UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA CAMPUS EXPERIMENTAL DE OURINHOS O TURISMO E AS ASSOCIAÇÕES DE MORADORES: UM ESTUDO NA COMUNIDADE CAIÇARA DA PRAIA DO SONO-RJ Sergio Elias Caperuci OURINHOS- SP 2012 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA CAMPUS EXPERIMENTAL DE OURINHOS O TURISMO E AS ASSOCIAÇÕES DE MORADORES: UM ESTUDO NA COMUNIDADE CAIÇARA DA PRAIA DO SONO-RJ Sergio Elias Caperuci Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Comissão de Avaliação de TCC do Curso de Graduação em Geografia – Bacharelado, do Campus Experimental de Ourinhos – UNESP, sob orientação da professora Dra. Luciene Cristina Risso. OURINHOS- SP 2012 Banca Examinadora __________________________________ Prof.ª Dr.ª Luciene Cristina Risso (orientadora). ___________________________________ Prof. Dr. Paulo Fernando Cirino Mourão. ____________________________________ Prof.ª Dr.ª Fabiana Lopes da Cunha Ourinhos. Julho de 2012. AGRADECIMENTOS Agradeço a toda comunidade do Sono por possibilitar, de forma muito paciente e amigável, a realização das pesquisas e conceder fiéis relatos de sua história e uma rica convivência. Principalmente Leila da Conceição, que, por meio de vastas conversas, instigou a realização de uma análise científica da Associação de moradores do Sono, mostrando a importância da organização política na vida da comunidade. Sem deixar de ressaltar toda ajuda que recebi com relação a hospedagem, acolhimento e provisões por parte de toda a comunidade. Agradeço a Universidade Estadual Paulista (UNESP) por minha formação e por possibilitar a realização dessa pesquisa, com orientação e financiamento, especialmente a professora Doutora Luciene Cristina Risso, que com muita paciência me orientou e me forneceu a base necessária para a realização de todas as etapas do projeto. Sem nunca deixar de lembrar todos os professores que contribuíram na minha jornada acadêmica e têm participação na formação de minhas ideias, sem eles nunca conseguiria alcançar meus objetivos. E a banca pela disponibilidade em participar de forma a contribuir neste trabalho. Agradeço a todos meus companheiros de sala, amigos e colaboradores, pessoas que dividi meu teto e que me forneceram muitos momentos bons, muitas experiências e vivências. Através do convívio em república e da vida que tive em Ourinhos, conheci mais sobre o mundo, sobre a vida e sobre mim mesmo, e nesse ponto posso afirmar que hoje sou uma pessoa muito mais completa graças à contribuição e ajuda fornecida por parte de todos os entes queridos que conheci durante essa etapa de minha vida. Agradeço principalmente a minha família que sempre me apoiou em todas as minhas decisões e em todos os momentos bons e ruins ficaram ao meu lado sem hesitar, me dando todo o apoio psicológico e financeiro e pessoal de que precisei, sem o qual nunca chegaria até aqui. RESUMO Este trabalho parte de pesquisas realizadas na comunidade caiçara da Praia do Sono, no município de Paraty, Rio de Janeiro. Pode-se observar que estão ocorrendo transformações significativas no cotidiano dos moradores dessa comunidade em virtude do desenvolvimento das atividades turísticas. Esse fato altera toda a dinâmica da comunidade, que atualmente vem se adaptando a essa nova realidade, em um processo dialético e conflituoso. Através da revisão bibliográfica, e de pesquisas qualitativas em campo, esse trabalho busca interpretar as mudanças pelas quais essa comunidade vem passando em virtude desse fato e entender qual é o papel desenvolvido pela associação de moradores no que diz respeito à organização, manutenção e defesa dos interesses dos caiçaras do Sono. Alem do caráter organizativo da associação, evidencia-se que esta desenvolve um papel central na organização política e social dentro da comunidade, bem como leva a instancias superiores as aspirações e necessidades dos caiçara. Palavras-chaves: Geografia – Comunidade Caiçara – Turismo – Associação de Moradores. ABSTRACT This paper presents research performed out in the community caiçara of Praia do Sono, in the municipality of Paraty, Rio de Janeiro. It may be noted that significant changes are occurring in daily life of residents of this community due to the development of tourist activities. This fact changes the whole dynamic of the community, which currently has adapted to this new reality, in a dialectical process and conflicting. Through literature review and qualitative research conducted in field this paper seeks to interpret the changes by which this community has experienced because of this fact, and understand what is the role played by the neighborhood association regarding the organization, maintenance and defense of the interests of caiçaras of Sono. Besides the organizational character of the association, it is evident that develops a central role in political and social organization within the community, as well as instances leads to higher aspirations and needs of caiçara. Keywords: Geography - Community Caiçara - Tourism - Residents Association SUMARIO 1-INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 8 2- METODOLOGIA ............................................................................................................. 11 3 - DO DOMÍNIO AO LUGAR, RECONHECENDO A PRAIA DO SONO ............................ 12 4- PROCESSO DE OCUPAÇÃO HISTÓRICA .................................................................... 16 4.1– O grileiro de terras ................................................................................................................. 18 4.2– A criação da Unidade de Conservação .............................................................................. 19 4.3 – A chegada do turismo .......................................................................................................... 22 5 - A COMUNIDADE CAIÇARA DA PRAIA DO SONO ...................................................... 23 6 – O TURISMO E SUAS IMPLICAÇÕES ........................................................................... 32 6.1 – Desenvolvimento do turismo em comunidades caiçara, o caso da Praia do Sono -RJ ........................................................................................................................................................... 40 7 – RESULTADOS E DISCUSSÕES ................................................................................... 46 7.1 - Criação e desenvolvimento da associação de moradores ............................................. 46 8- CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 59 9- REFERÊNCIAS. .............................................................................................................. 62 ANEXOS ............................................................................................................................. 64 ÍNDICE DE FIGURAS1 Figura 1: Localização da comunidade da Praia do Sono, Parati – RJ.________________12 Figura 2: Relevo da costa___________________________________________________14 Figura 3: Imagem aérea do Sono tirada na década de 70._________________________21 Figura 4: Casas e estaleiros na praia._________________________________________23 Figura 5: Barcos e redes de pesca.___________________________________________24 Figura 6: Horta doméstica__________________________________________________27 Figura 7: Área central da comunidade._________________________________________28 Figura 8: moradora em um dia de rotina nos meses de inverno_____________________31 Figura 9: Placa de recepção aos turistas_______________________________________40 Figura 10: Posto de informações da comunidade na alta temporada__________________41 Figura 11: Turistas acomodados na Praia_______________________________________42 Figura 12: Barracas armadas em áreas previamente delimitadas____________________43 Figura 13: Área externa da residência destinada à acomodação de turistas____________44 Figura 14: Tendas armadas na Praia na alta temporada___________________________45 Figura 15: Início da trilha do acesso por terra em dia chuvoso.______________________46 Figura 16: Mapa de localização e acesso pavimentado____________________________50 Figura 17: Trecho do percurso pela mata._______________________________________51 Figura 18: imagem de satélite do Condomínio das Laranjeiras______________________54 1 Créditos das imagens a Sergio Elias Caperuci. 8 1-INTRODUÇÃO A comunidade do Sono situa-se no sul do estado do Rio de Janeiro, divisa com o estado de São Paulo, pertencente ao município de Paraty. Inserida em um fragmento de Mata atlântica extremamente preservada, essa praia é privilegiada por ter um grande potencial paisagístico em virtude de suas belezas naturais, fato que fizera o governo federal e estadual instaurar unidades de conservação nessa localidade, com a finalidade de se preservar o pouco que ainda resta dessa mata na região sudeste do Brasil. Dentro dessas unidades, além das belezas naturais, também se pode observar uma paisagem humana muito interessante. Essa área muito antes de receber atenção do governo, especuladores e turistas, era o lar de inúmeras comunidades caiçara que já viviam nessa região há centenas de anos. Em seus aspectos culturais, comunidades tradicionais caiçara são consideradas como sendo agrupamentos humanos que, com algumas centenas de pessoas, formam vilas de pescadores e agricultores principalmente no litoral. Essas pessoas historicamente retiravam seu sustento do mar e de sua força de trabalho na agricultura, gerando algum excedente que comercializavam na cidade de Paraty. Esses agrupamentos passaram longas décadas vivendo dessa forma, rodeados de mata por todos os lados, aventurando-se ao mar e desenvolvendo uma cultura extremamente rica, em um envolvimento com a natureza quase que total, conhecendo seus segredos e ciclos, aprendendo a retirar somente aquilo que lhes é necessário, e apesar do pouco estudo tendo conhecimento e uma orientação impressionante. Porém essa realidade que em muito aparenta quase orgânica, esconde muitas lutas que os caiçaras dessa região travaram e ainda travam contra inúmeros agentes. Essas comunidades localizam em pontos dispersos em meio à vegetação, a única maneira de se ter acesso a elas é por meio de uma trilha em meio à mata de aproximadamente 2 horas, pois a estrada não chega até a vila. A alternativa para essa trilha é através do mar. Deve-se utilizar um barco, que fica dentro de um condomínio residencial, e navegar até a praia do Sono. Vale ressaltar que os moradores têm grandes restrições de acesso a essa área. Da década de 70 em diante, a facilidade de acesso fez com que essa região desenvolvesse um grande fluxo de turistas das grandes cidades, fato que ocasionou alguns impactos que até então eram desconhecidos. Grandes empresas do ramo turístico observam nessa região uma grande potencialidade para o mercado do lazer, vendendo uma imagem de paraíso intocado e atraindo pessoas a conhecer e desfrutar dessa paisagem natural, visto que atualmente áreas de natureza com o desenvolvimento do turismo passam por grande valorização. 