Tatiana Mazza da Silva-Surer Trajetórias de mudança dos predicados acabar, acontecer e começar sob perspectiva discursivo-funcional São José do Rio Preto 2014 Câmpus de São José do Rio Preto Tatiana Mazza da Silva-Surer Trajetórias de mudança dos predicados acabar, acontecer e começar sob perspectiva discursivo-funcional Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Estudos Linguísticos, junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Área de Concentração – Análise Linguística, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Orientador: Prof. Dr. Sebastião Leite Gonçalves São José do Rio Preto 2014 Silva-Surer, Tatiana Mazza da. Trajetórias de mudança dos predicados acabar, acontecer e começar sob perspectiva discursivo-funcional/ Tatiana Mazza da Silva-Surer. -- São José do Rio Preto, 2014. 190 f. : il. Orientador: Sebastião Leite Gonçalves Tese (doutorado) - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas 1. Linguística. 2. Funcionalismo (Linguística). 3. Semântica. I. Gonçalves, Sebastião. II. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título. CDU – 41(038) Tatiana Mazza da Silva-Surer Trajetórias de mudança dos predicados acabar, acontecer e começar sob perspectiva discursivo-funcional Tese apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Estudos Linguísticos, junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Área de Concentração – Análise Linguística, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de São José do Rio Preto. Comissão Examinadora Prof. Dr. Sebastião Carlos Leite Gonçalves UNESP – São José do Rio Preto Orientador Profª. Drª. Gisele Cássia de Sousa UNESP – São José do Rio Preto Profª. Drª. Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher UNESP – São José do Rio Preto Profª. Drª. Angélica Terezinha Carmos Rodrigues UNESP – Araraquara Profª. Drª. Taisa Peres de Oliveira UFMS – Três Lagoas São José do Rio Preto 06 de agosto de 2014 Ao meu avô Mazza (in memorian) e à minha família, eu dedico. AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Sebastião Carlos Leite Gonçalves, eterna admiração ao profissional e, sobretudo, à pessoa que é. Sou muito grata por ter sido sua orientanda durante esses seis anos. Obrigada pela confiança depositada em minha pessoa e em meu trabalho e pela amizade que construímos. À Profa. Dra. Mathilde Evelien Keizer, da Universidade de Viena, pela orientação deste trabalho durante a minha estadia na Áustria e pelo carinho e preocupação. Poder disfrutar dos seus conhecimentos me fez enriquecer muito como pesquisadora. À Profa. Dra. Gisele Cássia de Sousa, pela amizade, pelo exemplo de profissional e pelas sugestões que fez ao meu trabalho desde o projeto até a defesa. À Profa. Dra. Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher, por me incentivar a fazer o doutorado-sanduíche e me mostrar que isso poderia trazer contribuições não só ao meu trabalho, mas também a minha pessoa. Obrigada também pelas inúmeras sugestões no decorrer deste trabalho, no exame de qualificação e de qualificação especial. À Profa. Taisa Peres de Oliveira, por ter aceito a participar da banca de defesa e, também, pelas suas contribuições durante nossos bate-papos. À Profa. Vânia Cristina Casseb-Galvão, por participar da banca de defesa e pelas contribuições ao trabalho, por meio de seus artigos sobre a interface GR/GDF. À Profa. Dra. Anna Flora Brunelli, por sempre estar disposta a me ouvir ou a ler os meus e-mails. Obrigada por levantar o meu astral, por meio de palavras de carinho e sabedoria. Aos Profs. Drs. Kees Hengeveld, Lachlan Mackenzie e Daniel Velasco, por discutirem os dados do meu trabalho em todas as etapas desta pesquisa. À Profa. Dra. Hella Olbertz, por debater meu trabalho na Universidade de Amsterdam e por sempre estar disposta a discutir sobre as perífrases verbais em Português. Ao meu avô Mazza, por ter me ensinado a persistir nos meus sonhos. Nos momentos mais difíceis, lembrei-me da lição deixada por ele: eu quero, eu posso e eu vou conseguir. Aos meus pais, por terem sempre me dado o apoio emocional e financeiro. Agradeço a eles também por terem cuidado perfeitamente da minha filha, durante os meus estudos na Áustria. Sem eles, eu não teria conseguido chegar nem na metade do caminho. À Maria Eduarda, minha amada Miss Sunshine, mesmo tão pequena, soube ser forte para entender as escolhas da mamãe. Obrigada por ser o meu horizonte e a força que me fez chegar até aqui. Ao meu marido Paul, meu exemplo de pesquisador, que, mesmo sem entender de Linguística e, muito menos, de história da língua portuguesa, foi o meu primeiro interlocutor. Obrigada por todos momentos que facilitou a nossa vida para eu poder pesquisar e pelo marido e pai sensacional que é. Danke, mein Schatz!!! A todos os meus amigos que, mesmo na distância, se fizeram presente. Em especial, gostaria de agradecer ao Michel Fontes, por estar sempre disposto a discutir a GDF comigo. À Universidade de Viena, por ter me aceito como aluna durante os seis meses do doutorado-sanduíche. Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação do IBILCE. À CAPES, pelas bolsas de doutorado e doutorado-sanduíche. E a Deus e a Nossa Senhora por sempre terem me dado a força necessária para seguir. No começo era o verbo No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá, Onde a criança diz: eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não Funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz De fazer nascimentos - O verbo tem que pegar delírio. (Manoel de Barros) RESUMO Nosso objetivo nesta tese é analisar a multifuncionalidade dos predicados acabar, acontecer e começar, na história do português brasileiro, assumindo como quadro teórico duas teorias de mudança linguística – Lexicalização e Gramaticalização – na interface com a Gramática Discursivo-funcional (HENGEVELD e MACKENZIE, 2008). Lexicalização caracteriza-se como processo por meio do qual itens ou construções entram para o léxico da língua com um significado específico (LEHMANN, 2002a), e Gramaticalização, como processo que leva itens ou construções lexicais a assumirem, em contextos específicos, funções gramaticais ou, se já gramaticalizados, a continuar a desenvolver novas funções gramaticais, envolvendo, no decorrer do processo, pragmatização crescente de sentidos e recategorização dos itens ou construções (HOPPER & TRAUGOTT, 2003). Em acordo com modelo de descrição proposto pela Gramática Discursivo-funcional, assumimos como hipótese que a trajetória de mudança percorrida pelos predicados em análise respeita a ordem hierárquica das camadas e dos níveis de representação gramatical. A investigação empírica toma por base corpora compostos de textos históricos do português brasileiro de diferentes gêneros do discurso dos séculos XVIII ao XXI e também de dados de fala do português brasileiro contemporâneo dos séculos XX e XXI. Como resultado da pesquisa em corpora, levantamos para o predicado acabar sete diferentes padrões de uso, para acontecer, dois diferentes padrões de uso, e para começar, quatro padrões de uso, e mostramos que todos os predicados convergem, em suas respectivas trajetórias de mudança, para o mesmo padrão de uso como operador argumentativo. Essa constatação nos permitiu propor um percurso de mudança envolvendo os diferentes padrões de usos de cada um dos predicados, o qual, na arquitetura da Gramática Discursivo-funcional, segue das camadas mais baixas para as mais altas do Nível Representacional (nível das representações semânticas) e do Nível Representacional para o Nível Interpessoal (nível das representações pragmáticas), comprovando assim a hipótese inicialmente assumida e a adequação do modelo gramatical adotado. Palavras-chave: Gramaticalização; Lexicalização; Gramática Discursivo-Funcional. ABSTRACT The present study aimed to investigate the multifunctionality of the predicates acabar, acontecer and começar, in the history of Brazilian Portuguese, assuming as a theoretical framework two theories of linguistic change – Lexicalization and Grammaticalization – in interaction with the study of Functional Discourse Grammar (HENGEVELD & MACKENZIE, 2008). Lexicalization is considered here as the process through which single items or constructions become part of the language lexicon with a new specific meaning (LEHMANN, 2002a), while Grammaticalization is regarded as the process which leads items or lexical constructions to acquire, in specific contexts, grammatical functions or, if those items have already undergone grammaticalization, to continue and develop new grammatical functions. The latter process covers, throughout its development, a rising level of pragmatization of meaning and recategorization of the items and constructions involved (HOPPER & TRAUGOTT, 2003). In accordance to the model of description proposed by the theory of Functional Discourse Grammar, our hypothesis predicted that the trajectory of change perceived in the analyzed predicates would respect the hierarchical order of the layers and the levels of the grammatical representation. Empirical investigation was conducted on corpora composed of: (i) historical written texts of various discourse genres from the 18th to the 21st century; and (ii) Modern Brazilian Portuguese spoken data from the 20th to the 21st century. The results of the corpora investigation led to the findings of seven different patterns of use for the predicate acabar, two different patterns of use for the predicate acontecer and four different patterns of use for the predicate começar. We were also able to establish that all predicates converged, in their respective trajectories of change, to the same pattern of use: that of an argumentative operator. This conclusion allowed us to propose a path of change regarding the different patterns of use found for each one of the predicates; path which, in the architecture of Functional Discourse Grammar, moves from the lower layers to the higher layers of the Representational Level (level of semantic representations) and from the Representational Level to the Interpersonal Level (level of pragmatic representations), confirming therefore the initial hypothesis and the adequacy to the grammatical model adopted. Keywords: Grammaticalization; Lexicalization; Functional Discourse Grammar. LISTA DE QUADROS, FIGURAS E TABELAS LISTA DE QUADROS p. Quadro 01: A relação léxico e gramática (adaptado de LEHMANN, 2002a, p.3) ............................................................................................... 23 Quadro 02: Os processos de lexicalização e folk etymology (adaptado de BRINTON e TRAUGOTT, 2005) .......................................................... 27 Quadro 03: Os processos de gramaticalização e degramaticalização (adaptado de BRINTON e TRAUGOTT, 2005) ............................................ 27 Quadro 04: Estágios de evolução da língua (HUMBOLDT, 1822, apud HOPPER e TRAUGOTT, 1993, p. 18-19) ................................... 29 Quadro 05: Conceitos lexicais e conceitos gramaticais (adaptado de HEINE et al., 1991) .................................................................................. 35 Quadro 06: Correlação entre categorias metafóricas, classes de palavras e tipos de constituintes (adaptado de HEINE et al., 1991, p.53-54) 39 Quadro 07: Nível Interpessoal (SOUZA, 2009, p. 47) .................................... 47 Quadro 08: Categorias semânticas (adaptado de HENGEVELD e MACKENZIE, 2008, p. 136) ......................................................... 51 Quadro 09: Nível Representacional (SOUZA, 2009, p. 51) ............................ 