomos ser. Como dissemos, a definição de homossexualidade, bem como a de sexualidade, heterossexualiade, bissexualidade e outras, variam conforme a cultura de cada povo. Juliane Cristina Bessa, Fernando Silva Teixeira Filho, Kwame Yonatan P. Santos, Juliana Costantin Resende, Juliana Lopes Lima & Thyfani Domingues da Silva Revista de Psicologia da UNESP 10(2), 2011. 9 O filósofo francês Michel Foucault (1976; 1984a; 1984b) em sua trilogia Histoire de la Sexualité, observou que a identidade homossexual é um fenômeno moderno. Ou seja, até o século XIX as pessoas de mesmo sexo biológico se relacionavam sexual e eroticamente (homoeroticamente), mas não eram chamadas homossexuais e, portanto, não se sentiam enquanto tais. Assim, as práticas homoeróticas existiam, mas não existia a homossexualidade. Segundo HABOURY (2003, p.256), a palavra homossexual foi usada pela primeira vez na Alemanha em 1869, pelo escritor austro-húngaro, Karl Maria Kertbeny. Ele irá publicá-la, em manuscritos clandestinos, dirigidos ao governo alemão, visando combater o Código penal 143 prussiano que criminalizava esta prática sexual, argumentando que não se podia criminalizar uma condição “inata” e “natural” compartilhada por muitos homens de bem na história (Entretanto, a Alemanha só o faz em 1969 [HAGGERTY et al, 2000, p. 451]). Em 1880, Gustav Jaeger (zoólogo) convida Kertbeny para realizar o prefácio de seu livro (Entdeckung der Seele [A descoberta da Alma]). Richard von Kraft-Ebing (sexólogo), amigo de Gustav, decidi utilizar esse termo em 1887 na segunda edição de seu famoso livro Psychopathia sexualis. Assim, o termo nasce da militância contra a criminalização do homoerotismo e se torna signo de doença. Nesse caso, portanto, podemos afirmar que a homossexualidade foi inventada historicamente como uma categoria específica e oposta a uma norma que se define por aquilo que ela rejeita. Assim, é esperado que as pesquisas no campo das sexualidades também se interroguem sobre a invenção concomitante da “heterossexualidade” e sobre os discursos que a construíram como realidade normativa (KATZ, 1996). Em outras palavras, a recém criada homossexualidade ganha status de perversão, sai do rol dos pecados atribuídos pela Igreja Cristã (HELMINIAK, 1998) e passa a ser considerada uma doença ou transtorno psíquico. O que Foucault (1988a) demonstra é que nesse período, aquilo que era uma prática, uma ação, passa a ser compreendido como uma ‘intenção’, uma ‘tendência’, mais propriamente, um desejo. A partir de seus estudos sobre dispositivos, Foucault (1995, p.229-30) irá considerar a sexualidade como um dentre os vários dispositivos que visam controlar e produzir ações humanas seja no plano individual, coletivo, social e cultural. …a partir do cristianismo, o Ocidente não parou de dizer ‘para saber que és, conheças teu sexo’. O sexo sempre foi o núcleo onde se aloja juntamente com o devir de nossa espécie, nossa ‘verdade’ de sujeito humano. A confissão, o exame de consciência, toda uma insistência sobre os segredos e a importância da carne não foram somente um meio de proibir o sexo ou de afastá-lo o mais possível da consciência; foi uma forma de colocar a sexualidade no centro da existência e de ligar a salvação ao domínio de seus movimentos obscuros. O sexo foi aquilo que, nas sociedades cristãs, era preciso examinar, vigiar, confessar, transformar em discurso. A sexualidade, portanto, passa a ser não apenas uma prática a qual todas as pessoas estavam passíveis de se submeterem, mas também uma ação norteada por um desejo específico: o desejo homossexual. Desse modo, a sexualidade pode ser compreendida como um dispositivo de poder, o qual visa controlar a ação das pessoas, para que tudo funcione conforme a ordem simbólica previamente estabelecida, isto é, a heterossexual. Tal ordem, não intenciona senão manter o poder que atravessa os corpos, tornando-os dóceis, por exemplo, a partir das práticas disciplinares. Tal poder, não se concentra da figura de um tirano, ditador, presidente ou maquinarias institucionais A “moldura” em análise Revista de Psicologia da UNESP 10(2), 2011. 