9 Essa valorização do meio ambiente ocorrida no fim da década de 80 – no começo dos anos 90 no Brasil, mais com a ECO-92 – chegou à pratica turística, batizando o chamado ecoturismo, ou turismo de aventura. Isso fez com que destinos que tinham como finalidade a contemplação da natureza ganhassem grande relevância. Foi o que aconteceu na Comunidade do Sono e em mais onze comunidades inseridas na mesma unidade de conservação. O aumento exponencial da atividade turística gerou e ainda gera muitas transformações no cotidiano dessas comunidades, que ainda se adaptam à nova realidade e tentam de alguma forma tirar proveito. Essas transformações podem se manifestar desde a perda de pequenas práticas e hábitos do dia a dia, até mudanças em padrões de consumo e relações sociais. Ocorre também que, em muitos aspectos, essas comunidades possuem uma infraestrutura e uma disponibilidade de serviços básicos incipientes. Esse fato, aliado a um alto número de pessoas visitando esse local, estrangula a estrutura da comunidade e gera muitos impactos sociais e ambientais, sem falar da “reorganização” do espaço em função do atendimento das demandas turísticas vindas de fora pra dentro, exigindo uma gama de serviços que nem os próprios nativos dispõem. Em viagens realizadas para essa comunidade durante alguns anos consecutivos, nota-se que a atividade turística vem aumentando significativamente, se tornado cada vez mais presente na vida da comunidade e transformando seu modo de se relacionar consigo e com o meio. Ocorre nessa área um turismo sazonal nos meses de verão no Brasil, época em que a comunidade recebe visitantes de inúmeros lugares. Cada um ao seu modo, os moradores tentam tirar proveito dessa demanda, fazendo algumas economias que os auxiliarão nos meses mais frios do ano, quando desenvolvem outras atividades como a pesca e pequenos serviços na cidade. Para o desenvolvimento do trabalho, se busca realizar uma análise com a finalidade de se ter uma ideia de como esse setor relativamente jovem da economia – que tem no consumo do espaço sua principal propaganda – influencia a dinâmica da comunidade e, além disso, como a população vem lidando com esses fatores. O presente trabalho terá como foco uma análise do papel que as associações de moradores desenvolvem em defesa dos interesses dos caiçaras, como essas associações trabalham e como lidam com esse feroz mercado. Não irá buscar somente a opinião com relação a transformações em seu dia a dia, mas também quais são as medidas que estão sendo tomadas na prática para regulamentar a atividade e assegurar que seja desenvolvida de forma coerente e racional, sem comprometer a rica cultura e o meio ambiente, pois, como apresentado, o fluxo turístico causa impactos oriundos da reorganização do território. A escolha pessoal dessa localidade para o desenvolvimento do estudo se deu primeiro em virtude de uma grande admiração pela cultura caiçara que se desenvolveu com 10 viagens, leituras e, principalmente, vivências com essa comunidade. Em segundo pela admiração por essa comunidade, que resiste e triunfa com muito trabalho e muita luta, possuindo uma rica história e um amor por seu lugar fora do comum. Depois de alguma fundamentação e certo empirismo, acredita-se que, antes de pensar em formas de se “proteger” o meio ambiente, se deve levar em consideração os aspectos sociais, ou seja, ao invés de se construir uma “barreira”, ou tentar “isolar” áreas com a finalidade de preservação, pensar formas de se preservar o meio vivente, através do uso racional dos recursos e de uma máxima sintonia com o meio, podendo-se retirar o sustento através do trabalho, gerar renda e utilizar todo o potencial paisagístico em função da população. Visto isso, acredita-se que, para um desenvolvimento sem discrepâncias sociais, gerando renda e meios de vida dignos a população e possibilitando o desenvolvimento de um turismo controlado e racional, deve-se, antes de tudo, assegurar a participação e engajamento político de todos em questões de interesse coletivo. 11 2- METODOLOGIA Esse trabalho foi realizado no período de um ano, considerando a elaboração de sua proposta até a conclusão das pesquisas e redação do texto final. Para a conclusão desse projeto os encaminhamentos foram divididos em três principais etapas. A primeira etapa trata-se da revisão bibliográfica em gabinete. Com o auxílio da orientadora, foram apontados os pontos principais a serem fundamentados, para uma melhor interpretação da realidade em campo. Essa etapa permitiu que se desenvolvesse um olhar científico sobre o objeto da pesquisa, fundamental para o desenvolvimento das atividades subsequentes. Posteriormente houve a necessidade da realização de dois trabalhos de campo na comunidade, em períodos distintos, sendo o primeiro na baixa temporada turística e o segundo na alta temporada. O campo realizado na baixa temporada ocorreu entre os dias 28/08/2011 e 02/09/2011 e permitiu que se tivesse uma vivência no cotidiano da comunidade sem nenhum movimento turístico. O segundo campo foi realizado entre os dias 28/12/2011 e 05/01/2012, época do ano em que ocorre o maior fluxo turístico da comunidade. Durante a realização desses trabalhos, foram realizadas entrevistas com os moradores nativos mais antigos e lideranças do Sono. Essa etapa possibilitou a observação empírica do cotidiano da comunidade, comportamento de turistas e moradores e inúmeros elementos que pudessem contribuir de alguma forma para a realização dos objetivos propostos no projeto. Foram aplicados 15 questionários nessa etapa. Foi de fundamental importância poder, através do campo, observar as transformações na paisagem em virtude da sazonalidade turística nessa localidade. Nesse ponto é importante se destacar as dificuldades encontradas para a obtenção de informações e fundamentação para o desenvolvimento das discussões pertinentes ao tema, essas dificuldades foram de inúmeros aspectos, como desconfiança por parte dos moradores para falar sobre sua vida e seu cotidiano, bem como escassez de registros escritos sobre a ocupação e colonização das terras nessa região. A terceira e última etapa consistiu em uma revisão de todo o material coletado, bem como uma revisão do material teórico, incorporando elementos novos que só puderam ser identificados em campo. Após uma leitura mais apurada em gabinete de todo o material coletado e das adaptações na bibliografia, foi elaborada uma análise qualitativa dos dados e, posteriormente, a redação final do trabalho. 12 3 - DO DOMÍNIO AO LUGAR, RECONHECENDO A PRAIA DO SONO A comunidade da Praia do Sono está localizada no perímetro de abrangência do município de Paraty, estado do Rio de Janeiro (Figura 1). Essa cidade tem sua área localizada na divisa entre os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, fazendo fronteira com o município de Ubatuba, no lado Paulista, o qual, diga-se de passagem, tem uma orla marítima que já possui características de um alto nível de urbanização e especulação imobiliária. Figura 1: Localização da comunidade da Praia do Sono, Parati – RJ2. Essa localidade situa-se entre duas unidades de conservação sobrepostas: uma em uma instância federal e outra estadual. Em âmbito federal está a área de proteção ambiental 2 Fonte: Alexandre R. Arten. 13 (APA) do Cairuçu, que abrange uma área continental de 33.800 hectares, em um total de 62 ilhas, instituída em 1983. Em âmbito estadual está a Reserva ecológica do Juatinga (REJ), criada em 1992, numa uma área de 8.000 hectares (BALLABIO, 2010). A unidade que foi instaurada em âmbito federal está sob as regras e jurisdição do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Já a reserva instaurada em âmbito estadual encontra-se sob a jurisdição do Instituto Estadual de Florestas (IEF) do estado do Rio de Janeiro. Nota-se, por esse fato, que a legislação brasileira possui atualmente certa preocupação no sentido da preservação do bioma em que esta localidade está inserida. Isso se deve, muito provavelmente, ao grau de preservação em que essa região se encontra se comparada a outras áreas da costa com fisionomia semelhante. Também não se deve ser inocente ao ponto de não apontar os interesses econômicos por trás de todo esse potencial em desenvolvimento. Para conhecer melhor as características físicas dessa localidade, utiliza-se das definições de alguns pesquisadores como Almino (1993,apud Risso 1998) os quais afirmam que essa região serrana é composta por rochas predominantemente metamórficas, como granitos ou gnaisses, e outras rochas muito antigas, datando do arqueno. Essas áreas possuem encostas extremamente íngremes, o que leva a ocorrer um grande desgaste e movimento de massas, com grande influência estrutural, fazendo com que haja uma alta suscetibilidade de desestabilização, que, aliada à ocupação humana, torna-se uma área de alto risco, necessitando de constante monitoramento dos órgãos competentes (RISSO, 1998). Esse fato pôde ser comprovado no verão de 2010, período no qual, em virtude do alto nível de precipitação ocorrido nessa região, houve registros de inúmeros casos de deslizamentos de terra e com conseqüências mais graves localizadas em Ilha Grande, a poucos quilômetros da costa, porém com características de estrutura e relevo semelhantes.3. As chuvas nessa região são abundantes durante quase o ano todo, não apresentando estação seca, mas uma sensível diminuição na estação de inverno. Essa abundância pode ser em decorrência do relevo, pois a face da Serra funciona como uma parede para as correntes de vento, por isso a impressão de nebulosidade quase o tempo todo (CRUZ, 1974 apud RISSO, 1998). Para uma melhor caracterização dos ambientes dentro da geografia, se utiliza muito do conceito de domínio morfoclimático, proposto pelo geógrafo brasileiro Aziz Ab’Saber em 1977. Trata-se de uma classificação de regiões com características relativamente 3 Site jornalístico do Rio de Janeiro http://oglobo.globo.com/rio/chuvas-no-rio-de-janeiro-deslizamento-de- terra-soterra-pousada-casas-em-angra-dos-reis-e-3075243, acesso em 26/03/2012. http://oglobo.globo.com/rio/chuvas-no-rio-de-janeiro-deslizamento-de-terra-soterra-pousada-casas-em-angra-dos-reis-e-3075243 http://oglobo.globo.com/rio/chuvas-no-rio-de-janeiro-deslizamento-de-terra-soterra-pousada-casas-em-angra-dos-reis-e-3075243 14 homogêneas a partir de fatos geomorfológicos, climáticos, hidrológicos, pedológicos e botânicos (ROSS, 2003). Por essa metodologia, segundo Ab’Saber (2007), o domínio morfoclimático onde as comunidades estão localizadas recebe o nome de “Domínio tropical atlântico”, que é nativo de toda a costa brasileira. Seu modelo dominante é constituído por formas de topos convexos, elevada densidade de canais de drenagem e vales profundos. (Figura 2). A origem desse cinturão atlântico que ocupa grande parte da costa brasileira ocorreu em virtude de intensa atividade tectônica. São dobramentos acompanhados de metamorfismos, falhamentos e intrusões. Em uma escala geológica, esses são submetidos a incessante processo de erosão. Atualmente se pode constatar nas serras do sudeste a presença de escarpas acentuadas, oriundas desses falhamentos (ROSS, 2003). Figura 2: Relevo da costa. Com relação à vegetação nativa dessa região do Brasil, tem-se a denominada mata atlântica, que recobre boa parte da região sudeste. Para detalhar, se tem uma melhor descrição do Plano diretor de turismo do município de Paraty: O município está inserido na área de domínio da mata atlântica, dentro de seu maior segmento contínuo do país. Havendo predominância da área de floresta Ombrófila densa nas terras baixas, submontana e montana, que de acordo com o IBAMA, é 15 um tipo de vegetação que ocorre na Amazônia, e nas matas costeiras, e caracteriza-se por apresentar elevadas temperaturas (Média de 25°C) e alta precipitação bem distribuída durante o ano, baixa luminosidade ao nível do solo e grande densidade e biodiversidade. A altura média das espécies clímax ocorre acima de 30 m. Apresenta ainda extratos arbóreos típicos das florestas tropicais pluviais, com abóbodas bem definidas (PLANO DIRETOR DE DESENVOLVIMENTO TURISTICO DE PARATY, P. 88, 2003). O município de Paraty é um dos poucos do Brasil que ainda possuem alguma área significativa de mata nativa, segundo dados publicados pela fundação centro de informações e dados estatísticos do Rio de Janeiro (CIDE) em julho de 2001. Tendo como base dados coletados em 1994, Paraty tinha sua área rural distribuída da seguinte maneira: 89% de floresta ombrófila densa, 6% de área destinada a pastagens. É importante lembrar que 80% do território paratiense é composto por unidades de conservação (PLANO DIRETOR DE DESENVOLVIMENTO TURISTICO DE PARATY, 2003, p.81). Essa mata já recobriu imensas áreas em períodos pretéritos, porém com o alto nível de ocupação do espaço nas regiões litorâneas do Brasil foi quase totalmente extinta, restando aproximadamente menos de 10% de mata com algum grau de preservação, o que contribui ainda mais para a valorização de seus fragmentos remanescentes. 