CLEDIONE JACINTO DE FREITAS É DE PASSAGEM: itinerantes, itinerâncias e suas relações com serviços socioassistenciais e com a cidade de Paranaíba-MS ASSIS 2019 CLEDIONE JACINTO DE FREITAS É DE PASSAGEM: itinerantes, itinerâncias e suas relações com serviços socioassistenciais e com a cidade de Paranaíba-MS Tese apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Doutor em Psicologia. (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade). Orientador: Prof. Dr. José Sterza Justo Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. ASSIS 2019 Freitas, Cledione Jacinto de F866é É de passagem: itinerantes, itinerâncias e suas relações com serviços socioassistenciais e com a cidade de Paranaíba- MS. / Cledione Jacinto de Freitas. Assis, 2019. 290 p. : il. Tese de Doutorado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Prof. Dr. José Sterza Justo 1. Psicologia social. 2. Assistência social. 3. Subjetividade. 4. Nômades. 5. Paranaíba (MS). I. Título. CDD 301.441 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Vânia Aparecida Marques Favato - CRB 8/3301 Às itinerâncias da vida e aos itinerantes que se produzem nelas. AGRADECIMENTOS À Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras de Assis, pela oportunidade em cursar o mestrado e o doutorado, por contribuir para ressignificar minha formação e carreira acadêmica. À José Sterza Justo pela orientação no mestrado e a continuidade no doutorado, por dispor de parte do seu tempo para dedicar a me ouvir e contribuir para o progresso do trabalho; pelas trocas e conversas; pelo companheirismo e incentivo em todos os momentos. O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão da bolsa durante todo o doutorado, contribuindo para a produção científica e a participação em eventos. À Secretaria Municipal de Assistência Social, ao CREAS e a seus profissionais por possibilitar a execução e materialidade da pesquisa. Foi a partir dela que questões importantes relativas ao movimento, a itinerância e seus modos se tornou possível. Aos itinerantes e outras figuras atendidas no CREAS por seus modos de vida, dizer sem necessariamente explicitar, trouxeram contribuições valiosas para a pesquisa e para a escrita. Aos amigos e amigas, novos e antigos, do Grupo de Pesquisa Figuras e Modos de Subjetivação na Contemporaneidade: Tédio, Dessexualização, Imigração e Errância pela convivência sempre gratificante e pelas trocas enriquecedoras tanto acadêmicas quanto pessoais. Aos membros da banca do Exame Geral de Qualificação Eurípedes Costa do Nascimento e Felizardo Tchiengo Bartolomeu Costa pelos apontamentos e reflexões que possibilitaram pensar e ousar na construção de um entendimento sobre itinerância. Aos membros da banca de defesa Eurípedes Costa do Nascimento, Luciana Codognoto da Silva, Matheus Fernandes de Castro, Soraia Georgina Ferreira de Paiva Cruz e aos suplentes Hélio Roberto Braunstein, Isael José Santana e Cristina Amélia Luzio. pelas importantes contribuições no que concerne aos desdobramentos da pesquisa. A todos os funcionários da UNESP/Assis, em especial os da seção de pós-graduação e da biblioteca pela atenção, assessoria e presteza dispensadas. A todos os amigos e colegas de Pós-graduação, com destaque especial para os da turma de 2015 do Doutorado Aline, André, Cizina, Gustavo, Molize e Rodrigo. Àqueles que fizeram parte da construção da minha formação e carreira acadêmica e profissional, vocês foram primorosos intercessores em minha vida. À minha mãe, conhecida também por “Dona Jerôma”, que não pode acompanhar toda a minha caminhada do doutorado, mas que me forjou como pessoa. Ao meu pai, “Seu Lorico”, por sua insistência em um viver itinerante que acabou por me levar, mesmo sem perceber, a esses caminhos de pesquisa. Aos meus irmãos Divino Jerson, Valdivino, Luciene, Ercione e Cleidimar. Cada um a sua maneira me compôs em minha caminhada. Aos meus sobrinhos e minhas sobrinhas Adirene, Aline, Allan, Felipe Gabriel, Sofia Vitória e Emanuelle Vitória por trazer alegria aos nossos dias. Aos meus cunhados e cunhadas Vagner, Ivânia e Rute por compartilhar momentos em família. Aos meus tios/padrinhos José Borges e Maria Izolina e a minhas primas Joelma Freitas, Marli Freitas, Queli Silveira, Roberta, Maria Aparecida, Nildete Freitas, Alessandra pelas trocas e conversas. À Rúbia Leal pela presteza na revisão ortogramatical do texto da qualificação e da tese, pelo incentivo, pela colaboração e pelas conversas sobre variados temas. Aos meus amigos e minhas amigas, cúmplices de conversas e revoluções não concretizadas, intercessores de escritas, incentivadores de textos e (quase) poemas, de momentos de confraternização e de desabafo. Com a certeza de esquecimento de algum nome, me arrisco a lista-los: Felizardo Costa, Tânya Marques, Maico Costa, Rosy Costa, Pedro Marangoni, Sara Mexo, Waldir Perico, Monique Manfrê, Wiliam Azevedo, Suellen Jacob, Danielle Pricilla, Leandro Castro, Júnior Tomaz, Keile Valéria, Fernanda Santos, Ariévlis Nunes, Paulo, Paulo Henrique, Laila Soraia, Karla Komatsu, Raiara Costa, Maria Cristina, Isael, Maria Silvia, Mariana Bomilcar, Ana Paula Cazarotti, Lucy Mitiko, Graziela Romeiro, Hélio Braunstein, Ana Cláudia, Juliano Kanamota, Jeferson Paula, Raryanne, Sônia Borges, Niwton, Wansley Freitas, Carla Souza, Rute Bernardo, Ana Amélia, Rosimeire, Dayane Cardoso, Natália Ramos, Natália Castro, Joseanne Freitas, Vinícius Oliveira, Christiane Bejas, Mônica Dantas, Bruno Catolino, Silvia Leiko, Delaine Souto, Marília Rully, Marianny Alves, Letícia Braga, Letícia Souza, Leilane Brito, Rosy Ribeiro, Mayara Ruiz, Alexandre Espósito, Abílio Rezende, Juliana Barros, Andréia Lacerda, Andréia Ferreira, Eronides Costa, Washington Nozu, Laís Tosta, Barbara Bonadia, Bruna Ferreira, Taíz Carla, Mailka Danielle, Eliana Escatolin, Ana Alice, Tamara Nicolete, Franciele Siviero, Ana Carolina Carneiro, Naeli Castro, Jéssica Lima, Michela Souza, Danila Prado, Regiane Prado, Silvia Bonassi, Ivonete Bittelbrunn, Mayara Coutinho... A intensidade e o encanto são singulares em relação a todos os nomes apresentados desde o início dos agradecimentos, cada um com sua potência. Abaixo expressarei, para encerrar, de modo mais poético, nossas vidas em seus atravessamentos, em suas intersecções. Formas de vida Formas de vida, no caminho vividas. Percursos corridos, decorridos. Passos compridos, cumpridos. Não buscam a um fim chegar, apenas andar, devagar. Uma vida só é vida quando convida, vidas para essa vida. Uma vida em outras vidas, torna mais potente as vidas vividas. Uma vida vivida devagar, a vagar, engendra outras vidas a andar, sem chegar. Uma vida em outras vidas, é uma vida comprida, no inefável caminho, percorrido por formas de vida a transitar, a enredar em linhas que faz tagarelar, vidas que (com)vidas a caminhar. FREITAS, Cledione Jacinto de. É de passagem: itinerantes, itinerâncias e suas relações com serviços socioassistenciais e com a cidade de Paranaíba-MS. 2019. Tese (Doutorado em Psicologia) Faculdade de Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista – UNESP, 2019, 289p. RESUMO Os deslocamentos de pessoas pelas regiões e cidades brasileiras, nas últimas décadas, pelos mais variados motivos, seja em busca de trabalho, de turismo, visita a familiares, por questões de saúde, relativas à justiça, seja de retorno ou mesmo como uma forma de conhecer os lugares pelos quais se passa ou se deseja ir, configura-se num fenômeno complexo e de múltiplas vertentes de investigação, necessitando de uma abordagem transdisciplinar para seu entendimento. Os movimentos podem ser de trânsito, assentamento e fixação, de saída e retorno, em processo contínuo ou realizado por etapas, intercalando paragens e viagens tal à maneira do itinerante. Nessa via, o objetivo desse trabalho foi entender as relações entre itinerantes, serviços socioassistenciais e a cidade de Paranaíba, no estado de Mato Grosso do Sul. A abordagem metodológica consistiu em pesquisa qualiquantitativa, tendo como técnica a análise documental em cadastros de população em situação de rua, cadastro de passagens concedidas e em documentos com dados a serem enviados para o Ministério de Desenvolvimento Social, na Unidade do Centro de Referência de Assistência Social (CREAS) da referida cidade. As pessoas que recorrem aos serviços para se deslocar de um lugar a outro são consideradas vulneráveis e em situação de risco social e/ou pobreza. A passagem rodoviária é o ponto chave para o deslocamento das pessoas itinerantes, usuárias do CREAS, em grande medida, estando também de passagem pela cidade. É por meio delas que ocorrem as chegadas e partidas e, entre as chegadas e partidas, os espaços urbanos eram utilizados por tempos determinados, comumente por alguns dias. Os trajetos percorridos, foram, geralmente, para as cidades vizinhas e para a proximidades regionais, onde há uma organização econômica agroindustrial e agropastoril, aqueles em que há linhas interurbanas de transporte coletivo e estrutura rodoviária pavimentada. Em suma, podemos considerar que os itinerantes produzem suas itinerâncias e estão produzidos por elas numa relação entre os modos de organização das cidades, dos serviços socioassistenciais, nos embates e negociações com agentes públicos e citadinos, dos arranjos técnicos, tecnológicos e científicos e de seus processos de subjetivação. Palavras-chave: Itinerantes. Psicologia Social. Mobilidade. Serviços Socioassistenciais. Modos de subjetivação. FREITAS, Cledione Jacinto de. Passing through: itinerants, itinerancies and ralations with social assistance services in Paranaíba city-MS. 2019. Thesis (Doctorate in Psychology) College of Sciences and Languages, São Paulo State University – UNESP, 2019, 289p. ABSTRACT The displacement of people passing through Brazilian regions and cities in the last decades, for many reasons, such as: searching jobs, tourism, visits to relatives, health care, justice, or even as a way to find new places or already known by which one goes or one wishes to go, is a complex phenomenon with multiple research strands, that require a transdisciplinary approach for its understanding. The movements can be of transit, settlement and fixation, of exit and return, in a continuous process or realized in stages, changing moments and stops depending of the itinerant. The goal of this work was to understand the relations between itinerants, social assistance services and in Paranaíba´s city, state of Mato Grosso do Sul. The methodological approach consisted of both qualitative and quantitative study, having as technique the documentary analysis in registers of population in situation street, passport registration and documents with data to be sent to the Ministry of Social Development, in the Unit of Reference Center of Social Assistance (CREAS) of said city. People who use services to move from one place to another are considered vulnerable and at social risk and/or poverty. The road crossing is the key point for the displacement of itinerant people, users of CREAS, to a large extent, also passing through the city. It is through them that arrivals and departures occur and, between arrivals and departures, urban spaces were used for certain times, usually for a few days. The routes traveled were generally to the neighborhood cities and to the region, where we find agrobusiness and cattle breeding predominantly, which also have interurban lines of collective transport and paved road structure. We assume that that the itinerants subjjects produce their itinerancies and are produced by them in an relation between the modes of organization of the cities, the social assistance services, in the clashes and negotiations with public and urban agents, the technical, technological and scientific arrangements and their subjectivation processes. Keywords: Itinerant. Social Psychology. Mobility. Social Assistance Services. Modes of subjectivation. LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS B.O. – Boletim de Ocorrência BPC – Benefício de Prestação Continuada CadÚnico – Cadastro Único CART – Concessionária Auto Raposo Tavares Centro Pop – Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua CETREN – Centro de Triagem do Migrante CNT – Confederação Nacional dos Transportes CRAS – Centro de Referência de Assistência Social CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INSS – Instituto Nacional do Seguro Social IPEA – Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas LOAS – Lei Orgânica de Assistência Social MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome NOB – Norma Operacional Básica OIM – Organização Internacional para a Migração PAEFI – Serviço de Proteção e Atendimento Especializado à Família e Indivíduo PAIF – Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família PBF – Programa Bolsa Família PIB – Produto Interno Bruto PNAS – Política Nacional de Assistência Social SCFV – Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos SUAS – Sistema Único de Assistência Social SUDAM – Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia SUDENE – Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste UAM – Unidade de Atendimento ao Migrante LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1: Número de passagens ofertadas por estado e cidades entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019.............................................................................................................................. 