; ponto-e-vírgula 14 (pp. 01-20) 2013 Itinerários do bovarismo * Eliana Maria de Melo Souza ** _____________________________________________________________ Resumo Existe no Brasil, segundo Sérgio Buarque de Holanda, um “vício de raciocínio”, que desfigura avaliações e desfavorece uma melhor compreensão das reais condições de mudança da sociedade brasileira. É em Raízes do Brasil que melhor se define esse “vício de raciocínio” como um “invencível desencanto em face das nossas condições reais”. Essa definição está apoiada na teoria do bovarismo - pouvoir qu`a l`homme de se concevoir autre qu`il n`est - teoria formulada por Jules de Gaultier (1858-1942), homme de lettres francês e divulgador de Nietzsche na França – a esse titulo, ele pretendeu-se filósofo –, que estende a caracterização do drama individual da personagem flaubertiana, Madame Bovary, para a caracterização das nações. Sérgio Buarque de Holanda não é o único autor que emprega essa noção, antes dele também encontramos o mesmo emprego em Paulo Prado e Lima Barreto, e muito depois dele em Celso Furtado e Paulo Eduardo Arantes, para ficar com os autores mais conhecidos. Este artigo visa rastrear algumas trajetórias da teoria do bovarismo, principalmente detectando seu significado no contexto literário francês de origem. Porém, o interesse aqui não é elucidar um problema francês, mas sim sugerir como uma “idéia transplantada” se aclimata na experiência intelectual brasileira, fundamentando teoricamente importantes diagnósticos de nossa sociedade. Trata-se de realizar o mapeamento genético de um conceito cuja atualidade ainda vibra forte no horizonte do embate decisivo entre projetos nacionais que lidam com a condição periférica do Brasil. Palavras chave: bovarismo; experiência intelectual; Flaubert; Jules de Gaultier; Georges Palante Abstract According to Sérgio Buarque de Holanda, there is a “thinking addiction" in Brazil that disfigures reviews and creates disadvantages for a better understanding of the real changing of conditions in society. It is in Raízes do Brasil that this "reasoning addiction" is best defined as an "Invincible disenchantment from the view of our real conditions". This definition is supported by the bovarism theory - pouvoir qu`a l`homme de se concevoir autre qu’il n’est - theory formulated by Jules de Gaultier (1858-1942), French homme de lettres and who promoted Nietzsche in France - for this title, he is self intended as a philosopher, which extends the characterization * Resultado de pesquisa financiada pela FAPESP. ** Professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, campus de Araraquara. Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 2 of the individual drama of Flaubertian's character of Madame Bovary for the characterization of nations. Sérgio Buarque de Holanda is not the only author who uses this notion, before him, it was also in Paulo Prado and Lima Barreto and much after him in Celso Furtado and Paulo Eduardo Arantes, to keep with the best known authors. This article aims to show how bovarism is born, what it is meant in the French context of origin and how it acclimatized in Brazilian's intellectual experience, theoretically basing important diagnostics of our society. This is to conduct genetic mapping of a concept which is still strong in the horizon of the decisive clash between national projects that deal with Brazil's peripheral condition. Keywords: bovarism; intelectual experience; Flaubert; Jules de Gaultier; Georges Palante ___________________________________________________________________ A compreensão da experiência intelectual em países como o Brasil está historicamente ligada à maneira pela qual têm sido formulados os parâmetros da discussão sobre as possibilidades de mudança. Quem chega a sugerir prognósticos precisos, inspira-se em diagnósticos que tratam de determinar as características instituidoras de nossa formação social. Nos termos já consagrados, a discussão se tornou conhecida como a questão da identidade nacional. Um amplo leque de autores que vai dos mais otimistas aos mais pessimistas, dos conservadores aos radicais - pares opostos extremados, mas expressivos das posições em disputa - todos são obrigados a passar a limpo formulações que conquistaram evidência na cena intelectual. Essa revisão se faz obrigatória mesmo quando se questiona a legitimidade da discussão identitária, seja em virtude da excessiva valorização de uma unidade fictícia, seja em virtude da ênfase nos novos dados da história mundial do século vinte e um. Para aqueles que aderem à ênfase na história contemporânea, geralmente chamados de pós-modernos, o tema da identidade nacional é página virada, ficando estabelecido que foi parâmetro da vida intelectual do século dezenove até os anos setenta do século vinte, quando então a lógica do mercado teria ingressado em tal magnitude global que desfigurou o significado sócio-político das singularidades dos países, relegando o tópico a uma inserção temática de menor importância. Desde O Abolicionismo – para citar um texto marcante da experiência intelectual brasileira e que bem exemplifica a abordagem visada aqui – até hoje, os diagnósticos e Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 3 prognósticos da sociedade brasileira determinam a qualidade da mudança a ser encetada. Quando Joaquim Nabuco aí avalia as nefastas influências da escravidão sobre a nacionalidade brasileira, ele chega a afirmar que “a africanização do Brasil pela escravidão é uma nódoa que a mãe-pátria imprimiu na sua própria face, na sua língua, e na única obra nacional verdadeiramente duradoura que conseguiu fundar” (p. 106). A escravidão envergonha as camadas intelectuais e dirigentes do país. Teria assim surgido, para ele, um povo criado fora da esfera da civilização, que ficou atrasado com relação aos benefícios sociais e políticos da industrialização – esta sim, a