52 Quadro 10: Critérios de gramaticalização dentro de cada nível (adaptado de KEIZER, 2007) ............................................................................. 58 Quadro 11: Traços léxico-gramaticais para morfemas livres em Inglês (adaptado de KEIZER, 2007) ...................................................... 59 Quadro 12: Gramaticalização de will (adaptado de KEIZER, 2012) ............... 60 Quadro 13: Fatores que explicam a interface entre GDF/GR (adaptado de CASSEB-GALVÃO, 2011) ........................................................... 61 Quadro 14: Desenvolvimentos atestados na gramaticalização de tempo e aspecto (transcrito de HENGEVELD, 2011) ................................ 63 Quadro 15: Critérios de Auxiliaridade (adaptado de FONSECA, 2010) ......... 67 Quadro 16: Propriedades prototípicas dos Predicados Encaixadores e Verbos Auxiliares (baseado em WACHOWICZ, 2007) ................ 74 Quadro 17: Constituição dos corpora ............................................................. 81 LISTA DE FIGURAS p. Figura 01: Arquitetura geral da Gramática Discursivo-Funcional (adaptado de HENGEVELD e MACKENZIE, 2012, p. 46) ........................... 45 Figura 02: Lexicalização e Gramaticalização de [acabar de] ....................... 128 Figura 03: Lexicalização e Gramaticalização de [acabar por + infinitivo] ..... 130 Figura 04: Gramaticalização de [acabar + gerúndio] .................................... 131 Figura 05: Lexicalização e Gramaticalização de [acabar + que] .................. 132 Figura 06: Trajetória de mudança de acabar e sua atuação na estrutura hierárquica da GDF ..................................................................... 134 Figura 07: Gramaticalização de acontecer de verbo pleno a predicado encaixador ................................................................................... 153 Figura 08: Lexicalização e Gramaticalização de [acontece + que] e sua atuação na estrutura hierárquica da GDF ................................... 154 Figura 09: Comportamento de acontecer na estrutura hierárquica da GDF . 154 Figura 10: Lexicalização de [começar a] ...................................................... 175 Figura 11: Gramaticalização de [começando que] ....................................... 176 Figura 12: Trajetória de mudança de começar e sua atuação na estrutura hierárquica da GDF ..................................................................... 177 SUMÁRIO p. INTRODUÇÃO ...................................................................................... 15 Cap. 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ............................................... 21 1.1. Os processos de mudança linguística ................................................. 21 1.1.1. Lexicalização ......................................................................................... 21 1.1.2. Gramaticalização .................................................................................. 28 1.1.2.1. A distinção lexical e gramatical .......................................................... 33 1.1.2.2. Unidirecionalidade e os mecanismos de Gramaticalização ............... 36 1.2. Gramática Discursivo Funcional .......................................................... 42 1.2.1. Nível Interpessoal ................................................................................. 46 1.2.2. Nível Representacional ......................................................................... 49 1.2.3. Nível Morfossintático ............................................................................. 53 1.2.4. Nível Fonológico ................................................................................... 55 1.3. A implementação da Gramaticalização dentro da Gramática Discursivo-Funcional .................................................................................... 56 1.4. Auxiliaridade, Copularidade e Encaixamento ..................................... 63 1.4.1. Verbo pleno x Verbo auxiliar ................................................................. 63 1.4.2. Verbo auxiliar x Verbo copular .............................................................. 69 1.4.3. Verbo auxiliar x Predicado encaixador .................................................. 72 Cap. 2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ................................ 75 2.1. Composição dos corpora ...................................................................... 75 2.1.1. Delimitando o português brasileiro ........................................................ 76 2.1.2. Corpora do trabalho .............................................................................. 78 2.2. Critérios de análise ................................................................................ 82 Cap. 3. OS PREDICADOS ACABAR , ACONTECER E COMEÇAR NO PORTUGUÊS BRASILEIRO .......................................................... 91 3.1. Os processos de mudança linguística dos predicados acabar, acontecer e começar sob a ótica da Gramática Discursivo-Funcional ... 91 3.1.1. Acabar ................................................................................................... 92 3.1.1.1. A multifuncionalidade de acabar ........................................................ 93 3.1.1.2. A trajetória de mudança linguística de acabar e a interface com a GDF ................................................................................................................. 124 3.1.2. Acontecer .............................................................................................. 135 3.1.2.1. A multifuncionalidade de acontecer ................................................... 136 3.1.2.2. A trajetória de mudança linguística de acontecer e a interface com a GDF ................................................................................................................. 149 3.1.3. Começar ................................................................................................ 155 3.1.3.1. A multifuncionalide de começar ......................................................... 156 3.1.3.2. A trajetória de mudança linguística de começar e a interface com a GDF ................................................................................................................. 171 CONCLUSÕES ..................................................................................... 178 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................... 182 INTRODUÇÃO Nesta pesquisa, investigamos a multifuncionalidade dos predicados acabar, acontecer e começar na história do português brasileiro, tendo como aparato teórico a interface entre duas teorias de mudança linguística – Lexicalização (LEHMANN, 2002) e Gramaticalização (HOPPER e TRAUGOTT, 2003) – com a Gramática Discursivo-Funcional (HENGEVELD e MACKENZIE, 2008). Lexicalização caracteriza-se como processo por meio do qual itens ou construções entram para o léxico da língua com um significado específico (LEHMANN, 2002a), e Gramaticalização, como processo que leva itens ou construções lexicais a assumirem, em contextos específicos, funções gramaticais ou, se já gramaticalizados, a continuar a desenvolver novas funções gramaticais, envolvendo, no decorrer do processo, pragmatização crescente de sentidos e recategorização dos itens ou construções (HOPPER e TRAUGOTT, 2003). O modelo da Gramática Discursivo-funcional (GDF), desenvolvido por Hengeveld e Mackenzie (2008), prevê que, na produção de todo e qualquer enunciado, estão envolvidas operações gramaticais de Formulação e de Codificação, as quais são sempre alimentadas pelos componentes cognitivos/conceptuais e contextuais, esses extra-gramaticais. Operações de formulações partem de decisões assumidas no Nível Interpessoal (NI) e, na sequência, no Nível Representacional (NR), o que significa dizer que o NI representa uma unidade linguística em termos de sua função comunicativa, e o NR, em termos de sua categoria semântica. A essas duas operações de formulação se seguem operações de codificação, que se processam, primeiramente no Nível Morfossintático (NM) e, em seguida, no Nível Fonológico (MF). Claro, então, está que a cada um dos níveis de representação gramatical correspondem manifestações puramente linguísticas de natureza pragmática, semântica, morfossintática e fonológica, respectivamente. Importante ainda a destacar, para os propósitos 16 do presente trabalho, é que cada um desses níveis de representação gramatical é organizado ordenadamente em estruturas hierárquicas de camadas. Uma visão simplificada da arquitetura da GDF é esquematizada abaixo. - Ordenação hierárquica entre os níveis de representação gramatical NI < NR < NM < NF - Ordenação hierárquica interna (em camadas) dos níveis de representação a. NI Move (M) < Ato discursivo (A) Força Ilocucionária (F) Participantes (F, O) Conteúdo Comunicado (C) Subato atributivo (T) Subato referencial (R) b. NR Conteúdo proposicional (p) < Episódio (ep) < Estado-de- coisas (e) < Propriedade (f1) Indivíduos (x) Propriedade (f2) c. NM Expressão Linguística (Le) < Oração (Cl) < Sintagma (Xp) < Palavra (Xw) Morfema (Xm) d. NF Enunciado (U) < Frase entonacional (IP) < Frase Fonológica (PP) < Palavra fonológica (PW) Assumimos como hipótese que a trajetória de mudança percorrida pelos predicados em análise respeita a ordem hierárquica das camadas e dos níveis de representação gramatical tal como proposto pela GDF. Na literatura linguística do português sobre os predicados em análise, constatamos que ainda há muito a ser investigado acerca de suas multifuncionalidades. Encontramos alguns 17 trabalhos que exploram mais os predicados acabar e começar, mas nenhum dedicado especificamente às funções desempenhadas por acontecer, a não ser referências esparsas sobre esse predicado abordado a partir de outras temáticas, como, por exemplo, o trabalho de Pezatti (1993), que trata de ordem de palavras, o de Garcia (2004), que aborda a tipologia semântica de verbos, e o de Gonçalves et al. (2008), sobre subordinação sentencial. A maioria dos trabalhos sobre acabar e começar, como o de Longo e Campos (2002), o de Wachowicz (2007) e o de Bertucci (2011), dedica-se mais à análise das funções aspectuais desses predicados em construções do tipo [acabar de + infinitivo] e [começar a + infinitivo], e enfatiza o funcionamento dos predicados nessas construções ou como verbo auxiliar ou como predicado encaixador. Uma descrição mais detalhada acerca desses mesmos predicados, com foco na gramaticalização, é encontrada em Travaglia (2002), que apresenta uma análise diacrônica das diferentes funções por eles desempenhadas, fundamentada na noção de frequência de uso. No entanto, mesmo esse trabalho do autor não trata de algumas funções desses predicados, como, por exemplo, a função de semi-cópula de acabar e a função de operador argumentativo de acabar e começar em construções do tipo [acabar que] e [começar que], em razão de essas construções, segundo o autor, não apresentarem frequência expressiva na língua, o que deixa algumas funções desses predicados ainda carentes de descrição. Sob a perspectiva da GDF, Bastos et al. (2007) mostram que a expressão de certas categorias modais no interior da oração completiva obedece ao tipo de unidade semântico- funcional do Nível Representacional que a completiva representa, ou seja, uma oração completiva não pode comportar um elemento modal semanticamente de nível mais alto do que aquele que ela representa. Dentre os vários tipos de predicados que selecionam complementos representados por uma das categorias do nível representacional (p-, ep-, e- ou