177 Gráfico 2: Região de Origem dos usuários/itinerantes entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019........................................................................................................................................ 180 Gráfico 3a: Cidades e estados de origem dos usuários/itinerantes região Centro Oeste entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019....................................................................................... 182 Gráfico 3b: Cidades e estados de origem dos usuários/itinerantes região Sudeste entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019................................................................................................... 183 Gráfico 3c: Cidades e estados de origem dos usuários/itinerantes região Sul e outros entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019....................................................................................... 183 Gráfico 3d: Cidades e estados de origem dos usuários/itinerantes região Norte entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019................................................................................................... 184 Gráfico 3e: Cidades e estados de origem dos usuários/itinerantes região Nordeste entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019.................................................................................................184 Gráfico 4: Região/país de destino dos itinerantes entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019. .................................................................................................................................................188 Gráfico 5a: Cidades e estados dos usuários/itinerantes: região Centro Oeste entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019................................................................................................... 190 Gráfico 5b: Cidades e estados de destino dos usuários/itinerantes região Sudeste entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019................................................................................................... 190 Gráfico 5c: Cidades e estados de destino dos usuários/itinerantes região Sul entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019................................................................................................... 191 Gráfico 5d: Cidades e estados de destino dos usuários/itinerantes região Norte entre 2009 e 2016.........................................................................................................................................191 Gráfico 5e: Cidades, estados e países de destino dos usuários/itinerantes região Nordeste e outros entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019.................................................................... 192 Gráfico 6: Motivo da viagem dos itinerantes entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019...... 196 Gráfico 7: Profissão dos itinerantes entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019.................... 201 Gráfico 8: Naturalidade dos itinerantes por região/país entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019........................................................................................................................................ 206 Gráfico 9: Naturalidade dos itinerantes por estado/país entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019........................................................................................................................................ 208 Gráfico 10: Mulher itinerante entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019..............................214 Gráfico 11: Tempo de itinerância entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019....................... 217 Gráfico 12: Período que os itinerantes permanecem na cidade entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019............................................................................................................................. 222 Gráfico 13: Local que os itinerantes ficam na cidade entre 2009 e 2016. Paranaíba (MS), 2019........................................................................................................................................ 226 SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................................... 14 PARTE I: Aporte teórico....................................................................................................... 26 1 CONTEMPORANEIDADE, ITINERÂNCIA E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO........ 27 1.1 MODERNIDADES: vivências e andanças nas e pelas cidades......................................... 27 1.1.1 Modernidades, cidades e transitividades......................................................................... 27 1.1.2 Usos e andanças na cidade.............................................................................................. 43 1.1.3 Modos de subjetivação contemporâneos: sujeito e movimento...................................... 50 1.1.4 Itinerância e migração..................................................................................................... 56 1.1.5 Itinerância e itinerante: termos muito usados e pouco discutidos................................... 74 1.1.6 Lentidão e Circuito Inferior da Economia....................................................................... 81 1.1.7 A pobreza......................................................................................................................... 87 1.1.8 Assistência Social e itinerância....................................................................................... 99 1.1.8.1 Assistência Social, itinerância e cidade...................................................................... 107 2 MIGRAÇÕES, CONSTITUIÇÃO DAS CIDADES, REDES URBANAS E DESLOCAMENTOS POPULACIONAIS......................................................................... 113 2.1 CIDADE E URBANIZAÇÃO NO BRASIL.................................................................... 113 2.2 TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE PASSAGEIROS.................................................... 118 2.3 CONSTITUIÇÃO DAS CIDADES E REDES URBANAS NO BRASIL...................... 128 2.4 MIGRAÇÕES E DESLOCAMENTOS POPULACIONAIS........................................... 132 2.5 MIGRAÇÕES PARA CIDADES MÉDIAS E PEQUENAS........................................... 142 PARTE II: objetivos, método, resultados e discussão....................................................... 148 1 OBJETIVOS, MÉTODO E PROCEDIMENTOS.......................................................... 149 1.1 OBJETIVOS..................................................................................................................... 149 1.2 MÉTODO E PROCEDIMENTOS................................................................................... 149 1.2.1 Abordagens de pesquisa................................................................................................ 149 1.2.2 Pesquisa qualitativa....................................................................................................... 151 1.2.3 Pesquisa quantitativa..................................................................................................... 152 1.2.4 Pesquisa quali-quantitativa............................................................................................ 155 1.3 PESQUISA DOCUMENTAL.......................................................................................... 159 1.4 O CAMPO........................................................................................................................ 163 1.5 OS DOCUMENTOS........................................................................................................ 170 2 RESULTADOS DA PESQUISA DOCUMENTAL........................................................ 173 2.1 MODOS DE EXERCÍCIO E CONDIÇÕES DA ITINERÂNCIA: OS DADOS DO CREAS DE PARANAÍBA..................................................................................................... 173 2.1.1 Passagem concedida....................................................................................................... 176 2.1.2 Origem dos itinerantes................................................................................................... 179 2.1.3 Destino dos itinerantes................................................................................................... 187 2.1.4 Motivo da viagem.......................................................................................................... 195 2.1.5 Profissão.........................................................................................................................199 2.1.6 Naturalidade dos itinerantes.......................................................................................... 205 2.1.7 Mulheres itinerantes...................................................................................................... 212 2.1.8 Tempo em itinerância.................................................................................................... 216 2.1.9 Tempo permanência na cidade...................................................................................... 220 2.1.10 Lugar que fica na cidade............................................................................................. 224 3 DISCUSSÃO DA PESQUISA........................................................................................... 229 3.1 AS ITINERÂNCIAS E SUAS RELAÇÕES................................................................... 229 3.1.1 Itinerância e cidade....................................................................................................... 229 3.1.2 Itinerância, vulnerabilidade e pobreza.......................................................................... 234 3.1.3 Itinerância e passagens................................................................................................. 240 3.1.4 Andanças e uso dos lugares na cidade......................................................................... 245 3.1.5 Circuito inferior da economia e itinerância.................................................................. 251 3.1.6 Processos subjetivos e itinerância................................................................................ 