10 específicas (família, religião, medicina etc). Outrossim, o poder espalha-se em rede, agenciando discursos de diferentes ordens, locais e regiões os quais se dobram, tomam corpo em instituições, pessoas e corporações que se fazem notar alternadamente em períodos históricos distintos. Assim, para Foucault (1995, p.145-152), nunca houve uma repressão massiva sobre as sexualidades. Mas antes, existiu uma grande e massiva literatura científica, popular, religiosa e política a qual objetivava normatizar, controlar e conter a natureza multifacetada e diferencial das manifestações das sexualidades. Deste modo, a captura dos discursos médicos, religiosos e jurídicos pelos dispositivos de poder (sendo a sexualidade um deles), autorizou que os mencionados psiquiatras, daquele período, categorizassem a homossexualidade como patologia, desvio e/ou inversão. Mas, atualmente, apesar de a homossexualidade já não ser considerada patologia‡, as pessoas que se autodeclaram homossexuais, na contemporaneidade, ainda sofrem preconceitos e discriminações das mais variadas maneiras (Costa 1992;1995; Anderson apud Sugar, 1992; Santos 2004;2009; Green 2000). Logo, nenhuma identidade sexual é dada desde sempre, nem mesmo a heterossexual. Toda e qualquer identidade sexual é construída social, histórica e culturalmente. Entretanto, sabe-se (e veremos o porquê disso) que a sociedade nos faz crer que a heterossexualidade seja natural, normal e predominante. Nesse caso, portanto, acreditamos que a pessoa homossexual deva ela mesma, se sentir uma “estranha” nos espaços de socialização que circula. Não por questões específicas de sua pessoa, mas por conta da não aceitação social de sua identidade sexual, também conhecida como homofobia (TIN, 2003). Desse processo de heteronormatização da subjetividade deriva, portanto, a homofobia que, a partir de Golin e Weiler (1999), entedemos como o medo, aversão, descrédito e/ou ódio às pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT), de modo a desvalorizá-lo/as por não performarem seus gêneros (Butler, 2003) em correspondência com aquilo que é social e culturalmente atribuído para seus corpos biológicos, papéis e/ou comportamentos. Como diz Castañeda (2007): Isso [a homofobia] afeta inevitavelmente seu [o da pessoa homossexual] modo de ser no mundo. Acostumados a esconder uma parte essencial de seus desejos e de suas necessidades afetivas, mostram freqüentemente apenas um aspecto superficial deles mesmos. Muitos deles têm dificuldade de expressar, e até mesmo identificar, seus sentimentos; podem parecer superficiais ou pouco interessados pelos outros. Escondem, às vezes, sua realidade cotidiana: assim ouvem-se homossexuais que vivem há anos com alguém falar como se estivessem sozinhos. Pode-se facilmente concluir que são pessoas solitárias, pouco sociáveis ou sinceras. E esta impressão pode lhes causar dificuldades, tanto na vida social quanto na esfera íntima. Entretanto, o problema não é que eles rejeitam a sociedade, mas sim que a sociedade os rejeita (op.cit., p. 19-20). ‡ Em 1974, a APA- Associação Psiquiátrica Americana, retira do DSM- Manual de Diagnóstico e Estatística dos Distúrbios Mentais - a homossexualidade como desvio ou perversão, em 1993, a OMS- CID 10ª Edição, também retira a classificação de desvio ou perversão da homossexualidade e em 1999, o CFP - Conselho Federal de Psicologia edita a resolução 1/99, impedindo que psicólogos tentem “curar”, participem de manifestações homofóbicas (Garcia, 2001). Juliane Cristina Bessa, Fernando Silva Teixeira Filho, Kwame Yonatan P. Santos, Juliana Costantin Resende, Juliana Lopes Lima & Thyfani Domingues da Silva Revista de Psicologia da UNESP 10(2), 2011. 11 A singularidade da nossa clínica junto à população LGBT reside exatamente no recorte que fazemos: trata-se de desconstruirmos a homofobia e não a homossexualidade. A postura (hetero)sexista no e do espaço contexto social impede que os(as) jovens homossexuais realizem o luto da heterossexualidade. Como aponta Castañeda (2007, p. 91), “todas as crianças são criadas por seus pais a partir de um modelo heterosexista que lhes faz crer que um dia irão se casar e formar uma família: é o que lhes repetem incansavelmente seus pais, a escola, a cultura e a sociedade em geral”. Evidentemente que com o passar do tempo, alguns jovens irão perceber que talvez se sintam mais atraídos por pessoas do mesmo sexo biológico que o seu e/ou por ambas. Há, portanto, um exercício (em geral solitário) de abandono dessa expectativa social e cultural que vem acompanhada de um “luto” lento e, em alguns casos, doloroso. Seguindo o modelo da médica americana, Elizabeth Kübler-Ross (1992), Castañeda nos trará um instrumental clínico