chave do projeto substantivo de mudança social, isto é, chave do processo de formação de trabalhadores livres e instituição da cidadania. O projeto de mudança social vem de uma espécie local de gentleman inglês. Mais de cinquenta anos depois, Sérgio Buarque de Holanda lança, em Raízes do Brasil, as bases de uma apreciação histórica da sociedade brasileira pioneira, porque descortina as possibilidades de mudança social enraizada nas efetivas condições sócio- políticas do país. O contraponto europeu da discussão não deixa iludir quanto à chave teórica explicativa do livro que implica o enfrentamento da realidade brasileira. Ou seja, o ingresso do Brasil em sua condição moderna deve ser projetado intrinsecamente vinculado à situação natural do país - situação interna, como se diz hoje –, pois só assim a superação do atraso deixará de ser um “lamentável mal-entendido” – cópia mal-feita, operada pelas classes dominantes, de instituições modeladas na Europa. Muitos dos que criticam o Brasil imperial por ter difundido uma espécie de bovarismo nacional, grotesco e sensaborão, esquecem-se de que o mal não diminuiu com o tempo; o que diminuiu, talvez, foi apenas nossa sensibilidade a seus efeitos. Quando se fez a propaganda republicana, julgou-se, é certo, introduzir, com o novo regime, um sistema mais acorde com as supostas aspirações da nacionalidade; o país ia viver finalmente por si, sem precisar exibir, só na América, formas políticas caprichosas e antiquadas; na realidade, porém, foi ainda um incitamento negador o que animou os propagandistas: o Brasil devia entrar em novo rumo, porque “se envergonhava” de si mesmo, de sua realidade biológica. Aqueles que pugnaram por uma vida nova representavam, talvez, ainda mais do que seus antecessores, a ideia de que o país não pode crescer pelas suas próprias forças naturais: deve formar-se de fora para dentro, deve merecer a aprovação dos outros. (HOLANDA, 1986, p. 124-125. grifos meus) Esta passagem, embora longa, serve para demonstrar, por um lado, como se inscreve, para Sérgio Buarque, o processo de mudança da sociedade. O liberalismo foi Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 4 importado da Europa e timbra de falso o ritmo de nossa experiência. Aposta no aniquilamento do molde ibérico, e sugere o artificialismo do molde americanista. A passagem para uma sociedade moderna não se constitui por ”decisões impostas de fora, exteriores à terra”. Por outro lado, essa passagem também nos serve bem porque aponta para o único momento, em Raízes do Brasil, onde aparece o emprego da noção de bovarismo, mas que, no entanto, a nosso ver, sinaliza uma das matrizes explicativas mais importantes do livro, se não for a mais importante. Lembremo-nos apenas de que o autor encerra o livro justamente com o mesmo argumento contra o bovarismo local – contra aqueles “que se vêem diversos do que são” e pleiteia o encontro com nossa própria realidade (HOLANDA, 1986, p. 142). A nacionalidade se constitui pela observação atenta ao que já somos, teríamos então o dever de dar vazão, sem artifícios estrangeiros, à nossa propensão natural. Esse reconhecimento de nossa própria disposição política fundamenta o principal argumento desse pequeno livro e implica, como já anuncia seu título metafórico, o enraizamento da sociedade brasileira – evolução do país segundo suas próprias condições reais de existência, mudança social que vem a ser fruto da ação deliberada de uma aspiração coletiva, aqui e agora. Em resumo, afirmação de que a sociabilidade brasileira deve ser pautada por um eixo interno e não externo ao país. Nesse sentido, o emprego da teoria do bovarismo vem a calhar. Quando se vê no espelho, o país não deve ver o modelo ibérico, ou inglês, ou francês, ou americano; deve ver os traços de sua própria índole e construir a mudança a partir dessa imagem real. Encontramos outra referência esclarecedora ao uso de bovarismo no excelente livro Literatura como Missão de Nicolau Sevcenko que o resgata em Lima Barreto: O bovarismo, segundo a concepção do autor, era outra dessas atitudes mistificatórias características da nova elite e prenhe de graves consequências para o conjunto do país. Esse tema constitui o âmago mesmo do Policarpo Quaresma, formando ainda a fonte de contos como “A biblioteca”, “Lívia” e “Na janela”. A compreensão teórica desse conceito procedia de Jules de Gaultier, filósofo que esteve na vanguarda da reação idealista e relativista ocorrida no cenário do pensamento europeu no início do século e sobre quem Lima Barreto fez anotações e comentários desde 1905. (SEVCENKO, 2003, p. 212) Sevcenko mostra, na sequência, o quanto o autor de Os Bruzundangas “faz uma aplicação social desse conceito” ao denunciar que: Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 5 A jovem república estava imersa em atitudes bovaristas. Aliás, a sua própria fundação fora decorrência de uma atitude bovarística: a fé incondicional na fórmula republicana, mais que isso, na palavra República, tomada como uma panacéia que resolveria todos os males do país. (SEVCENKO, 2003, p. 213). Denúncia de nossa artificiosa adesão à sociabilidade republicana, aliás, muito semelhante ao teor da crítica desenvolvida por Sérgio Buarque, como mostrado no parágrafo deste autor anteriormente transcrito. Nos limites deste artigo, cabe dar destaque à figuração da noção de bovarismo no texto de um autor que enfrentou o embate local entre interno/externo a respeito das condições brasileiras de mudança social, tal como inscrito na história de nossa experiência intelectual, chegando a afirmar que, “em certo sentido, meu trabalho é um balanço crítico das idéias correntes de identidade nacional” 1 . Com efeito, em Sequências Brasileiras, encontramos a sugestão de desfecho, embora provisório, da situação bovárica da experiência intelectual brasileira, espremido entre meados dos anos cinqüenta até meados dos anos