256 3.2 RELAÇÕES ENTRE ITINERANTES, SERVIÇOS SOCIOASSISTENCIAIS E PARANAÍBA........................................................................................................................ 260 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 269 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................ 281 14 INTRODUÇÃO A grande complexidade de exigências as quais o sujeito está submetido e as feições tomadas pelo mundo contemporâneo, impelem-nos a pensar sobre os modos de vivenciar, experienciar esse mundo e responder às exigências apresentadas, postas ou impostas por si mesmos, pelos outros ou pelos modos de organização técnico-científico-econômico- sociocultural. Todas a demandar posicionamentos sobre as diversas formas de vida e de estar nos espaços e lugares. Uma das exigências contemporâneas diz respeito à mobilidade, à produção e controle dos fluxos, das migrações e das itinerâncias. A condição do movimento, de ser móvel, é um dos imperativos mais prolatados por teóricos, projetistas, administradores, urbanistas, politicólogos1, mídia, etc., como a tendência a ser seguida por pessoas, instituições, sociedades e países. Ela é a ideia central, ponto de partida e de chegada, da qual outras gravitam. A mobilidade ideal e idealizada, livre e desejada não é extensiva a todos. Ela é privilégio de poucos, mas defendida por muitos. A maioria das pessoas vivem-na de forma ordenada, vigiada, controlada e imposta. Não podem ou não possuem os meios decisórios de exercer as formas e tempos da mobilidade. Em síntese, a mobilidade não é ofertada de forma equivalente para todos e não é, ainda, democrática e democratizante. Entre as formas diferentes de aceder e utilizar a mobilidade Bauman (1999), aponta duas maneiras distintas, complementares e em relação intrínseca na contemporaneidade, desejada e combatida, demandando uma rede de ações, de políticas, de consumo e até jurídicas: a dos turistas e a dos vagabundos. Esses modos de exercício da mobilidade são tributários do processo de globalização e suas transformações, refletindo na construção de barreiras econômicas, políticas, transmutando a separação global/local. A mobilidade dos turistas, segundo Bauman (1999), desejada e desejável, constitui-se como modelo hegemônico de pensamento e construção de políticas de trânsito, tanto em âmbito nacional, quanto internacional. É a mobilidade do capital, do consumo e dos consumidores que podem pagar os diversos produtos disponíveis. Os turistas podem escolher suas rotas, destinos, sem cerceamento e, esse é o grande trunfo em relação aos não turistas. 1 Esse termo, que também pode ser escrito como politólogo e politicologista, é utilizado para se referir às pessoas que se dedicam a estudar a política ou a prática política. Um dos exemplos são os políticos profissionais, aqueles que fazem da política uma profissão. 15 Já a mobilidade dos vagabundos para Bauman (1999), torna-se indesejada e cerceada. Ela pode ocorrer dentro de certos limites (im) postos pela sociedade de turistas, que buscam a todo custo, mas sem sucesso, eliminar esse modo de mobilidade. A mobilidade dos vagabundos é considerada perigosa, indesejável, necessitando de estratégias de controle dos fluxos, modulando-a entre a compulsória e a imobilidade. Mesmo com todo o cerceamento, policiamento e controle sobre a mobilidade dos vagabundos, principalmente nas cidades, há, conforme aponta Certeau (2014), formas de exercício de resistência aos modos hegemônicos de produção e organização da vida pelos praticantes ordinários da cidade. Esses praticantes podem ser relacionados, em uma aproximação, como o vagabundo descrito por Bauman (1999). Os praticantes ordinários da cidade, seguindo as proposições de Certeau (2014), utilizam suas táticas para poder se mover pelos diversos caminhos e construir práticas diversas das instituídas, ressignificando sua relação com a cidade. O praticante deixa de ser apenas subjugado pelas estratégias criadas e utilizadas para modular seus modos de vida. Ele atua com elas e sobre elas para dar novos usos e sentidos aos produtos, caminhos e lugares da cidade. Os praticantes constroem seus itinerários, seus roteiros, percursos, de um modo diverso. É por meio da experiência direta, produzida pelo caminhar que vão se construindo as práticas, os afetos, as vivências; é a possibilidade de nomear o inominável. O praticante está sob o signo do imprevisível, do descontínuo e das incertezas. É pelo caminhar que os percursos vão sendo traçados, significados e ressignificados. Dar novos sentidos ao instituído também é abordado por Milton Santos (2013; 2014a) nos seus textos “A pobreza urbana” e “A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção”. Nesse momento, nos interessa as táticas utilizadas pelos pobres, remetendo a Certeau (2014), para usar, produzir e reproduzir os espaços, dados de maneira bem diversa pelos detentores do meio de produção e do capital. Milton Santos (2013) divide os modos de produção e reprodução do espaço urbano e, por conseguinte, do uso, consumo e produção da vida entre dois circuitos da economia: Superior e Inferior. No primeiro estão as grandes corporações e os detentores do capital e no segundo as pessoas pobres, pequenos comerciantes, artesãos entre outros. Os circuitos são interdependentes, não podendo ser dissociados. No entanto, o circuito inferior depende do superior. Os usuários do Circuito Inferior da economia precisam reinventar suas práticas, suas trocas, seus usos e consumos. O processo de reutilização e de transmutação dos objetos é 16 parte constituinte do seu dia a dia. Eles operam mais em nível local e suas relações são mais diretas, e nem sempre mediada pelo capital. As pessoas pertencentes ao Circuito Inferior da Economia podem ser consideradas homens lentos, como escreve Milton Santos (2014a). São aqueles usuários da cidade avessos à velocidade reinante, utilizando-se de uma atitude mais corpórea, orgânica com os espaços, não os luminosos (os do capital), mas os opacos (os dos pobres). O ritmo menos acelerado, mais compassado, permite-os a se apropriarem da cidade e dar sentidos diversos do instituído. Os homens lentos usam a cidade à maneira do flâneur (BENJAMIN 2015, 1995), eles caminham pelos labirintos, passagens, pelos espaços e lugares de maneira bem diversa dos citadinos imersos na racionalidade da modernidade e pós-modernidade. O flâneur na modernidade e os itinerantes na contemporaneidade fazem do caminhar, do mover, modos de constituição e afirmação subjetivas. As movimentações ganham contornos novos na transmutação da modernidade para a pós-modernidade, como aponta Harvey (2001). Com a compressão do espaço-tempo houve uma reconfiguração dos modos de se exercer e experenciar a mobilidade, os imediatismos e as celeridades agora fazem parte das formas de estar no mundo. As cidades também sofreram transformações nessa passagem do moderno para o pós- moderno, conforme aponta Harvey (2001), de uma cidade voltada para a centralidade, o fechamento para a fragmentariedade, o descontínuo, possibilitando novas formas e lugares de uso de uma série de personagens, entre eles os itinerantes. As cineses, a velocidade como forma de exercício do poder no mundo contemporâneo, denominado por Virilio (1996) por dromopolítica, dá novas feições da dinâmica espaço- tempo com a instantaneidade tomando as rédeas dos modos de vida e do desenrolar das cidades. A circulação, a não parada, tornam-se tônicas nesse modo de viver na urbe, com posturas coercitivas com o fito de não deixar estacionar pessoas em ritmos lentos. A sociedade contemporânea, chamada por Augé (2012) de supermodernidade é produtora de lugares de trânsito, lugares de passagem e com pouca possibilidade de fixação e vinculação afetiva e subjetiva, também conhecido como não lugares. São estratégias para retirar do sujeito a noção de assentamento e de pertencimento aos lugares, fazer as pessoas usarem provisoriamente os espaços. Os itinerantes, nesse processo, mesmo pervertendo as formas de uso dos não lugares, não conseguem escapar ilesos dessa dinâmica. Ao falar de perverter a racionalidade moderna, quanto ao modo de experenciar e viver o mundo, temos as vagabundagens pós-modernas como aponta Maffesoli (2001), elas são as responsáveis por manter as transformações, as diferenças e a busca do novo. As 17 vagabundagens são tributárias do movimento, de sair sem eira nem beira, por isso é tão vigiada e combatida, pois ela carrega a pulsão de errância, do desejo de evasão, de desinstituir o instituído. Os itinerantes também são de forma mais ou menos intensa um desses vagabundos pós-modernos. Essas questões perpassam as cidades. Cada uma à sua maneira lida com as complexidades que as atravessam, produzindo modos diversos de dar conta das vagabundagens, das cineses, do movimento e seus praticantes. No entanto, o modo mais perceptível é uma espécie de coerção e despotencialização desses modos de vida ou o oposto, um fazer circular contínuo e ininterrupto. Viver a itinerância é ser mediado e atravessado por essas circunstâncias. Vagabundo, praticante ordinário da cidade, pertencente ao circuito inferior da economia, lento, são em sua maioria, usuários dos serviços socioassistenciais dos municípios brasileiros. Eles podem ser residentes ou pessoas de passagem pelas cidades, utilizando e recebendo atendimento das políticas públicas, constituídas, sob vários princípios e abarcando uma variedade de objetos e públicos, entre eles a mobilidade e a itinerância. A utilização da expressão “é de passagem” no título do trabalho visa abarcar dois sentidos: o primeiro referente à transitoriedade do fenômeno, o curto período de permanência da maioria das pessoas atendidas pelos serviços socioassistenciais na cidade; o segundo diz respeito ao modo de se locomover, de exercer sua itinerância, as passagens rodoviárias concedidas por esses serviços, pela igreja, fruto do achaque ou mangueio, abarcadas no trabalho como negociações. Estar de passagem e utilizar passagem, parece ser o modo de produção de itinerância em vários municípios brasileiros, com variações no tempo de permanência dentro dos limites das cidades. Nas pequenas, esse processo parece ganhar contornos um pouco diferentes quanto ao tempo entre uma itinerância e outra, seja pela falta de recursos, pela tolerância dos citadinos e agentes públicos, seja pela oferta de lugares e condições de permanência por período um pouco mais prolongado. Estudar a itinerância e suas relações, com serviços socioassistenciais, em cidade pequena, dessa forma como escolha de objeto empírico, essa pesquisa teve por objetivo contribuir para ampliar o leque de estudos na área e trazer dados diferentes sobre a dinâmica 18 dos movimentos de pessoas consideradas com fragilidade ou sem laços sociais e filiativos2, para se deslocar de um lugar a outro. Para o entendimento da questão foi realizada pesquisa documental na Unidade do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) de Paranaíba/MS. Nesses documentos (cadastro de passagem para população de rua) havia uma série de dados possíveis de se verificar o processo de itinerância como origem, destino, lugar da concessão de passagem, tempo e lugar de permanência na cidade e o tempo de andanças pelas cidades, dados que foram categorizados na análise preliminar dos resultados. Essa discussão foi possível devido à variedade de pessoas atendidas pelo CREAS no período da pesquisa (2009-2016), de pessoas em trânsito, à procura de emprego ou parentes, retornando à cidade da última residência, pessoas moradoras na cidade com o intuito ir a outras cidades para “resolver” suas demandas, usuários dos serviços socioassistenciais dentre outros que compunham a amostra de pessoas cadastradas. A questão central da pesquisa girou em torno da itinerância e dos itinerantes e sua interrelação com os serviços socioassistenciais do município. A proposta foi apresentar e trabalhar a complexidade dos deslocamentos das pessoas dentro da cidade e intercitadina. Essa dinâmica não se trata do processo geral de deslocamento como o constituído pelas pesquisas de movimentos migratórios realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de caráter generalista e que abarca amostras representativas ou toda a população do país apresentado e discutido por uma série de pesquisadores. O foco foi em pessoas que por diversos motivos não podem ou não querem utilizar os seus recursos financeiros, para se deslocarem de um lugar a outro. Essas pessoas são em sua maioria, consideradas pobres e em situação de vulnerabilidade e risco social, necessitando da intermediação do Estado para poder se deslocar. No entanto, elas não são passivas, aguardando apenas as diretrizes estatais para poder ir a outros lugares, elas utilizam de táticas para conseguir lograr êxito em suas demandas, mesmo ocorrendo uma série de negociações, permissões e desvios. O enfoque não restringiu, apenas, à política de Assistência Social, ela é um dos componentes do processo, mas não o único, foi também na dinâmica entre a produção de itinerários e os itinerários (im)postos, ou melhor, a tentativa de impô-los. Outras vertentes também foram consideradas como as transformações socioculturais, históricas, espaciais, o 2 O termo filiativo é utilizado nesse trabalho com o sentido de pertencimento à uma família ou de pessoas de proximidade e que exercem a função de familiar, de parente. 