interessante para pensarmos os processos de subjetivação por que passam os/as adolescentes que se descobrem “diferentes” comparativamente a seus colegas que se dizem “exclusivamente heterossexuais”. Segundo essa autora (ibid., p.91), para o/a adolescente que toma consciência de sua homossexualidade, encontramos, portanto, a negação (“Talvez não seja verdade”), a raiva (“Por que eu?”), a barganha (“Farei de tudo para evitar isso. Vou compensar esse ‘defeito’ sendo o melhor”), a depressão (“Nunca serei feliz”), e, enfim, se tudo der certo, a aceitação (“Sou o que sou e não preciso nem me esconder, nem tentar agradar ninguém para ser aceito”). Assim, uma vez forçado pela prerrogativa heterocentrica de manifestação das sexualidades, os/as adolescentes homossexuais tentarão ser o que não é, vivendo e atuando o que não sentem para protegerem-se das injúrias e agressões sociais (ERIBON, 2008). Ou então, inversamente, poderá tentar “compensar” sua “falha” sendo o/a “melhor” em muitos campos de sua atividade intelectual, desportiva etc. Na pior das hipóteses, poderá também “odiar-se” porque não consegue ser o que desejam que seja, “desembocando, portanto, na raiva de si mesmo que pode levar à depressão e conseqüente tentativa de suicídio” (REMAFEDI et al, 1991, 1994; GAROFALO, 1998, 2001; DIDIER & FIRDION, 2003). Nos Estados Unidos, segundo estimativas desses pesquisadores, um em cada três homossexuais tentou se suicidar pelo menos uma vez (GAROFALO & KATZ, 2001). Assim, estas posturas e sentimentos de desmerecimento sobre si mesmo, que como estudou Hardin (2000, p. 91), nascem das mensagens negativas (homofóbicas) amplamente divulgadas pela sociedade (família, mídia, escola etc) a respeito da homossexualidade, acabam por se relacionar a determinados comportamentos de risco que, claro, são comuns na adolescência, mas que, no caso dos adolescentes homossexuais assumem um grau maior, tais como iniciação sexual que pode se dar no contexto da clandestinidade, sem apoio de amigos e familiares; maiores chances de exposição ao uso de de álcool e outras drogas, haja visto que não será incomum que os primeiros contatos desse/a adolescente se dá em bares, festas e outros locais onde circulam adultos LGBT já assumidos. Crê-se que se os/as adolescentes homossexuais estivessem inseridos/as em um ambiente onde a homossexualidade fosse aceita, o luto da heterossexualidade poderia ser melhor elaborado ou até mesmo desnecessário. Na sua maioria, estas pessoas por nós atendidas, por estarem inseridas em um contexto de cidade do interior, estão sujeitas à situação de “guetificação”, isto é, em geral todos se conhecem, o que facilita o estabelecimento de relações diversas entre A “moldura” em análise Revista de Psicologia da UNESP 10(2), 2011. 12 elas, bem como da elaboração do luto da heterossexualidade. Não obstante a isto, este estado de “guetificação” produz situações clínicas inusitadas, não sendo incomum que um paciente que seja atendido por um estagiário seja amigo/namorado de um outro paciente atendido pelo mesmo ou outro estagiário; ou ainda, que o terapeuta em formação, também LGBT, seja amigo/namorado de um paciente atendido por um colega. Tais circunstâncias ocorrem pois, o espaço “guetificado” é o local onde as relações homoeróticas tornam-se visíveis aos próprios LGBT, porém, invisíveis para o mundo heteronormativo (PEREIRA, 2008, p.19). Ele se revela em uma forma estratégica de resistência e de afirmação sexual, pois é nele que se amplia a oportunidade de encontrar parceiros e viver experiências, assim como também contribui para reduzir os sentimentos de desconforto e culpa em relação à própria sexualidade. Sendo assim, os “guetos” terminam sendo um refúgio acolhedor e uma forma de se esquivar das dificuldades encontradas na sociedade heteronormativa. É nessa configuração que nos encontramos interpelados por dilemas éticos que se impõem à relação terapêutica, visto que no decorrer do nosso trabalho começaram a surgir alguns incômodos, que nos fizeram questionar sobre algumas questões relacionadas a nossa prática psicoterapeutica. Até onde somos psicólogos? Até onde vai a clínica? Onde fica o papel de psicoterapeuta quando estamos fora do setting clínico? Enfim, essas e outras indagações vêm nos causando inquietações e através delas estamos refletidindo sobre o sigilo e a ética na clínica psicológica. As situações que temos vivenciado interpelam o