sessenta, período de grande vigor do nacional-desenvolvimentismo. Escreveu Roberto Schwarz: Posto como objetivo prático, o desenvolvimento nacional reorganizava o espaço da imaginação e do pensamento crítico em torno de um eixo interno. Cheia de dificuldades, a relação entre as aspirações de modernidade e a experiência efetiva do país se tornava um tópico obrigatório, desmanchando o bovarismo endêmico e convidando a reflexão a tocar terra. No limite tratava-se de arrancar a população aos enquadramentos semicoloniais em que se encontrava, e de trazê-la, ainda que de forma precária, ao universo da cidadania, do trabalho assalariado e da atividade econômica moderna, industrial sobretudo, contrariando o destino agrário a que o imperialismo – como se dizia – nos forçava (o que aliás naqueles anos 60 deixara de ser verdade. (SCHWARZ, 1999, p. 156; grifos meus.) *** Existindo então uma teoria do bovarismo, o leitor cultivado – francês ou brasileiro – localiza em sua memória a referência à célebre personagem criada por Gustave Flaubert 1 Afirmação de Roberto Schwarz retirada da entrevista realizada por Eva L. Corredor em 15 de Agosto de 1994 para seu livro Lukács after Communism: Interviews with Contemporary Intellectuals. Durham, Duke University Press, 1997. Esta entrevista, traduzida por Iná Camargo Costa, foi publicada na Revista Literatura e Sociedade n. 14 do Departamento de Letras e Teoria Literária da USP; pp. 14-37. Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 6 (1821-1880). O escritor realista pareceu já preparar a imensa fortuna crítica que se seguiu à sua obra, inclusive para além do campo literário, como nos interessa agora esmiuçar. De fato, Flaubert legou uma quantidade para lá de razoável de documentos (principalmente cartas e diários) que atestam o cotidiano de seu minucioso e peculiar trabalho de escritor. Ele inaugurou uma narrativa impessoal, polifônica, uma técnica de escrita exigente e que demanda uma leitura criativa, não deixando a passividade se instalar no leitor. Segundo o especialista em Flaubert, Pierre-Marc de Biasi, os dois únicos elementos que acompanham o gosto do tempo são a análise psicológica e o retrato dos costumes. De resto, o leitor encontrava-se frente a uma escrita toda nova, desconcertante e transgressora. Associada ao sucesso de público, que contou com o acréscimo popular devido ao processo movido contra o autor, por atentado à moral vigente, a personagem logo se tornou um mito. Menos de dez anos depois da publicação do romance a palavra bovarismo já era de uso corrente para designar a representação de uma atitude tipicamente fundada na fantasia. Eis um termo que nadou de braçadas na imaginação coletiva. O passo seguinte – a elaboração de uma teoria do bovarismo – não se fez esperar. De acordo com o pesquisador do CNRS, citado acima, constatou-se que: O caso de Emma é estudado ao ponto de tornar-se um verdadeiro ‘tipo’ psicológico (‘uma Bovary’) passível de generalização. Em 1892, J. de Gaultier elabora a teoria do ‘bovarismo’, complexão psicológica da pessoa que se vê diversa do que é na realidade, e que se condena, por suas ilusões e ideias pré-estabelecidas, a estar sempre desiludida pela banalidade da existência 2 . Consultas às obras de referência mais consagradas pouco ou nada assinalam a relevância da teoria, sequer trazem informações precisas sobre a educação formal do autor ou sobre sua inserção profissional francesa. Encontramos apenas um pequeno artigo com ralas precisões numa edição antiga (de finais dos anos quarenta do século vinte) do Grand Larousse Encyclopédique, que o trata como philosophe français nascido em Paris, em 1858, e falecido em Boulogne-sur-Mer, em 1942. Após listar oito títulos de livros publicados por Jules de Gaultier de Laguionie, o artigo conclui com uma frase que nos chamou a atenção: “J. de Gaultier insiste naquilo que nomeia bovarismo: disposição do 2 Extraído do verbete Gustave Flaubert, escrito por Pierre-Marc de Biasi, para a Encyclopaedia Universalis. Assinale-se que Pierre-Marc de Biasi publicou a edição crítica dos Cadernos de Trabalho de Flaubert e o inclassificável Gustave Flaubert, une manière spéciale de vivre, notável empreitada desmistificatória, comentando criticamente as explicações consagradas de Sartre, Luckacs, Hauser, Bourdieu, embora passe batido pela muito original e reveladora interpretação do alemão Dolf Oehler. Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 7 homem a conceber-se diverso do que é, a mentir para si mesmo” (grifo meu). Devemos entender que o uso do termo pelo articulista quer apontar para o esforço continuado do autor, que teria se destacado nas letras pela elaboração de uma teoria marcante ou entender que ele quer apenas sugerir talvez uma perseverança enfadonha por parte do philosophe français em assunto menor, quase uma vã obsessão pessoal? *** Digamos então que constatamos a insignificância da teoria do bovarismo para a posteridade, a irrelevância da obra do autor. Em suma, observamos o desaparecimento do philosophe français no panteão das letras. Esse esquecimento tornou Jules de Gaultier quasi introuvable para retomar a expressão empregada por Silvia Elena Tendlarz que incorporou, numa brochura artesanal, sem data (provavelmente de finais dos anos 80 ou começos dos 90), intitulada Sept Références Introuvables de la thèse psychiatrique de Jacques Lacan, um capítulo do livro Le Bovarysme, edição de 1902. Esta brochura, que abre a série dos Documents de la Bibliothèque de l’École de la Cause Freudienne, trata de mostrar como Jacques Lacan em sua Tese de Doutorado – De la psychose paranoïaque dans ses rapports avec la personnalité –, realizada em 1932, partiu da psicopatologia do bovarismo, ou do “sistema filosófico construído por Jules de Gaultier”, para analisar o caso de uma paciente chamada, não por acaso, Aimée, cuja personalidade desde a infância elaborou de modo