16 4- PROCESSO DE OCUPAÇÃO HISTÓRICA As evidências concretas do processo de ocupação dessa área pela comunidade em questão, que servirão de base para o desenvolvimento desse trabalho, foram um desafio. Isto porque, em aspectos gerais, a história do Brasil como um todo ainda é muito mal contada pelos livros, que se limitaram a registrar durante o período colonial os fatos ocorridos nos grandes centros urbanos e que apresentaram certa relevância econômica, cultural e social, segundo os parâmetros europeus vigentes e cultuados durante esse período. Foram deixadas de lado todas as demais culturas que dividiram durante séculos esse mesmo espaço. Isso, para os brasileiros marginalizados desse processo, representa uma típica versão histórica que é contada pelos vencedores ou dominadores, em contrapartida aos vencidos ou dominados. Ocorre uma explosão de trabalhos voltados a contar sobre a realidade dessas camadas da população principalmente na década de 70, sobre a influência de historiadores como o inglês Edward Palmer Thompson, e o norte americano Robert Wayne Andrew Slenes, no Brasil com Gilberto Freyre, Caio Prado Jr, e Florestan Fernandes. Alguns moradores mais antigos chegam a afirmar que a ocupação do Sono data de aproximadamente 400 anos atrás. O registro mais antigo que se pode encontrar conta que as primeiras notícias sobre a ocupação do litoral norte de São Paulo e Sul-fluminense datam do século XVI, quando Portugal resolveu colonizar suas terras para garantir a soberania da coroa portuguesa (IBAMA, 2004, p.13 encarte II). De acordo com dados do IEF (Instituto estadual de florestas), a população da região afirma que, por motivos diversos, os portugueses erravam o porto de Parati e acabavam indo para as praias da região. Essa ocupação portuguesa na região é bem percebida quando se analisa os sobrenomes dos moradores e se evidencia o predomínio de sobrenomes portugueses como: De Castro, Araújo, Dos Santos, Dos Anjos, Albino, entre outros (BALLABIO, 2010). Outra versão narrada por muitos moradores sobre as origens da ocupação dessa região se atribui a intensa presença de piratas que navegavam na Baía da Ilha Grande. Os mais antigos contam que muitos aventureiros vinham atraídos pela cobiça e pela esperança de conseguir realizar saques nos navios portugueses carregados de pedras preciosas durante o período que ficou conhecido pelo ciclo do ouro. Até 1710 todo o ouro que era extraído das Minas Gerais pela coroa portuguesa era escoado pela estrada real até o porto de Paraty, onde eram armazenados em grandes embarcações para serem enviados a Europa. Isso exercia grande atração aos saqueadores que constantemente investiam contra os navios da metrópole. Até que esses roubos se 17 tornaram tão relevantes que Portugal muda o local do porto de escoamento para onde hoje chamamos de cidade do Rio de Janeiro.4 Outro elemento que atraía saqueadores do mundo todo era o intenso e lucrativo tráfico de pau-brasil e escravos negros. Com essa árvore produziam-se corantes para serem vendidos na Europa, já os negros eram trazidos da África para os portos brasileiros para trabalharem nas minas de ouro e principalmente nos canaviais. O ouro, em muita abundância, que foi descoberto no Peru no século XVI pelos espanhóis, era levado para o velho continente através da navegação que saía da América do sul pelo Rio da Prata, criando uma logística própria. Entre a saída do Rio da Prata e a chegada a Europa no hemisfério sul, os lugares mais convenientes para se atracar e abastecer as reservas de água potável, lenha, bem como para repouso eram as ilhas de Santa Catarina, São Sebastião e Ilha Grande.5 Nessas paradas para o reabastecimento e o repouso, contam que muitos se envolviam com índias e realizavam intensas trocas com os nativos da terra, o que posteriormente veio a influenciar a própria cultura dessa comunidade, numa miscigenação de aventureiros fascinados pelo mar e seus mistérios com nativos que praticavam pequena agricultura e possuíam um conhecimento fascinante das regras e leis da natureza. Também é consenso entre os moradores dizer que essa função batizou a praia, sendo uma praia destinada ao repouso: então se chamou Praia do Sono. Os mais antigos contam que viviam uma vida tranquila, tendo de viajar de barco longas horas para chegarem até Paraty pelo mar, em um relativo isolamento. Em meados da década de 50, viviam na praia do Sono cerca de 1500 pessoas, e a praia era conhecida por seu entorno como lugar de fartura e festança6. Os antigos caiçaras das diversas comunidades de pescadores de Parati são unânimes em afirmar que o Sono era o lugar mais animado e onde aconteciam as melhores festas da região. “Era a praia com mais vida em toda essa costa. Vinha gente de todo o canto festejar com a gente” (SIQUEIRA, 1984, p. 45). Tanto em relatos de moradores, quanto na bibliografia consultada, sabe-se que essa realidade logo mudou, pois nessa mesma década a comunidade passou por períodos muito complicados que podem ser pontuados, segundo Ballabio, 2010, por três acontecimentos de maior relevância para a comunidade: 1) a chegada de um grileiro de terras, 2) a criação das unidades de conservação e 3) o desenvolvimento da atividade turística (também se inclui 4 Informações extraídas do site de Parati: http://www.paraty.com.br/historia.asp - acesso em 03/2012 5 Informações extraídas do site oficial da Ilha Grande: http://www.ilhagrande.com.br/pages/br_historia_03.html - acesso em 03/2012 6 Fonte: SIQUEIRA, 1984. http://www.paraty.com.br/historia.asp http://www.ilhagrande.com.br/pages/br_historia_03.html 18 nesses fatos a construção da rodovia rio santos). Eis a exposição de maneira mais detalhada e por ordem cronológica: 4.1– O grileiro de terras Primeiro a chegada do grileiro de terras Gilbrail Nubile Tannus, que comprou as terras de uma fazenda vizinha ao Sono e posteriormente tentou estender seu domínio para as praias adjacentes a sua propriedade. A paz dos moradores do Sono, “todos criados no dentro do Evangelho”, acabou em 1950, quando Gilbrail comprou os títulos da fazenda Santa Maria, vizinha a esta praia. Logo no começo, Gilbrail tentou estender seus domínios além dos limites da fazenda, mas foi a partir de 64 que a opressão e intimidação sobre os caiçaras se intensificou (SIQUEIRA, 1984, p.46). Contam que no começo esse grileiro trazia agrados para a comunidade, como remédios, roupas e doces para as crianças, tudo na intenção de ganhar a simpatia da comunidade, porém muitas vezes conseguia fazer os moradores assinarem documentos oficiais que transferiam as terras para seu nome. Nessa época muitos moradores eram analfabetos, e não tinham a mínima noção do que isso poderia causar. Para aqueles que desconfiados se recusaram a assinar, há relatos de muita repressão e violência. Gilbrail trazia capangas para intimidar os moradores, trazia bois para que estragassem as roças, e assim os moradores se viam obrigados a se mudar a força, como fica claro nesse relato: “Veio um camarada chamado Gilbrail, dizendo que comprou aqui e lá Santa Maria, então nessa época ele começou a parar com este negócio de vendagem7 aqui, ele até podia ele deixa, mas ele queria a terra dele, ele queria tudo pra ele. Então ele mudou os esquema trazendo boi, os boi derruba os bananal, e foi fazendo assim o até que pessoal assim foi achando muito ruim, quis se mudá e até mudo”. Jó8 Durante as pesquisas de Siqueira, em 1983, momento em que os conflitos territoriais entre moradores e esse grileiro estavam no auge, havia no Sono cerca de trinta e seis famílias, dando um total de duzentas pessoas. Os moradores afirmam que restaram apenas treze famílias que Gilbrail não deu conta de retirar. Posteriormente muitos retornaram a suas antigas terras. 7 Sobre a tentativa dos nativos produzirem roçados de banana para vender. 8 Seu João Antonio, 65 anos, nativo morador do sono, entrevista realizada por Sati Albuquerque Ballabio, em 2009. 19 Para elucidar como se deu o desfecho desse conflito, que contou até com manifestação publica em Paraty por parte dos moradores que perderam suas terras, me utilizo das palavras de Ballabio (2010): O fator que pôs fim às investidas físicas desse grileiro foi um acontecimento que ainda é relatado com muito gosto pelos moradores do Sono. Um jovem que conheci, chamado Ismael Mailtom, conhecido como Zião, na época com 20 anos, me contava as histórias de Gilbrail como se tivesse realmente vivido os momentos, demonstrando que já tinha ouvido esta história muitas e muitas vezes. Afirmou-me que este homem “era tão danado que fazia as coisas por pura maldade”. Contou-me que os moradores tinham um campo de futebol muito bonito e bem conservado e que “vinha gente de tudo quanto é lugar para jogar bola”, quando certo dia, em meio ao um período de campeonatos, “o Gilbrail mandou jogar um monte de bagaço de cana no campo”, destruindo-o. O que foi a gota d’água para os moradores cansados de tanta opressão e humilhação. Em consequência, vários moradores surraram o Gilbrail na praia, sendo que “até as crianças bateram nele, as mulheres vieram com urtiga e tudo” e assim ele nunca mais apareceu no Sono ((BALLABIO, 2010, p.27). Porém, pode-se dizer que estes acontecimentos, apesar de prejudicarem a comunidade, fizeram com que os moradores se organizassem, preparando-se para lidar com os mais diversos problemas que foram ocorrendo nos períodos subsequentes. 4.2– A criação da Unidade de Conservação O segundo fato a ser trabalhado nesse capítulo sobre as transformações espaciais e legislativas diz respeito à criação de uma unidade de conservação nessa localidade. Unidades de conservação são áreas que por estarem preservadas, passaram a recebem uma legislação especial que ordena o uso e ocupação do solo. São áreas protegidas com a finalidade de manutenção dos ecossistemas naturais restantes para cumprir funções ecológicas, científicas, econômicas, sociais e políticas. Estas áreas podem ser definidas como: Parques de Proteção Ambiental, Áreas de Preservação Ambiental, Reservas Ecológicas, Reservas Biológicas, Reservas Extrativistas, etc., possuindo variadas formas de gestão e conservação, de acordo com as diferentes categorias de manejo e seus objetivos específicos, definidos pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação9. 9 Legislação em anexo no fim desse trabalho. 20 Atualmente as áreas de conservação correspondem a 7% adotando dois tipos de modelos de manejo: o “excludente” (EUA), e o “inclusivo” (Europa). No primeiro caso, não são consideradas as populações tradicionais, e no segundo os interesses das sociedades locais são fundamentais, pois os administradores locais devem estar envolvidos no manejo do parque. Com ou sem a intenção explícita de seguir a experiência dos Estados Unidos, o primeiro modelo que descarta o contexto social das Unidades de Conservação é o mais adotado nos países do hemisfério sul. (IUCN10, 1997 apud RISSO, 2005, p. 143). Como já apresentado no começo desse trabalho, a comunidade do Sono está inserida dentro de duas Unidades de Conservação sobrepostas, isso gera uma confusão tanto por parte da administração da unidade quanto pelos moradores, pois as disposições sobre uma unidade e outra têm algumas diferenças: as leis da REJ (reserva ecológica do Juatinga) são mais restritivas que as da APA (Área de proteção ambiental). Vale ressaltar que essas Unidades de Conservação foram criadas pouco tempo antes da conclusão das obras da Rodovia Rio – Santos. Possivelmente nesse contexto, já era de se deduzir que essa via de acesso por terra iria atrair um grande contingente de pessoas para essa região, até então sem um fluxo significativo de pessoas (Figura 3). A implementação da Rodovia Rio-Santos (BR-101), ocorrida no período de 1978- 1985 inaugurou uma nova fase no município de Paraty, depois do ouro e do café, o turismo, devido à preservação de seu patrimônio histórico e elementos naturais, passou a constituir, ao lado da agricultura e da pesca, o principal suporte financeiro. (OLIVEIRA, 2004,p. 2). De acordo com João Oliveira11 administrador da REJ, a APA possui uma legislação menos restritiva que a reserva, e a reserva está toda inserida dentro da APA, portanto na área da reserva dentro da APA, prevalece a legislação da reserva que é mais restritiva. 