19 processo de urbanização, a questão da pobreza, a rede de transporte como meio preponderante do processo de itinerância. Escolhemos os termos itinerantes e itinerâncias, já no final do processo de escrita, por entender serem esses, os melhores termos a utilizar para dar conta das questões emergidas nos dados dos cadastros, não era apenas trecheiros (como intentamos no início) o público atendido, eram pessoas residentes da cidade, egressos do sistema prisional, pessoas em busca de emprego, de parentes, acompanhantes de usuários. Outro motivo dessa decisão é a dificuldade de considerar todos os usuários atendidos pelo CREAS como nômades e errantes, por mais que a itinerância possui uma forte relação com esses termos, ela marca também as paradas e o processo físico de deslocamento. Nem todos estão errando pelos caminhos do país, muitos apenas se deslocam temporariamente de um lugar a outro, retornando ao lugar de “residência” para em seguida deslocar e retornar. Ainda temos como usuários dos serviços socioassistenciais, pessoas residentes em Paranaíba ou antigos moradores que acorrem ao CREAS, para obter o benefício para se deslocarem a alguma cidade ou para retornar à cidade em que residiam. Os motivos para a solicitação de passagem eram os mais variados, desde questões de falecimento de parentes, de saúde e doença até questões relacionadas à justiça. A proposta de tratar a itinerância como tema de trabalho foi gestada, mesmo não intencionalmente, com o decorrer dos anos de pesquisa e escrita. A passagem pelas questões da mobilidade, do nomadismo, da errância na perspectiva estatal e sociocultural, teve como referência as políticas sociais, com destaque para as políticas de assistência social (FREITAS, 2014), que foram se direcionando para pensar as relações entre itinerante, cidade e políticas. A nossa trajetória de pesquisa, nesse tema, mostrou que a relação política de mobilidade e itinerância, tem sido gerenciada pelas mais diversificadas estratégias. O trabalho de Justo et. al. (2013) trata da assistência aos trecheiros, pessoas vivendo de cidade em cidade, mediante passe rodoviário concedido pela assistência social ou fruto de achaque. Esse texto discorreu sobre o tipo de atenção dada aos itinerantes, no sentido de gerir sua mobilidade dentro dos limites das cidades, traçando estratégias para impedi-los de adentrarem nelas, fazendo-os circularem. A estratégia é criar corredores de trânsito e atuar, numa perspectiva proposta por Virilio, na dromopolítica, na gestão da velocidade dos corpos. Justo et. al. (2013) também discutiram que, por mais que não haja uma explicitação do termo itinerante e itinerância, há a referência de serem pessoas em deslocamento, transitando de uma cidade a outra, não se fixando em determinado território. Os itinerantes guardam uma grande relação com o nômade e errante, pelo seu modo de vida e as condições sociais. A 20 política de mobilidade para esses públicos não possui especificidades, sendo realizada da mesma maneira – encaminhamento para a cidade mais próxima. Em dois textos (FREITAS e JUSTO, 2016, 2019), procuramos iniciar a discussão da política de mobilidade para trecheiros e pessoas em situação de rua em cidades pequenas. É uma discussão embrionária, devido à época e à dificuldade de encontrar trabalhos específicos relacionando as duas temáticas. Entretanto, este estudo reforçou os resultados de Justo e outros autores (2013), antecipando a necessidade de dar conceituação à ideia de itinerância e itinerante, de maneira contextualizada e localizada. Concebemos haver especificidades no trato da mobilidade das pessoas em trânsito nas cidades pequenas, mas o modo de organização da política segue os parâmetros da política nacional e dos grandes centros (FREITAS e JUSTO, 2016, 2019). A lógica continua a de gerir os espaços citadinos e encaminhar essas pessoas para as cidades mais próximas. Estes trabalhos deram continuidade ao estudo dessa relação e de como as pessoas itinerantes e as cidades pequenas vivenciam e mediam o processo de itinerância. Prosseguindo nossa trajetória de pesquisa sobre as mobilidades levadas a cabo e as políticas públicas destinadas a gerenciar a presença e movimentação de pessoas em situação de rua e trecheiros no espaço urbano, essa tese de doutorado amplia a questão para abranger itinerantes, de maneira geral, e suas relações com as políticas de mobilidade implementadas mediante os serviços de assistência social voltados para pessoas que estão de passagem pela cidade. O trabalho realizado se subdividiu em dois conjuntos de tarefas. O primeiro voltou-se para a elaboração do referencial teórico mediante o levantamento de pesquisas diretamente relacionadas ao assunto e a busca de autores e teorias sobre mobilidade que pudessem servir de pano de fundo para a inteligibilidade do fenômeno. O segundo conjunto abrangeu os afazeres de uma pesquisa documental, mencionada anteriormente envolvendo o levantamento de dados e informações em arquivos, análise e a discussão relacionando os dados com o referencial teórico. Tendo em vista esses dois conjuntos de tarefas organizamos essa tese em duas partes. A primeira versa sobre o referencial teórico e a segunda abrange a proposição dos objetivos desta pesquisa, o método utilizado, a explanação dos resultados e a conclusão. No primeiro capítulo da parte I, diretamente ligado aos trabalhos supracitados, o presente texto oportunizou uma maior discussão da ideia de itinerância e de itinerante. Com a proposta de trazer alguns posicionamentos teóricos, iniciamos a revisão bibliográfica pela discussão das modernidades e suas implicações subjetivas e nas cidades, esse é o pano de 21 fundo para o entendimento do modo de vida atual da sociedade, modificando os modos de expressão das experiências vividas pelas transformações do espaço, tempo e técnica. Em seguida, tratamos dos modos de andanças pela cidade nas modernidades, dizemos modernidades no plural, devido a gama de definições às vezes antagônicas sobre o termo, o enfoque foi daqueles que utilizavam as ruas das cidades para se constituir subjetivamente ou para sobreviver, como o flâneur e o trapeiro. Os modos de subjetivação engendrados no processo de deslocamento, fez-se presente aos tratarmos das experiências de espaço e tempo e dos modos de constituição de sujeitos moveis tão caros na contemporaneidade, essas formas de viver tem suas ressonâncias em figuras que estão indo e vindo pelos recantos do país, constituindo num modo de subjetivação itinerante, mediado pelos modos de organização da cidade e na experiência espaço-tempo- lugar. Apresentamos as noções de homo viator, transumante, transterminante, migração e itinerância. A proposta foi tratar das formas de movimento e de percorrer os espaços e lugares com o passar do tempo, e de como esses modos tangenciam as andanças de figuras no contemporâneo, que fazem do movimento seu modo de estar no mundo. O intento é trazer a reflexão sobre os imbrincamentos, dos diversos modos de se mover no espaço-tempo e suas significações. Na sequência propomos uma discussão sobre os termos itinerância e itinerante, com o fito de primeiro, trazer à tona o amplo uso sem a construção terminológica, para em seguida, apresentar algumas notas a respeito do nosso entendimento e dos termos e suas ramificações e conexões. Com o fito de entender os processos de construção no Brasil, das transformações socioculturais, técnicas, espaciais e suas relações, com a produção de modos de vida, de produção e de consumo, do modo de produção capitalista sobre a dinâmica de acesso, dos usos divergentes dos espaços, foi investigado o circuito superior e inferior na produção de pobreza e nos modos e estratégias de vida dos pobres, para resistir ao modo hegemônico. A discussão sobre as transformações do espaço e os circuitos da economia urbana teve como eixo orientador os trabalhos de Milton Santos. O intuito foi pensar as relações urbanas e os usos dos espaços como construídos e mediados por sistemas técnicos de objetos e de ações, entendendo a dupla via para as organizações da vida: o Circuito Superior e Inferior da Economia Urbana. A pobreza também foi um ponto de reflexão sobre as estratégias de atenção e construção de trajetórias itinerantes. Apresentar várias perspectivas sobre a pobreza e seus 22 modos de operacionalizar ações para atuação sobre populações, desde modelos econômicos, nutricionais, subjetivos, educacionais e políticos. A pobreza como um processo político foi um dos pontos centrais no texto. Em seguida, apresentamos uma discussão da política de assistência social, de descentralização do atendimento, de atenção à migração e o arranjo socioassistencial de atendimento à população, em situação de vulnerabilidade e risco e também aos itinerantes. Abordamos também a relação entre assistência social e itinerância em cidades pequenas, tanto por elas se configurarem como a maioria dos municípios, quanto pela pouca atenção à essa interface. No segundo capítulo da parte I, realizamos uma apresentação da constituição das cidades e da rede de cidades brasileiras, por acreditar que foi pelas transformações e reconfigurações da rede urbana, com a emergência de cidades, que passaram a ter centralidade em regiões, influenciando outras, nos processos econômicos, políticos, sociais, de mobilidade de pessoas e nas itinerâncias. A pesquisa foi pensada a partir da cidade de Paranaíba, nela foi tratada sua história, crescimento populacional, rede urbana e região de influência. A apresentação da localização e das suas interconexões se fez necessário para o entendimento da discussão dos modos de organização da cidade para lidar com o fenômeno da itinerância de pessoas que acorrem aos serviços socioassistenciais para a continuidade das viagens. Tratamos da definição de cidade e de tamanhos de cidade, bem como, da distinção entre cidade e urbano. Por fim, nessa perspectiva, tratamos das cidades médias e pequenas e a migração para essas cidades. O processo de deslocamento populacional, não explica o fenômeno da itinerância, mas pode dar pistas dos lugares “escolhidos” para desembarcar temporariamente. A questão da migração se dá, sobretudo, por conta dos modos de produção de deslocamento pelo país, entre regiões, estado e municípios. Trata dos quantitativos de ganhos e perdas e também da constituição da dinâmica do crescimento populacional nas regiões, pouco povoadas, até a década de 1950. Essa dinâmica contribuiu também para o processo de itinerância, visto que as rotas deles possui relação com muitas cidades que se tornaram referência em suas regiões. Abordamos também o processo brasileiro de construção de infraestrutura viária, inicialmente, ferroviária