f-complemento, conforme esquema dado acima), os autores constatam que os predicados fasais começar e acabar, em construções do tipo [começar/acabar + gerúndio], selecionam 18 um ep-complemento e, em construções do tipo [começar a/acabar de + infinitivo], selecionam um f-complemento, no interior dos quais ocorrem apenas expressões de modalidade orientada para o participante, compatíveis, portanto, com a unidade representada pela completiva. Ao final do artigo, estendendo a análise dos predicados fasais, os autores consideram os casos em que acabar e começar encaixam orações finitas, não podendo, portanto, ser analisados como predicados fasais típicos. Construções do tipo [acabar + que] e [começar + que] introduzem complementos representados por Atos Discursivos, um A-complemento, unidade do Nível Interpessoal, e indicam “que, de uma série de argumentos, aquele expresso no complemento começa ou termina a argumentação” (p. 210). Na descrição que os autores oferecem, estão ausentes casos envolvendo o predicado acontecer, que também comporta um funcionamento discursivo que se conformaria a casos de complementação em construções do tipo [aconteceu + oração]. Embora os autores não estejam preocupados com o grau de gramaticalidade dos predicados que requerem complemento, as funções que eles descrevem para acabar e começar podem ser interpretadas como casos de menor e maior gramaticalidade dos predicados, com usos menos gramaticais encaixando complementos identificados com camadas mais baixas do Nível Representacional, e usos mais gramaticais encaixando complementos de camadas mais altas do mesmo nível ou do Nível Interpessoal, como pretendemos mostrar em nossas análises. Para comprovarmos a trajetória de mudança percorrida pelos predicados acabar, acontecer e começar na história do português, passamos pelas seguintes etapas de investigação: (i) descrevemos as funções que esses predicados exercem na construção textual; (ii) verificamos os contextos que favoreceram o surgimento das diferentes funções assumidas pelos predicados, identificando aquelas decorrentes de gramaticalização e aquelas decorrentes de lexicalização; 19 (iii) analisamos o comportamento desses predicados dentro da arquitetura da GDF, com intuito de descrever a atuação deles dentro nos níveis e camadas da representação gramatical; (iv) propomos trajetórias de mudança percorridas por esses predicados até eles assumirem funções mais discursivas, procurando observar em que medida essas trajetórias refletem a estruturação dos níveis e camadas da GDF. Em termos metodológicos, para a comprovação empírica da investigação que empreendemos, tomamos por base corpora constituídos de textos históricos do português brasileiro de diferentes gêneros do discurso dos séculos XVIII ao XXI e também dados de fala do português brasileiro contemporânero dos séculos XX e XXI. Somente quando necessário, recorremos a dados de escrita disponíveis na internet para discutirmos funções reconhecidamente desempenhadas pelos predicados em análise e ausentes nos corpora. Lançamos mão de um conjunto de critérios que nos permitiram avaliar o valor semântico do predicado, o estatuto semântico da construção encaixada e o genêro textual em que ocorrem todos os types; para os casos em que os predicados integram construções perifrásticas, aplicamos também critérios de auxiliaridade que permitem identificar um auxiliar prototípico. A pesquisa nos corpora selecionados nos permitiu levantar para o predicado acabar sete padrões de uso, para acontecer, dois padrões de uso, e para começar, quatro padrões de uso. Para todos os predicados, constatamos que a trajetória de mudança segue sempre em direção a uso como operador argumentativo, associado a construções que se assemelhariam a predicados que encaixam complemento. Diferentemente de resultados para os mesmos tipos de predicados descritos anteriormente, os resultados alcançados nessa investigação permitiram-nos comprovar teórica e empiricamente a hipótese de que a abstratização de significados dos predicados analisados é reproduzida nas camadas e níveis do componente gramatical, obedecendo-se tanto a ordenação hierárquica das camadas do Nível Representacional quanto a ordenação do Nível Representacional para o Nível Interpessoal. 20 Para dar conta da nossa proposta de investigação, brevemente sumarizada nos parágrafos anteriores, estruturamos esta tese em quatro capítulos. No primeiro capítulo, oferecemos os pressupostos teóricos de nossa pesquisa, apresentando, num primeiro momento, as teorias de mudança linguística – Lexicalização e Gramaticalização – e as bases da GDF, para, num segundo momento, recorrendo a trabalhos já existentes, mostrar a viabilidade de uma abordagem nessa interface. Ainda neste capítulo, tratamos das diferenças entre verbo auxiliar, verbo copular e predicado encaixador. O segundo capítulo trata dos aspectos metodológicos da pesquisa, dedicados à composição dos corpora e à explicitação dos critérios que nortearam nossas análises para estabelecer o comportamento discursivo, semântico e sintático dos predicados estudados. No terceiro capítulo, apresentamos os resultados das análises dos predicados investigados, a partir dos critérios apresentados e discutidos no capítulo II. A análise de cada predicado é dividida em duas partes: na primeira parte, expomos o funcionamento sintático, semântico e pragmático das construções formadas pelos predicados analisados, e, na segunda parte, estabelecemos as relações entre a mudança linguística proposta para cada predicado e o reflexo nos níveis e camadas da GDF. Por fim, nas considerações finais, retomamos os principais resultados da pesquisa e propomos possíveis encaminhamentos para a continuidade da investigação. Fecham o trabalho as referências bibliográficas. CCAAPPÍÍ TTUULL OO II FFUUNNDDAAMM EENNTTAAÇÇÃÃOO TTEEÓÓRRII CCAA Neste capítulo, serão apresentados os pressupostos téoricos deste trabalho. Num primeiro momento, discutimos os processos de lexicalização e de gramaticalização e a teoria da Gramática Discursivo-Funcional, uma vez que nossa investigação é realizada na interface entre dois processos de mudança linguística – Lexicalização e Gramaticalização – e a Gramática Discursivo-Funcional. Na segunda parte deste capítulo, discutiremos as noções de auxiliaridade, de copularidade e de encaixamento, a fim de caracterizarmos as diferenças entre verbo pleno, verbo auxiliar, verbo copular e predicado encaixador. 1.1. Os processos de mudança linguística A maioria dos trabalhos sobre os predicados acabar, acontecer e começar (TRAVAGLIA, 1991, 2002; WACHOWICZ, 2007) leva em consideração apenas os pressupostos da gramaticalização, mas, neste trabalho, consideramos os processos tanto de gramaticalização quanto de lexicalização. Embora esses processos tenham características em comum, o foco das mudanças de um item ou de uma construção é, no caso da lexicalização, a entrada para o léxico e, no caso da gramaticalização, o ganho de estatuto gramatical. Nesta seção, discutiremos os pressupostos teóricos desses dois processos para, no capítulo 3, mostrarmos como eles se implementam na mudança por que passam os predicados acabar, acontecer e começar. 1.1.1. Lexicalização No âmbito dos trabalhos sobre lexicalização, o termo lexicalização é usado para caracterizar dois fenômenos diferentes. De uma perspectiva sincrônica, serve para codificar categorias conceituais e, diacronicamente, é usado para indicar tanto a entrada de 22 itens/construções para o léxico como também sua colocação para fora da regras produtivas de gramática. Brinton (2002 apud BRINTON e TRAUGOTT, 2005) define a lexicalização como um processo pelo qual novos itens passam a existir por meio de processo de formação de palavras, de fusão ou de aumento de sua autonomia. Enquanto processo de formação de palavras, a lexicalização inclui processos comuns como composição, derivação e conversão. Os dois primeiros, segundo Brinton (2002 apud BRINTON e TRAUGOTT, 2005), são típicos casos de lexicalização, uma vez que envolvem processo de fusão, que apaga fronteiras entre mofemas independentes, dando origem a lexemas unificados. Sobre o processo de conversão, há alguns questionamentos se este seria também exemplo de lexicalização, pois embora dê origem a novos lexemas, não há o envolvimento de perda de fronteiras morfêmicas, mas, para Brinton e Traugott (2005), a conversão de classes menores, mais funcionais, para maiores, mais lexicais, é tratada como lexicalização. A lexicalização como fusão, sincronicamente, se refere a diferentes caminhos de se codificar o mesmo conceito. Numa perspectiva histórica, explica o desenvolvimento de uma forma mais complexa em uma sequência mais simples, podendo esse desenvolvimento ser acompanhado de mudança de signicado. O lexema garlic (alho, em português), resultante dos lexemas do inglês antigo gar e leek, é exemplo de fusão dentro da perspectiva histórica. Na maioria dos casos de lexicalização, observa-se que há um aumento na fusão entre as partes originais e uma perda de sua autonomia. Por outro lado, há também casos em que o processo involve aumento de autonomia, como nos casos de decliticização1. A decliticização é considerada, por alguns autores, como Lessau (1994 apud BRINTON e TRAUGOTT, 1 Jeffers and Zwicky (1980) definem decliticização como um processo por meio do qual clíticos são usados ou passam a ser usados como palavras independentes. 23 2005), como caso de degramaticalização e, por outros, como Campbell (1991 apud BRINTON e TRAUGOTT, 2005), como caso de lexicalização. No final do capítulo de definição de lexicalização, Brinton e Traugott (2005) apontam a necessidade de explorar a relação entre lexicalização e gramaticalização. Segundo os autores, esses dois processos usados para a construção da linguagem são partes importantes da faculdade linguística do usuário da língua. Lehmann (2002a) explora esse assunto, apresentando novas tendências sobre gramaticalização e lexicalização, e mostra, então, que a diferença entre gramática e léxico está no fato de que aquela se detém a signos que apresentam uma formação regular e os trata de forma analítica, enquanto este reúne os signos formados irregularmente e os trata holisticamente. Para representar a atuação do léxico e da gramática, Lehmann apresenta o quadro a seguir: Abordagem Nível de Complexidade Idiossincrática Regular Holística Analítica Alto Baixo sintaxe fraseológica morfologia formação de palavra flexão Quadro 01: A relação léxico e gramática (adaptado de LEHMANN, 2002a, p.3) No eixo horizontal, há a diferença entre o léxico e a gramática e, no eixo vertical, há a hierarquia dos níveis de estrutura gramatical. Esse último eixo é representado parcialmente no léxico. A parte mais idiossincrática do léxico é o morphemicon onde se encontram todos os morfemas lexicais e gramaticais de uma língua. Uma análise holítisca de uma construção significa que a construção entrou para o inventário lexical da língua e, se o uso for lé xi co gram ática m or ph em ic on 24 proeminente, é o início de seu processo de lexicalização. Já uma construção analisada analiticamente é tratada como gramatical, em que as propriedades das partes ou do todo colaboram para determinado padrão linguístico regular e, se o uso da construção for frequente, há indícios de um início de processo de gramaticalização. No decorrer de seu texto, Lehmann (2002a) traz exemplos de como ocorrem os processos de lexicalização e gramaticalização. Um dos exemplos apresentados é o do verbo acabar, em Espanhol, seguido das preposições de e por, classificadas pelo autor como preposições primárias que servem para governar os complementos selecionados pelo verbo. Segundo Lehmann, acabar rege um complemento e, junto dele, uma preposição, que, no caso do nosso estudo sobre acabar em português, pode ser a preposição com, de ou por. A ocorrência da preposição junto ao verbo poderia ser entendida como lexicalização da construção verbo-preposição, mas o autor defende que essa construção permanece descontínua, não apresentando evidências de reanálise, ou seja, não há formação de constituinte envolvendo o verbo e a preposição governada por ele. O verbo mantém-se como uma unidade lexical que determina a ocorrência de uma preposição em seu complemento. No final de sua argumentação, o autor afirma que a propriedade do verbo de escolher seu complemento com preposição é uma propriedade léxico-gramatical e, portanto, a preposição poderia fazer parte deste lexema. Colaborando com os estudos sobre lexicalização, Moreno Cabrera (1998) defende que a lexicalização é “processo de criação de itens lexicais a partir de unidades sintáticas”2 e, segundo o autor, os processos de lexicalização e gramaticalização são complementares e têm como base os mecanismos cognitivos de metáfora e metonímia. 