10 União Internacional para a conservação da natureza, criado em 1948 em Fontainebleal na França. 11 João Fernandez de Oliveira, administrador da REJ desde 2000. 21 Figura 3: Imagem aérea do Sono tirada na década de 70. Com relação a essa sobreposição de leis, BALLABIO (2010) em uma entrevista com um funcionário da APA, concebe alguns esclarecimentos: “O que a gente tenta, antes de mais nada, é aplicar a legislação federal. A legislação estadual que estiver de acordo com a federal até podemos utilizar, mas o que estiver conflitante não há como, pois não há respaldo de ação federal. Eu não posso aplicar muitas vezes uma lei estadual (sic) ou até municipal que entre em colisão com a lei federal. Que a própria constituição aborda isso, sobre o aspecto hierárquico da legislação, o que realmente vai prevalecer é a lei federal, a legislação estadual e municipal ela pode até ser mais restritiva, mas não pode ser conflitante, ela não poder ser antagônica, ela não se sobrepõe, não tem como”12. Em conversa com os moradores nota-se que muitas normas da reserva se chocam com práticas tradicionais dos caiçaras, herdadas de seus ancestrais, o que mesmo na intenção de se preservar causa certo descontentamento. Esses conflitos se dão principalmente em pontos como o uso e ocupação da terra para agricultura, e na construção de novas edificações. Entendendo sobre o contexto de criação, se tem uma ideia desse conflito: Entre 1970 e 1986, foram criadas várias unidades de conservação, como era período militar, a criação dessas unidades era sem consulta das populações envolvidas, sendo muitas 12 Palavras de um funcionário da APA em entrevista realizada no ano de 2009. 22 restrições impostas por essas populações quanto ao uso dos recursos naturais. Sem contar que havia pouca mobilização social para a criação destas unidades, dependendo da ação de cientistas e alguns poucos conservacionistas com acesso relativamente fácil ao governo militar. (DIEGUES, 1994 apud. RISSO, 1998, p. 19). Constatou-se em pesquisa de campo que, apesar das ferramentas legais em âmbito federal e estadual direcionadas para a regulamentação do uso das UC’s e das diversas parcerias com a sociedade civil, a linha de atuação efetiva para a conservação ambiental e social ainda é confusa, devido a existência de uma dupla regulamentação para a mesma área. O problema destes órgãos está na forma como estruturam suas ações: distantes da comunidade, e sempre de forma repressiva e punitiva. Outro aspecto crucial que pode ser destacado com relação à Unidade de Conservação são as diferentes filosofias de cada órgão, que, por acabarem chocando-se entre si, atravancam uma série de processos que poderiam agir de maneira construtiva para a comunidade. O que realmente se sente falta nesses órgãos é essa relação construtiva, entre esse e a comunidade, fator que seria fundamental para uma gestão coerente que preze, em primeira instância, a valorização e preservação da cultura caiçara e do meio ambiente, bem como a promoção de justiça social para aqueles que se veem oprimidos por uma lei que os deveria protegê-los. 4.3 – A chegada do turismo O terceiro ponto salientado nesse capítulo referente ao processo de ocupação histórico dessa comunidade diz respeito ao desenvolvimento do turismo. Entende-se que esse aspecto deve ser inserido nesse ponto pelo fato de se tratar de um novo momento histórico na comunidade, pois vem influenciando uma série de práticas que há décadas já estavam consolidadas. O turismo representa uma nova realidade aos moradores da praia do Sono, tanto econômica quanto social e possivelmente cultural. Sobreviventes de grileiros com muita luta, e conquistadores de seu lugar dentro de uma área de preservação se tem a nova realidade que por um lado gera desconfiança e de outro lado pode-se dizer que gera até certa esperança. Como essa atividade é um dos pilares desse trabalho, entende-se que deve ser fundamentada de maneira mais completa, portanto o desenvolvimento do turismo e suas implicações serão mais consistentemente trabalhados no decorrer desse trabalho. Nesse ponto minha intenção é salientar como essa atividade representa uma relevância na dinâmica da comunidade, no que diz respeito à configuração do espaço. 23 5 - A COMUNIDADE CAIÇARA DA PRAIA DO SONO A comunidade da praia do Sono atualmente possui cerca de 300 moradores sendo na grande maioria famílias, observa-se grande numero de idosos e crianças em uma formação heterogênea. Com características físicas que em muito se assemelham a europeus, como olhos, cabelos e pele muito clara, porem queimada devido a constante exposição ao sol. É considerada por muitos autores, segundo suas características culturais e sua localização geográfica, como sendo uma legítima comunidade caiçara13. Esse conceito é empregado a núcleos onde se estabeleceram organizações humanas e vilas ao longo do litoral brasileiro. (Figura 4). Figura 4: Casas e estaleiros na praia. Mesmo sabendo que nenhuma cultura é estática nem cristalizada, nota-se que ao longo do tempo, através do contato com o diferente, se renovam, assimilando elementos de outras organizações sociais e deixando outros elementos, em uma espécie de troca e transformação constante. O modo de vida e reprodução que nesse estudo é trabalhado pode ser observado pelas edificações, hábitos e cultura em inúmeras comunidades do litoral sudeste do Brasil. Setti (1985) classifica a cultura caiçara típica dessas comunidades como sendo uma variante paralela da cultura caipira, situada de acordo com a acepção de Antonio Cândido, 13 Silva, 1972; Diegues 1983; Mello 1985; Cardoso 1996. 24 ou seja, como uma subcultura – produto da integração das práticas tradicionais portuguesas e ameríndias, e sedimentadas já antes mesmo do advento da cultura negra e suas influências. Durante o vasto período que vai do século XVIII ao início do século XX, verificou-se no Brasil a formação de várias comunidades litorâneas cujos membros viviam, sobretudo ou parcialmente, da atividade pesqueira. Essas comunidades, “os caiçaras”, estavam dispersas por todo o litoral sudeste e seus modos de vida e culturas específicas puderam imergir, diferenciando profundamente seus membros dos grupos que viviam na órbita de outras atividades e outros nichos ecológicos. (SILVA, 1993). As comunidades caiçara têm em comum os elementos sociais e culturais de bases históricas e influências étnicas de índios e portugueses, como comportamento cultural e linguagem. (BEGOSSI, 1992 apud. SOUZA, 2001). A pesca artesanal tem longa tradição dentro da cultura caiçara (Figura 5). A partir disso, os caiçaras construíram sua rede de conhecimentos através de uma relação de complementaridade entre homem e ambiente que foi desenvolvida em um longo processo de experimentação constante com a natureza. (LUCHIARI, 1997 apud SOUZA 2001). Figura 5: Barcos e redes de pesca. No caso da comunidade da praia do Sono, por sua posição geográfica, aliada ao difícil acesso a cidades mais próximas, desenvolveu-se ao longo dos anos uma cultura em sintonia com a natureza e os recursos naturais que os cercam, com valores, crenças, 25 práticas e técnicas próprias que os fazem criar uma identidade com o lugar. O mesmo pode ser observado em outros grupos que, por determinantes geográficos, sofreram certo “isolamento” por um determinado tempo, ou ainda permanecem isolados. Os fatores geográficos tiveram um papel importante na criação de uma grande variedade de densidades de população entre os grupos litorâneos, servindo ora como elemento de atração para a fixação do homem, ora como elemento de repulsão. Estes fatores contribuíram também para a formação da morfologia social, das formas de ocupação do solo e da utilização dos recursos naturais. Nas escarpas montanhosas da Serra do Mar no Estado de São Paulo, por exemplo, a vegetação se mantinha inexpugnável, criando um fator de isolamento, mas as numerosas pequenas baixadas costeiras com solos secos (sem entretanto faltar um curso d'água) criaram condições que justificaram a configuração do estabelecimento dos agrupamentos caiçaras do litoral norte da região Sudeste. ( MUSSOLINI, 1980; FRANÇA , 1954; MARCILIO, 1986). Esse parcial “isolamento” espacial permitiu que muitas práticas e valores se perdessem em outros agrupamentos caiçara, através da convivência próxima com cidades maiores nessa região como Ubatuba e Paraty. No caso da Praia do Sono, muitas práticas e valores se mantiveram, talvez devido a esse “isolamento” relativo concebendo ou mantendo uma forma diferente de relacionamento com o espaço que os circundam. Nesse sentido, (RECLUS apud CLAVAL, 2007) diz que: O ambiente só tem existência social através da maneira como os grupos o concebem, analisam e percebem suas possibilidades, e através das técnicas que permitem explorá-lo: a mediação tecnológica é essencial nas relações dos grupos humanos com o mundo que os rodeia. (RECLUS apud CLAVAL, 2007, p.219). Sobre a concepção do espaço nas comunidades caiçara, Risso (1998) aponta que o lugar não é simplesmente o espaço produzido, ele é sobretudo o espaço vivido, onde as pessoas têm suas experiências de vida e afeição com o lugar que lhes foi herdado por direito de seus antepassados. Nessa linha, a cultura que se sedimentou historicamente neste lugar criou uma identidade cultural de grupo, pois “a pesca representa, em geral, uma forma de organização de trabalho e produção que transcende os limites meramente familiares para se converter em atividades comunitárias”. (MUSSOLINI, 1980 apud RISSO, 1998). As características materializadas no espaço, juntamente com todo o conhecimento registrado sobre a história e o ambiente, transmitido pelos mais diversos agentes, principalmente por via oral se dá à ideia de cultura. Entende-se que a cultura está 26 impregnada em todas as partes da vida das pessoas, todo o conhecimento que pode ser transmitido de forma direta ou indireta de uma pessoa para a outra é de certa forma cultura. Diegues (1996) faz uma reflexão sobre aspectos da cultura de comunidades tradicionais que em muito pode ser utilizada na interpretação do modo de vida das comunidades caiçara. Levando em consideração as relações de trabalho, relações familiares e de renda, elabora a seguinte concepção: Comunidades tradicionais estão relacionadas com o tipo de organização econômica e social com reduzida acumulação de capital, não usando força de trabalho assalariado. Nela os produtores independentes estão envolvidos em atividades econômicas de pequena escala, como agricultura, pesca coleta e artesanato. Economicamente, portanto, essas comunidades baseiam-se em recursos naturais renováveis. Uma característica importante desse modo de produção mercantil é o conhecimento que os produtores têm dos recursos naturais, seus ciclos biológicos, hábitos alimentares, etc. Esse “know-how” tradicional, passado de geração em geração, é um instrumento importante para a conservação. Como essas populações em geral não têm outra fonte de renda, o uso sustentado de recursos naturais é de fundamental importância. Seus padrões de consumo, baixa densidade populacional e limitado desenvolvimento tecnológico fazem com que sua interferência no meio ambiente seja pequena. Outras características importantes de muitas sociedades tradicionais são: a combinação de várias atividades econômicas (dentro de um complexo calendário), a reutilização dos dejetos