insatisfatório a distância entre imaginário e real, sendo então suscetível ao delírio paranóico. Segundo a compiladora – para terminar esta nota marginal sobre a posteridade francesa da teoria do bovarismo criada por nosso autor – Lacan utilizou a referência ocasionalmente apenas mais duas vezes para em seguida suprimi-la definitivamente de sua obra, integrando-se ao conceito de ideal. *** Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 8 Esse esquecimento é injusto? Não acredito: a teoria do bovarismo, para os franceses, se tornou no mínimo referência histórica nos seguintes tópicos, em ordem decrescente de importância: 1) Entre os primeiros divulgadores de Nietzsche na França, particularmente do primeiro momento do nietzscheísmo francês de direita, que vai de 1890 a 1914 3 ; Jules de Gaultier, que figura entre eles, chegará a afirmar que “o pensamento de Nietzsche é de inspiração claramente francesa e ele nos diz respeito” 4 ; 2) No espectro político do anti-dreyfusismo cujo espírito ultraconservador característico é anterior ao próprio caso Dreyfus; por isso, os anti-dreyfusards estão ligados ao nascimento do movimento de extrema-direita Action Française – como fonte, portanto, de práticas e de representações antissemitas, nacionalistas e autoritárias 5 ; 3) Na compreensão da incorporação do nacionalismo e do catolicismo como valores fundamentais no ideário de direita na França (PETITFILS, 1989); 4) No papel da imprensa, inclusive das chamadas revistas literárias, na França (SIRINELLI, 1992); 5) Na rivalidade política e social entre universitários X académiciens – membros das Academias Francesas; 6) Incorporada ao estilo do mau ensaísmo dos franco-atiradores. De fato, o primeiro livro publicado por Jules de Gaultier leva a data de 1892 e se intitula Le Bovarysme. La psychologie dans l’oeuvre de Flaubert. Editado pela parisiense Librairie Léopold Cerf, uma editora menor, o livro contém apenas 60 páginas (Todas as citações a seguir são desta brochura.) Dividido em seis seções, esse pequeno livro desenvolve, numa primeira parte, considerações gerais em que se apresentam principalmente os motivos que levaram o autor 3 LE RIDER, Jacques. Nietzsche en France. De la fin du XIXe siècle au temps présent. Paris: PUF, 1999. Agradeço ao historiador François Dosse a preciosa indicação deste livro. 4 GAULTIER, Jules de. Nietzsche et la pensée française. In Revue du Mercure de France, 1904; citado por Jacques Le Rider, que chega a afirmar ser Nietzsche o mais francês dos filósofos alemães, ou seja, ele mostra o quanto Nietzsche se aclimatou bem aos ares amenos franceses. 5 O caso Dreyfus – episódio relativo ao oficial francês de origem judaica que foi injustamente acusado de espionagem para os alemães – é um importante divisor entre a esquerda e a direita, na França, além de simbolicamente representar o advento da palavra intelectual com sentido politicamente engajado. Conferir DUCLERT, Vincent. L’Affaire Dreyfus. Paris: La Découverte, 1994. Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 9 a acrescentar mais uma investigação sobre a arte literária de Gustave Flaubert, para, numa segunda parte, deter-se na análise das personagens principais e secundárias de cada obra do escritor realista. Os autores citados ao longo do texto vêm em sua maioria do campo literário (Théophile Gautier, Alexandre Dumas, Guy de Maupassant, George Sand, Victor Hugo, Alfred de Musset, entre tantos outros) além é claro de Flaubert a quem chama de mestre. Seria temerário, sem dúvida, retomar um assunto já tratado por penas tão autorizadas como aquelas do Sr. Montégut, do Sr. Zola, do Sr. Brunetière e do Sr. P. Bourget, se após os estudos consagrados por eles à obra de Flaubert fatos novos não tivessem sido produzidos, justificando essa tentativa por meio dos documentos complementares que colocaram à disposição da crítica. Esses fatos são a publicação do Journal des Goncourt e a publicação da Correspondence Générale do mestre; o diário que fornece indicações interessantes no que diz respeito à fisionomia moral de Flaubert, aos seus hábitos e às tendências de seu espírito; as cartas revelando a íntima concordância que existe entre a obra e a sensibilidade do escritor, tornando manifestas suas preferências artísticas, suas opiniões filosóficas e a potência de sua personalidade, que, sob a impessoalidade da forma, ele escondia com tanto cuidado em seus romances (p. 10). Desconhecemos quem seja Montégut. Porém, Émile Zola, Ferdinand Brunetière e Paul Bourget são escritores e críticos literários cujo renome já é contemporâneo a Gaultier. Embora Zola filie-se decididamente às preocupações sociais e mesmo socialistas do final do século, o que não é o caso dos dois outros académiciens, ao contrário, ambos podem ser considerados de extrema-direita dentro do espectro político francês do período, além de serem antirrealistas e antinaturalistas, todos os três apresentam fortes influências do positivismo comteano. Nessa sequência ilustre, quer inserir-se nosso autor, em virtude da aparição de novos documentos, com a pretensão de contribuir com uma abordagem nova ao mesmo tempo psicológica, moral e artística (ou literária). O estilo da escrita é rebarbativo. Frases alongadas. Excesso de adjetivos. Digamos então que se trata de um mau ensaísmo, pelo menos aos olhos de hoje. Exemplos do mundo natural, vegetal e animal (flores, abelhas, mares etc.), bem ao gosto, como se sabe, dos positivistas franceses do século XIX, que reconhecemos particularmente em Comte. No geral, há também uma influência positivista nos intentos argumentativos. Tanto assim é que a intenção do autor se inscreve na busca da determinação de uma “lei geral do espírito humano”, como ele afirma logo às primeiras páginas. A concepção de uma evolução natural, necessária e obrigatória, do espírito humano, vem acompanhada de uma soberba Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 