2 “The process creating lexical items out of syntactic units.” (MORENO CABRERA, 1998, p. 214) 25 A gramaticalização, segundo Moreno Cabrera, é um processo metafórico, uma vez que a passagem do léxico para gramática requer abstratização e similaridades entre o significado- fonte e significado-alvo. Como representante de um processo metonímico, tem-se a lexicalização, que se realiza no caminho inverso ao da gramaticalização, ou seja, ocorre no sentido da gramática para o léxico. As unidades que servem de base para a lexicalização são palavras ou sintagmas sintaticamente determinados e presos aos contextos de uso; sendo assim, ao se lexicalizarem, levam consigo características da base do processo. Um exemplo dado pelo autor é a forma lexical em inglês reading, que surge a partir do uso como forma gerundiva do verbo read, indicando processo, e passa a atuar como substantivo the reading (a leitura), mas mantém claramente a característica processual de que algo está sendo lido. Essa manutenção de características é considerada como indício de um processo metonímico. Essa distinção apresentada por Moreno Cabrera (1998), embora seja bem fundamentada pelo autor, causa estranhamento, uma vez que o autor se vale da escala de Heine et al. (1991) para explicar que, enquanto os processos de gramaticalização seguem a escala pessoa > objeto > processo > espaço > tempo > qualidade na direção pessoa > qualidade, os processos de lexicalização percorrem a escala na direção contrária, ou seja, de qualidade a pessoa. Sendo assim o autor considera a lexicalização e a gramaticalização como imagens espelhadas, diferentemente da visão de Lehmann (2002a), que defende que lexicalização e gramaticalização se relacionam de maneira ortogonal, como vimos no quadro 1, de modo que a relação espelhada ocorre entre lexicalização e folk etymology3 e gramaticalização e degramaticalização. Além disso, é questionável a diferenciação entre lexicalização e gramaticalização pelos processos cognitivos de metáfora e metonímia, 3 Em folk etymology, um item lexical que pode ter sido complexo e tenha se tornado opaco para os falantes é reanalisado e recebe uma estrutura morfológica que não tinha antes e que seja parcialmente mais transparente. 26 relacionando lexicalização à metáfora e gramaticalização à metonímia, uma vez que a gramaticalização envolve tanto processos metonímicos como metafóricos. Alguns autores como Wischer (2000) veem esses dois processos como paralelos, mas operando em diferentes níveis da linguagem, pois, enquanto a lexicalização lida com um sintagma que se torna mais lexical, a gramaticalização lida com um sintagma que se torna mais gramatical. O que há em comum nos dois processos é a redução fonética gradual, reanálise sintática, desmotivação, fossilização e convencionalização. Sobre as diferenças entre lexicalização e gramaticalização, discute- se se a lexicalização seria um tipo de degramaticalização, visão defendida por alguns autores como Ramat (1992) e van der Auwera (2002). Esses autores defendem que a lexicalização é similar a um processo de degramaticalização, reverso ao processo de gramaticalização, ou seja, o item perde características gramaticais e, em contrapartida, ganha características mais lexicais e entra, portanto, no léxico da língua. Segundo van der Auwera (2002), a lexicalização corresponde à parte final da degramaticalização, em que o item já não tem mais nenhuma função gramatical. Contrário a essa visão, Lehmann (2002a) aponta que a lexicalização é a fusão e a coalescência de dois ou mais morfemas, destruindo a construção sintática regular, eliminando a estrutura interna e conduzindo a relações internas irregulares. A lexicalização envolve não somente fronteiras morfológicas, mas também irregularidade, opacidade e idiomatização. Para Lehmann (2002a), como já discutimos anteriormente, lexicalização é o processo reverso de folk etimology, enquanto degramaticalização é processo reverso de gramaticalização. Nos esquemas abaixo, Brinton e Traugott (2005), baseados em Lehmann (2002a), representam a atuação dos processos de lexicalização, folk etymology, gramaticalização e degramaticalização e mostram que os dois primeiros atuam na constituição do componente, enquanto os dois últimos atuam no nível de complexidade. 27 COMPONENTE Léxico Gramática Holístico opaco irregular analítico transparente composicional lexicalização folk etymology Quadro 02: Os processos de lexicalização e folk etymology (adaptado de BRINTON e TRAUGOTT, 2005) NÍVEL DE COMPLEXIDADE palavra/morfema livre específico/completo de conteúdo morfema/característica obrigatório abstrato gramaticalização degramaticalização Quadro 03: Os processos de gramaticalização e degramaticalização (adaptado de BRINTON e TRAUGOTT, 2005) Como podemos constatar, a relação entre lexicalização e gramaticalização é interpretada de diferentes maneiras, mas, em todas elas, considera-se que a lexicalização e gramaticalização devem envolver fusão e ser unidirecional. Na visão de Ramat (2001) e van der Auwera (2002), o léxico é constituído de formas de conteúdo que passaram por um processo de lexicalização (mais gramatical > menos gramatical > lexical), oposto ao de gramaticalização (lexical > menos gramatical > mais gramatical), e, por isso, eles consideram a lexicalização como um exemplo de degramaticalização. Já na visão de Lehmann (2002a), no léxico se encontram os itens aprendidos e estocados, podendo ser gramaticais ou lexicais. Sendo assim, a lexicalização não seria um processo oposto ao de gramaticalização. No nosso trabalho, analisaremos como processo de lexicalização casos de itens ou construções que entram para o léxico, ou seja, como uma determinada estrutura com um significado específico passa a integrar o léxico da língua. 28 1.1.2. Gramaticalização Os interesses na investigação das origens e do desenvolvimento de categorias gramaticais não são recentes. De acordo com Heine et al. (1991), os estudos que poderiam ser considerados precursores da gramaticalização datam do século X, com os chineses, que reconhecem a diferença entre signos plenos e vazios, afirmando que estes se originam daqueles. No século XVIII, os filósofos franceses apontam que a complexidade gramatical e o lexema abstrato são derivados, historicamente, de lexemas concretos. Ainda segundo esses autores, na mesma ideia de desenvolvimento das palavras gramaticais a partir de lexemas, no século XIX, Tooke apresenta a noção de “abreviação” ou “mutilação”, que consiste no desenvolvimento de advérbios, preposições e conjunções (palavras secundárias) a partir da abreviação de nomes e verbos (palavras necessárias). Segundo Hopper e Traugott (1993), Franz Bopp, gramático comparatista, também no século XIX, estuda, nas línguas européias, o desenvolvimento de auxiliares e flexões a partir de material lexical. Humboldt (1822 apud HOPPER; TRAUGOTT, 1993, p. 18-19), na palestra intitulada On the genesis of grammatical forms and their influence on the development of ideas, afirma que as estruturas gramaticais das línguas são precedidas de um estágio evolucionário em que somente ideias concretas poderiam ser expressas, propondo a existência de quatro estágios para entender como os significados atingem o estágio morfológico, mais gramatical, como mostrado no quadro 04, na página seguinte. 29 Estágio I (estágio pragmático) Somente coisas são denotadas, objetos concretos cujas relações não são feitas de modo explícito no discurso, mas são inferidas pelo ouvinte. Estágio II (estágio sintático) A ordem em que os objetos são apresentados torna-se habitual e a ordem fixa das palavras introduz o presente estágio; algumas palavras começam a se especializar para funcionar de modo mais relacional no discurso. Estágio III (cliticização) Nesse estágio, as palavras funcionais ligam-se às palavras materiais. Estágio IV (estágio morfológico) Os pares aglutinativos se fundem, tornando-se uma única palavra complexa. Além disso, nesse estágio, algumas palavras funcionais podem continuar suas trajetórias como indicadores puramente formais de relações gramaticais. Quadro 04: Estágios de evolução da língua (HUMBOLDT, 1822, apud HOPPER e TRAUGOTT, 1993, p. 18-19) O neogramático alemão Georg von der Gabelentz (1891, apud HOPPER e TRAUGOTT, 1993, p. 20) estudou as origens e a evolução das formas gramaticais, que, ao entrarem gradativamente em desuso, são substituídas por novas formas. Ele sugere que esse processo de evolução seja o resultado de duas tendências em competição, uma em direção à facilidade da articulação e a outra em direção à distintividade. Segundo o autor, pronúncias relaxadas provocam mudanças que desgastam as palavras, tornando as distinções menos acentuadas. Gabelentz aborda também a noção de espiral evolucionária para a explicação do desenvolvimento de categorias gramaticais. A ideia de evolução, vista tanto em Humboldt (1822 apud HOPPER e TRAUGOTT, 1993) como em Gabelentz (1891 apud HOPPER e TRAUGOTT, 1993), é muito criticada pelos estudiosos da gramaticalização, pois ficaria subentendido que os estágios iniciais são menos complexos que os mais avançados. Não é demais recordar que essas eram as primeiras ideias sobre mudança e, portanto, não parece adequado afirmar que, de fato, imperasse a crença da existência de estágios mais e menos evoluídos da língua. Como sabemos, foi Antoine Meillet, em seu artigo L’evolution des formes grammaticales (1948 [1912]), que reconheceu a importância desse processo de mudança linguística e que cunhou o termo gramaticalização tal como é basicamente ainda hoje empregado. Diferentemente da primeira geração dos indoeuropeístas, Meillet mostra que a 30 discussão tem de sair do campo da origem das formas gramaticais e ir para o campo de suas transformações. Em seu artigo, Meillet descreve dois processos pelo qual emergem novas formas gramaticais. Um deles é a analogia, que consiste na emergência de novas formas a partir de um paradigma já existente. O outro é a gramaticalização, que se refere à “atribuição de um caráter gramatical a uma palavra anteriormente autônoma”4. Essa atribuição se desenvolve por meio de uma espécie de continuum, e, nos casos em que se pode conhecer a origem da palavra gramatical, a fonte era uma palavra lexical. Enquanto a analogia afeta o eixo paradigmático, a gramaticalização opera no eixo sintagmático, ou criando formas novas ou introduzindo categorias gramaticais sem expressão linguística. Sendo assim, a gramaticalização muda o sistema linguístico como um todo. Nas palavras de Meillet: Enquanto a analogia pode renovar os detalhes das formas, mas na maioria das vezes deixa intacto o plano global do sistema existente, a gramaticalização de certas palavras criadas a partir de formas novas, introduzidas de categorias que não têm expressão linguística, transforma o sistema inteiro.5 (MEILLET, 1948 [1912], p. 133) Segundo o autor, a gramaticalização ocorre devido à perda de expressividade. Com o uso frequente de um item linguístico, o valor expressivo dele diminui, tornando-o desgastado. Junto à perda de expressividade, pode ocorrer também um suposto enfraquecimento da forma fonológica e do significado concreto. Por meio da gramaticalização, segundo o autor, as funções de um item linguístico podem ser rejuvenescidas por meio de novos contextos de usos. 4 “l’attribution du caractere grammatical à un mot jadis autonome” (Meillet, 1948 [1912], p. 131). 