e o relativamente baixo nível de poluição. A conservação dos recursos naturais é parte integrante de sua cultura, uma idéia expressa no Brasil pela palavra “respeito” que se aplica não somente a natureza como também aos outros membros da comunidade. (DIEGUES, 1996, p. 87). A economia caiçara era e em partes ainda é caracterizada por uma oposição tanto à economia indígena primitiva, quanto à economia industrial. Seu sistema de produção historicamente foi organizado para responder, em primeira instância, às necessidades domésticas, mas ainda assim o caiçara prescindia de insumos externos, para os quais precisava gerar um excedente: ferramentas, habitação, vestuário, sal, pólvora, entre outros. (MARCILIO, 1986 apud ADAMS 2000). A função da mulher na sociedade caiçara era a de mãe de família, dona de casa, trabalhadora do lar e da roça. Seu papel era muito importante e essencial para a manutenção do grupo doméstico, sua reprodução, produção e sobrevida. Suas tarefas eram bem definidas: preparo do alimento e criação dos filhos. Ao marido estavam destinadas as atividades de caça e pesca, derrubada e queimada, construção dos ranchos de moradia, 27 transporte e comercialização dos excedentes agrícolas, condução das canoas e dos trabalhos da roça, plantio e colheita (nestes casos podia ser ajudado pela mulher e filhos). (MARCILIO, 1986 apud ADAMS, 2000). (Figura 6). Figura 6: Horta doméstica. Através da análise da produção dos autores citados sobre essas comunidades, nota- se que as mesmas possuem modo de vida que se contrapõe em muitos aspectos ao novo modo de vida que aos poucos vem sendo inserido pelo desenvolvimento da atividade turística nessa região. Como exposto no começo desse capítulo, sabe-se que as culturas de cada grupo social não estão estáticas, sofrendo constantes transformações oriundas do relacionamento interpessoal, em um processo de constante resistência, aceitação e assimilação. Sobre isso Candido (1979) define: A existência de todo grupo social pressupõe a obtenção de um equilíbrio relativo entre as necessidades e os recursos do meio físico, requerendo, da parte do grupo, soluções mais ou menos adequadas e completas, das quais depende a eficácia e a própria natureza daquele equilíbrio. As soluções, por sua vez, dependem da quantidade e qualidade das necessidades a serem satisfeitas. (CANDIDO, 1979, p. 23). 28 Com essas transformações culturais e espaciais no modo de vida dessas comunidades, bem como no ambiente em que vivem, fica a questão de até que ponto esses agrupamentos conseguirão manter suas raízes, sua estrutura familiar e social, seus hábitos e costumes historicamente consolidados e que foram passados de geração em geração, conhecimento que lhes permitiram se estabelecer e levar uma vida completa nos mais distintos aspectos, e que lhes fizeram ser caracterizados por caiçaras. (figura 7). Yázigi (2001) defende que apenas a autodenominação – levando-se em conta definir como caiçara quem assim se considera – não serve para inferir um significado claro do que é ser caiçara. Os argumentos são variados e dizem respeito às mudanças de modos de vidas por influências e contatos com os grandes centros urbanos. Um dos questionamentos recai nos espaços e locais de moradia dos caiçaras, que vêm sofrendo crescentes modificações, aproximando-se muito daqueles da realidade urbana. E com isso os seus hábitos de consumo e relações sociais têm se alterado constantemente. Figura 7: Área central da comunidade. Sobre essa questão das transformações culturais no modo de vida dos caiçaras, muitos autores destacam o papel da atividade turística que atrai grande parte de visitantes de muitas partes do Brasil e do mundo para a obtenção de momentos de lazer. Aos poucos, com a sedimentação dessa atividade na comunidade, ocorrem – como será tratado mais adiante – alguns efeitos negativos segundo os próprios moradores. 29 É válido afirmar que transformações nas organizações humanas em virtude do contato com modos de vida, opiniões e culturas diferentes são inevitáveis. Assimilam-se elementos externos que, com o passar do tempo e a recorrência, acabam tendo certa tolerância e mesmo incorporação, num processo dialético de formação de novos valores. Sobre a inserção de elementos nessas comunidades, Ballabio (2010) expõe que conforme se construíam estradas, facilitando o acesso das cidades às praias, mais novidades influenciavam os modos de vida que haviam estado preservados pelo longo período em que ficaram isolados. Muitas das influências relatadas atingiram as comunidades caiçaras dos litorais Norte paulista e Sul-fluminense, mais precisamente com a abertura da BR-101, conhecida como rodovia Rio-Santos, na década de 70, que levou o turismo e outras formas de produção comercial para a região. “Até 1940, antes da invasão do turismo, Ubatuba ainda se conservava como uma coletividade de roceiros - pescadores, vivendo da agricultura de subsistência” (ADAMS, 2000 apud BALLABIO, 2010, p. 73). A partir da década de 70, a comunidade vivenciara a inserção da atividade turística em seu cotidiano, trazendo consigo muitas transformações sociais, econômicas e culturais. Atualmente, segundo relatos dos moradores, o turismo vem tomando cada vez mais espaço dentro da economia caiçara. Os mais velhos contam que os moradores têm preferido se preparar para receberem os turistas ao invés de desenvolverem alguma outra atividade que até pouco tempo atrás era mais presente no cotidiano da comunidade. Porém, é de suma importância relatar que, no caso da praia do Sono, os moradores concebem que ninguém ainda consegue viver só de turismo, principalmente nos meses de baixas temporadas: precisam pescar, muitos trabalham fora da comunidade, possuem outros negócios em Paraty, entre outros motivos. Em um estudo realizado por Nuffs (1983) na comunidade de Toque Toque Pequeno, constatou-se que essa comunidade, a partir da década de 60 com a abertura da rodovia que liga Santos a Bertioga, a qual faz a conexão entre os litorais Sul e Norte, passou por profundas modificações em virtude da inundação de paulistas e da especulação imobiliária. Utiliza-se essa pesquisa para ilustrar o poder de transformação sobre determinada localidade, nesse caso, a comunidade foi sendo retirada aos poucos de suas terras nas proximidades da praia e sendo realocadas em lugares cada vez mais distantes do mar. Ainda pôde-se constatar no mesmo estudo que a comunidade deixou quase completamente de lado a atividade pesqueira como fonte de renda, elemento que em outros momentos foi determinante para a consolidação de sua cultura. Pode-se traçar um paralelo com a comunidade do Sono, na qual é possível observar que não deixa de lado a atividade pesqueira, mas se tem uma diminuição significativa na mesma no que diz respeito à renda familiar. Ao que tudo indica essas mudanças não são 30 apenas oriundas de transformações econômicas, mas sim de transformações culturais geradas pela inserção de novos padrões de consumo. (Figura 8) Ballabio (2010), em pesquisas realizadas nessa comunidade, mostra que o turismo em seus mais variados aspectos, ajudou a introduzir novidades, seja pela renda gerada, seja pelo contato com novas pessoas com hábitos e costumes diferentes, levando a rearranjos e a diversas mudanças no Sono. Essas mudanças podem ser vistas no cotidiano de seus moradores, que durante as temporadas têm seu dia voltado às necessidades dos turistas, diferente de anteriormente, em que o dia girava em torno da natureza e de trabalhos mais tradicionais. Também destacamos as mudanças materiais, visto que foram incorporadas novas necessidades de consumo, o que levou a diferenças nos padrões de habitação, transporte, vestuário e utensílios domésticos. (BALLABIO, 2010, p. 90). Também muito em virtude de se atender as demandas trazidas pelos turistas, ocorreram muitas mudanças nos hábitos alimentares, seja pelo fim do roçado, seja pela inserção de alimentos industrializados para atender os visitantes, gerando uma reconfiguração nas formas e nos valores simbólicos desses moradores. (BALLABIO, 2010, p.91). Essa autora durante o período em que esteve realizando pesquisas nessa comunidade relatou um fato muito interessante que ilustra bem essas transformações: Muitas vezes, estando no Sono, logo após um período de feriado, presenciava a chegada de bens materiais que demonstravam como havia sido rentável a temporada. Via móveis, fogões, materiais de construção, sacolas de compras, mulheres de outras regiões vendendo produtos de beleza. E assim iam os dias, com barcos e mais barcos chegando carregados de novos bens materiais. Estava no camping da Dona Ismênia, quando observei a chegada de um pequeno televisor portátil, que causou um grande alvoroço na família. O marido de Dona Ismênia passou o dia andando com uma antena amarrada em um bambu tentando captar o sinal das emissoras de TV. Quando finalmente conseguiu sintonizar o canal da Rede Globo, todos correram para dentro da casa para assistir as imagens da televisão, ligada ao barulhento gerador de energia, movido a diesel (ainda não havia chegado à energia elétrica). E de lá não saíram mais. No dia seguinte, de manhã, a maré estava baixa. Quando este fenômeno ocorre muitas pessoas aparecem, principalmente crianças, que com a água pelo joelho ficam cavando a areia com os pés, até acharem uma pequena concha que chamam de Chavinha. Após a coleta de uma determinada quantidade destas conchinhas, fervem-nas em água doce e comem. Naquele dia, observando a movimentação, que mais parecia uma dança à 31 beira-mar, percebi que as crianças da Dona Ismênia não se encontravam presentes e, quando fui procurá-las, só consegui encontrá-las em casa, assistindo a televisão. (BALLABIO, 2010, p. 91). Fato que para as sociedades industriais parece extremamente comum quando se analisa o tempo médio que o brasileiro passa na frente de uma televisão14, para uma comunidade caiçara com uma realidade muito diferente da maioria das pessoas é algo que representa uma grande transformação cultural. Figura 8: moradora em um dia de rotina nos meses de inverno. Com o desabrochar dessa nova realidade e consequentes transformações, é interessante fazer uma menção as palavras de Risso (1998) a qual sintetiza as palavras de Setti (1985) quando afirma que, embora todas essas transformações levassem o caiçara a mudança parcial de seus hábitos, espaço modificado e seu tempo ocupado de outras formas, existe um sentido de preservação de sua cultura e memória, que vem resistindo a essas pressões. 