10 despreocupação política e social pelas questões do tempo que se combina a uma sensibilidade aristocrática, antidemocrática e talvez até antirrevolucionária (no sentido francês da época: contra os ideais da Revolução Francesa de 1789). Gaultier também se mostra contrário ao fenômeno novo da multidão, característico da sociedade moderna. Desde que o gosto da arte e, em particular, da pintura, invadiu a democracia moderna, quão poucos cidadãos conseguem admitir para si mesmos que não a amam? Simplesmente em razão da distância de suas ocupações ou de suas inclinações intelectuais. Eles querem amar uma arte que pareça digna de ser amada? Eles engrossam a massa que todos os anos invade as exposições de pintura, no meio da qual apenas uma mínima fração está apta para fruir a arte por si mesma. Para estar no nível do gosto em voga, eles deformam o sentido das palavras e a noção mesma da coisa, sem a menor cerimônia, e só conseguem conceber a pintura do ponto de vista da escolha de seus temas, na confusão de seus episódios, na sensibilidade revelada nas expressões, na beleza dos modelos. E se amanhã for o caso de ser músico, caridoso, ou patriota, eles saberão muito bem realocar as noções de música, de caridade, ou de patriotismo até que elas se amoldem à fôrma de suas faculdades. É a mentira desses resultados que a visão de Flaubert descobre infalivelmente nas consciências (p.24). Antes dessa observação, Gaultier já havia exclamado “serem raros os seres simples, em harmonia consigo mesmo”, tomam para si um personagem elaborado na imaginação, mentem-se a si mesmos, ignoram-se, afirmam ter gostos e desejos que gostariam de ter, e não aqueles que em realidade têm. Em resumo, o indivíduo “se concebe tal como quer ser e não tal como é” (p. 19). E Emma Bovary encarna com perfeição a definição, pois seu traço característico é “a secura do coração, a ausência de sensibilidade típica das pessoas do campo, em cujo universo ela tem origem” (p. 27). Ancorada no coração do homem e agindo incansavelmente, essa faculdade de se auto-ignorar e enganar parece ser a irônica contrapartida e o castigo natural do egoísmo primordial do “eu”: sempre em sua própria busca e a aspirar unicamente a sua própria satisfação, não chega a se encontrar e, enganado por um disfarce que ele mesmo imaginou, se extenua enquanto satisfaz as paixões e os desejos tomados de empréstimo a um quimérico fantasma (p. 20). Esse egoísmo primordial, esse ato elementar, nasce já na infância e quando adultos “os infelizes estão condenados à imitação”; sem personalidade forte, caráter anulado, “são semelhantes aos carneiros”; por isso, “conformam para si uma alma de empréstimo”. Eis aqui uma das definições mais acabadas, na escrita de Gaultier, da noção de bovarismo: “a capacidade própria ao homem de se conceber diverso do que é” (p.21), principalmente Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 11 porque, mais tarde já bem acostumado à pele de philosophe français, Jules de Gaultier a empregará sem cessar em vários de seus livros. Pela cegueira obstinada com a qual ela realiza sua incessante evolução, por seu fim trágico, ela personificou essa doença original da alma humana à qual seu nome pode servir de etiqueta, caso entenda-se por ‘Bovarismo’ a capacidade própria ao homem de se conceber diverso do que é sem se dar conta das diferentes motivações e das circunstâncias exteriores que determinam em cada indivíduo essa íntima transformação (p. 26). Nos três capítulos finais, o autor dedica-se a destrinchar os traços psicológicos dos personagens principais, mas também secundários, com direito a enfadonhos resumos das obras flaubertianas, para destacar-lhes os diversos tipos de bovarismo: - Bovarismo psicológico ou clássico: Emma Bovary (Madame Bovary), Frédéric Moreau (A Educação Sentimental); - Bovarismo intelectual: em Hommais (Madame Bovary), Pellérin e Deslauriers (A Educação Sentimental); - Bovarismo político: Sénécal, Dussardier, Regimbard, Compain (A Educação Sentimental); - Bovarismo metafísico, em Bouvard e Pécuchet, por encarnarem a fatuidade do esforço humano; um mal metafísico primordial da humanidade que já se pode, sempre segundo Gaultier, destacar em A Tentação de Santo Antonio. Sua denúncia do bovarismo contém, por um lado, uma apreciação negativa das qualidades intelectuais humanas, ou pelo menos demonstra pessimismo sobre o caráter de uma boa parcela da espécie humana, aquela menos favorecida pelas luzes do saber, menos dotada de riqueza material e distante dos prestígios parisienses. Por outro lado, também implica uma apreciação positiva porque a denúncia do bovarismo pretende levar o leitor supostamente cultivado a meditar sobre procedimentos psicológicos de auto-ajuda, se posso empregar o termo anacrônico para dar a entender o tom geral do texto. Por isso, talvez resgate da correspondência flaubertiana o seguinte conselho oracular: “descubra tua verdadeira natureza e esteja em harmonia com ela” (p. 59), com o qual Gaultier encerra o pequeno livro. *** Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 12 O projeto desse livro é modesto se comparado ao volume com o mesmo título produzido dez anos depois e que este sim, ao que nos parece, se tornou referência, e não só para a França, da teoria cuja significação cultural e política estamos tentando elucidar: Le Bovarysme, publicado agora por uma grande editora parisiense Mercure de France e contendo alentadas 316 páginas. Para tratar da teoria do bovarismo, desenvolvida nesta edição de 1902, principalmente apresentar suas diretrizes e referências teóricas, é preciso ter em mente o fato de que muita água correu nos dez anos que separam uma e outra empreitada e assim destacar a mudança profunda no contexto histórico e intelectual francês na virada do século. Estamos falando do caso Dreyfus, que causou verdadeiro turbilhão na vida política francesa, verdadeira guerra