5 “Tandis que l’analogie peut renouveler le détail des formes, mais laisse lê plus souvent intact le plan d’ensemble du système existent, la <> de certains mots crées des formes neuves, introduit des categories qui n’avaient pas d’expression linguistique, transforme l’ensemble du système.” 31 Para Meillet, a gramaticalização não tem um fim, ou seja, constantemente a necessidade de expressividade faz com que se criem palavras surpreendentes que, em um determinado estágio, vão se desgastar, passando a ser utilizadas apenas como acessórios gramaticais. Como diz Meillet, As línguas seguem, assim, uma espécie de desenvolvimento em espiral: elas reúnem palavras acessórias para a obtenção de uma expressão intensa; essas palavras se enfraquecem, se degradam e se transformam em simples ferramentas gramaticais; adicionadas palavras novas ou palavras diferentes à expressão, o enfraquecimento recomeça, assim sem fim.6 (MEILLET, 1948 [1912], p. 140-141) A definição dada por Meillet contempla a passagem do lexical para o gramatical e dentro do gramatical há a passagem do sintático para o morfológico, conforme esquema abaixo, extraído de Gonçalves (2003). [item lexical] > [item gramatical] [item sintático] > [item morfológico] Kurylowicz (1965, p.52, apud LEHMANN, 2002b [1982], p.6) define o processo de gramticalização como “o aumento do uso de um morfema, que avança de um status lexical 6 “les langues suivent ainsi une soire de développement em spirale: elles ajoutent des mots accessoires pour obtenir une expression intense; ces mots s’affaiblissent, se degradent et tombent au niveau de simples outils grammaticaux; on ajoute de nouveaux mots ou des mots différents en vue de l’expression, l’affaiblissement recommence, et ainsi sans fin” 32 para um status gramatical ou de um menos para um mais gramatical, por exemplo, de um formante derivacional para um formante flexional”7. Com o avanço dos estudos funcionalistas, as definições de gramaticalização ampliam seu escopo e passam a considerar a relação dos itens dentro de uma construção e o uso dessa construção em um contexto específico, como podemos observar nos trabalhos de Hopper e Traugott (1993) e Bybee (2002). Hopper e Traugott (1993) afirmam que a gramaticalização é um processo pelo qual itens e construções lexicais passam, em determinados contextos, a assumir funções gramaticais, e, uma vez gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções gramaticais. Bybee (2002) também define a gramaticalização como um processo pelo qual “um item lexical torna-se um morfema gramatical dentro de construções particulares”8. Bybee, assim como Traugott, nos trabalhos de (2007), (2013) entre outros acredita que a gramaticalização está atrelada à criação de novas construções. Para a autora, o desenvolvimento de construções gramaticais está relacionado à linguagem em uso, uma vez que os significados e as funções das construções não são fixos e categóricos, permitindo a variação, que acaba levando a uma mudança gradual no tempo. As construções gramaticais são consideradas unidades automatizadas e convencionalizadas e, devido à alta frequência de repetições dos itens lexicais, seus significados sofrem mudança, via os processos de generalização e inferência pragmática. Como podemos ver, o estudo da mudança linguística de itens isolados cedeu espaço para a investigação de expressões maiores com padrões de usos específicos. Junto dessa nova forma de investigação, como apontam Traugott e Dasher (2005), nota-se que há um destaque para os processos metonímicos em detrimento dos processos metafóricos, devido ao fato de o 7 “The increase of the range of a morpheme advancing from a lexical to a grammatical or from a less grammatical to a more grammatical status, e.g. from a derivative formant to an inflectional one.” 8 “a lexical item becomes a grammatical morpheme within a particular construction” 33 sentido de uma construção ser interpretado como resultante de relações associativas, relacionais e indexais. Oliveira (2013), baseada nos trabalhos cognitivistas de Goldberg (1995; 2006), Croft (2001) e Croft e Cruse (2004), aborda a gramaticalização como construcionalização, em que a construção é entendida como um esquema virtual e abstrato, apresentando uma forte vinculação entre forma e sentido. Como aponta a autora, essa vinculação pode ser identificada por meio de uma série de traços definidores, entre eles, o fato de que o sentido de uma construção não corresponde a soma das partes constituintes e de que a forte vinculação semântico-sintática de uma construção não permite inversão de ordem interna entre os constituintes ou inserção de material. No âmbito dos estudos da gramaticalização de construções, a relação função/forma passa a destacar o eixo estrutural, sob o qual os aspectos formais – níveis fonológico, morfológico e sintático – não são apenas consequências das motivações semânticas ou pragmáticas, mas decorrem da correlação direta com traços de sentido. Sendo assim, a clássica relação função/forma é revista e cede espaço para uma abordagem que aproxima esses dois domínios numa relação de pareamento função/forma. Nos recentes trabalhos sobre gramaticalização dentro da GDF, Keizer (2007; 2012), Hengeveld (2013) propõem que o caminho de mudança é do Nível Representacional para o Interpessoal, uma vez que as unidades semânticas originam unidades pragmáticas9. De acordo com os objetivos do nosso trabalho, a visão de gramaticalização adotada por estes autores permite-nos explicar as trajetórias de mudança dos predicados analisados neste trabalho. Como se nota, essas definições se completam e podem ser consideradas variantes aprimoradas da definição clássica dada por Meillet (1948 [1912]). 9 Em 1.3, discutiremos a implementação da gramaticalização na GDF. 34 1.1.2.1. A distinção lexical e gramatical De acordo com Hopper e Traugott (1993, p.4), no âmbito dos estudos de gramaticalização, é feita uma distinção entre palavras de conteúdo ou lexicais e palavras funcionais ou gramaticais. Categorias como nomes, verbos e adjetivos pertencem à classe dos itens lexicais e servem para descrever indivíduos, eventos e qualidades. Por outro lado, preposições, conjunções, pronomes e demonstrativos pertencem à classe das palavras gramaticais e servem para indicar relações entre nomes, para ligar partes do discurso, para indicar se entidades e participantes de um discurso são ou não identificadas e para mostrar se eles estão próximos do falante ou do ouvinte. Em suma, os autores propõem agrupar as palavras em três categorias, a saber: categoria maior, à qual pertencem nomes e verbos plenos, categoria mediana, que agrupa adjetivos e advérbios, e categoria menor, à qual se integram preposições, conjunções, auxiliares, demonstrativos, pronomes etc. Esse modo de divisão do léxico pressupõe uma disposição das categorias numa escala de gramaticalidade que refletiria uma trajetória de gramaticalização entre elas, que teria o seguinte formato: categoria maior > categoria medial > categoria menor. Embora os autores não mencionem claramente, é possível que, dentro de uma dada categoria, as classes de palavras possam também comportar um arranjo interno de gramaticalidade que, por exemplo, permita reconhecer que uma preposição é mais gramatical (ou gramaticalizada) do que um verbo auxiliar. Essa distinção em três classes de palavras já havia sido feita por Meillet (1948 [1912]). Segundo o autor, as palavras são classificadas em: principais (nomes, adjetivos, verbos e complementos circunstanciais), acessórias e gramaticais (preposições, conjunções e auxiliares), concebendo-se que as acessórias e as gramaticais se desenvolvem, diacronicamente, das principais, o que permite associar as principais com os itens lexicais e as acessórias e gramaticais com as palavras gramaticais. 35 Na distinção entre as propriedades de “ser lexical” e de “ser gramatical”, Heine et al. (1991) propõem a noção de conceito fonte, relativamente à categoria alvo de um processo de gramaticalização. Eles apresentam um conjunto de critérios para distinguir conceitos lexicais de gramaticais, os quais seguem ilustrados no quadro 05. Quadro 05: Conceitos lexicais e conceitos gramaticais (adaptado de HEINE et al., 1991) Os estudiosos da gramaticalização apontam algumas observações interessantes a respeito dos itens lexicais que são candidatos à gramaticalização. Heine et al. (1991) observam que esses termos são culturalmente mais independentes, isto é, são universais da experiência humana. Além disso, eles representam aspectos básicos e concretos da relação humana com o ambiente, com ênfase ao meio espacial, incluindo partes do corpo humano. Como exemplo, têm-se os casos de verbos come e go, em construções de futuro, e do nome back (costas), parte do corpo humano, concreto, que serve de conceito-fonte para um conceito espacial, como em three miles back. No português, há casos semelhantes, como o verbo ir , usado em construções de futuro, e também as expressões à face de, em face de, de face, que denotam conceitos espaciais, uma posição relativa a outra. CONCEITOS LEXICAIS CONCEITOS GRAMATICAIS • São menos “abstratos”; incluem os conceitos concretos, tais como objetos, ações e qualidades. • são mais “abstratos”. • São autossemânticos. • são sinsemânticos. • contribuem para o conteúdo da representação cognitiva (função referencial). • Tendem a determinar a estrutura da representação cognitiva (cf. Talmy, 1988). • possuem mais material fonológico. • Possuem menos material fonológico. • São de uso geral e menos frequentes e, por isso menos previsíveis no discurso. • são de uso mais frequente e, por isso, mais previsíveis no discurso. • integram classe aberta. • Integram classes fechadas. • São codificados por lexemas. • Tendem a ser codificados por auxiliares, partículas, clíticos, afixos, unidades supra- segmentais, distinções na ordem de palavras etc. 36 Essas distinções entre conceitos lexicais e conceitos gramaticais, de caráter mais didático do que funcional, tomam por base a prototipia dos itens que integram cada uma dessas classes, uma vez que não há como traçar com nitidez os limites entre as palavras lexicais e as palavras gramaticais, fato reconhecido pelos próprios autores referenciados (HOPPER e TRAUGOTT, 1993; HEINE et al., 1991). O próprio processo de gramaticalização mostra que não há pontos discretos entre o léxico e gramática, mas, sim, uma espécie de continuum, em que a transição do lexical para o gramatical, ou do menos gramatical para o mais gramatical, é gradual. 