14 Pesquisa IBGE sobre o tempo que o brasileiro passa na frente da Televisão: http://info.abril.com.br/noticias/tecnologia-pessoal/quanto-tempo-voce-passa-em-frente-a-tv-31032010- 29.shl acesso em 29/03/2012. http://info.abril.com.br/noticias/tecnologia-pessoal/quanto-tempo-voce-passa-em-frente-a-tv-31032010-29.shl http://info.abril.com.br/noticias/tecnologia-pessoal/quanto-tempo-voce-passa-em-frente-a-tv-31032010-29.shl 32 6 – O TURISMO E SUAS IMPLICAÇÕES A intenção deste capítulo é realizar uma análise científica e conceituação da atividade turística, que abrange a motivação das pessoas em realizarem seus passeios de lazer, toda a construção de significado sobre esse fenômeno de movimento de massas e os inevitáveis e consequentes conflitos que giram em torno desse fenômeno. Inicialmente o questionamento é no sentido de se entender qual a necessidade real das pessoas, principalmente nos grandes centros urbanos a buscarem com tanta veemência momentos de lazer e desconexão com o mundo cotidiano, identificando os elementos de seu dia a dia que, de forma direta ou indireta, acabam por influenciar. Para a realização dessa análise é necessário uma compreensão de toda a estrutura social e econômica na qual a sociedade está inserida e que consequentemente irá influenciar em todas as suas escolhas e decisões subsequentes. O fio inicial do raciocínio é apresentado por Krippendorf (2006), o qual expõe que a economia reina soberana em nossa civilização, ela é a força motora, o fim e o meio, ela dita a conduta a adotar. O homem caiu no domínio econômico e a ele está subordinado, isto é, houve uma “economização” de todas as esferas da existência. Do nascimento até a morte todas as atividades estão literalmente arriscadas a serem comercializadas. O imutável credo dos adeptos do crescimento é o ciclo mágico, o “ciclo do crescimento”: mais produção proporciona mais trabalho – mais trabalho proporciona mais receita – mais receita permite mais consumo – mais consumo necessita de mais produção etc. Ou, no sentido inverso: mais produção exige aumento do consumo e assim por diante. Um elemento está necessariamente ligado ao outro e é justificado pelo outro e vice – versa. (KRIPPENDORF, 2006, p. 29). Essa lógica de mercado traz uma dinâmica própria e consequentemente um conjunto de valores que trabalham no sentido de garantir a manutenção e o “bom” funcionamento do sistema vigente. Esses valores são, no geral, a ostentação e veneração do “ter”, como: posse, propriedade, fortuna, consumo, egoísmo; em detrimento do “ser”, como: comunidade, tolerância, moderação, modéstia, honestidade. Isso como bem entendemos não é algo concebido divinamente, e sim fruto de uma exaustiva, persistente e antagônica construção histórica, vindo desde a Revolução Industrial e da capitalização de todos os meio de produção, inclusive o homem. Felizmente como sendo algo construído genuinamente pelo ser humano, todo esse aparato também é plausível de uma fiel análise e interpretação científica. Nesse contexto Krippendorf (2006) aponta que nossa sociedade está sujeita às influências de uma “corrida contra o relógio”, do barulho e do estresse. Também de tantas 33 coisas monótonas, sem atrativos e iguais: a moradia, os arredores, o trajeto para o local de trabalho, o trabalho em si e até mesmo o lazer diário. Isso acarreta uma série de consequências, como o recuo para dentro de si e o empobrecimento dos contatos humanos. Não é coincidência que para grande parte das pessoas a noção de cotidiano está repleta de conotações negativas: imundice, tumulto, trabalho, escola, cansaço, poluição. Para descrevê-los, só se usam cores e qualificativos tristes: cinza, monótono, cansativo. Nesse ponto, a alternativa a essa realidade caracteriza-se pelo lazer, mais especificamente as viagens e passeios, que, por uma ideia vendida, tem a promessa de dar mais cor à nossa existência, recriar o homem, curar e sustentar o corpo e a alma, proporcionar uma fonte de forças vitais para assim dar mais sentido à vida. O problema é que as cidades de maneira geral não se preocupam muito com o lazer, nem com as necessidades de relaxamento de seus habitantes, sendo a maioria cidades de trabalho, incompatíveis com a ideia de uma vida plena, embora já há alguns anos todos falem de cidades mais habitáveis, como aponta Krippendorf (2006). Na mesma linha Cruz (2003) coloca que, se por um lado os grandes centos urbanos constituem importantes pólos emissores de turistas, devido ao estresse a que estão expostos seus cidadãos e sua consequente necessidade e fuga temporária, não se pode deixar de citar que a necessidade de viajar é gerada no seio da sociedade de consumo e criada em grande parte pelos agentes de mercado. E com mais algumas condições evidenciadas a seguir: Não bastam o estresse da vida cotidiana urbana e o desejo de praticar turismo para a criação de uma demanda efetiva. Da população de determinado lugar somente se transformará em demanda turística aquela demanda solvável, ou seja, capaz de arcar com os custos de uma viagem de turismo. (CRUZ, 2003, p. 22). Frente a essa realidade correspondente ao cotidiano da população dos aglomerados urbanos, a situação não poderia ser melhor para aqueles que trabalham com o lazer e férias, são profissionais que se especializam em vender uma verdadeira imagem do paraíso, e com o crescimento econômico tem demanda garantida. Seria muito difícil definir com precisão todas as áreas que direta ou indiretamente pegam carona nessa movimentação de cifras muito atraentes. Movimentação que vai desde planejamento, deslocamento e chegada aos destinos, bem como toda a atividade de entretenimento e lazer que será desenvolvida no lugar. O turismo, uma indústria de diversão e do prazer, em expansão permanente, assume de forma completa a necessidade de lazer e de férias. É a indústria das agências de viagem, das empresas aéreas, ferrovias, rodoviárias e marítimas; dos hotéis e alojamentos; dos restaurantes e dos estabelecimentos de diversão; das empresas de construção; dos construtores de casas de campo e trailers; dos 34 fabricantes de equipamentos para acampamentos; dos escritórios de planejamento e consultoria; dos conselheiros econômicos e publicitários; dos arquitetos; dos construtores de teleféricos e dos fabricantes de esqui e roupas; dos vendedores de souvenirs; dos cassinos e de parques de diversão; do setor automobilístico; dos bancos; dos seguros etc. (KRIPPENDORF, 2006, p. 40). Compreendidos os elementos que geram toda essa demanda por viagens, verdadeiras fugas da realidade em busca de momentos normalmente mais prazerosos que a vida cotidiana da maioria das pessoas acontecem, assim os agentes que identificam esses elementos, de uma forma ou de outra, conseguem tirar proveito financeiro desses elementos por várias vias já conhecidas. Prosseguem algumas considerações sobre a atividade turística. Sobre turismo, Cruz (2003) aponta que segundo a OMT (Organização Mundial do Turismo) turismo é uma modalidade de deslocamento espacial, que envolve a utilização de algum meio de transporte e ao menos uma pernoite no destino; esse deslocamento pode ser motivado pelas mais diversas razões como lazer, negócios, congressos, saúde e outros motivos, desde que não correspondam a formas de remuneração direta. Ballabio (2010) escreve que a OMT (Organização Mundial do Turismo) expõe que o turismo é responsável pela geração de 6% a 8% do total de empregos no mundo, lembrando que esta é uma das atividades que menos demanda investimentos para a geração de trabalho, por isso a atenção especial. Na mesma reflexão em sua tese a autora coloca alguns valores como forma de se entender a proporção da movimentação de recursos gerados em função dessa atividade em específico no caso brasileiro: Em 2005 o Brasil alcançou a receita cambial turística de US$ 3, 86 bilhões, superior em 19, 83% ao ano de 2004 (US$ 3,22 bilhões), atingindo a marca de 34 meses consecutivos de crescimento, desde março de 2003. Em 2004, essa receita atingiu o montante de US$ 3,22 bilhões, superior em 30% em relação ao ano anterior (US$ 2, 479 bilhões), registrando um superávit da ordem de US$ 351 milhões, o maior dos últimos 15 anos, superando em 61% o superávit de 2003, de US$ 218 milhões.15 (BALLABIO, 2010, p. 39). Na intenção de se trabalhar mais especificamente, sabe-se que a definição de turismo caracteriza-se de forma muito abrangente, pois dentro dessa prática existem muitas subdivisões, ou seja, existem inúmeros tipos de turismo variando de acordo com os lugares de destino, as pessoas que o realizam e as atividades que são desenvolvidas durante esse 15 Dados do ministério do turismo de 2006 http://www.turismo.gov.br/. http://www.turismo.gov.br/ 35 período. Obviamente para cada modalidade diferente ocorrem perfis diferentes de pessoas, com intenções de lazer diferentes e que desenvolvem atividades diferentes no período de férias ou passeio. Por razões de tempo e recursos, não há como realizar uma abordagem muito aprofundada a respeito de todas as modalidades do turismo que já foram conceituadas por inúmeros autores, portanto ocorre a necessidade de um recorte mais específico sobre a categoria de interesse que pode ser observado na área de estudo. Eis que surge nossa categoria de interesse que o mercado batizou de “ecoturismo, ou turismo de aventura”. Segundo Cruz (2003) turismo alternativo (turismo de natureza, ecológico, ou ecoturismo) tem nos espaços naturais seu principal objetivo de consumo. Ao contrário do turismo de massa, este requer uma gama restrita ou reduzida de infraestrutura e serviços, embora, muitas vezes, não dispensem a sofisticação de ambos. Para Rodrigues (2003) ecoturismo é uma atividade econômica, de baixo impacto ambiental, que se orienta para áreas de significativo valor natural e cultural, e que através das atividades recreativas e educativas contribui para a conservação da biodiversidade e da sociodiversidade, resultando em benefícios para as comunidades receptoras. Com menos ou mais estrutura, no contexto de expansão global do turismo, o ecoturismo é uma das modalidades que mais crescem. Segundo dados mais recentes do WTTC (World Travel & Tourism Council), o ecoturismo vem crescendo a uma taxa anual de 20%, representando hoje entre 5% a 8% do mercado turístico mundial. (SILVEIRA, 2003). Uma das formas de se interpretar essa tendência que, ao decorrer das décadas vem se mostrando crescente, pode ser em partes atribuída à um crescente interesse que foi dado à questão ambiental por parte de iniciativa governamental e da opinião pública a partir da década de 70. Esse período viu sua fase mais especial na década de 90, no Brasil muito pela ECO-92, evento que teve como principais pautas discussões de cunho ambiental e que foi sediada no Rio de Janeiro. Risso (1998) aponta que as primeiras motivações que geraram um interesse de um debate sobre a temática ambiental estão ligadas ao desenvolvimento dos estudos no campo da História Natural, que gerou a palavra ecologia e também pelos impactos nocivos gerados pela Revolução Industrial. Mesmo sabendo que esses fatos ocorreram muito antes da década de 70, entende-se que foi nesse período que se constatou um agravamento dos problemas ambientais, prejudicando a todos sem distinção, gerando o que podemos classificar de uma situação insustentável. A partir das definições expostas a respeito das características do que o mercado chama de ecoturismo, com toda uma ideia pautada em uma conexão quase que obrigatória com um ideário de sustentabilidade, equilíbrio e até mesmo na ideia de natureza intocada, juntamente com uma análise dos dados apresentados que comprovam um aumento 36 substancial nessa atividade, entende-se que até mesmo o turismo alternativo vem se tornando massificado, pelo simples fato de se haver grande procura e valorização por esses destinos. A partir disso ocorre a necessidade de um aumento e melhoria na infraestrutura local, visando melhorias em áreas de interesses das pessoas de fora que visitam as comunidades, para que dessa forma possam se alocar e usufruir dos recursos oferecidos pelo local. Do contrário, o ambiente não se torna atrativo aos visitantes. Essas melhorias nem sempre são possíveis, devido geralmente à falta de recursos dos moradores das comunidades de destinos do ecoturismo, aliado ao descaso do poder público com essas comunidades, que se situam em localidades afastadas dos centros urbanos e de seus recursos. Como esses moradores locais muitas vezes não possuem condições financeiras para realizar as “adaptações necessárias” – para que o turismo de fato traga melhorias reais para a comunidade e não mais problemas –, essas transformações no espaço se dão pela iniciativa privada, por organizações já consolidadas e que exercem certo domínio no mercado. Como se pode observar, o fato que se caracteriza pelo deslocamento de um grupo de pessoas de uma localidade para outra, por mais simples que seja, exige minimamente uma infraestrutura para a alocação e acomodação dessas. Isso, por sua vez, só pode ser realizado através de investimentos de recursos financeiros, portanto quem dispuser de recursos ociosos e disposição para investir sai à frente na questão do usufruto dos recursos que são introduzidos pelos visitantes. Até esse ponto fica claro que a atividade turística aparenta ser uma verdadeira “galinha dos ovos de ouro”, pois