civil, e, por outro lado, da influência de Nietzsche na vida intelectual francesa. Os dois acontecimentos são particularmente decisivos para o direcionamento da escrita de nosso philosophe français. Por outro lado, é de se supor que, tendo alcançado relativo sucesso com o primeiro trabalho, Jules de Gaultier tenha adquirido bastante confiança em se lançar em uma nova empreitada sobre o mesmo assunto, agora publicada pela prestigiosa editora parisiense da Société du Mercure de France – sociedade fundada em 1894, e hoje integrada ao grupo Gallimard, gestora também da edição da revista, com mesmo nome, fundada em 1889 e encerrada em 1965. Amplamente modificado, o livro Le Bovarysme é escrito com outras referências, menos literárias e pretensamente mais filosóficas (principalmente Nietzsche e Schopenhauer), num estilo menos cerimonioso, mas ainda bastante solene, porém, mais seguro. Ele tenta aqui fazer do bovarismo um sistema filosófico, de alcance metafísico. Esta nova versão do mesmo revela o quanto o autor se tornou mais confiante, sentindo-se “proprietário” de uma nova teoria, que ele calculadamente torna rentável. Lembremos antes que, segundo o conhecido Dicionário Petit Robert de língua francesa, o termo bovarysme ganhou, na França, o uso comum, em 1865, ou seja, menos de dez anos depois da publicação do romance de Flaubert. Madame Bovary, publicado em 1857, tem sua intriga centrada na insatisfação afetiva e social de uma provinciana – história que se inspira em fatos reais. O verbete do Dicionário traz uma explicação clara: évasion dans l`imaginaire par insatisfaction; e ainda dicionariza uma citação de J. de Gaultier: Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 13 pouvoir “qu`a l`homme de se concevoir autre qu`il n`est” . Mantendo a boa tradução sergiana: poder do homem de se ver diverso do que é. Então Jules de Gaultier é o philosophe français de inspiração nietzschiana que primeiro teria sistematizado as características da personagem flaubertiana, reformulando-as de acordo com uma teoria válida para a caracterização das sociedades e das nações, até mesmo para o fundamento da vida humana. Até onde se pode constatar, a carreira de escritor prolífico começara antes deste segundo livro sobre o bovarismo. Já em 1895, portanto três anos depois do primeiro livro sobre o bovarismo, encontramos Gaultier escrevendo regularmente para a Revue Blanche – revista também fundada em 1889, igual data de fundação de sua concorrente, a Revue du Mercure de France. Na Revue Blanche, Gaultier escreve uma série de artigos intitulados Introduction à la vie intellectuelle. Poucos anos depois, em 1898, começa a escrever crônicas para a Revue du Mercure de France, onde se torna responsável pela rubrica de Filosofia entre 1907 e 1911. Mas também encontramos artigos de sua autoria na Revue Hebdomadaire, na Revue Philosophique, em Monde Nouveau e na Revue de Métaphysique et de Morale. Além disso, escreveu alguns prefácios e introduções a livros de fatura diversa, inclusive a um trabalho de uma jovem doutoranda sobre quiromancia. Mesmo enfrentando um tema tão esdrúxulo, Gaultier não perde a oportunidade de chamar sua teoria do bovarismo para explicar que no cerne da quiromancia existe “um aspecto fugidio e aproximativo”, não a verdade, mas sim “un à peu près sur le réel”. Tanto a quiromancia quanto sua teoria do bovarismo operam com um conhecimento do real que permanece no limite do conhecimento porque lidam ambos com um “elemento de incerteza perfeitamente invencível”. Somente o filósofo, diz Gaultier, pode se dispor a investigações de tal envergadura, porém ele esclarece: “non sans doute le philosophe de la tradition socratique, mais le philosophe du monde nouveau” 6 . Assinale-se ainda que chegou a dirigir a coleção intitulada, não por acaso, Philosophie Intellectualiste das Éditions du Siècle, editora que publicou, em 1926, seus dois últimos livros. 6 Extraído do Prefácio escrito por Jules de Gaultier para o livro de Maryse Choisy para La Chirologie (Paris: Librairie Félix Alcan, 1927; 332 p.). Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 14 Como se pode observar na bibliografia listada ao final deste artigo, Jules de Gaultier publicou 13 livros até 1926. Existem assim dois momentos silenciosos, o primeiro entre 1913 e 1922, provavelmente em virtude da Primeira Guerra Mundial, o segundo momento a partir de 1926 até sua morte em 1942, quando sai da cena editorial, provavelmente porque o pano cai tragicomicamente. *** Augusto Meyer, importante crítico literário e ensaísta brasileiro do século XX, assim se refere a esta segunda obra de Gaultier: Não me parece prudente recomendar ao leitor curioso a segunda obra de Jules de Gaultier, intitulada Le Bovarysme, para boa compreensão da gênese do sistema, o que importa muito mais, neste caso, do que o próprio sistema, já cristalizado e completo no espírito do autor. Aos leitores. Positivos basta indicar secamente, como um bibliotecário profissional, o livro de Georges Palante, La Philosophie du Bovarysme; lá estão reproduzidas, com a maior clareza, as definições e acepções que tomou o termo, desde o bovarismo como análise e crítica idealista, até as suas formas variadas de aplicação psicológica, individual ou social. (MEYER, 1956, p. 129) Com efeito, Georges Palante (1862-1925) foi muito cedo grande admirador da teoria do bovarismo elaborada por Jules de Gaultier. Já em 1903 publica na Revue du Mercure de France uma resenha bastante elogiosa do livro Le bovarysme, que então acaba de ser publicado. Filósofo de formação, professor de filosofia e de sociologia no liceu, Palante detecta bem o novo alcance metafísico da empreitada filosófica que Gaultier pretende estabelecer. Cabe citar aqui dois parágrafos desta resenha (“Le bovarysme. Une moderne philosophie de l’illusion”) porque também servem para vislumbrar o estilo do resenhista: Mas o bovarismo, conforme J. de