e, em seguida, rodoviária e a contribuição para o sistema de transporte interurbano, utilizado para o transporte dos itinerantes na imensa maioria das cidades brasileiras. Para a consecução da itinerância a passagem é o predisponente para o 23 deslocamento das pessoas atendidas pelos serviços socioassistenciais, mantendo uma relação intrínseca com o modo passageiro dos itinerantes de permanecer na cidade. Não deixamos de tratar do meio precípuo utilizado para o deslocamento de grande parcela da população, o transporte rodoviário. Ele ainda é o referente para o deslocamento, principalmente, entre cidades próximas e entre estados. É por meio do transporte rodoviário que a itinerância se constitui e com frequência se materializa. No primeiro capítulo da Parte II realizamos uma explanação dos objetivos e traçamos uma panorâmica sobre os métodos quantitativo, qualitativo e qualiquantitativo, sendo, o último a opção que melhor viabiliza as possibilidades de entendimento do problema. Adotar o qualiquantitativo como proposta metodológica, não significou o engessamento do pensamento e do trabalho, pois ele possibilita a conjunção de modos diversos de abordagem, sendo possível privilegiar uma delas, no nosso caso privilegiamos a abordagem qualitativa. A pesquisa teve como campo a cidade de Paranaíba, no estado de Mato Grosso do Sul, mais especificamente o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e os documentos produzidos para cadastrar os itinerantes usuários do serviço. O tratamento de dados provenientes de pesquisa documental foi a escolha para realização da pesquisa, aliada à abordagem do campo de pesquisa e suas nuances, situando os dados básicos dos documentos a serem analisados. Pudemos traçar considerações de cunho teórico sobre método e os procedimentos, para inserir o leitor na generalidade e amplitude da questão. O segundo capítulo foi direcionado à pesquisa de campo e de apresentação dos dados, o primeiro item descrito foi sobre a concessão de passagens, tratando das cidades prevalecentes no direcionamento dos itinerantes. A seguir foi apresentado o item cidade de origem, contendo as cidades com maiores índices de pessoas, declarando desejar ir para elas, geralmente na proximidade de Paranaíba, no estado de Mato Grosso do Sul e São Paulo. O item sobre a cidade de destino seguiu a mesma lógica na “escolha” dos itinerantes, com pouquíssimas variações quanto às cidades. O motivo da viagem centrou-se, basicamente, em dois: trabalho e retorno para a família, outros tiveram menor destaque como questões relativas à saúde e à justiça. Em relação à profissão, as mais relatadas foram as com baixíssimo grau de especialização e realizadas, manualmente, como serviços gerais, serviços ligados ao campo e à construção civil. Já no item naturalidade o destaque foi para as cidades dos estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, mas vale ressaltar o aparecimento de pessoas de outras nacionalidades 24 utilizando o serviço socioassistencial do município. Elas, em grande medida, estavam em direção aos países sul-americamos. Relativo às mulheres, a maior parte, estavam acompanhadas pelos companheiros ou pelos filhos, mas ressalvamos a presença de menor número se deslocando sozinha. A itinerância feminina é um aspecto importante no contexto contemporâneo e considerar esse processo é ponto importante para se entender as mobilidades. Em relação ao “tempo no trecho” a maioria estava com menos de dez anos nas andanças pelas cidades do país e Paranaíba se tornou mais um ponto de passagem para os itinerantes. Em se tratando do tempo de permanência, em Paranaíba, a maior parte ficou até aproximadamente quinze dias na cidade, usando os lugares e estabelecendo relações. Por fim, os lugares mais visados e utilizados em Paranaíba são a estação rodoviária, as praças, as ruas e os postos de combustível, os lugares com maior fluxo de citadinos e próximos ao centro comercial. No terceiro capítulo, tecemos algumas considerações a título de discussão das temáticas apresentadas acima, para tanto, subdividimos em sete vertentes que tangenciam o processo de itinerância. Iniciamos pela relação entre itinerância e cidade, discutindo a força exercida pela cidade no processo de itinerância, além de pensar como as cidades se organizam para lidar com esse público. A relação entre itinerância, vulnerabilidade e pobreza foi o segundo ponto abordado enfocando as interconexões e atravessamentos da pobreza e vulnerabilidade no processo de itinerância, principalmente daqueles que acabam acorrendo aos serviços socioassistenciais para exercer suas andanças. O terceiro ponto tratado foi a passagem como meio precípuo de viagem dos itinerantes. A passagem é a metáfora do modo de vida itinerante, do sujeito que não permanece. Abordar essas questões foi a proposta do tópico. Na sequência, discutimos sobre as andanças e o uso dos lugares das cidades pelos itinerantes de passagem, entendendo que é por meio delas que o itinerante conhece a cidade e estabelece relações até ir à outra. O quinto ponto a ser tratado foi da relação do Circuito Inferior da Economia Urbana com a itinerância. O ponto de inflexão diz respeito aos modos de uso desse circuito pelos itinerantes usuários dos serviços socioassistenciais nas cidades pelas quais eles passam. O Sexto ponto diz respeito aos modos subjetivos dos itinerantes nos seus atravessamentos com citadinos, políticas, cidades e serviços socioassistenciais. Por fim, o enfoque foi em tratar das relações da cidade de Paranaíba, dos serviços socioassistenciais da cidade com os itinerantes que desembarcavam e permaneciam 25 temporariamente nos espaços e lugares citadinos. Cidade e itinerante são atores ativos na construção e manutenção da itinerância bem como nos lugares de uso e andanças. Essas são questões, discussões, atravessamentos, propostas, que o texto procura trazer a baila. 26 PARTE I: Aporte teórico 27 1 CONTEMPORANEIDADE, ITINERÂNCIA E MODOS DE SUBJETIVAÇÃO Nessa parte apresentaremos as discussões teóricas referente as várias facetas interconectantes do processo de itinerância, desde as transformações da modernidade, ou modernidades, a depender da perspectiva de cada autor ao tratar dos processos sociais, culturais, técnicos e subjetivos do sujeito experenciando as mudanças produzidas. Abordaremos, também, os modos de produção de andanças pelas cidades, com privilégio dos passos dados por aqueles considerados pobres, dissonantes, vagabundos, a tentativa de conceituação do fenômeno da pobreza, as migrações e itinerâncias bem como as modernizações e suas implicações na forma de vida das pessoas pertencentes ao circuito inferior de economia. O processo de construção e constituição das cidades e das suas redes e as migrações como componentes dessa constituição, emergência e queda das cidades, abrindo trajetos, estradas e deslocamentos para áreas pouco habitadas, remodelando a dinâmica socioespacial do país e possibilitando outras rotas de itinerância. 1.1 MODERNIDADES: vivências e andanças nas e pelas cidades A opção pelo termo modernidade se deve ao fato da variedade e multiplicidade de denominação dada ao termo Modernidade, seja tratando-a como um substantivo ou como uma substantivação do adjetivo. A depender do autor o termo Modernidade ganha sentido próprio com avanços e recuos quanto à mudança de período ou como crítica à utilização terminológica para expressar um momento de organização e experiências socioculturais e subjetivas. 1.1.1 Modernidades, cidades e transitividades Berman (2007) considera a modernidade uma experiência de tempo e espaço compartilhada por homens e mulheres, tanto consigo mesmos como com outros, atrelada às transformações técnicas, sociais, culturais, ambientais entre outras. Trouxe um modo novo de viver no mundo, congregando uma promessa de uma vida cheia de aventuras, prazer, autocrescimento, poder de mudar a si e o mundo, com uma ameaça de destruição do instituído, do sagrado e das referências que sustentam o sujeito. 28 Esse paradoxo e complementariedade constituídos pela modernidade entre o volátil e o sólido, o revolucionário e o conservador, o novo e o “perpétuo” vai engendrando uma racionalidade própria na emergência e consolidação de sociedades ocidentais, configurando e transfigurando os ritmos da vida e de suas relações, sobretudo com o aumento significativo das cidades em número e em população. As grandes cidades produziram uma nova lógica de vivência e convivência humana, uma aceleração e transformação constante dos ritmos vitais e materiais. As transformações são descritas por Berman (2007) referenciadas em escritores como Goethe, Baudelaire, Chernyshevski, Dostoievski, Gogol, pensadores como Marx e Construtores – considerados por ele como fomentadores – como Haussmann e Robert Moses, desde a produção da ruptura do mundo pré-moderno até as transformações mais radicais, que demandaram gastos e perdas incomensuráveis, com o fito de construir um presente e futuro que possibilitasse o conforto e a plenitude da vida. Todo esse esforço para colocar o Ocidente nos trilhos do desenvolvimento está ancorado na tragicidade, contida no próprio movimento transformador dos processos materiais e vitais. É o desejo fáustico de produzir um mundo diferente a cada momento, considerando perdas humanas como inerentes às transformações necessárias para a construção do porvir. É na figura do Fausto de Goethe que está encarnado o tipo fomentador, aquele que toma para si a tarefa árdua e monumental de romper com a solidez do mundo e construir novas referências. Tornar evanescente o que é sólido, desmanchando-o no ar é a afirmação que Berman (2007) emprega ao recorrer a Marx, no Manifesto do Partido Comunista, para descrever a experiência vivenciada nos centros europeus, de um mundo fraturado, perdendo suas referências, sem outras ainda para assumir seu lugar. A luta dos contrários e a força das novas exigências fez produzir um novo homem, vivendo sob duas condições: o desejo do novo sem perder as referências do constituído. A Paris do Terceiro Império é o local utilizado por Baudelaire para produzir seus poemas e escritos mais significativos, referentes às transformações intensas impostas pelo Barão Haussmann com o fito de construir uma nova cidade, aberta e de fácil deslocamento, com a inauguração dos Bulevares por onde transitavam as multidões e se controlavam as rebeliões. É também a cidade das passagens, do flâneur, dos trapeiros, das prostitutas, tão caros ao poeta, pelos usos diversos ao desejado, que faziam dos espaços citadinos, seja para se esconderem nos labirintos ou se vislumbrarem com as vitrines, para instituir um ritmo lento 29 diante da velocidade crescente dos fluxos nas ruas, da recolha, uso e produção de sentidos dos objetos descartados ou pela perda da auréola que marcava a cavalheirisse reinante. Baudelaire, segundo Berman (2007) não só destaca os novos tipos como acaba por construir uma elegia da conjugação dos opostos que a Modernidade apresenta. Ele saúda, sem cerimônias, o “novo tempo” das transformações e transfigurações que o sujeito experiencia. Confere heroísmo aos homens e mulheres imersos na modernidade, capazes de dar colorido às suas vidas nesse ambiente mutante, profano. A cidade, suas ruas e passagens são agora, objetos de preocupação e de elogios, políticas e escritas. Ela toma proporções inimagináveis, torna-se referente no direcionamento de fluxos, na produção de subjetividades e na construção de modos de vida. É o símbolo máximo da fabricação das novas racionalidades civilizatórias e do rompimento com a vida campestre e bucólica. A construção de uma cidade como símbolo da grandeza de um país foi a utopia de Pedro I na Rússia no início do século XVIII, ao construir São Petersburgo no pântano do rio Neva para ser a ligação com a Europa, inclusive transferindo a capital para esta cidade. Sua construção demandou muitos esforços de engenheiros e arquitetos estrangeiros e incontáveis mortes de trabalhadores. São Petersburgo, segundo Berman (2007) é, provavelmente, o projeto mais trágico da construção de uma cidade. São Petersburgo significaria a entrada russa na modernidade, com a ocidentalização da cidade à maneira de Paris e Londres, mas conduzida com mãos de ferro pelo Imperador. As diferenças sociais eram, francamente, marcadas pela presença da nobreza, transferida à força de Moscou, dos militares e dos burocratas estatais com suas regalias e prerrogativas da preferência pelo uso e deslocamento dos espaços citadinos. O Projeto Nevski é a expressão máxima do sonho petersburguense da utilização do espaço público e também da modernização da cidade. Nessa rua, havia a explosão da moda parisiense, do comércio em ebulição, do trânsito das senhoras e senhores da nobreza e burocratas estatais, juntamente com o deslocamento dos pobres e miseráveis da cidade, encantados com a imponência e luminosidade. Nela, poetas e escritores russos, produziram diversos conflitos entre a nobreza e a pobreza, revoltas contra o Imperador. Mas o que se tornou mais significativo do Projeto Nevski, foi a constante procura de afirmação do homem do subterrâneo, conforme descrito por Dostoievski, frente às imposições sociais para também poderem serem modernos. Outra expressão do desejo trágico da modernidade foi a revitalização imposta por Robert Moses na cidade de Nova Iorque, a feição do Barão Haussmann: a destruição criativa. 