dispondo de uma localidade com um potencial turístico e com pouquíssimo investimento pode-se extrair onerosos recursos das pessoas que ali buscam momentos de paz e tranqüilidade. Porém nem tudo é tão bonito e perfeito quanto parece, pois inúmeros conflitos são gerados em virtude da disputa por territórios localizados em lugares privilegiados e muito valorizados pelo mercado. O fato é que ocorre um crescente interesse do mercado capitalista em apropriar-se de localidades que apresentam alguma demanda turística, na intenção de aperfeiçoar seu potencial lucrativo através da aquisição de espaços, construção de edificações e infraestrutura voltadas a acomodar melhor os visitantes pertencentes às classes mais abastadas (que é o publico alvo dessa atividade), com justificativa de que essas transformações valorizam o lugar. Entretanto, sem nenhuma intenção de atender as necessidades reivindicadas pelos próprios moradores da comunidade. Conflitos existentes nos lugares apropriados pelo turismo são resultantes das diferenças de territorialidades que caracterizam o uso de seus territórios, que quer dizer, entre a territorialidade nômade dos turistas e a territorialidade sedentária dos residentes locais. As lógicas que movem a apropriação dos aspectos por um e 37 por outro ator social – nesses casos, turistas e residentes tem naturezas muito diferentes e, por isso, muitas vezes conflitantes. Se por um lado, a apropriação dos lugares pelos turistas se dá a partir de relações por demais fugazes com os lugares que visitam, por outro, os residentes desses lugares tem relações mais duradouras com seu quinhão de território. (KNAFOU, 1996 apud CRUZ, 2003, p. 14). Fica claro na colocação acima que, com a formação do mercado turístico em determinada localidade, algumas transformações no espaço ficam inevitáveis, isto é, ocorre uma reorganização espacial em função desse elemento gerador de renda. No caso da praia do Sono, essas transformações se dão no sentido de abertura de áreas próximas à praia para a alocação de barracas, construção de pousadas onde antes eram as residências dos caiçaras, e inúmeras mudanças na orla para atender os anseios dos turistas “nômades”. Essas mudanças puderam ser observadas durante o campo realizado na comunidade, mudanças físicas que acabam por remodelar a configuração da área. Além dessas transformações no espaço físico, também se tem uma reorganização do modo de vida nas comunidades receptoras de turistas em geral, isso engloba inúmeras esferas da vida dos moradores, como costumes típicos tradicionais e inúmeros hábitos religiosos, alimentares e culturais. Evidenciando esses fatos, nesse ponto se tem a seguinte reflexão: Será que os recursos trazidos pelo desenvolvimento turístico valem o sacrifício gerado pela reconfiguração do território? Será que compensa a perda de identidade cultural com o lugar e com o modo de vida ancestral? Nesse raciocínio, pode-se argumentar que o desenvolvimento econômico trazido para dentro da comunidade pode possibilitar muitas melhorias na vida dos moradores que antes eram inexistentes, porém como apresentado por Almeida (2004), há uma redução do termo desenvolvimento a uma dimensão econômica. Isso está na base do discurso estimulador da prática do turismo, sobretudo daqueles que justificam este viés. Daí a abordagem frequente e valorativa do turismo como atividade econômica. Compreendemos que, com esta concepção, negligencia-se seu entendimento de propiciador de uma prática social coletiva que integra mecanismos distintos de relação ao espaço, à identidade e ao Outro, vindos de relações sociais e culturais. Desenvolvimento turístico não é sinônimo de desenvolvimento, pois nenhuma atividade econômica setorial pode assegurar um desenvolvimento global que contemple todas as dimensões da vida social. No emaranhado e amplo jogo de relações que comandam o funcionamento das sociedades, nas redes políticas e sociais o turismo joga apenas uma parte. (CRUZ, 2000 Apud ALMEIDA, 2004). De acordo com Silva (2003), o desenvolvimento deve ser visto no seu sentido amplo, valorizando o crescimento com efetiva distribuição de renda, com superação significativa dos problemas sociais sem comprometimento ambiental, o que só pode ocorrer com 38 profundas mudanças nas estruturas e processos econômicos, sociais, políticos e culturais de uma dada sociedade. O modelo de desenvolvimento no Brasil, ao qual está subordinado também o turismo, é concentrador de renda, excludente e perpetuador de desigualdades socioespaciais. A recente divulgação do mapa da exclusão social do Brasil, e dos resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD do IBGE, com dados de 2003, nos revelam que 5 mil famílias são donas de 45% do PIB, do total de famílias no país 2,4% apenas respondem por 2/3 do estoque de riqueza e de renda do país; entre outras palavras os 10% mais ricos detém 45,3% da renda total do país, e o IDH, de 0,766 ( 2000) está abaixo do limite aceitável para o desenvolvimento humano. E isso tem conseqüências sobre o espaço, à infraestrutura e os serviços básicos do país... (ALMEIDA, 2004 p. 5). Nesse trecho fica evidente que, ao se observar as cifras geradas pelo turismo e ao analisar os números, se tem a errônea impressão de que essa atividade está assegurando o pleno desenvolvimento da comunidade em todas as suas aspirações, o que não é verdade. Sendo assim, como as inúmeras comunidades brasileiras situadas em áreas que vêm passando por constante valorização e especulação podem se defender desse feroz mercado no intuito de assegurar a posse de seu quinhão, bem como almejar num futuro próximo melhorias na oferta de serviços básicos como saúde e educação, assegurados pela constituição brasileira, porém que deixam e muito a desejar. Ao que parece essa luta fica ainda mais complicada quando se trata de Brasil, que como exposto, é um país findado em estruturas históricas e econômicas extremamente antagônicas, o que gera uma desigualdade social marcante e muito visível. Resumidamente, o desafio se dá no sentido de se encontrar formas de se realizar uma partilha mais consciente dos recursos captados com o turismo entre os moradores da comunidade, tarefa muito difícil em um país onde a ideia predominante do sistema financeiro é o acúmulo ao invés da distribuição. Como um ponto de partida para essa meta se tem a seguinte concepção: Diálogo e bom senso, bem como transparência da tomada de decisão são condições necessárias para uma efetiva co- responsabilidade. Para isso, deve-se levar em conta que tanto a participação efetiva da população local no planejamento e na gestão do turismo, bem como as peculiaridades naturais e culturais que singularizam os lugares constituem referenciais a serem incorporadas em programas de estímulo ao empreendedorismo e de capacitação profissional, destinados a segmentos da população local. Somente assim, com participação desses vários segmentos na 39 discussão, decisão e direção de projetos turísticos a serem implantados aumentará seu grau de ingerência e de apropriação nos resultados desse processo. (ALMEIDA, 2004, p. 9). Vale destacar a importância do Estado principalmente naquelas frentes “pioneiras”, nas quais a atividade turística desponta como possível promotora do desenvolvimento local. Isso, portanto, requer planejamento quanto às ações relativas à infraestrutura, ao programa de capacitação profissional e aos incentivos promocionais. Existem assim maiores possibilidades econômicas, políticas e sociais, tendo em vista atrativos potenciais, que é a ideia trabalhada por Almeida (2004). Essa intervenção estatal possibilita uma capacitação de mão de obra dentro da própria comunidade, para desenvolver inúmeras tarefas vinculadas aos visitantes, e assim gerando postos de trabalho e renda. 40 6.1 – Desenvolvimento do turismo em comunidades caiçara, o caso da Praia do Sono - RJ Nesse capítulo, se busca melhor desenvolver o histórico de desenvolvimento da atividade turística, especificamente na comunidade do Sono. Buscar-se-á entender o contexto pelo qual essa prática vem ganhando relevância dentro da comunidade, como está se dando o reflexo na organização espacial e a opinião dos moradores sobre esse período histórico em que vivem. (Figura 9). Figura 9: Placa de recepção aos turistas. Como já exposto, até meados dos anos 70 a região do sul do Rio de Janeiro, onde se situa o município de Paraty, passava por um longo período de estagnação econômica, em virtude da ausência de um acesso que ligasse os grandes centros econômicos a essa localidade. Tal fato chegou a contribuir para uma baixa na densidade demográfica desse município, pois os moradores iam tentar a vida em áreas que estavam em períodos mais prósperos16. A partir do fim da década de 70 e começo de 80, conclui-se o segundo trecho da rodovia Rio - Santos, que liga o litoral norte de São Paulo ao município de Paraty e Angra dos Reis, tal feito deu início a uma nova fase na história da cidade. A estrada permitiu o 16 Site oficial de Paraty: http://www.paraty.com.br/historia.asp - acesso em 03/ 2012 http://www.paraty.com.br/historia.asp 41 desenvolvimento de um grande fluxo de pessoas a essa área, levando trabalho e movimentando novamente a economia. Houve um crescente interesse de grandes corporações nacionais e internacionais que trabalham com turismo pelo potencial dessa área, no que diz respeito aos recursos paisagísticos. Esse conjunto de fatores fez com que nas décadas posteriores houvesse uma verdadeira inundação de pessoas interessadas em ganhar a vida nessa região a qual se adaptou a receber visitantes e demonstrou uma grande capacidade de se desenvolver em virtude dos recursos trazidos pelo turismo. (PLANO DIRETOR DE DESENVOLVIMENTO TURÍSTICO DE PARATY, 2003). (Figura 10). Figura 10: Posto de informações da comunidade na alta temporada. Na comunidade do Sono os moradores apontam que os primeiros turistas chegaram a partir dos anos 90. Como dentro da Unidade de Conservação há a ausência de estradas, os pioneiros aventuravam-se pelas trilhas em meio à mata nativa. Em um processo que aos poucos foi ganhando popularidade. Durante longos períodos a comunidade não sabia como lidar direito com o turismo, e nem com os turistas, devido a falta de fiscalização, regulamentação e até conhecimento sobre o assunto muitas pessoas de fora se aproveitavam dos moradores, acampando em áreas proibidas, na praia, fazendo fogueiras e retirando recursos indevidos das matas e das trilhas. (Figura 11). 42 Vale ressaltar que, nesse contexto, a criação de Unidade de Conservação desenvolveu um importante papel no auxílio à preservação do espaço e do ambiente. Mesmo com imposições, falta de diálogo e em muitos conflitos, a comunidade que vivencia esse fluxo de pessoas que cresce a cada dia observa uma preocupação com a preservação da reserva vinda da administração da Unidade. Figura 11: Turistas acomodados na Praia. Durante pouco mais de 20 anos vivenciando o aumento do número de turistas a passarem por essa localidade, os moradores cada vez mais vão se aprimorando no sentido de buscar formas de se otimizar os recursos captados e minimizar os impactos gerados pelo fluxo de pessoas. Para se conseguir tal meta, segundo a presidente da associação de moradores, se deve engajar a comunidade como um todo, discutindo os problemas e buscando soluções viáveis que contemplem os interesses econômicos sem deixar de lado os interesses sociais e humanos. A participação da comunidade é fundamental para um desenvolvimento responsável da atividade turística. No caso do Sono, a associação de moradores teve importantes contribuições no que diz respeito à criação e execução de normas que minimizem os conflitos entre moradores e visitantes, bem como engajando os próprios moradores na fiscalização do ambiente, (Figura 12) assim descentralizando a responsabilidade e possibilitando a participação de todos na economia. Essa delegação de responsabilidades e 43 inserção na atividade turística fez com que os moradores ganhassem mais experiências em gerir empreendimentos e criar uma identificação com a comunidade, a ponto de se sentir na obrigação de participar das decisões de interesse coletivo. Nesse ponto é interessante se realizar uma análise das estatísticas elaboradas a partir da opinião dos moradores sobre o desenvolvimento do turismo e suas implicações dentro da comunidade. Para tal análise foram realizadas duas pesquisas em campo, com entrevistas, observações e participações em algumas discussões com os moradores. Também levo em consideração dados fornecidos em estudo realizado sobre a percepção dos moradores da praia do Sono com relação ao turismo extraído dos Anais da Mostra de Práticas Turísticas, documento vinculado a Fundação Oswaldo Aranha, Centro Universitário de Volta Redonda, com edição da Prof.