Gaultier, não fica confinado nos limites estreitos das almas individuais. Esse gênio da ilusão se irradia e se espalha nas almas de povos e de raças; como o espírito etéreo de Ariel, ele se insinua em todos os graus da misteriosa vida universal; ele voa aéreo e luminoso, semeando em torno dele as miragens nas quais se enganam e se encantam a humanidade e o universo. Nesses pontos de vista sobre o papel do Bovarismo das Coletividades, do Bovarismo da Humanidade e do Bovarismo do Ser Universal, não é possível deixar de admirar a marcha segura e árdua de uma dialética que apreende, nos círculos sucessivos de suas generalizações, os âmbitos de realidade de mais em mais vastos. É o que se diria de uma dessas projeções de luz elétrica que, lançadas de uma Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 15 posição elevada, alargam progressivamente seu cone de luz, tão bem que a base do cone envolve e ilumina todo o horizonte. Mais tarde, Palante escreve outros dois longos artigos tratando num do bovarismo e, em outro, traçando um perfil filosófico de Gaultier, para a Revue des Idées, que ele reúne em livro em 1912: La philosophie du bovarysme. Jules de Gaultier (Paris: Éditions du Mercure de France, 80 p.). Gaultier, por sua vez, também resenhou dois livros de autoria de Palante: Combat pour l’individu e La sensibilité individualiste. A relação dos dois phisosophes français tinha tudo para dar certo: ambos são admiradores de Nietzsche e de Schopenhauer. Mais ainda: ambos são anti-dreyfusards! Com uma pequena diferença: se o anti-dreyfusismo de Gaultier é discretamente cínico, o anti-dreyfusismo de Palante é descaradamente cínico. Numa troca de cartas com o coronel Wilmort Edward Ellis, professor de filosofia da Academia Militar de West Point dos Estados Unidos, Jules de Gaultier chega a confessar suas convicções conservadoras e aristocráticas: Eu tinha em torno de trinta e cinco anos quando comecei a incorporar minhas meditações em artigos para críticas e em livros. Nessa época, associei-me à Revue Blanche, que continha uma série de artigos intitulados “L’Introduction à la vie intellectuelle”. Eles não foram publicados na forma de livros; mas dou grande importância a eles devido a orientação implícita que sempre me guiou. Sai da Revue Blanche em 1898, tendo o celebrado caso Dreyfuss me colocado do lado oposto ao dos diretores e principais editores da crítica. Foi quando que me juntei ao staff de Mercure de France, que tinha como código a liberdade de expressão – para mim, um sine qua non (ELLIS, 1928, p. 31). Já Palante, ao resenhar um livro de Alain, exalta-se com uma referência ao caso Dreyfus e recusa a admiração aos dreyfusards da parte de Alain exclamando “qu’il s’agit d’un événement aussi quelconque que cette affaire Dreyfus, banal épisode de l’histoire des partis, des coteries, des factions et des conjurations”, conforme escreveu num artigo na Revue Mercure de France de 15/01/1923. Com efeito, a ligação entre os dois nietzscheanos se estreita ao longo dos anos a ponto de, em 1911, Georges Palante substituir Jules de Gaultier como articulista da rubrica Philosophie nas páginas da Revue Mercure de France, provavelmente por indicação deste. 7 7 “Teria Gaultier proposto a candidatura de seu confrade e amigo? Ninguém sabe. No entanto, o que se pode afirmar com certeza, é que ele necessariamente apoiou. Os dois homens, com efeito, se conheciam bem e tinham tido a oportunidade de manifestar repetidas vezes sua admiração mútua” – do prefácio de Stéphane Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 16 Em 1922, Jules de Gaultier publica La philosophie officielle et la philosophie onde desenvolve sem pudor a pretensão, entre outras pretensões, de tornar o bovarismo uma disciplina do ensino universitário! Ao resenhar o livro, Palante ataca diretamente o ponto: Para resumir meu julgamento, a estrutura da filosofia bovárica do conhecimento não me parece inequívoca e o que diz o Sr. J. de Gaultier sobre sua dimensão histórica me parece exagerado. Quanto à sua ambição de vir a ser objeto de ensinamento e de suplantar na Universidade as doutrinas dominantes, ela me desconcerta um tanto. Cada um escolhe em uma filosofia aquilo que lhe agrada, aquilo que responde às suas preferências intelectuais e sentimentais. Meu gosto e minha admiração pelo bovarismo se direcionam, sobretudo, ao aspecto espetacular e estético dessa filosofia, caráter muito marcante em De Kant à Nietzsche. Mas o aspecto lógico e dogmático que essa filosofia passou a apresentar posteriormente me seduz menos. – Filosofia espetacular, filosofia estética, eu me havia habituado a ver no bovarismo uma filosofia dos happy few, uma filosofia de artista ou de diletante; não uma filosofia escolar, uma filosofia de Estado (Revue du Mercure de France, 1. /10/1922; grifos meus). Segue-se uma sequência de réplicas que a Revue Mercure de France publica a contragosto (em 1/11/1922, escreve Gaultier; em 15/12/1922, escreve Palante; em 15/01/1923, ainda Gaultier) até não aceitar mais publicações sobre o assunto, o que provoca a demissão de Palante como colaborador da Revista. A polêmica continua em brochuras: Une polémique interrompue... ou le Bovarysme: un bluff philosophique (Palante) e Parménide ou M. Palante et les raisons de Basile (Gaultier). Obviamente o tom também sobe muitos degraus e as agressões mútuas são violentas. Tão agressivas são as trocas verbais que o aristocrata Gaultier resolve, em agosto de 1923, chamar Palante para um duelo! A coisa toda chega a tal grau de paroxismo, tanto maior quando sabemos das condições físicas de Palante, que sofre de acromegalia. As armas escolhidas – espadas – são ainda mais terríveis, que as banais pistolas, para o impossível manuseio de um homem disforme como Palante. Depois de muitas peripécias, o duelo acaba por não se realizar, porém Palante, extremamente abalado, se suicida em consequência, como concluem seus admiradores contemporâneos 8 . Beau para a reedição de La Philosophie du Bovarysme, Jules de Gaultier de Georges Palante (Éditions du Sandre, 2005). 