30 Retirar a cidade do “atraso” e dar ares cosmopolita. Foi o trabalho hercúleo empreendido por Moses, abrindo a fórceps os espaços de trânsito pelos bairros, para atender o intenso fluxo automobilístico, foi umas de suas marcas. Bairros inteiros foram degradados, deixados à margem do desenvolvimento prometido pelas construções monumentais inauguradas, aumentando o contingente de pessoas despossuídas, sem moradia ou referência dos lugares vividos e simbólicos. Convivendo com os entulhos deixados pelas construções das autovias e com a degradação dos bairros, marcas impostas pela aventura da modernidade de Moses. A cidade destruída criativamente e reconstruída para tornar-se uma cidade para os Nova-iorquinos, transformou-se logo em uma cidade que excluía contingente significativo de moradores que deixaram de ter acesso à City, convivendo com a falta de políticas públicas e com a criminalidade crescente. O sonho de tornar acessível a cidade a todos os moradores se tornou o pesadelo de produzir uma cidade sem cidadãos. O Bronx e o Harlem, para Berman (2007) constituíram-se no paradigma da tragicidade, da primeira metade do século XX, aquela que não escapou ao imperativo de “tudo que é sólido, desmancha no ar”. As frequentes transformações experenciadas na modernidade, apresentadas em vários âmbitos como social, cultural, tecnológico, do conhecimento, geraram consequências nos modos de produzir, relacionar-se nas expectativas presentes e futuras, as quais Giddens (1991) considera resultantes de três fontes distintas, mas intimamente relacionadas nomeadas como: separação entre espaço e tempo, desenvolvimento de mecanismos de desencaixe e apropriação reflexiva do conhecimento. A separação entre espaço e tempo configura-se em um dos grandes eixos orientadores da modernidade, por exercer uma ruptura com as vivências e experiências cotidianas, relacionais e de pertencimento da pré-modernidade. A ordem do tempo-espaço local sofre um abalo significativo frente à emergência de novos espaços e tempos de escalas variadas e homogeneizantes. Essa condição, segundo Giddens (1991), só consegue se tornar hegemônica nos fins do século XIX. Giddens (1991) prossegue pontuando que a separação entre espaço e tempo se torna mais premente na modernidade, pois desconectando esses dois surge o esvaziamento do espaço e, por conseguinte, a separação entre espaço e lugar e a produção de lugares fantasmagóricos. Os lugares locais sofrem cada vez mais a penetração dos tempos e espaços distantes. A consecução do ausente como fenômeno organizativo do local tornou imperativo na construção e configuração das interações sociais, culturais, afetivas entre outras. 31 Esse fenômeno é possível frente ao formato universalizante dos tempos e espaços como a construção de mapas e horários globais. É nessa ordem que se constroem as relações locais. Mediadas pela globalização, tentam dar sentido aos processos de presença e ausência, construir uma confiança básica em sistemas abstratos, em fenômenos externos, que exigem contatos não apenas face a face. E mesmo esses, já são mediados não só pelos atores locais, outros ausentes se tornam presentes nas produções de subjetivações. Atrelada à separação entre espaço e tempo Giddens (1991) apresenta os mecanismos de desencaixe como o segundo fator inerente à modernidade. O desencaixe, segundo Giddens, é o deslocamento das relações produzidas em âmbitos locais para as produzidas em grandes escalas, de extensões indefinidas. É a reorganização das relações sociais por meio de grandes distâncias espaço-temporais. É uma tentativa de dar conta das interações locais através da roupagem das relações indiferenciadas. Os mecanismos de desencaixe são subdivididos em três processos intimamente relacionados: fichas simbólicas, sistemas peritos e confiança. As fichas simbólicas são intercâmbios de sistemas, processos, símbolos, que não necessitam de características individuais ou grupais para se constituir. São exemplos dados por Giddens (1991) os meios de legitimação política e o dinheiro. Os sistemas peritos, por sua vez, são os de excelência técnica como as novas tecnologias e as ciências ou as competências profissionais que dispõe desses recursos para produzir, utensílios, técnicas, conhecimentos que organizam os ambientes material e social aos quais vivemos. Juntamente com as fichas simbólicas, os sistemas peritos são mecanismos de desencaixe, segundo Giddens (1991), por remover as relações dos contextos imediatos. Já a confiança consiste em atuar no mundo considerando os riscos dos processos envolvidos na produção de modos de viver, deslocar-se, relacionar-se, utilizar os meios técnico-científicos. Conseguir calcular as alternativas nesses processos é parte fundamental para a construção da confiança. É poder estabelecer relação com os mecanismos que engendram credibilidade, sejam pessoas ou sistemas. Os mecanismos de desencaixe são os referentes da concretização da modernidade. A terceira fonte do dinamismo da modernidade é nomeado por Giddens (1991), como apropriação reflexiva do conhecimento: consistindo na produção sistemática de conhecimento sobre a vida social, engendrando um deslocamento da fixidez da tradição por meio da reprodução do sistema. Ela pode ser subdividida em quatro conjuntos: poder diferencial, o papel dos valores, impacto das consequências não pretendidas e circulação do conhecimento social na hermenêutica dupla. 32 O poder diferencial diz respeito à apropriação do conhecimento especializado por pessoas ou grupos específicos, geralmente aqueles que possuem os meios técnicos e econômicos; em relação ao papel dos valores há uma vinculação de valores e conhecimento empírico por meio de uma rede de influência mútua; no que se refere ao impacto das consequências não pretendidas. Há uma transcendência das intenções da aplicação do conhecimento por aqueles que o aplicam; por fim no que concerne à circulação do conhecimento social na hermenêutica dupla. Há a ocorrência da transformação das circunstâncias da aplicação do conhecimento reflexivo no que tange à reprodução do sistema. Junto aos mecanismos de desencaixe há os mecanismos de reencaixe, conforme pontua Giddens (1991), visando remodelar ou reconfigurar as relações sociais desencaixadas às formas e condições locais de tempo e espaço, por meio de compromissos com rosto e sem rosto. Essa dupla condição ocorre de forma a dar conta das tensões e arranjos produzidos pela modernidade. Os mecanismos de desencaixe podem atuar, tanto como suporte, quanto para abalar os mecanismos de reencaixe. A confiança na modernidade e no que ela produz está vinculada à esperança de conseguir se mover num mundo que se desestabiliza constantemente e tenta se autossustentar. Um mundo em mudança contínua, em que tempo e espaço se distanciam, para em seguida, buscar se reaproximar. É a produção da confiança em sistemas abstratos, em relacionamentos sem rostos, impessoais à maneira dinheiro e do modo blasé de vida como propunha Simmel (2009). A vida moderna é tratada por Simmel (2009) como a transformação e transferência dos conteúdos do conhecimento, da ação e da constituição dos ideais de fixo, substancial e duradouro para um estado de movimento e de instabilidade. Acrescenta ainda, que nesse novo modo de vida, os indivíduos renunciam de bom grado às verdades incondicionais, opostas a toda mudança, em troca dos processos que leva à transformação, ao conhecimento e correção constantes. Um dos agentes propiciadores dessa mudança é o dinheiro. Responsável por produzir novos modos de vivências afetivas, cognitivas, relacionais, por transfigurar a relação do indivíduo com a propriedade, tanto material, quanto imaterial. Apresenta também, uma constante organização da racionalidade das trocas, da dinâmica e dos ritmos da vida, da organização urbana e transformação do tempo e espaço da cidade. Simmel (2009), afirma que essas mudanças ocorreram devido à indiferenciação e planificação possibilitada pelo dinheiro em relação ao valor das coisas. 33 Outra característica do dinheiro é sua ausência de qualidade, logo, não se constitui como um fator de diferenciação e personalização, podendo ser mediador de trocas e restituições de todas as coisas. Ele planifica as diferenças, cria uma unidade de medida à qual serve de baliza, de ponto de partida e de chegada, valorado sempre ao quantum, o que permite constituir seu caráter de impessoalidade, tornando-se assim mais incolor, aumentando sua circulação e garantindo a compra de coisas cada vez mais diversas. O nivelamento, a indiferença, a racionalização, apresentados pelo dinheiro na cultura moderna, são elementos constituintes da emergência de uma nova forma de experienciar as frequentes mudanças e de lidar com o mundo em ebulição: a atitude blasée. Simmel (2009) entende a atitude blasée como a elevação do dinheiro como denominador comum para todos os valores da vida. E se dá quando há a transmutação do que vale para o quanto vale. Para Simmel, o indivíduo que acredita ser tudo passível de ser pago, mediado ou valorado como dinheiro será inelutavelmente um blasé. O processo planificador do dinheiro é fundamental para a construção do indivíduo blasé, por sofrer os mais variados estímulos incessantemente e necessitar manter a integridade psíquica diante de uma plêiade de ofertas, necessidades, interações, desejos, afetos, encontros, exigências. A alternativa para conseguir manter a integridade é o embotamento desses variados estímulos, nivelando-os, tornando-os uniformes, criando uma zona cinzenta, descolorindo a vida. Simmel (2009) afirma que o blasé reconhece tais estímulos, mas precisa criar uma capa protetora – atitude de reserva – para poder viver na grande cidade. A forma de vida na impessoalidade se torna sua característica marcante. A racionalidade, intelectualidade e o nivelamento das relações coadunam com os modos metropolitanos modernos de gerir a vida dos citadinos. Garantir a ordem no caos urbano das grandes cidades, tornou-se urgente e necessário. Regular os espaços e o tempo, diferenciando-os e uniformizando-os, também são marcas presentes no mundo novo. A metrópole moderna para Simmel (2009) é fonte de excitação dos nervos pelo ritmo de vida que ela provoca: acelerado, instável, meticuloso, intelectivo. Considera haver relação intrínseca entre o modo de vida anímico produzido pelo dinheiro com o modo anímico das grandes cidades. O perfil metropolitano de existência se aproxima da racionalidade cerebral e à figura do bolso (em sentido econômico), em detrimento do coração e as metáforas associadas a ele. A objetividade se torna eixo orientador da relação dos homens e das coisas, da natureza e da técnica. 