1.1.2.2. Unidirecionalidade e os Mecanismos da Gramaticalização A unidirecionalidade é vista como uma característica básica do processo de gramaticalização, em que os itens migram de uma categoria para outra seguindo uma trajetória específica, que não pode ser revertida. Meillet (1948 [1912]) já menciona um curso previsível que norteia a gramaticalização. Segundo o autor, as palavras principais (nomes, adjetivos, verbos e advérbios) da língua servem como fonte das palavras acessórias e gramaticais (auxiliares, preposições, conjunções, etc), e não o inverso. Hopper e Traugott (1993) afirmam que a hipótese da unidirecionalidade é forte. Há evidências de um grande número de exemplos de surgimento de estruturas gramaticais que envolveram o desenvolvimento de itens ou sintagmas lexicais ou, por meio do uso discursivo, de sintagmas lexicais em itens gramaticais, e desse para um item mais gramatical. Outro fator notado é que essas mudanças são acompanhadas pela descategorização de uma categoria maior para uma menor.10 (HOPPER e TRAUGOTT, 1993, p. 128) 10 the unidirecionality is a strong hypothesis. The evidence is overwhelming that a vast number of known instances of the development of grammatical structures involved the development of a lexical item or phrase through discourse use into a grammatical item, and then into an even more grammatical item, and that these changes were accompanied by decategorialization from a major to a minor category. 37 Os autores afirmam que não há nada de determinístico sobre a gramaticalização e a unidirecionalidade, uma vez que as mudanças podem não ocorrer. A mudança de um item pode não se completar, ou seja, ela não precisa atingir o final do cline. Na consideração da unidirecionalidade em gramaticalização, contra-exemplos com base em uma trajetória do tipo mais gramatical > menos gramatical são tão raros e obscuros que não chegam a constituir contraevidência forte o suficiente para falsear esse princípio fundamental. Casos identificados como de poligramaticalização são por vezes inapropriadamente apontados como contra-exemplos da trajetória da unidirecionalidade. Por poligramaticalização, entende-se os múltiplos caminhos que uma mesma forma pode seguir e não a reversibilidade do processo, como ilustra o estudo de Craig (1991) sobre os diferentes caminhos percorridos por *bang “ir”, em Rama, do qual resultam : (i) um morfema de tempo; (ii) uma adposição de finalidade em nomes; (iii) uma conjunção. Todos esses são de caráter mais gramatical do que o verbo do qual originam. Segundo Gonçalves et al. (2007), os teóricos que defendem a hipótese da unidirecionalidade já a assumem previamente, uma vez que ela é definitória do próprio processo de gramaticalização, o qual invariavelmente pressupõe aumento de gramaticalidade, e ao mesmo tempo é propriedade dos mecanismos que regem o processo, sendo os principais a metáfora e a metonímia. O processo metafórico pode ser definido como um processo de transferência de sentidos por meio de fronteiras conceituais. Essa transferência envolve uma abstratização de significados, uma vez que conceitos de um domínio mais concreto são utilizados para se referir a conceitos de um domínio mais abstrato. Esse processo tem sido visto por muitos autores (SWEETSER, 1990; HEINE et al., 1991; LICHTENBERK, 1991 apud BYBEE et al., 1994) como o principal mecanismo de mudança em gramaticalização. Heine et al. (1991) afirmam: 38 Nós tentaremos demonstrar que a transferência metafórica é uma das principais forças condutoras do desenvolvimento de categorias gramaticais, isto é, para expressar funções mais abstratas, entidades concretas são recrutadas.11 (HEINE et al., 1991, p. 48) Na literatura sobre gramaticalização, muitos trabalhos relacionam os processos metafóricos com a mudança semântica, no entanto alguns autores, entre eles Hopper e Traugott (1993), argumentam que os processos metafóricos, por serem baseados na comunicação, estão relacionados à pragmática. Heine et al. (1991) propõem uma escala na qual se dispõem algumas categorias cognitivas básicas num crescente de abstratização. Essa disposição revela como a cognição humana opera metaforicamente com tais categorias: pessoa > objeto > processo > espaço > tempo > qualidade. Segundo os autores, cada uma dessas categorias representa um domínio de conceituação relevante para a estruturação da experiência humana e, assim, uma categoria mais à direita pode ser conceitualizada a partir de uma mais à esquerda. Com base nessa escala, surge a noção de metáfora categorial, por meio da qual, por exemplo, a noção de tempo pode ser estruturada a partir da noção de espaço. Heine et al. (1991) apresentam um tipo de correlação entre essas categorias metafóricas, a divisão de classes de palavras e os tipos de constituintes, como ilustrado no quadro 06. 11 We try to demonstrate that metaphorical transfer forms one of the main driving forces in the development of grammatical categories; that is, in order to express more “abstract” functions, concrete entities are recruited. 39 Categoria Tipo de Palavra Tipo de Constituinte PESSOA OBJETO ATIVIDADE ESPAÇO TEMPO QUALIDADE Nome humano Nome concreto Verbo dinâmico Advérbio, adposição Advérbio, adposição Adjetivo, verbo de estado, advérbio Sintagma nominal Sintagma nominal Sintagma verbal Sintagma adverbial Sintagma adverbial Modificador Quadro 06: Correlação entre categorias metafóricas, classes de palavras e tipos de constituintes (adaptado de HEINE et al., 1991, p.53-54) Heine et al. (1991) reconhecem que a transferência metafórica acarreta uma mudança abrupta de um domínio para o outro, enquanto a gramaticalização é um processo gradual. Para descrever a mudança gradual do significado, eles reconhecem um segundo processo, que é pragmaticamente motivado. Esse processo envolve uma reinterpretação induzida pelo contexto, a metonímia, e conduz ao surgimento de sentidos sobrepostos. Eles definem a metonímia como “uma figura de linguagem por meio da qual o nome de uma entidade é usado para outra entidade de algum modo contígua à primeira.”12. Segundo Heine et al. (1991, p.71), o surgimento da metonímia deve-se à manipulação discursivo-pragmática dos conceitos que estão sujeitos a fatores contextuais na interpretação. A esse processo, os autores dão o nome de reintepretação induzida pelo contexto. Os autores afirmam que, no processo de gramaticalização, há a coexistência do processo metonímico e metafórico, que tem a seguinte estrutura: A � A,B � B (HEINE et al.,1991, p.74) Tanto a metáfora quanto a metonímia estão relacionadas à informatividade, mas em diferentes eixos. A mudança metafórica, como já foi dito, define certas noções em termos de outras não presentes no contexto; já a mudança metonímica envolve também a definição de 12 “a figure of speech whereby the name of an entity is used to refer to another entity that is contiguous in some way to the former entity” 40 certas noções em termos de outras, mas, ao contrário da metáfora, essa relação está presente no contexto. As inferências metonímica e metafórica são processos complementares que ocorrem no nível pragmático e resultam da relação entre a reanálise e os processos metonímicos e entre a analogia e os processos metafóricos. A reanálise, segundo Langacker (1977, apud HOPPER e TRAUGOTT, 1993 p.51), é definida como a “mudança na estrutura de uma expressão ou classe de expressões que não envolve qualquer modificação imediata ou intrínseca na sua manifestação superficial”13. Segundo Hopper e Traugott (1993), um dos tipos mais simples de reanálise, e também o mais frequente em gramaticalização, é a fusão de duas ou mais formas, alterando, assim, as fronteiras de constituintes. Quando uma forma sofre a alteração de fronteira, ela passa a ser reanalisada como pertencente a uma categoria diferente da sua original. Em muitos trabalhos, a reanálise é vista quase como sinônimo de gramaticalização. Heine et al. (1991) afirmam que tipicamente a reanálise acompanha a gramaticalização, visto que, quando um dado morfema é resultante de gramaticalização, não somente sua posição sintática é afetada, mas também os contextos dos quais o constituinte faz parte. Heine e Reh (1984, p.95) propõem uma separação entre reanálise e gramaticalização, devido ao princípio da unidirecionalidade, que é uma propriedade pertencente à última, mas não à primeira. A analogia, por sua vez, refere-se à atração de formas existentes a construções também já existentes. Segundo Hopper e Traugott (1993), para Meillet (1948 [1912]), a analogia era entendida como um processo pelo qual irregularidades na gramática, particularmente no nível morfológico, eram regularizadas. O mecanismo era visto como uma proporção ou equação do tipo: cat : cats = child : X, X = childs (HOPPER e TRAUGOTT, 1993, p.64). 13 “change in the structure of an expression or class of expressions that does not involve any immediate or intrinsic modification of its surface manifestation” 41 Embora apenas a reanálise possa criar novas estruturas gramaticais, não se deve subestimar o papel da analogia nos estudos de gramaticalização, pois, segundo Hopper e Traugott (1993), em muitos casos, a analogia é a primeira evidência para falantes de uma língua de que a mudança está ocorrendo. Um exemplo da interação reanálise/analogia é o desenvolvimento da negação do francês ne...pas, citado por Hopper e Traugott (1993, p.58): i. a negação era realizada pela colocação da partícula negativa ne antes do verbo; ii. um verbo de movimento negado pelo ne poderia opcionalmente ser reforçado pelo pseudo-objeto nominal pas (passo), no contexto de verbos de movimento: Il ne va (pas) (ele não vai (mais nenhum passo)); iii. A palavra pas foi reanalisada como uma partícula negativa, em uma estrutura do tipo ne Vmovimento (pas); iv. pas foi estendido analogicamente para novos verbos que não tinham relação com movimento, passando a ter a estrutura ne V (pas): Il ne sait pas (ele não sabe (nada)); Hopper e Traugott concluem que a reanálise tem diferentes efeitos. Envolve essencialmente uma reorganização linear e sintagmática e uma mudança na regra, que não é diretamente observável. Por outro lado, a analogia envolve essencialmente uma organização paradigmática, uma mudança na colocação superficial e nos padrões de uso. A analogia torna observáveis as mudanças não observáveis na reanálise. Um outro exemplo dado pelos autores é o desenvolvimento do auxiliar de futuro be going to, como pode ser visto abaixo. 42 Eixo sintagmático Mecanismo: reanálise Estágio I be going [to visit Bill] PROGRESSIVO V direcional [oração de finalidade] Estágio II [be going to] visit Bill TEMPO V de ação (por reanálise) Estágio III [be going to] like Bill TEMPO V (por analogia) Estágio IV [gonna] like/visit Bill (por reanálise) Eixo paradigmático Mecanismo: analogia (HOPPER e TRAUGOTT, 1993, p.61) No estágio I, há um verbo direcional e uma oração de propósito; em II, como resultado da reanálise, há um auxiliar de futuro com um verbo de atividade; em III, há uma ampliação dos tipos de verbos, via analogia; em IV, ocorre a reanálise do auxiliar complexo em um único morfema gonna. Por meio dos exemplos acima, pode-se notar a importância da reanálise e da analogia para a mudança linguística, já que são considerados importantes mecanismos da gramaticalização. 