grupo de estagiários e supervisor a se reposicionarem a respeito da estética, isto é, do setting, da política do tratamento, ou seja, da transferência, bem como da ética e do sigilo, forçando estes conceitos ao limite. Sendo assim, não se trata de definir tais limites, mas sim mapear as relações que acontecem nas margens dos encontros. (DELEUZE, 1992) O setting analítico pode ser traduzido por moldura, pois seria somente “uma cerca virada para fora” (HERRMAMM, 1991), ou seja, um espaço que deve possibilitar a emergência da clínica psicanalítica. Esta, por sua vez, é antes de tudo uma posição discursiva dentro do discurso do analista (QUINET, 2001), um lugar de suposto saber, suposto pelo paciente. Logo, a “moldura” analítica não faz a clínica, pois esta é referendada na transferência de saber dirigida ao inconsciente, ou seja, ao “que não se sabe”, a um saber que precisa ser construído na relação dialógica. Dessa forma, o tratamento analítico se inicia a partir do estabelecimento de uma transferência, esta, tendo sido estabelecida, produz uma “neurose de transferência” no sujeito: “(...) o campo transferencial proporciona uma teoria essencialmente clínica, dispensando-nos de construir hipóteses acerca do que é anterior ou exterior à sessão.” (HERRMANN, 1991, p.31) Logo, se o método psicanalítico produz esse sujeito, podemos perceber que a sensação de incômodo é produzida no atrito transferencial com o campo da ética. Nesse sentido, Lacan teorizou sobre a aproximação necessária entre ética e clínica, afirmando que a experiência psicanalítica é, antes de tudo, uma experiência ética. "Os limites éticos da análise coincidem com os limites de sua práxis." (LACAN, 1988, p. 32) Juliane Cristina Bessa, Fernando Silva Teixeira Filho, Kwame Yonatan P. Santos, Juliana Costantin Resende, Juliana Lopes Lima & Thyfani Domingues da Silva Revista de Psicologia da UNESP 10(2), 2011. 13 Essa via de abordagem da questão ética permite traçar novos caminhos para o debate em torno de problemáticas tão complexas, pois percebe-se que não há uma fórmula preconcebida que possa dar conta de todos os paradoxos do cotidiano da clínica, mas sim tentar encontrar articulações, para que com isso possamos nos colocar de maneira mais segura com relação aos cenários desafiadores do nosso cotidiano profissional. Bessa, J.C., Filho, F.S.T., Santos, K.Y.P., Resende, J.C., Lima, J.L., Silva, T.D. (2011) The “setting” in analysis. Revista de Psicologia da UNESP, 10(2), 7-15. Abstract: Considering that our practice is intended to deconstruct stigmas and stereotypes socially produced and institutionalized from normativities of gender and sexuality, this work proposes a reflection on two issues which has caused concerns: the secrecy and the ethics in relation to the patients who come to us. This is because, most of these are LGBTs (lesbian, gay, bisexual, transvestite, transsexual and transgender), and that by being in a situation of "ghettoization” created by homophobia and resized by inner city context, are subject to coexist and to relate, what makes be serviced by the same internship project or have friends or lovers in this. And, in this configuration, the group is questioned by ethical dilemmas which imposes on the therapeutic relationship, forcing him to repositioning the respect of aesthetics, this is, the "picture frame" – setting, the treatment policy, the transference, the ethics and the secrecy, forcing these concepts to the limit. Keywords: ethics; secrecy; psychological clinic; LGBT; sexual diversity. Bibliografia ANDERSON, Dennis (1992). Homossexualidade na adolescência. Em SUGAR, Max. Adolescência atípica e sexualidade, p. 160-176 Porto Alegre: Ed. Artes Médicas. BUTLER, Judith (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. CASTAÑEDA, M. (2007). A experiência homossexual: explicações e conselhos para os homossexuais, suas famílias e seus terapeutas. (Tradução de Brigitte Monique Hervot e Fernando Silva Teixeira Filho). São Paulo: A Girafa Editora. DELEUZE, Gilles (1992). Conversações.Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora: 34. ERIBON, Didier (2008). Reflexões sobre a questão gay. (Tradução de Procópio Abreu). Rio de Janeiro: Companhia de Freud. A “moldura” em análise Revista de Psicologia da UNESP 10(2), 2011. 14 FOUCAULT, Michel (1976). Histoire de la Sexualité I. La Volonté de Savoir. 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