34 Na metrópole, por seu caráter racionalista, o modo blasé e a reserva propiciam ao indivíduo o sentimento de liberdade e expansão, tanto interior, quanto exterior, extrapolando os limites físicos e constritores dos movimentos na urbe, irradiando para outras esferas como o cognitivo e o afetivo, com ressonâncias na individualização espiritual. A grande cidade tornou-se o lócus do cosmopolitismo, a convivência de vários mundos no mesmo lugar. O indivíduo sente-se em casa diante da multiplicidade de tempos e espaços, do fragmentário e descontínuo. Em contraste a esse modo anímico de vida Simmel (2009) apresenta a cidade pequena e o campo como propiciadores de contatos próximos, orgânicos, marcados pelo ritmo mais lento e pautados pelos sentimentos nas relações. Há nele uma força coercitiva, que agrega e mantém os laços, onde a individualidade e a reserva não exercem força nas interações. Há aqui, uma permeabilidade na fronteira entre os membros da comunidade, por sua estreiteza de relações, o que permite serem cuidados e vigiados. Uma vida nesses moldes seria inviável para um citadino das grandes cidades, pelo constrangimento sentido, pela proximidade e pela força coercitiva de agregação vivenciados nas cidades pequenas. São dois modos distintos de viver na cidade na modernidade, opostos e complementares: o constrangimento sentido pelo metropolitano na cidade pequena e o excesso de estímulos e excitações dos camponeses na metrópole. Córdis e intelecto, individualidade e comunidade, trocas de produtos e trocas monetárias, ritmo acelerado e ritmo cadenciado são alguns dos produtos dessa dinâmica. Essa separação de ritmos de vida, dos modos de produção das cidades e das experiências de espaço e tempo, descritas por Simmel (2009) na modernidade do fim do século XIX e início do século XX, ganha contornos muito diferentes nos fins do século XX com a emergência de uma nova forma de experienciar o espaço e tempo, a subjetividade, afetos, discursos, linguagem, símbolos entre outros. A desconstrução e reconstrução das formas de vida, dos usos e fabricações de símbolos, linguagens e técnicas foi denominado por pós-modernidade e, conforme apresenta Harvey (2014) esse termo está carregado de questionamentos, quanto à sua legitimidade para descrever e explicar o mundo contemporâneo. O modernismo argumenta Harvey (2014) – usando como referência um quadro formulado por Hassan – mesmo fazendo várias ressalvas em relação a ele, configura-se como um período em que predomina a centralidade, a grande história, a totalização, a razão, a centração, a obra acabada, a origem, o projeto entre outros. 35 É a busca da regularidade, da limpidez, da racionalidade e da fé na produção humana e em um futuro próspero e ordenado. A sociedade desejada é una e coerente, orientada pelas grandes narrativas, pelas instituições disciplinares, encarnadas nos tipos ideais para regular a vida e suas vicissitudes. No polo oposto do quadro de Hassan, apresentado por Harvey (2014) estão as características do pós-modernismo, que dentre tantas, estão o acaso, a anarquia, o processo, a performance, a dispersão, a desconstrução, o rizoma, a superfície, o polimorfo, o andrógino, a indeterminação, etc. Aqui a centralidade do sujeito dá lugar à descentração, a pluralidade, ao múltiplo, os grandes referentes da vida e da ordem social evaporam-se, as regularidades e continuidades são agora substituídas pelos modos esquizofrênicos, descontínuos de subjetivação. Há a passagem do indivíduo para o divíduo e o sujeito deixa de ser uno para ser fragmentado. Harvey (2014) não acredita que essa dicotomia caracteriza efetivamente esses dois períodos. Ela é apenas um ponto de partida para pensar as transformações ocorridas nas últimas décadas do século XX em todos os âmbitos. O autor contrapõe essa dicotomia defendendo que, o pós-modernismo não se opõe às caraterísticas da modernidade, na verdade ele nada e se espoja nas correntes da mudança e das transformações, mesmo que fragmentárias e caóticas. Dentre todas essas transformações e mudanças, uma em especial é considerada por Harvey (2014) como o marco da ruptura entre o moderno e o pós-moderno. Trata-se da implosão do conjunto de prédios habitacionais Pruitt-Igoe, em Saint Louis em 1972, que fez ruir, cair por terra a máquina da vida moderna Le Courbersiana, tornada inabitável e insustentável, pela sua arquitetura asfixiante de construções homogeneamente ordenadas, assépticas e sem vida, que impossibilitava trocas, arranjos e pertencimento dos habitantes. O empreendimento Le Courbersiano se tornou uma máquina dessubjetivadora e inabitável. A cidade moderna, para Harvey (2014) era projetada para se tornar uma estrutura única, fechada, acabada. Era vista como uma totalidade passível de ser manipulada e dominada. Já os arquitetos e planejadores pós-modernistas pensam a cidade como inacabada, incontrolável, caótica, aberta, onde os acasos se produzem e possibilitam formas múltiplas de interações, uma anarquia convulsionante. A cidade pós-moderna se configura como processo e a moderna como finalidade. Os propósitos modernistas de pensar, construir e viver a cidade para Harvey (2014) eram planejados e desenvolvidos, para serem aplicados em larga escala, em amplitude metropolitana, racionais e eficientes. 36 Já os pós-modernistas pensam o projeto urbano, como um tecido fragmentado, em que o antigo e o novo se misturam, sobrepõem-se e o efêmero também é considerado, resplandecendo num ecletismo arquitetônico. Concebem ainda, ser impossível atuar sobre a cidade em sua totalidade, preferindo comandá-la por pedaços, em âmbito local. O que é característico também da transição do moderno, para o pós-moderno é a mudança na forma e como o espaço e o tempo são concebidos, vivenciados, organizados. De um tempo regular, cíclico, repetitivo e por um espaço segmentado, recortado, objetivo, hierárquico que marcava os ritmos da vida para um tempo e espaço contínuos, fluídos, evanescentes, desfazendo as linhas demarcatórias entre local e global e suas configurações. A compressão espaço-tempo, cada vez mais acelerada nas últimas décadas, é descrita por Harvey (2014), como um processo revolucionante, das qualidades objetivas do espaço e do tempo que, nos força a modificar radicalmente como representamos o mundo para nós mesmos. Há uma aceleração do ritmo da vida e uma mudança radical sobre como concebemos o espaço e o tempo, pode produzir um fenômeno caracterizado como supressão do espaço pelo tempo. A velocidade como fio condutor da compressão do espaço-tempo, torna na contemporaneidade, um importante disparador para as conquistas e mutações locais e globais. No entender de Harvey (2014) aquele que for capaz de controlar o espaço poderá, como corolário, dominar a política de um lugar, como também, os meios técnicos, informacionais, econômicos, sociais, impondo os ritmos e fluxos para a acumulação flexível do capital e exercício do poder. A tomada da velocidade como objeto de estudo e eixo orientador por Virilio (1996; 2014) é um importante disparador para pensar a contemporaneidade e suas transformações. Ela agora, torna-se a referente e organizadora dos modos de vida, dos processos sociais, políticos, relacionais, cognitivos, afetivos, subjetivos entre outros. Viver na velocidade se torna o imperativo ao qual estamos atravessados e impelidos nesse momento. Virilio (1996), utiliza neologismos criados a partir do radical grego dromos, tais como dromologia e dromocracia, para definir o domínio da velocidade sobre outros processos. Estes neologismos são criados mediante a junção do radical dromos, significando corrida, curso, marcha com logos (estudo, palavra) e kratos (domínio, poder, governo). Para ele, há uma transposição do modo de exercer a política: da referenciada na democracia para a referenciada pela dromocracia. A velocidade se tornou objeto da política e geri-la, produzi-la, cerceá-la, passou a ser fonte de preocupação das sociedades contemporâneas. 37 A política da velocidade e a velocidade da política conjugam-se para produzir uma mobilidade incessante, um deslocamento vetorial, uma ditadura do movimento. Há uma lógica da desterritorialização, com consequente desinvestimento no mundo para um investimento crescente no vetor. Virilio (1996) chega até a dizer que o poder já não está mais em quem domina os meios financeiros, mas na velocidade por permitir o controle do movimento. É possível traçar um paralelo entre as formas de vivenciar e exercer a velocidade, conforme aponta Virilio (1996). A princípio, elas parecem dicotômicas e antagônicas, mas são complementares e intrinsecamente relacionadas, trata-se do par Elite Dromocrática – povos esperançosos e Proletários – povos desesperançosos. Aos primeiros são reservados a mobilidade ilimitada e o domínio dos meios técnicos para exercê-la e aos segundos é imputado uma despotencialização da mobilidade, uma desterriteriorização forçada, produzindo uma inferioridade dos meios técnicos, até chegar à imobilidade. Um exemplo das transformações e mutações dromológicas e dromocráticas é expressa nas constituições das cidades, mais precisamente, nas construções, reconstruções das ruas. Um ícone é a destruição criativa proporcionada pelo Barão Haussmann em Paris, deixando as ruas largas e retilíneas com o objetivo de gerir os movimentos das massas e dos oponentes. Virilio (1996) acrescenta ainda que a rua se tornou uma via sinóptica de controle dos fluxos humanos e materiais, chegando o Estado, a confundir ordem social com controle da circulação. Não se admira o esforço hercúleo para o gerenciamento das ruas, com as proibições e regulações impostas, principalmente, quando se trata de aglomerações e controle do tráfego de veículos. A grande questão, no que concerne às ruas, é o problema da circulação, seus ritmos e fluxos. Parar ou estacionar é contraproducente por afetar o tráfego e o “livre” movimento. O movimento dromológico para as massas na cidade, para Virilio (1996) passa da coação à imobilidade, para a coação à mobilidade. Fazer mover, circular é um dos mecanismos de controle políticos mais poderosos, por incitar o movimento dentro dos corredores de fluxos citadinos e intercitadinos, produzindo agregações e dispersões, acelerando ou reduzindo o ritmo da velocidade de marcha, de deslocamento, criando a “ditadura do movimento” em contraposição à liberdade de movimento. O poder dromocrático consiste em poder decidir entre o mover e o não mover, em atuar sobre o espaço e tempo referenciado pela velocidade, que pode chegar à instantaneidade, transformando o lugar em não lugar, com a perda do espaço territorial pela governança do 38 tempo. É o desenraizamento radical dos espaços constitutivos, substituído pela lógica da corrida, do vetor, da mobilidade constante e incessante. Tratando da lógica, espaço-tempo-velocidade, ou melhor, da sobreposição tempo- velocidade sobre o espaço territorial, Virilio (2014) afirma que a instantaneidade suplantou outras formas de experenciar o espaço-tempo, criando uma atopia que liquida os lugares físicos e que o mundo contemporâneo transmigrou do aparente para o transparente, criando uma crise na noção de dimensão, indo da estética das imagens estáveis à estética das imagens instáveis. O ver e perceber sofre uma fratura significativa com o achatamento dos espaços, dos relevos e das perspectivas. Virilio (2014) postula ainda, ser os regimes de visibilidade impostos pela lógica da distância-velocidade, medidos não mais pelos sistemas cronométricos, mas pelos cinemométricos os dominantes e causadores da crise de representação, pois o imagético, o transparente, assume as rédeas da organização espaço-temporal, mediado pelo regime de luminosidade e profundidade próprios do cinema. É a velocidade e instantaneidade quem determina as recomposições dos processos metabólicos (imagens mentais e oculares) e tecnológicos, virtualizando as experiências e representações. A virtualização também está presente nas cidades