1.2. Gramática Discursivo-Funcional Tendo em vista o objetivo de interpretar nosso objeto de estudo dentro de um modelo de descrição gramatical, adotamos o modelo da Gramática Discursivo-Funcional (doravante, GDF), de Hengeveld e Mackenzie (2008), uma nova versão da Gramática Funcional (doravante, GF) (DIK, 1997a, 1997b), que propõe uma expansão da gramática da sentença para a gramática do ato discursivo, ou seja,trata-se de um modelo a análise que vai além da 43 sentença, atingindo elementos discursivo-pragmáticos, tais como: partículas discursivas, cadeias anafóricas e formas verbais narrativas que são explicadas na relação estabelecida com unidades maiores que a sentença. Para a GDF, a análise linguística pode abranger estruturas tanto maiores como menores do que uma sentença, desde que sejam expressadas linguisticamente. A GDF, ao voltar-se para o discurso, está focada na estrutura linguística e, portanto, não pode ser confundida com aparatos teóricos que analisam questões ideológicas e culturais dentro do discurso, como a Análise do Discurso de linha francesa. Segundo Souza (2008), o olhar adotado para o discurso pela GDF se aproxima da posição defendida por Traugott (1989) e Traugott e König (1991) nos estudos da gramaticalização, uma vez que estes autores colocam o discurso como um componente da gramática. De acordo com Hengeveld e Mackenzie (2008), a GDF é uma gramática de abordagem funcional-tipológica da linguagem que: (i) tem uma organização descendente (top- down), uma vez que as intenções comunicativas de um falante são processadas em direção descendente até chegar à articulação da expressão linguística, isto é, primeiramente o falante decide qual é o seu propósito comunicativo, seleciona, então, o conjunto de informações adequado para atingir tal propósito, codificando, depois, essa informação gramatical e fonologicamente, e, por fim, essa informação progride para a articulação; (ii) apresenta como unidade básica de análise os atos discursivos; (iii) analisa os atos discursivos dentro de quatro níveis de organização linguística: um nível interpessoal ou pragmático; um nível representacional ou semântico, um nível morfossintático e um nível fonológico. Esses níveis, internamente, são organizados hierarquicamente em camadas; (iv) é sistematicamente ligada a um componente conceitual, a um contextual e a um output. Diferentemente da versão padrão da GF, que tinha uma organização bottom-up (do predicado à oração), a organização top-down da GDF leva em consideração, primeiramente, a intenção comunicativa do falante, embora não seja um modelo do falante, mas, sim, uma 44 teoria gramatical que tenta refletir evidências psicológicas na sua arquitetura básica. Essa alteração na organização advém de estudos psicolinguísticos de Levelt (1989 apud HENGEVELD e MACKENZIE, 2008), que apontam que a produção linguística inicia-se com a intenção e finaliza-se com a articulação de determinada expressão linguística. A arquitetura geral da GDF é composta pelo componente gramatical, no qual se encontra a base da GDF, que é ligada a três componentes externos: componente conceitual; componente contextual; componente de saída. O componente conceitual é responsável pelo desenvolvimento da intenção comunicativa e pela sua correspondente representação mental. Como afirmam Hengeveld e Mackenzie (2008), esse componente não integra a gramática, mas apresenta-se como fator importante para o componente gramatical, por meio das conversões realizadas pelas operações de formulação e codificação. Por meio de operações de formulação, há a conversão da intenção e da sua representação mental em representações interpessoais e representacionais, que passam para o nível morfossintático e fonológico, por meio da operação de codificação, recebendo diferentes representações. Enquanto a operação de formulação é responsável pela determinação de configurações semânticas e pragmáticas, a de codificação se responsabiliza pela forma fonológica e morfossintática dessas configurações. O componente de saída gera expressões acústicas, ortográficas e simbólicas na base da informação provida pelo componente gramatical. Para Souza (2009), a GDF, embora reconheça a importância das distinções no plano fonético, concentra-se no plano fonológico, pois é onde se encontram os fenômenos linguísticos – prosódia das línguas, por exemplo – e funcionais importantes para a gramática. O componente contextual representa as informações derivadas da situação discursiva e contém, além das informações advindas do componente gramatical, informações advindas da interação, que são importantes para distinções requeridas pela língua em uso e que acabam por influenciar a formulação e codificação da língua em questão. Por exemplo, a escolha do 45 gênero feminino para o adjetivo “pálida” em “Que pálida você está!” reflete especificações do componente contextual sobre o sexo do ouvinte. Na figura 1, extraída de Hengeveld e Mackenzie (2012), encontra-se a arquitetura dos componentes dentro da gramática. Figura 01. Arquitetura geral da Gramática Discursivo-Funcional (adaptado de HENGEVELD e MACKENZIE, 2012, p. 46) Como podemos notar, dentro do componente gramatical, estão os níveis interpessoal, representacional, morfossintático e fonológico, que são organizados hierarquicamente, com cada nível sendo composto por diferentes camadas. Estas camadas têm um elemento nuclear Componente Conceitual Frames Lexemas Operadores Nível Interpessoal Nível Fonológico Nível Morfossintático Nível Representacional Templates Morfemas gramaticais Operadores C om ponente C ontextual Formulação Codificação Morfossintática Codificação fonológica Templates Formas supletivas Operadores Componente de saída C om po ne nt e G ra m at ic al Articulação Output 46 circundado de operadores e modificadores e pode contar também com a presença de funções. Resumidamente, os operadores são marcas morfossintáticas que não podem ser modificados, são invariáveis e podem sofrer redução fonológica; os modificadores são de natureza lexical, podem ser modificados por outros modificadores e são variáveis; as funções, assim como os operadores, são estratégias gramaticais que estabelecem a relação entre uma unidade completa e outras unidades de uma mesma camada. 1.2.1. Nível Interpessoal O nível interpessoal (doravante, NI) engloba os aspectos formais das expressões linguísticas, os quais refletem suas regras na interação entre falante e ouvinte. Essas expressões são analisadas em termos de suas funções comunicativas, e as propriedades pragmáticas dessas expressões são descritas também no NI. Vejamos a estrutura hierárquica do NI abaixo: (П M1: [ Movimento (П A1: [ Ato (П F1: ILL (F1): Σ (F1))Φ Ilocução básica (П P1: ... (P1): Σ (P1))Φ Falante (П P2: ... (P2): Σ (P2))Φ Ouvinte (П C1: [ Conteúdo Comunicado (П T1 [...] (T1): Σ (T1))Φ Subato de Atribuição (П R1 [...] (R1): Σ (R1))Φ Subato de Referência ] (C1): Σ (C1))Φ Conteúdo Comunicado ] (A1): Σ (A1))Φ Ato ] (M1): Σ (M1))Φ Movimento Como se observa na estrutura hierárquica acima, a camada mais alta do NI é o Movimento (M), que é a maior unidade de interação revelante para a análise gramatical e que é definido como uma “contribuição autonôma para uma interação contínua.”14 14 “autonomous contribution to an ongoing interaction.” 47 (HENGEVELD e MACKENZIE, 2008, p. 50). O Movimento é a única unidade capaz de descrever uma reação do interlocutor, podendo ser uma resposta a uma pergunta ou uma objeção a um ponto de vista que ocorrerá no discurso por meio de um movimento. Sendo assim dois tipos de movimentos são previstos: de iniciação e de reação. Um movimento pode conter um ou mais Atos Discursivos (A), sendo difícil distinguir entre Movimento e Ato Discursivo, quando o movimento contém apenas um ato. O Ato Discursivo, segundo Kroon (1995 apud HENGEVEL e MACKENZIE, 2008, p. 60), é a menor unidade de teor comunicativo que se identifica. A relação entre atos discursivos pode se dar por equipolência – os atos discursivos apresentam o mesmo estatuto comunicativo – ou por dependência – um ato discursivo é o ato nuclear e o outro, subsidiário. Um Ato Discursivo é caracterizado pela uma Força Ilocucionária básica (F), que combina um ato de fala do Falante (S) e do Ouvinte (A) com um Conteúdo Comunicado (C) evocado pelo falante. O Conteúdo Comunicado é constituído de Subatos de Atribuição (T) e de Referência (R). Com base em Hengeveld e Mackenzie (2008), Souza (2009) apresenta um quadro resumitivo das camadas do nível interpessoal com seus modificadores e operadores, o qual reproduzimos abaixo. Categoria Definições e exemplos Esquemas, operadores e modificadores Esquema geral: (π M1: [(A1)...(A1+N)] (M1): Σ (M1)), onde N ≥ 0 Operadores de Movimento (π): No entanto, entretanto, etc. Movimento O Movimento é a maior unidade de interação relevante na análise gramatical: Ex.: Cuidado, porque haverá pegadinhas no exame. (M1: [(A1: [–cuidado–] (A1)) (A2: [– haverá pegadinhas no exame–] (A2))Motiv] (M1))Ф Modificadores de Movimento (Σ): Em resumo; finalizando; por outro lado, etc. Ato Discursivo O Ato Discursivo é a menor unidade que se identifica teor comunicativo, podendo ser: Esquema geral: (π A1: [(F1) (P1)S (P2)A (C1)Φ] (A1): Σ (A1)) 48 Operadores de ato (π): Ironia; ênfase; mitigação Expressivo = expressa o sentimento do falante: Ex.: Droga! (AI: [(FI: /dr� ga/Int (FI)) (PI)S] (A I)) Interativo = elementos lexicais invariáveis: Ex.: Parabéns! (AI: [(FI: /parabεns/(FI)) (PI)S (PJ)A] (AI)) Comunicativo = envolve o conteúdo comunicado e uma ilocução (lexical ou abstrata): Ex.: Eu prometo que estarei na sua casa. (AI: [(FI: /prometer/V (FI)) (PI)S (PJ)A(CI)] (A I)) Ex.: Eu estarei na sua casa amanhã. (AI: [(FI: DECL (FI)) (PI)S (PJ)A (CI)] (AI)) Modificadores de ato (Σ): Brevemente; em breve; além disso, etc. Esquema geral: (π F1: ♦/ILL (F1): Σ (F1)) Operadores de ilocução (π): Ênfase; mitigação, etc. Ilocução A Ilocução captura as propriedades formais e lexicais do Ato Discursivo que são atribuídas ao uso interpessoal convencionalizado na obtenção de uma intenção comunicativa: Ex.: A Maria chegou. (A1: [(Fi: DECL (Fi)) (P1)S (P2)A (Ci: – a Maria chegou –)Φ] (A1): Σ (A1)) Modificadores de ilocução (Σ): Honestamente; francamente; sinceramente Esquema geral: (π P1: Ο/♦ (P1): Σ (P1)) Operadores de participante (π): Número (sing./plural, etc) e status (sexo, etc) Participantes Na interação, (P1) (P2) alternam-se como falante e ouvinte: Ex.: Você é esperta? (f PI: vocêpro (PI)S (PJ)A) Modificadores de participante (Σ): Especificadores (advérbios, etc) Esquema geral: (π C1: [(T)Φ N (R)Φ N]Φ (C1): Σ (C1)) Operadores de conteúdo comunicado (π): Reportativo; ênfase; etc. Conteúdo Comunicado O Conteúdo Comunicado contém a totalidade do que o falante deseja evocar na sua comunicação com o ouvinte: Ex.: João deu a Pedro o livro. (CI: [(RI: João (RI))Top (TI) (RJ: Pedro (RJ))Foc (RL: livro (RL)Top] (CI)) Modificadores de conteúdo comunicado (Σ): Felizmente; infelizmente; sinceramente, etc. Subatos O Subato Adscritivo constitui uma Esquemas gerais: 49 (π T1: H (T1): Σ (T1)) (π R1: H (R1): Σ (R1)) Operadores de subato de atribuição (π): Aproximativo (tipo, etc) e enfático Operadores de subato de referência (π): Identificabilidade (identificável/ específico) e ênfase tentativa do falante de evocar uma propriedade, ao passo que o Subato de Referência constitui uma tentativa do falante de evocar um referente: Ex.: Maria é bonita. (CI: [(RI: Maria (RI)) (TI) (TJ: bonita (TJ))] (CI)) Modificadores de subato adscritivo (Σ): Atitudinal, enfático (realmente) e reportativo Modificadores de subato referencial (Σ): Atitudinal (pobre, pequeno, etc) Quadro 07: Nível Interpessoal (SOUZA, 2009, p. 47) Ainda no NI, são postuladas funções pragmáticas e retóricas, responsáveis por marcar o papel do falante e do ouvinte na interação. As funções pragmáticas estão relacionadas ao modo como o falante estrutura o seu discurso, levando em consideração o seu ouvinte, e são representadas pelas funções de Tópico, Foco e Contraste; as funções retóricas relacionam-se com o modo de construção do discurso pelo falante, a fim de atingir o seu propósito comunicativo, e são representadas pelas funções de Motivação, Concessão, Orientação e Correção. 