ª Carolina Dutra de Araújo, no ano de 2007.17 Figura 12: Barracas armadas em áreas previamente delimitadas. Inicialmente, quando questionados sobre os impactos que o turismo pode vir a causar de maneira permanente dentro da comunidade, tem-se uma evidência de que aproximadamente 64% dos moradores concordam que o aumento do turismo interfere no modo de vida dos moradores e nas suas atividades mais comuns. Isso se deve ao fato de 17 Documento disponível online em http://foa.org.br/cadernos/especiais/turismo/Anais_Mostra_Pr%C3%A1ticas_Tur%C3%ADsticas.pdf#page=11 – acesso em 03/2012. http://foa.org.br/cadernos/especiais/turismo/Anais_Mostra_Pr%C3%A1ticas_Tur%C3%ADsticas.pdf#page=11 44 ser uma comunidade até pouco tempo atrás constituída em grande parte por pescadores e agricultores que não estão acostumados com essa nova realidade. Com relação a aqueles que defendem a atividade tem-se aproximadamente 24% dos moradores, em sua grande maioria para defender seu argumento defendem que em períodos onde o fluxo de turistas é maior se tem mais trocas comerciais e mais movimentação monetária. Esse se dá por se tratar de uma camada da comunidade que é constituída por comerciantes. Em contraponto, se tem uma camada de aproximadamente 28% da comunidade que não são a favor do aumento do fluxo de turistas. Como já exposto, o argumento mais claro se dá no sentido de que o desenvolvimento dessa atividade traz muitos reflexos negativos para a comunidade. Embora sendo em muitos aspectos contra, cerca de 60% dos entrevistados concordam que o turismo atualmente já tem uma relevância econômica muito grande dentro da comunidade, principalmente para aqueles que têm algum vínculo com estabelecimentos como bares, restaurantes e pousadas. Em falas muito claras, pode-se perceber que muitos moradores preferem se preparar para receber turistas ao invés de pescar e plantar, (Figura 13), porém, segundo os próprios moradores, ninguém ainda vive só de turismo, tem de trabalhar em outras áreas nas baixas temporadas. Figura 13: Área externa da residência destinada à acomodação de turistas. 45 Dentre os resultados mais polêmicos, se tem o surpreendente número de 44% dos moradores que apontam o turismo desregulado como possível gerador de violência e impactos sociais e ambientais irreversíveis, devido majoritariamente à conduta desagradável de muitos visitantes. Na mesma linha, 40% dos entrevistados têm plena convicção de que o aumento do turismo nos últimos anos já ocasionou um substancial aumento no consumo de drogas e alguns furtos, tendo como justificativa para esses fatos a ausência de qualquer policiamento e fiscalização dentro da comunidade. A partir do levantamento bibliográfico, entrevistas com moradores e análise de pesquisas desenvolvidas nessa localidade, pode-se deduzir que, apesar da evolução na participação da comunidade na economia e criação de normas e diretrizes que auxiliam no desenvolvimento turístico, ainda é visível um grande descontentamento por parte dos moradores com relação aos problemas causados pelos impactos do turismo. (Figura 14). Figura 14: Tendas armadas na Praia na alta temporada. Por um lado, isso mostra como ainda se pode evoluir no sentido de melhorias tanto para turistas quanto para moradores, por outro lado mostra como é lamentável o comportamento das pessoas que visitam esse lugar, a falta de respeito com moradores e com a cultura. Fato comprovado com a indignação dos moradores ao falarem dos problemas trazidos com os turistas, como drogas e vandalismo. 46 7 – RESULTADOS E DISCUSSÕES 7.1 - Criação e desenvolvimento da associação de moradores Como já exposto anteriormente, pela sua localização, o núcleo onde se situa a comunidade da Praia do Sono é considerado como bairro de Paraty, que é o centro urbano mais próximo, isso faz com que, na maioria das vezes, quando os moradores precisam de algo que não dispõem na comunidade, recorram a essa cidade, e também faz com que seja considerado distrito do mesmo. Em diálogo com os moradores, nota-se porém certo descontentamento com essa condição, evidenciando que muitos se sentem um pouco esquecidos ou isolados das discussões que acontecem em Paraty, devido a isso não veem seus interesses contemplados nas pautas de discussões políticas. Quando se fala de interesses, esses vão muito além de interesses econômicos, trata-se de interesses de infraestrutura social, voltados primeiramente aos moradores do Sono – e não aos turistas – como saúde, educação e acesso. (Figura 15). Figura 15: Início da trilha do acesso por terra em dia chuvoso. Com isso, a alternativa mais eficaz e acessível para que a comunidade do Sono discuta seus problemas e aspirações foi a criação das associações de moradores, um 47 espaço onde a comunidade pode discutir a realidade e o futuro da vila, bem como os rumos econômicos e sociais que esta vem tomando frente às transformações que vêm ocorrendo em nosso país e que refletem na dinâmica de vida dessa população. Como estão dentro de áreas de conservação, até mesmo a própria permanência da comunidade nessa área ainda é ameaçada, devido à visão de muitos preservacionistas que encaram essas comunidades como depredadoras e que necessitam de um remanejamento a destinos fora da área de conservação; uma concepção que obviamente é descartada nesse trabalho. A partir desse levantamento, inicia-se a análise referente ao aspecto social que implica na forma de organização entre os moradores na intenção de se entender como se dá a participação em assuntos de interesse coletivo. Como colocado por Firth (1974), geralmente organização traduz a ideia de pessoas realizando coisas através da ação planejada. Isso constitui um processo social, o arranjo da ação em sequências em conformidade com fins sociais selecionados. Esses fins devem conter alguns elementos de significação comum para o conjunto das pessoas interessadas na ação. A significação não precisa ser idêntica, ou mesmo semelhante, para todas as pessoas; para algumas, pode ser oposta. Os processos da organização social podem consistir em parte na resolução de tal oposição, através de uma ação que permita a um ou outro elemento chegar à expressão final. A organização social implica certo grau de unificação, a reunião de elementos diversos em uma relação comum. Para se analisar a organização, Malinowski (1970) apresenta a relevância de se estudar a organização com relação a lideranças, direitos de propriedade, divisão de funções e atividades, direitos e benefícios auferidos. Ocorre a necessidade de se registrar as regras e os regulamentos técnicos, éticos, científicos e legais orientadores do comportamento com os desempenhos reais das pessoas e, por fim, situar a posição desse grupo com relação à comunidade como um todo. A organização de cada um desses sistemas de atividades também implica a aceitação de certos valores e leis fundamentais. É sempre a organização de pessoas para um fim determinado, aceito por elas e reconhecido pela comunidade. (MALINOWSKI, 1970, p. 52). Como diretriz, Malinowski (1970) concebe que tanto nas comunidades primitivas como nas “civilizadas” verificamos que, em primeiro lugar, toda ação humana efetiva conduz ao comportamento organizado e percebe que esse comportamento pode ser submetido a um esquema analítico definido. 48 A eficiência da comunicação entre os membros de uma sociedade impõe a manutenção de certa ordem nas redes de relações que a compõem. A institucionalização dos laços atribui-lhes uma força que é imposta a todos e uma coerência necessária para assegurar o bom andamento da sociedade e prevenir conflitos. (ETZIONI, 1968; MARQUET, 1970 apud CLAVAL, 2007). É importante ressaltar que as organizações sociais, que são objeto de análise nesse estudo, são estabelecidas entre parceiros iguais, o que segundo Claval (2007) são aquelas que esquematicamente podem figurar sobre um plano horizontal, onde todos os integrantes da associação têm o mesmo poder de voto; diferentemente das que o mesmo classifica como sendo aquelas ordenadas segundo um sistema hierárquico, ou plano vertical. As características desse tipo de relação institucionalizada segundo o mesmo autor são que demandam uma confiança recíproca, uma simetria nas trocas e um forte sentimento de pertencer a um grupo cimentado pelos laços estreitos e fortemente solidários. É uma espécie de fraternidade, uma comunidade, uma camaradagem (divide-se o pão), algo que lembra nas organizações sociais mais complexas e frias o calor da vida familiar. Sobre a relevância dessas instituições o autor considera: A vida social baseia-se em organizações hierárquicas institucionalizadas (mesmo sendo considerada horizontal, há certa divisão social de tarefas e responsabilidades dentro da mesma comunidade, porém sem uma relação de poder). Ela implica igualmente que os parceiros sintam-se pertencentes a um mesmo conjunto pelo qual cada um se sinta responsável e solidário. Isto toma em alguns casos uma forma afetiva, aquela da comunidade. Noutros casos, a construção social tem fundamentos racionais, o interesse, a eficácia, a preocupação de assegurar a defesa e a segurança coletiva por exemplo. (TÖNNIES, 1944 apud CLAVAL, 2007). Pela convivência na comunidade do Sono e investigação sobre a associação de moradores se observa que a comunidade se organiza em função dos dois pontos colocados anteriormente, isto é, ora se baseia na solidariedade entre os moradores – onde ocorre um sentimento de empatia, e todos os moradores se sentem verdadeiramente pertencentes a esse grupo – e ora se baseiam na racionalidade – onde a pauta é assegurar os interesses coletivos como defesa de suas propriedades contra especuladores, escolas, posto de saúde para a comunidade e etc. Sobre a questão espacial, Claval (2007) aponta que, de toda maneira, a vida de uma comunidade tem necessidade de uma base territorial: a distância cria um obstáculo muito real às relações nas quais se baseia. A comunidade próxima, familiar desempenha um papel central em todas as sociedades tradicionais. Ela pode se estender ao tamanho de um clã 49 formado por todos os descendentes de um ancestral comum. As solidariedades clânicas funcionam bem, desde que os gêneros de vida e os recursos familiares sejam relativamente semelhantes. O sistema de auxílio mútuo como prova de hospitalidade mútua, de doações e de contra-doações mostra-se então bastante eficaz. Como a comunidade da praia do Sono ficou um longo período vivenciando um determinado isolamento geográfico em virtude da ausência de estradas, pode-se observar que desenvolveram muito essa solidariedade quase fraternal; outro aspecto relevante é o fato de que a variedade de sobrenomes é pouca, sendo que as famílias que ali permaneceram acabaram por constituir novas famílias entre si. Atualmente a associação de moradores e a gestão da reserva ecológica onde está inserida a comunidade não aceitam mais que moradores de fora se mudem para o Sono, a não ser que se case com alguém de dentro da comunidade. Essa pesquisa se restringe à análise da organização social da comunidade em função do desenvolvimento da atividade turíst