contemporâneas, mediadas pelo regime de visibilidade produzido pela velocidade-instantaneidade, que rompe com o tempo cíclico, como a dicotomia noite-dia, e com os espaços segmentados (quarteirões, bairros). Ela, agora, é mais uma representação, uma imagem de uma cidade, que propriamente uma cidade real, ela é uma fantasmagoria. A cidade, na proposição de Virilio (2014) já não guarda mais as regularidades e os controles de entradas e saídas, dos pórticos. Está sob a vigência do espaço-tempo tecnológico, que visa a abertura e fluidez das trocas, estando atravessada por uma variedade de agentes externos que impõe uma dinâmica diversa da vivida no local, transmutando o ritmo de vida, dos afetos, das relações e da experiência com os lugares. Há uma sobreposição de tempos e espaços e esvaziamento do lugar. É característico da cidade da velocidade, da dromocracia, conforme aponta Virilio (2014), o controle dos fluxos populacionais e de sujeitos dissonantes do ritmo dromológico imposto, necessitando utilizar estratégias para gerir a mobilidade e o trajeto, que consiste não mais em encarcerar, isolar. Trata agora, de interceptá-los em seu trajeto, mediante os recursos tecnológicos disponíveis de visibilidade instantânea. Os alvos privilegiados são segundo Maffesoli (2001) os vagabundos pós-modernos, por não se movimentar em direção ao imóvel, ao inerte, por estar orientado sempre pelo 39 trajeto, preferindo o movimento não regulado, não se encaixando nos trilhos da sociedade dromológica, construtora de espaços de fluxo, ou nos dizeres de Augé (2012), de não lugares. A nova roupagem do tempo, espaço e do indivíduo na contemporaneidade é objeto de estudo de Augé (2010; 2012) ao recorrer à antropologia para dar conta dos fenômenos complexos, que ocorrem preponderantemente nos ambientes citadinos. Propõe-se não só descrever, mas analisar como as sociedades complexas e suas interações produzem modos de experenciar a mobilidade e a individualidade, de viver em espaços de trânsito, mediadas por figuras de excesso, de superabundância, características da sobremodernidade ou supermodernidade em contraposição à pós-modernidade. Augé (2012) considera a supermodernidade como o lado cara (positivo) da moeda e a pós-modernidade o lado coroa (negativo). Para ele a pós-modernidade é descritiva e indica ruptura com a modernidade gerando uma crise no sentido de presente. Já a supermodenidade, é analítica, busca dar sentido ao presente mesmo frente às figuras de excesso, que a caracteriza como a superabundância factual, espacial e individualização das diferenças que correspondem às transformações das categorias de tempo, espaço e indivíduo. A primeira das três figuras de excesso da supermodernidade, conforme Augé (2012) é a superabundância factual. Caracterizada pela aceleração da história por meio de um excesso de informações, de um tempo sobrecarregado de acontecimentos, que obstaculiza tanto o presente, quanto o passado próximo, estendendo a memória coletiva, genealógica, histórica dos indivíduos e criando sensações de que a História cruza com sua história pessoal. É a intenção de tornar inteligível, dar sentido ao mundo no tempo presente. A segunda figura de excesso da supermodernidade, para Augé (2012) é a superabundância espacial. O excesso de espaço paradoxalmente se dá pelo encolhimento do planeta, pela mudança nas escalas e nas distâncias, pelo aumento de velocidade dos transportes, meios de comunicação, satélites e pela criação dos não-lugares, vias de trânsito e acesso rápido. A simultaneidade dos fatos e a crescente mobilidade, tanto física, quanto cognitiva, juntamente com a produção de imagens também são possibilitadores dos excessos espaciais. Há vários espaços se sobrepondo e interconectando, afetando diretamente os sujeitos. A terceira e última figura de excesso da supermodernidade, proposta por Augé (2012) é a individualização das referências. O indivíduo, nesse processo, acredita ser o centro do mundo, tomando a si como referência para interpretar as informações recebidas. 40 Há uma perda das referências coletivas, com consequente enfraquecimento destas, e uma exacerbação do individualismo, tornando ilusória, mas necessária à produção individual de sentido. A individualização produzida não garante a construção de referentes identitários. Como signos da perda dos referentes identitários, na supermodernidade, estão os não- lugares, estes com excesso de tempo, espaço e individualidades, onde o trânsito, a mobilidade, da aceleração dos ritmos vitais, as parcas ou inexistentes trocas afetivas e simbólicas constituem a tônica dos movimentos e das relações com o espaço, com o tempo e com outros indivíduos. Os não lugares, na proposição de Augé (2012) são aqueles não identitários, relacionais ou históricos. Estão na lógica do descontínuo, do provisório, do efêmero, do transitório. Não há a possibilidade de criação de sentimento de pertencimento, de vinculação ao lugar pela impossibilidade de construir laços, rotinas, etc. A função dos não lugares é fazer mover, deslocar, transitar, dado sua fluidez e brevidade como os aeroportos, rodoviárias, shoppings, autoestradas entre outros. Em contraposição aos não lugares Augé (2012) propõe que há o lugar antropológico: identitário, relacional e histórico. Remete aos lugares significativos, afetivos e simbólicos, produtores de sentidos e constituidores de referentes e fonte de estabilidade e identidade. É aquele que simbolicamente se pode voltar, é o lugar de segurança como o local de nascimento e moradia, os lugares sagrados, monumentais, demarcam fronteiras, entre outros. É importante pontuar que lugar antropológico e não lugares não são excludentes, e não existem em sua forma pura. Eles são polaridades fugidias onde os não lugares não se realizam em plenitude e os lugares antropológicos nunca são apagados completamente. Continuando com a proposta de analisar os processos contemporâneos da sobremodernidade ou supermodernidade Augé (2010), dedica um livro para tratar da antropologia da mobilidade, postulando ser importante considerá-la em diversas escalas e contradições. Pensar a mobilidade na contemporaneidade, para o autor, é aprender a repensar o tempo e o espaço na complexidade das demandas que se apresentam no cotidiano citadino. Retomando a mobilidade no espaço sobremoderno Augé (2010) considera ela permanecer um ideal inacessível a grande parcela da população, mesmo sendo condição primeira para a apreensão concreta da vida social e uma educação real. Já no que concerne à mobilidade no tempo, esta possibilita aprender a história e se deslocar no tempo, com o olhar direcionado para o presente com vistas à conquista da liberdade, tanto de espírito, quanto corporal. 41 Levar em consideração a mobilidade na sobremodernidade para Augé (2010) é pensar a questão da fronteira como paradigma, como eixo orientador. Ao contrário do que se possa imaginar, que as fronteiras se diluíram na contemporaneidade, o autor sustenta que as fronteiras jamais desfazem, elas se redesenham, transformam-se. Entender como elas se constituem e reconstituem é importante para pensar a globalização, a mundialização, a localização e as construções de barreiras entre os países ricos, pobres e emergentes e entre as barreiras produzidas nos espaços citadinos. Pensar as fronteiras também possibilita discutir o processo de urbanização nas últimas décadas e suas feições de cidade-mundo, como propõe Augé (2010). As cidades congregam o global e o local, uma superposição, de espaços e tempos e um redesenho constante, de fronteiras em seus espaços, como a construção de bairros privados ou privatizados, superprotegidos, até mesmo aqueles que escapam ao controle estatal. A cidade-mundo está mediada principalmente pela tecnologia e pelos fluxos que dela entram e saem. O processo de urbanização, conforme Augé (2010) também está atrelado às definições das fronteiras e sua gestão das fraturas sociais, de lidar com o problema do habitat e da pobreza urbana, das interações do centro e periferia, considerada como a fonte da miséria, criminalidade, desemprego, subabitação. É dar conta de propiciar a livre economia liberal, a circulação de bens, mensagens, ideias e da massa de pobres e desvalidos que buscam forçar a alteração das barreiras impostas. A mobilidade na contemporaneidade, segundo Augé (2010) também é um processo que redefine a política de circulação humana, para incitar o movimento e torná-lo compulsório. Atuar para produzir mobilidade e imobilidade, são arranjos engendrados por essa política. No entanto, ela segue a lógica de possibilitar a uns, o livre exercício do movimento e a outros, o cerceamento ou a imposição deste. Por fim, Augé (2010) enfatiza que, o nomadismo na sobremodernidade não guarda relação com o nomadismo estudado pelos etnólogos. No primeiro caso, é um nomadismo calcado na desterritorialização e no individualismo, enquanto no segundo caso, o nomadismo está vinculado ao sentido de lugar e território, tempo e retorno. A errância e o nomadismo são os temas centrais do debate e das argumentações propostas por Michel Maffesoli (2001) no livro “Sobre o nomadismo: vagabundagens pós- modernas”, considerando estes como fundadores e elementares da constituição e questionamentos de sociedades, instituições, grupamentos, individualidades, entre outros. Considera a errância intrínseca a constituição do sujeito, da qual ele não pode se dispor. Está inscrita, por assim dizer, em sua carne e em sua subjetividade. 42 Maffesoli (2001) chega a dizer que há uma pulsão da errância que incita o sujeito a estar simbólica, subjetiva ou corporalmente em movimento. É o desejo de evasão, de sair rumo ao desconhecido, ao novo, que impera. Este é o elemento fundador que coloca a errância no centro da questão humana. É estar atento a uma perfeição que virá, apostando num pensamento que considere a pluralidade, o erro, o outro, o heterogêneo como referentes na busca do equilíbrio, que repousa sobre a intuição da impermanência das relações, das coisas e dos seres. A errância tem algo de lúdico, de trágico, de afetuoso, ao mesmo tempo, em que possui algo de inquietante, de subversivo, de contestador. É nesse paradoxo que ela se compõe. A errância, segundo Maffesoli (2001), é constituidora de liberdade, seja de pensamento, de costumes ou de atitudes, por possibilitar o esmaecimento e transposição de barreiras, que buscam constranger o movimento. Outro ponto importante a se considerar, diz respeito ao caráter referencial da errância frente ao sedentário. É a partir dela que nos orientamos e não o contrário. Maffesoli (2001) ao tratar desse caráter da errância, apresenta uma espécie de “dialética da errância”, ao sustentar que tudo que é móvel tende a se ossificar, aquilo que em um momento é anômico, em outro se torna canônico, é um jogo entre a mesmice e a alteridade de si. Mesmo ocorrendo esse movimento, que leva do anômico ao canônico, a errância guarda essa força inalienável de desestabilizar o instituído, quando ele se torna opressivo e limitante, sedentarizante e imobilizante. A errância e o nomadismo, para Maffesoli (2001) são antitéticos aos Estados Modernos, por eles atuarem no sentido de sedentarizar, domesticar os sujeitos, seus afetos, trajetos, fixando-os em territórios, criando estratégias para restringir o retorno ao modo arcaico de vida: do movimento sem compromisso. Para o autor, o mote do Estado moderno é fixar, tendo como ideal de poder a imobilidade absoluta, já que fixar é garantir a possibilidade homogeneizar e dominar. Não surpreende, conforme Maffesoli (2001) o desconforto e a desestabilização causada pela figura do vagabundo e a violência empreendida sobre ele no século XIX. O vagabundo representava, e representa, o erro, a fratura na lógica homogeneizante e sedentarizante, imprimida pela racionalidade iluminista, bem como, a ameaça de retorno do desejo de evasão, de subversão ao instituído, a desconsideração das barreiras postas e impostas, a desagregação da sociedade e da política de dominação pe