8 ONFRAY, Michel. Physiologie de Georges Palante. Pour un nietzschéisme de gauche. Paris: Grasset, 2002; 249 p. O subtítulo deste livro é equivocado. Como pudemos observar Georges Palante está longe de ser considerado de esquerda. Também Sthéphane Beau relaciona o suicídio de Georges Palante ao duelo não ocorrido. Assinale-se que Sthéphane Beau mantém uma página na internet sobre Georges Palante: uma verdadeira idolatria: http:/perso.wanadoo.fr/selene.star. Agradeço à Fadila Taibi, funcionária da Biblioteca Nacional de Paris, a descoberta deste site. Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 17 Para Flaubert, que escreveu Bouvard e Pécuchet com o espírito aguçado da ironia, Gaultier e Palante nada mais seriam do que dois duelistas metafísicos que se levam muito a sério. E podemos lembrar que no Dictionnaire des idées réçues para o verbete métaphysique registra-se on ne sait pas ce que c’est mais en rire (FLAUBERT, 1995, p.540). Georges Palante em sua última brochura contra Gaultier (Une polémique interrompue... ou le Bovarysme: un bluff philosophique) se perguntava “como uma tal filosofia pode ainda iludir o publico?”, para responder: isso é explicável pela natureza mesma do público ao qual ela se dirige. Trata-se de um público literário, antes de tudo, que fica sugestionado pelo termo bovarismo, sem se dar conta que esse termo perdeu todo o sentido ao ser aplicado ao mundo ideológico para o qual evolui a filosofia do Sr. de Gaultier. Esse público literário é um público fácil, não muito exigente (PALANTE, 1923). Mas lembremos que o blefe filosófico do qual acusa Palante atravessou mares. Nos Estados Unidos, encontramos alguns leitores e correspondentes de Gaultier. O coronel Ellis da Academia de West Point, anteriormente mencionado, vangloriou-se por ter obtido uma carta biográfica escrita pelo próprio Gaultier e a publicou resumidamente numa pequena brochura de 40 páginas (ELLIS, 1928). Tanto mais orgulhoso está de seu feito por que o philosophe français revela traços pessoais desconhecidos até por seus compatriotas, como Ellis com razão acredita. E descobrimos o tamanho do blefe filosófico de Jules de Gaultier por que digamos amplificado de uma ocultação profissional: era funcionário público do Ministério das Finanças. O que também não dependia de mim era que a fortuna da minha família, quando eu ainda era um jovem, se tornasse seriamente reduzida, e fui obrigado a me preocupar com uma carreira (ELLIS, 1928, p. 27). E, pouco adiante: Entrei então no Ministério das finanças, em uma época em que o trabalho do escritório ainda deixava espaço para a diversão àqueles com interesses exteriores, levando em consideração que tais pessoas não possuíam ambições administrativas. Esse era exatamente o meu caso; e foi durante a minha relação de vinte e cinco anos com o Ministério que moldei minha vocação, com o objetivo de dominar secretamente um instinto, que foi logo substituído pelo claro conhecimento do que o instinto pretendia (ELLIS, 1928, pp. 29-30). Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 18 Depois dessa afirmação, ele leva mais algumas páginas para confessar onde estava empregado como collector of taxes. Ou seja, Jules de Gaultier era funcionário público de baixo escalão: um mero coletor de impostos no interior da França!! Podemos aventar a hipótese de que o conhecido philosophe français não tinha nenhuma formação universitária! *** A teoria do bovarismo de Jules de Gaultier viajou para as Américas e desembarcou por aqui, na virada do século vinte, com um pequeno artigo na Revue du Mercure de France, datada de julho de 1900, que os deserdados em nossa terra leram provavelmente com muita avidez porque intitulado Le Bovarysme des déracinés. Obras de Jules de Gaultier 9 Le Bovarysme. La psychologie dans l’oeuvre de Flaubert. Paris: Librairie Léopold Cerf, 1892. De Kant à Nietzsche. Paris: Société Mercure de France, 1900; 355 p. Le bovarysme. Paris: Société Mercure de France, 1902; 316 p. La fiction universelle – deuxième essai sur le pouvoir d’imaginer. Paris: Société Mercure de France, 1903; 419 p. Nietzsche et la réforme philosophique. Paris: Société Mercure de France, 1904. Les raisons de l’idéalisme. Paris: Éditions du Siècle, 1906. La dépendance de la morale et l’indépendance des moeurs. Paris: Société Mercure de France 1907; 345 p. Comment naissent les dogmes [Entretiens avec ceux d’hier et d’aujourd’hui]. Paris: Société Mercure de France, 1912; 413 p. Le Génie de Flaubert; Paris: Société Mercure de France, 1913; 292 p. La philosophie officielle et la Philosophie. Paris: Librairie Félix Alcan, 1922; 156 p. La vie mystique de la nature. Paris: Éditions G. Crês et Cie., 1924. La sensibilité métaphysique. Paris: Éditions du Siècle, 1926. 9 Muitos destes livros são mera reunião de artigos publicados nas diversas revistas com as quais o autor colaborou. Itinerários do bovarismo ; ponto-e-vírgula 14 19 Nietzsche. Paris: Éditions du Siècle, 1926; 109 p. Bibliografia ARANTES, Paulo Eduardo. A fratura brasileira do mundo. Visões do laboratório brasileiro da mundialização. In: FIORI, J. L. e MEDEIROS, C. (orgs.) Polarização Mundial e Crescimento. Petrópolis: Editora Vozes, 2001; pp. 291-343. BACZKO, Bronislaw. Imagination Sociale, Imaginaires Sociaux. In: BACZKO, B. Les Imaginaires Sociaux. Paris: Payot, 1984; pp. 11-63. BARRETO, Lima. Diário Íntimo. São Paulo: Editora Mérito, 1953. BIASI, Pierre-Marc de. Gustave Flaubert: une manière spéciale de vivre. Paris: Grasset, 2009; 492 p. CANDIDO, Antonio. Uma palavra instável. In: CANDIDO, A. Vários Escritos. São Paulo: Editora Livraria Duas Cidades, 1995; 293-305. CANDIDO, A. Literatura e subdesenvolvimento. In: CANDIDO, A. 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