1.2.2. Nível Representacional O nível representacional (doravante, NR) é o nível dentro do qual se descrevem os aspectos formais de uma unidade linguística, os quais refletem a relação dessa unidade com o mundo real ou imaginário que ela descreve. Sendo assim, diferentemente do NI que se responsabiliza pela evocação de uma expressão linguística, o NR é responsável pela designação dessa expressão. Nesse nível, as estruturas linguísticas são descritas em termos de categorias semânticas (denotação), que se apresentam na seguinte estruturação hierárquica: 50 (П p1: Conteúdo proposicional (П ep1: Episódio (П e1: Estado de coisas [(П f1: [ Propriedade (П f1: ♦ (f1): [σ (f1)Φ]) Propriedade lexical (П x1: ♦ (x1): [σ (x1)Φ])Φ Indivíduo ... ] (f1): [σ (f1)Φ]) Propriedade (e1)Φ]: [σ (e1)Φ]) Estado de coisas (ep1): [[σ (ep1)Φ]) Episódio (p1): [σ (p1)Φ]) Conteúdo proposicional O Conteúdo Proposicional (p) designa um construto mental que não pode ser localizado nem no tempo nem no espaço. O Episódio (ep) é o conjunto de um ou mais Estados-de-Coisas que apresentam uma coerência temática, mostrando unidade ou continuidade de tempo (t), locação (l) e indivíduo (x). Hengeveld e Mackenzie (2008) argumentam que há um número de categorias semânticas básicas relevantes para a análise de qualquer língua e, baseados em Lyons (1977), postulam as seguintes categorias de entidades: Indíviduo, uma entidade de primeira ordem, que é avaliada em termos de existência e pode ser localizada no espaço; Estado-de-Coisas, uma entidade de segunda ordem, que é avaliada em termos de realidade e pode ser localizada no espaço e no tempo relativo; e, Conteúdo Proposicional, uma entidade de terceira ordem, que pode ser avaliada em termos de verdade. Adicionada por eles, a entidade de ordem zero seria Propriedade, que não tem existência independente e é avaliada em termos de sua aplicabilidade, seja por outros tipos de entidades ou pela situação que ela descreve. Outras categorias semânticas são contempladas pela GDF, tais como Lugar (l), Tempo (t), Modo (m), Razão (r) e Quantidade (q). No quadro 08, há um resumo das categorias semânticas do NR contempladas pela GDF. 51 Descrição Variável Exemplo Propriedade f Cor Indivíduo x Cadeira Estado-de-coisas e Encontro Conteúdo Proposicional p Ideia Lugar l Topo Tempo t Semana Episódio ep Incidente Maneira m Maneira Razão r Razão Quantidade q Litro Quadro 08: Categorias semânticas (adaptado de HENGEVELD e MACKENZIE, 2008, p. 136) Estas categorias constituem camadas dentro do nível representacional, e os núcleos de cada camada podem ser modificados por modificadores(σ) e operadores (π). De forma hierárquica, as categorias semânticas Conteúdo Proposicional, Episódio e Estado-de-coisas são organizadas de tal modo que um Conteúdo Proposicional (p) contém Episódios (ep), que podem conter um ou mais Estado-de-coisas (e) que, por sua vez, podem conter um ou mais Conceitos Situacionais (s). As demais categorias não mantém entre si uma relação hierárquica como a que se estebelece entre p > ep > e > f. A noção de Conceito Situacional foi postulada por Hengeveld (2011) para reunir as unidades que permitem descrever um Estado-de-coisas que, anteriormente, eram rotuladas de Propriedade Configuracional. Sendo assim, dentro de Conceito Situacional, encontram-se as propriedades lexicais (f), indivíduo (x), locação (l), razão (r), modo (m), tempo (t), quantidade (q). No quadro 09, à página seguinte, adaptado de Souza (2009), há um resumo explicativo das principais camada do NR e os modificadores e operadores que atuam em cada um. 52 Categoria Definições e exemplos Esquemas, operadores e modificadores Esquemas gerais: (p1: ♦ (p1)) = sim/não (p1: [(f1) (p1)Φ]) = propriedade lexical (π p1: [(ep1)...(ep1+N){Φ} ]: [σ (p1)Φ])= episódios Operadores de proposição (π): Operadores modais, evidenciais, etc. Conteúdo proposicional Conteúdo proposicional, definida como a categoria semântica mais alta do Nível representacional (entidade de terceira ordem), é um constructo mental (conhecimento, crença, expectativa, etc): Ex.: Provavelmente, ela não virá. (p1: [(ep: –ela não virá– (ep1)Φ]: provavelmente (p1)) Modificadores de proposição (σ): Provavelmente, certamente, evidentemente, etc. Esquema geral: (π ep1: [(e1)...(e1+N){Φ} ] (ep1): [σ (ep1)Φ]) Operadores de episódio (π): Operadores de tempo absoluto (pas; fut, pres) Episódio O Episódio é composto por um ou mais estado-de-coisas, numa sequência coerente: Ex.: Ele chegou, comeu e foi dormir. (epi: [(ei: ele chegou (ei)) (ej: comeu (ej)) (el: foi dormir (el))] (epi)) Modificadores de episódio (σ): Ontem, hoje, amanhã, etc = tempo absoluto Esquema geral: (e1: [[(f 1: [...] (f1))...f1+N: [...] (f1+N)){Φ} n] (e1)Φ]: [σ (e1)Φ]) Operadores de estado-de-coisas (π): Lugar; tempo relativo; modalidade orientada para o evento; percepção de evento; polaridade e quantificação. Estado-de-coisas Estado-de-coisas é uma entidade de segunda ordem, que localizada no tempo e no espaço, pode ser avaliada em termos de sua realidade: Ex.: João saiu depois do almoço. (ei: (fi: [–João sair–] (fi)) (ei)Φ: [(ti: – depois do almoço – (ti)T (ei)Φ]) Modificadores de estado-de-coisas (σ): Expressões que especificam o tempo relativo de ocorrência, o lugar de ocorrência, a freqüência da ocorrência, a realidade, o cenário físico e cognitivo do estado-de-coisas. Esquema geral: (π x1: [(f1: [(f2) (v1)Φ] (f1)) (x1)Φ]: [σ (x1)Φ]) Operadores de indivíduo (π): Localização e quantificação Indivíduo Indivíduo designa uma entidade de primeira ordem, concreta, existe por si só e pode ser localizado no espaço: Ex.: O presidente (xi: [(f i:presidenteN (fi) (xi)U]) Modificadores de indivíduo (σ): Expressões que especificam qualidade, lugar, quantidade, etc do indivíduo. . 53 Esquema geral: (π f1: ♦ (f1): [σ (f1)Φ]) = propriedade lexical Operadores de propriedade (π): Aspecto, direção e grau. Propriedade Propriedade, uma entidade de ordem zero, pode ser avaliada apenas em termos de sua aplicabilidade a entidades de primeira ordem, o indivíduo: Ex.: Homem altamente inteligente. (xi: (fi: homem (fi)) (xi): (fj: inteligente (fj): (qi: (fk: alto (fk)) (qi)) (f j)) (xi)) Modificadores de propriedade (σ): Modificadores (adjetivos), advérbios de maneira, grau, etc. Quadro 09: Nível Representacional (SOUZA, 2009, p. 51) Para análise dos predicados investigados na presente tese, as camadas do Estado-de- Coisas e da Propriedade são as que se mostram relevantes como ficará claro no capítulo de análise dos resultados. Além disso, baseados em Hengeveld e Mackenzie (2008) e Bastos et al. (2007), que afirmam que complementos oracionais do tipo ep, p, e e f podem ser distinguidos, levando em consideração a categoria semântica do predicado matriz, verificaremos as entidades representadas pelos complementos oracionais e não-oracionais dos predicados que analisamos. 1.2.3. Nível Morfossintático O nível Morfossintático (doravante, NM), primeiro nível da operação de codificação, contempla o alinhamento do duplo input advindo do NI e NR em uma estrutura morfossintática simples. Encontram-se, nesse nível, as propriedades lineares de uma unidade linguística, tais como: estrutura de sentenças, orações, sintagmas e a organização interna das palavras. Abaixo mostramos a organização interna do NM: 54 (Le1: Expressão linguística (Cl1: Oração (Xp1 : Sintagma (Xw1 : Palavra (Xs1) Raiz (Aff1) Afixo (Xw1)) Palavra (Xp1)) Sintagma (Cl1)) Oração (Le1)) Expressão linguística A Expressão Linguística (El), a camada mais alta do NM, contém uma ou mais Orações (Cl), que, por sua vez, podem ser formadas por Sintagmas (Xp), Palavras (Xw) ou por outras orações. Dentro das palavras, podem-se distinguir morfemas de vários tipos (Xm). Ao ter como camada mais alta do NM a Expressão Linguística, a GDF possibilita que categorias mais baixas do que oração sejam analisadas, tais como holófrases e sintagmas nominais. Não há um mapeamento correspondente entre unidades semânticas e pragmáticas, de um lado, e unidades morfológicas, de outro. Os atos Discursivos, por exemplo, podem ser expressos por orações, sintagmas ou palavras. Hengeveld e Mackenzie (2008, p. 17) exemplificam isso, por meio de uma predicação do Inglês (20) e do Tiwa do Sul (21), reproduzidas abaixo: (01) I made shirts. ‘Eu fiz camisas’. (02) Te-shut-pe-ban 1.SG>PL-camisa-fazer-PAST Eu fiz camisas. Esses dois exemplos de línguas diferentes mostram que, enquanto há línguas, como o Inglês, em que a predicação é composta de uma unidade que designa uma propriedade e duas 55 unidades que são indivíduos, há outras línguas, como o Tiwa do Sul, em que uma única palavra transmite toda a informação. Diante desses dois exemplos e de outros oferecidos por Hengeveld e Mackenzie (2008), constata-se que o NM permite assegurar as diferenças tipológicas entre as línguas, uma vez que nesse nível se codifica morfossintaticamente as categorias semânticas e pragmáticas. 1.2.4. Nível Fonológico O Nível Fonológico (doravante, NF), último nível de codificação linguística, é voltado para o tratamento dos aspectos fonológicos que são utilizados para a expressão de funções dos elementos linguísticos na comunicação. É também responsável por toda codificação que não foi feita pelo nível morfossintático. O NF engloba os seguintes aspectos fonológicos: (i) os padrões prosódicos que se aplicam a cada camada de análise; (ii) um inventário de sequências segmentais que expressam configurações particulares de morfemas ou placeholders introduzidos em outros níveis; e (iii) os aspectos prosódicos que terão efeito no componente de saída. A estrutura interna do NF é a seguinte: (π U1: [ Enunciado (π IP1: [ Frase intonacional (π PP1: [ Frase fonológica (π PW1: [ Palavra fonológica (π F1: [ Pé (π S1) N Sílaba ] (F1)) Pé ] (PW1)) Palavra fonológica ] (PP1)) Frase fonológica ] (IP1) Frase intonacional ] (U1)) Enunciado O NF é específico para cada língua e contém a representação fonológica segmental e suprasegmental de um enunciado, maior unidade fonológica dentro dos moldes da GDF. Como podemos observar no esquema acima, a expressão linguística é analisada em termos 56 das seguintes unidades fonológicas: Enunciado (U); Frase Intonacional (IP); Frase Fonológica (PP); Palavra Fonológica (PW), Pé (F) e Sílaba (S). Como afirmado para o NM, também no NF não há uma relação de correspondência entre unidades pragmáticas, semânticas e morfológicas, de um lado, e unidades fonológicas, de outro. Um exemplo disso é que não há necessariamente uma relação entre palavras fonológicas do NF e fronteiras de constituintes do NM. 1.3. A implementação da Gramaticalização dentro da Gramática Discursivo- Funcional Nesta seção, apresentamos alguns trabalhos que já abordaram fenômenos linguísticos na interface Gramaticalização e GDF, entre eles os de Keizer (2007, 2012), Souza (2009, 2010), Olbertz (2010), Casseb-Galvão (2011) e Hengeveld (2010, 2011, 2013), mostrando que é possível tratar de fenômenos de mudança linguística adotando-se o modelo de gramática da GDF. Mas, antes da exposição desses trabalhos, discutiremos como se dá essa implementação pelo modelo. A dicotomia lexical-gramatical, no modelo antecessor da GDF, a Gramática Funcional (DIK, 1997a), é observada de maneira categórica, como concluimos a partir das palavras de Dik (1997, p.159): A GF faz uma distinção precisa entre elementos lexicais (de conteúdo) e gramaticais (de forma) na estrutura da expressão l